sexta-feira, 26 de abril de 2024

Rituais funerários em Atenas

Sólon determinou moderação nas lamentações pelos atenienses mortos


Atenienses contemporâneos de Sólon (¹) enterravam os mortos com a cabeça voltada para o Ocidente, ao contrário de outros gregos (²). Não era só: em Atenas era costume sepultar uma só pessoa em cada túmulo, enquanto outros gregos (³) não viam problema em enterrar três ou quatro pessoas na mesma sepultura. Talvez não houvesse muita lembrança desses detalhes, não fosse o fato de Plutarco tê-los mencionado em Vitae parallelae, ao escrever a biografia de Sólon, legislador ateniense, que conduziu os interesses de sua cidade na disputa contra os megarenses pela ilha de Salamina. 
Consta, também em Vitae parallelae, que com a ajuda de Epimênides de Creta, reputado um dos grandes sábios da época, Sólon teria introduzido algumas mudanças nos rituais funerários praticados em Atenas:
"Ordenou-se que nas homenagens prestadas aos mortos houvesse mais moderação, em lugar das lamentações exageradas que até então se faziam, como se muito choro pudesse, de algum modo, ser útil aos que haviam morrido." (⁴)
Isso não significa, contudo, que em qualquer caso os que morriam fossem sempre e necessariamente deixados em paz. Por ocasião de uma rebelião popular enfrentada por Sólon e outros líderes atenienses, os revoltosos foram condenados, em julgamento público, ao exílio - estavam obrigados a ir viver fora da Ática. Quanto aos rebeldes que haviam morrido na sedição, aplicou-se a mesma sentença: "Em julgamento público decidiu-se que, quanto aos rebeldes já sepultados, seus ossos fossem desenterrados e levados para fora dos limites da Ática" (⁵), a região da Grécia onde se encontrava Atenas. Vingança perversa? Não, apenas uma evidência de que, para um ateniense, a pior punição seria a imposição de estar longe de sua cidade, quer na vida, quer na morte. 
 
(1) Sólon morreu em c. 560 a.C.
(2) Os habitantes de Mégara, por exemplo, sepultavam os mortos com a cabeça direcionada ao Oriente, segundo Plutarco.
(3) Novamente, era o que acontecia em Mégara. 
(4) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) Ibid. 


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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Um escravo que restaurava livros

Havia falta de mão de obra qualificada no Brasil Colonial. Uma explicação para isso é que fidalgos (¹) estavam proibidos, pelas leis da época, de trabalhar nos chamados "ofícios mecânicos" (²), sob pena da perda da posição social que tanto valorizavam. Se eram abastados, colonizadores compravam escravos para o trabalho, mas, se não eram, viviam na maior penúria, ainda se achando nobres. 
Contudo, era justamente na escravidão que estava a origem da escassez de mão de obra qualificada, porque pessoas livres entendiam o trabalho como uma desonra, coisa deixada apenas para cativos, e, por isso, quase todos fugiam dele. Na tentativa de resolver o problema, dentro da lógica daquele tempo, havia proprietários de escravos que tratavam de ensinar ofícios aos cativos, e seu trabalho era, então, realizado tanto na propriedade do respectivo senhor, ou prestando serviço a outros. A remuneração, neste caso, era do proprietário, não do escravo (³).
Ora, ao lado desse cenário já pouco lisonjeiro, havia também uma carência acentuada de profissionais, mesmo em áreas não estigmatizadas socialmente, pelo simples fato de que algumas profissões exigiam uma qualificação difícil de ser obtida no Brasil. É curioso como, também nesses casos, a solução podia vir - era a lógica da época - mediante o treinamento de um ou mais escravos, sob a supervisão de pessoa habilitada. Foi o que aconteceu no Século XVIII no Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro, quando era abade ninguém menos que frei Gaspar da Madre de Deus, famoso por seus escritos relacionados à história do Brasil. 
Vamos explicar a situação: o ilustre abade, no exercício do cargo, queria melhorar a biblioteca do mosteiro, cujos livros, já muito gastos, precisavam, com urgência, da mão de um restaurador. Lê-se nos Anais do Rio de Janeiro, de Balthazar da Silva Lisboa:
"O seu amor pela ciência o obrigou a recolher um livreiro na casa da livraria (⁴) com avultado salário, para compor os livros danificados dos insetos, fazendo ensinar este ofício a um escravo [...]." (⁵)
Daí por diante esperava-se que o escravo fizesse a manutenção dos livros. Escravos, aliás, faziam a maior parte do trabalho dentro de quase todas as instituições religiosas e em suas diversas propriedades (⁶). Um procedimento análogo foi adotado algum tempo depois, quando frei Francisco de São José era abade no mesmo Mosteiro de São Bento e decidiu estabelecer uma enfermaria para os escravos:
"[...] Construiu uma boa e regular casa para enfermaria dos escravos, provendo-a de todo o necessário, além de colchões, lençóis, etc. Fez instruir em medicina um escravo da fazenda dos Campos, a quem deu livros e instrumentos de cirurgia, preparando a sua instrução o cirurgião do partido (⁷), para acudir na falta dos professores aos doentes." (⁸)
Ora, se recebeu livros, o escravo devia, pelo menos, saber ler, o que já era uma grande novidade naqueles dias.  

(1) Quase todos os colonizadores se achavam pertencentes à nobreza, embora muitos estivessem bem longe disso.
(2) Eram chamadas "ofícios mecânicos" as profissões que envolviam trabalho manual. São exemplos as de sapateiro, tecelão, pedreiro, carpinteiro e muitas outras. 
(3) Essa prática persistiu não só no Brasil Colonial, como foi muito comum inclusive durante o Império. Havia gente que vivia exclusivamente dos ganhos provenientes do aluguel de escravos treinados em algum ofício.
(4) Por livraria, entenda-se biblioteca.
(5) LISBOA, Balthazar da Silva. Anais do Rio de Janeiro, tomo VI. Rio de Janeiro: Seignot-Plancher, 1835, p. 354.
(6) A existência de cativos para o trabalho nos mosteiros, conventos e outros locais pertencentes às várias Ordens religiosas foi uma constante, não só durante os tempos coloniais, como mais tarde, em parte do Império. 
(7) "Partido", aqui, refere-se a uma grande área de cultivo.
(8) LISBOA, Balthazar da Silva. Op. cit., p. 362.


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segunda-feira, 22 de abril de 2024

Carretas ou carros de bois?

"Enfim o chiado dos carros, que se avizinhavam carregados de cana para o engenho, acabava de azoinar todos os ouvidos com aquele zunido agudo, incessante, desesperador, que nos martiriza e quase arromba os tímpanos, som de uma intensidade e aspereza tal, que não há no dicionário palavra assaz expressiva para significá-lo."
Bernardo Guimarães, Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais

Carro de bois (¹)

Os carros de bois foram imensamente populares no Brasil, até que novidades como as ferrovias e rodovias pavimentadas e veículos motorizados tornassem seu uso obsoleto. Apesar disso, há muita gente que ainda tem saudade deles, e nas festas folclóricas regionais não são incomuns os desfiles de carros de bois, a pretexto de manter a tradição.
Uma publicação datada exatamente de 1800, porém, questionava a conveniência dos carros de bois no Brasil, entendendo que carretas seriam melhores que eles:
"Ainda não lembrou a ninguém na Capitania do Rio de Janeiro o fazer uso da carreta, em lugar do carro, tendo a vantagem tão visível. As rodas do carro têm o trilho de uma a duas polegadas, com cinco a seis palmos de altura; o trilho das da carreta é de quatro a cinco polegadas, com nove a dez palmos de altura. Ora, num país de caminhos não calçados, pantanosos, é infinitamente melhor a carreta, cujas dão tanta folga aos animais, além de não se enterrarem tanto, e facilitarem o virar de um para outro lado, sem forcejar no cabeçalho; custando menos na sua construção por haver maior quantidade de madeiras que lhe sirvam, não precisar tanto ferro, e mesmo se pode fazer sem ele; e onde dois bois puxam mais sem tanta fadiga, que os seis do carro. [...]." (²)
A ideia de José Caetano Gomes, autor da Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar, era sugerir melhorias na produção açucareira no Brasil, com todos os elementos que envolvia - incluindo o transporte, em que entrava a questão da conveniência das carretas em lugar dos carros. Apesar disso, os carros de bois continuaram, por muito tempo, a ser largamente preferidos. Resistência às mudanças não é uma novidade, portanto. De qualquer modo, como ninguém havia ainda inventado algum meio de transporte que dispensasse os animais, com uma ou outra coisa não haveria vantagem para os bois, que teriam de continuar a fazer o trabalho pesado.

(1) CHAMBERLAIN, Tenente. Vistas e Costumes da Cidade e Arredores do Rio de Janeiro em 1819 - 1820. Rio de Janeiro / São Paulo: Livraria Kosmos Editora, 1943, p. 125.  A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) GOMES, José Caetano. Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar. Lisboa: Casa Literária do Arco do Cego, 1800, pp. 85 e 86. 


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sexta-feira, 19 de abril de 2024

Dia em que os antigos romanos não sacrificavam animais

A fundação lendária de Roma, aquela que teria sido obra dos gêmeos Rômulo e Remo no ano 753 a.C., era celebrada no dia 21 de abril, que no calendário romano se chamava o dia onze antes das calendas de maio. A mesma data, dita de modo diferente.
Nesse dia, ao fazer cerimônias nos templos, o povo romano tinha o cuidado de não matar animais porque, no dizer de Plutarco, "estavam certos de que naquele dia, por ser consagrado ao nascimento de Roma, não seria correto derramar sangue, e, por isso os sacrifícios deviam ser feitos com toda a pureza, sem a morte de qualquer criatura" (*).
Para a maioria dos povos da Antiguidade, sacrifícios de animais eram destinados a agradar aos deuses, ou para acalmá-los, quando se supunha que estavam furiosos. No caso dos romanos, assim como no de alguns outros povos, sacrifícios também eram ocasião para que sacerdotes examinassem as vísceras dos animais, a fim de descobrir supostas profecias. Não parece estranho que justamente Roma, que tanto valorizava as virtudes bélicas, e para quem derramar sangue de inimigos derrotados nunca foi um problema, decidisse não abater animais em sacrifício justamente no dia em que a fundação da cidade era celebrada?
É possível que, quanto a isso, houvesse ainda alguma influência remota das ideias do pacífico e religioso segundo rei lendário de Roma, Numa Pompílio, que teria instituído práticas de honra aos deuses que servissem para moderar a fúria dos primitivos romanos. Com o passar do tempo, os costumes mudaram, mas as tradições de aniversário de Roma devem ter permanecido, embora já não refletissem quem, de fato, os romanos se tornaram.

(*) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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quarta-feira, 17 de abril de 2024

Como era a Agência de Correios na capital do Império do Brasil no tempo das Regências

Algum de vocês, leitores, já sentiu uma viva irritação porque uma mensagem enviada por smartphone a um amigo não foi lida imediatamente? Examine-se, por contraste, quanto tempo levava, nos dias do Império, para que qualquer correspondência chegasse às mãos do destinatário, com o agravante de que aquele que a enviava sequer sabia se seria ela efetivamente entregue a quem competia. 
Vejamos, então, como era o funcionamento do Correio Geral na capital do Império, o Rio de Janeiro. Uma informação detalhada se encontra no que escreveu Daniel P. Kidder, missionário metodista americano que esteve no Brasil durante o Período Regencial. Quanto à aparência e localização do Correio Geral, observou:
"[...] junto ao portão da Alfândega, fica o Correio Geral. A entrada faz-se por um amplo vestíbulo cujo piso é revestido de lajes. Dos soldados que estão em serviço, uns montam guarda pelo chão, outros dormitam sobre bancos, pelos cantos. Um único lance de escada conduz ao andar superior [...]."  (¹) 
Quem tinha correspondência a receber ia exatamente ao segundo piso:
"[...] À direita, por trás de um balcão alto, estão as cartas e os jornais do correio, não em caixas, por ordem alfabética, mas em montes, de acordo com a proveniência. Minas, São Paulo e outros lugares importantes. Para cada monte existem na parede listas numéricas de destinatários, sob os títulos de "Cartas de Minas", "Cartas de São Paulo", etc. A correspondência do exterior, com exceção da que se destina às casas comerciais que pagam uma taxa anual pela entrega em domicílio, é amontoada na mais completa desordem e quem chega primeiro tem o direito de examinar toda a vasta montanha, bem como de separar suas cartas e as de seus amigos. [...]" (²) 
Quanto tempo levava para uma carta ir de um ponto a outro do Brasil? Isso variava, dependendo da distância e das condições de transporte:
"[...] As malas maiores circulam por via marítima. [...] O transporte lento e tedioso das malas postais pelo interior é feito em lombo de burro ou por estafetas a pé. A tarifa postal é bem moderada. [...]" (³)
Com tanta desorganização e condições precárias de transporte, seria razoável supor que o serviço de correios deixasse muito a desejar. Kidder, porém, afirmou jamais ter tido uma correspondência extraviada, e quanto ao atendimento por parte dos funcionários, fez esta avaliação surpreendente:
"[...] No geral, as atenções que se recebem no Correio do Rio de Janeiro marcam feliz contraste com o tratamento grosseiro e desatencioso dispensado ao público em idênticas repartições norte-americanas." (⁴) 
(1) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil, trad. Moacir N. Vasconcelos. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 65.
(2) Ibid., p. 65 e 66.
(3) Ibid., p. 66.
(4) Ibid., p. 66.


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segunda-feira, 15 de abril de 2024

Pescadores e caçadores a serviço dos senhores de engenho

Durante longo tempo, colonizadores vindos de Portugal não conseguiam esquecer a comida do Reino, de que tanto gostavam. É compreensível, mas o bacalhau salgado que era trazido ao Brasil, depois de meses no mar e nas condições de higiene vigentes nos navios da época, não era exatamente uma comida de boa qualidade, nem estava sempre disponível. Com tanto peixe fresco nas águas oceânicas e fluviais à disposição de quem se desse ao trabalho de pescar, até surpreende que houvesse quem preferisse peixe seco. Mas havia, principalmente nas casas senhoriais.
Contudo, para senhores de engenho, a ideia de pescar impunha uma dificuldade: quem é que faria o trabalho? A resposta, é fácil adivinhar, seguia o mesmo roteiro das demais tarefas. Era gente escravizada ou liberta, mas assalariada por baixo valor, quem se encarregava do pescado de cada dia.
Meus leitores, porém, talvez tenham ainda outra pergunta: Como é que sabemos disso? 
Vamos ao Diálogo Sexto da obra escrita no começo do Século XVII, ao que se supõe por Ambrósio Fernandes Brandão (¹), e que tem como título Diálogos das Grandezas do Brasil, em que duas figuras fictícias (ou nem tanto), Brandônio e Alviano, discutem o que havia de interessante na colônia portuguesa na América. Diz Brandônio, referindo-se aos senhores de engenho e aos lavradores de cana-de-açúcar:
"[...] a maior parte da riqueza dos lavradores desta terra consiste em terem poucos ou muitos escravos; sustentam-se de suas criações, tendo de ordinário um pescador que lhes vai pescar ao mar alto e também aos rios, donde lhes traz pescado bastante para sua sustentação." (²) 
Ao ouvir isso, Alviano logo pergunta se o dito pescador seria homem livre ou escravo, ao que Brandônio responde:
"Não é senão escravo cativo [sic] do gentio da terra (³) ou de Guiné (⁴), e também dos forros, que para o efeito assoldadam a troco de pequeno prêmio, e muitos usam também de caçadores, que lhes trazem cópia grande de caça, e com isso e o mais de suas criações, leite de seus currais, muito açúcar, vivem abastadamente." (⁵) 
Entende-se, pois, o que é que, na prática, quis dizer Antonil ao afirmar que "o ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos" (⁶). 

(1) Autoria atribuída, com razoável probabilidade. 
(2) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 296.
(3) Referência aos indígenas do Brasil.
(4) Escravizados de origem africana.
(5) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Op. cit., p. 296.
(6) ANTONIL, André João S. J. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 1.


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sexta-feira, 12 de abril de 2024

Vestuário dos antigos egípcios, de acordo com Heródoto

Alguns trajes egípcios da Antiguidade (*)

O vestuário básico de um egípcio na
Antiguidade compunha-se, segundo Heródoto, de uma túnica feita de linho, cujo comprimento alcançava os joelhos, e à qual, usualmente, se acrescentavam franjas; quando fazia frio, os egípcios vestiam, sobre a túnica de linho, uma capa feita de lã.
Contudo, ao ir aos templos, jamais egípcios deveriam usar qualquer roupa de lã, apresentando-se apenas com trajes de linho, porque, sempre de conformidade com Heródoto, vestir qualquer coisa de lã em cerimônias religiosas era, para eles, um sacrilégio. Pela mesma razão, os mortos, depois de mumificados, somente eram vestidos com trajes de linho para o sepultamento.
A moda é volúvel. Heródoto descreveu o que viu no Século V a.C., mas o Egito foi um império que durou muito, muito tempo, e, além disso, camadas sociais distintas, pela diferença na capacidade econômica, tinham também suas particularidades no vestuário. O linho, porém, crescia muito bem e tinha qualidade no Egito, daí seu uso generalizado para a confecção de roupas, que eram também preferidas pela adequação às condições climáticas em que eram usadas. 

(*) Cf. CHALMERS, Helena. Clothes on and off the Stage - A History of Dress. New York, London: D. Appleton and Company, 1928, p. 25. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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quarta-feira, 10 de abril de 2024

Como a notícia do fim da União Ibérica foi recebida na primeira capital do Brasil

No Século XVII, qualquer notícia que viesse de Portugal ao Brasil precisava fazer uma viagem marítima. De que outro modo seria?
Foi assim, portanto, que chegou ao vice-rei D. Jorge de Mascarenhas a informação de que não mais o monarca espanhol, e sim D. João IV, reinava em Portugal, segundo expressou Sebastião da Rocha Pita (¹):
"Governava neste tempo a Bahia com título de vice-rei de todo o Estado, [...] D. Jorge Mascarenhas, marquês de Montalvão [...]. Teve brevemente aviso da liberdade da pátria por uma pequena embarcação de Lisboa, cujo mestre saindo a terra e mandando-a fazer-se ao mar, se encaminhou ao palácio, e com segredo deu ao marquês vice-rei a nova da feliz aclamação, e lhe entregou a carta em que o senhor rei D. João IV lhe ordenava o fizesse aclamar no Brasil." (²) 
Ciente do que se passara no Reino, D. Jorge Mascarenhas reuniu as figuras de destaque entre autoridades eclesiásticas, civis e militares para que deliberassem se a ordem de aclamação seria ou não cumprida. Aclamar o novo rei português envolvia algum risco. E se, de algum modo, a Espanha recuperasse o controle? Como ficaria a carreira política, para não dizer a vida, das autoridades que haviam decidido pela aclamação? Segundo Rocha Pita, a reunião decidiu o caso a favor de D. João IV, que foi reconhecido como rei também no Brasil:
"[...] Feitas algumas breves disposições na infantaria, [D. Jorge Mascarenhas] saiu com os congregados e com o senado da Câmara aclamando o senhor D. João IV rei de Portugal, acompanhados do povo com repetidos vivas e gerais demonstrações de alegria, acabando o ato na catedral com ação de graças. [...]" (³) 
A Cidade da Bahia, ou Salvador, onde residia o vice-rei, era território português, mas, nesse tempo, grande parte do Nordeste brasileiro estava sob controle holandês. A luta para retomar para Portugal essa parte do Brasil ainda duraria vários anos - até 1654. 

(1) A primeira edição de sua História da América Portuguesa foi publicada em 1730. 
(2) PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa 2ª ed. Lisboa: Ed. Francisco Arthur da Silva, 1880, p. 144.
(3) Ibid. 


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segunda-feira, 8 de abril de 2024

Deuses dos astecas

Os astecas, como muitos outros povos indígenas da América, eram politeístas. Algumas de suas divindades eram vistas como benfazejas, enquanto outras eram temidas, pelos malefícios que, supunha-se, eram capazes de fazer.
À semelhança de outras mitologias, alguns deuses estavam associados à natureza (sol e chuva, por exemplo); por vezes, estavam ligados às várias atividades humanas. Aqui está uma pequena lista com alguns dos principais deuses (*) do panteão asteca:
  • Quetzalcoatl, a "serpente emplumada", deus dos sacerdotes, representado como o iridescente pássaro quetzal, estava também associado ao vento e à escrita; 
  • Tlaloc, deus da chuva e da fertilidade;
  • Huitzilopochtli, deus do sol e da guerra, representado como o colibri-azul;
  • Tonatiuh, deus-sol;
  • Yacatecuhtli, deus protetor dos mercadores itinerantes que viajavam pelo império asteca e por domínios de outros povos, atuando também como informantes ou espiões;
  • Mictlantecuhtli, deus da morte.

(*) Adotou-se aqui a grafia mais comum para o nome das divindades astecas, embora outras possam ser encontradas. 


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sexta-feira, 5 de abril de 2024

Abdicação de D. Pedro I

Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil, 7 de abril de 1831. Em uma mensagem quase espartana, o primeiro imperador comunicava sua decisão de deixar o trono:
"Usando do direito que a Constituição me concede, declaro que hei mui voluntariamente abdicado na pessoa de meu muito amado e prezado filho, o Senhor D. Pedro de Alcântara.
Boa Vista (*), 7 de abril de 1831, décimo da Independência e do Império." 
"Mui voluntariamente"... D. Pedro teve juízo de não incentivar a animosidade entre as tropas, ao anunciar que deixava o trono do Império para retornar à Europa. Seu ato de abdicação, porém, ocorreu sob a pressão de um conjunto de fatores, dentre os quais:
  • A decisão de fechar a Assembleia Constituinte e outorgar uma Constituição desgastara bastante a imagem pública do jovem imperador, de quem se suspeitavam fortes tendências absolutistas;
  • A fama de D. Pedro, quanto à sua conduta moral, não era das melhores - eram famosos os seus muitos casos amorosos, dos quais o relacionado à Marquesa de Santos foi o mais escandaloso, mas nem de longe o único;
  • Deixando de lado a dignidade que se esperava de um imperador, D. Pedro se envolvera pessoalmente, até de forma literal, segundo alguns testemunhos, em atacar jornalistas que combatiam seu governo através da imprensa, 
  • Depois da morte de D. João VI em 1826, D. Pedro se envolvera cada vez mais nas questões da sucessão portuguesa, fazendo com que nascessem, no Brasil, suspeitas de que estaria pensando em chamar para si o trono português e unificar as coroas, uma coisa indesejada porque significaria o fim da independência política há pouco conquistada.
Muito mais poderia ser dito; contudo, já é suficiente para que se entenda que a abdicação não foi tão voluntária quanto o documento em que o imperador a comunicava poderia sugerir. 
Para o Brasil, começava uma fase de turbulência política ainda maior, o Período Regencial, já que o "muito amado e prezado filho, o senhor D. Pedro de Alcântara" era ainda um menininho de apenas cinco anos.  

(*) Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro.


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quarta-feira, 3 de abril de 2024

Sicofantas de Atenas

Sicofanta, atualmente, é palavra que significa delator, acusador. Convenhamos, não é costume que seja aplicada como um elogio. Em Atenas, na Antiguidade, também havia sicofantas, mas, a despeito do ódio público contra eles, exerciam uma função importante para o abastecimento da cidade.
Parece estranho? É disso que trataremos.
Sólon, o legislador, havia instituído uma lei em Atenas, segundo a qual, para assegurar que não houvesse falta de alimentos para a população local, se proibia que a produção agrícola da Ática fosse comercializada fora, em outras cidades, ou mesmo em portos mais distantes, mediante navegação marítima pelo Mediterrâneo. A única exceção admitida eram as azeitonas, que a Ática produzia em abundância e que se constituíam em sua maior riqueza no comércio internacional. 
Acontece, no entanto, que os saborosos figos áticos eram demasiadamente cobiçados, e por eles se pagava muito bem, de modo que, a despeito da legislação contrária, sempre havia quem estivesse disposto a correr o risco, para vendê-los em outros lugares. Era aí que entrava em cena o sicofanta, segundo Plutarco, em Vitae parallelae, ao fazer a biografia de Sólon:
"[...] sicofanta se diz de quem acusava outro, quando, contrariando a legislação da cidade, levava figos para fora dos limites de Atenas [...]." (*)
Ao que parece, Plutarco não tinha certeza de que o termo viera à existência a partir das leis de Sólon, já que havia quem reconhecesse seu uso muito antes. Mas, deixando de lado a questão etimológica, pelo que se afirmava estar na primeira das tábuas de madeira em que teriam sido escritas as leis de Sólon, o desobediente era brutalmente multado em nada menos que cem dracmas; o sicofanta, mais detestado do que nunca, geralmente recebia algum dinheiro, "dinheiro sujo", pelo trabalho, "trabalho sujo", de dar com a língua nos dentes contra um de seus concidadãos, ainda que, bem ou mal, sua delação favorecesse os interesses da cidade contra os de um particular. Estava certo? Estava errado? Eis um debate ético (e não só ático) espinhoso.

(*) PLUTARCO, Vitae Parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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segunda-feira, 1 de abril de 2024

A cadeia de São Paulo no Século XVII e o envio de um prisioneiro a Santos

A cadeia existente na vila de São Paulo no Século XVII era, ao que parece, um perfeito convite às fugas de presos, pelo que se vê em uma ata da Câmara de São Paulo relativa ao dia 1º de abril de 1628 (¹), ocasião em que o ouvidor se encontrava presente:
"[...] proveu mais que, porquanto era informado que a cadeia a cada passo se abria [e] não é boa por ser fraca e não ser de pedra edificada, que pusessem pelo meio divisas de pau fortíssimas, cravejadas e forradas com outra taipa, resguardando-lhe bem as grades com boas ombreiras de pedras e grades de ferro, fazendo o tal que não possam fugir os presos tão facilmente em razão do que achou e notou a falta que nesta vila há de justiça por os presos fugirem da cadeia [...]." (²)
É de se perguntar, em consideração ao que rotineiramente se passava na vila no Século XVII, se os camaristas de São Paulo e demais moradores tinham, de fato, muito interesse em tornar a cadeia mais segura. A resposta das autoridades locais é sintomática - se houvesse dinheiro, fariam as melhorias:
"[...] no que toca à cadeia e carcereiro e sino (³) farão todo o possível para se fazer, havendo dinheiro para isso [...], porquanto é tempo ver que não tem renda nenhuma e que, sem embargo de tudo, disse ele dito ouvidor geral que recorressem a sua majestade para os prover como convém [...]."
Que ideia maravilhosa!... Pediriam ajuda ao rei, que estava do outro lado do mar, e enquanto isso, a cadeia ficava na mesma.
Para concluir, meus leitores, veremos agora o que é que se fazia quando aparecia na vila algum delinquente a quem todos temiam. Não se julgava, é certo, que devesse ficar detido em uma cadeia tão precária, razão pela qual o sujeito devia ser remetido a Santos, cuja prisão era tida como mais confiável. Não tardou muito e houve um caso desses, registrado na ata de 30 de dezembro do mesmo ano de 1628: 
"[...] requereram os oficiais da Câmara aos juiz [...] que visto ter preso nesta cadeia a um homem por casos facinorosos, o qual corre risco estar nesta cadeia, por não ser capaz para semelhantes presos, por ser fraca e assim sua prisão correr risco e poder sair dela, ajuntando-se com alguns homiziados e fazer alguns delitos, pelo que lhe requeriam o mandasse à cadeia de Santos, por ser de pedra e cal, para aí estar mais seguro, [...] ao que o dito juiz respondeu a eles ditos oficiais lhe dessem vinte índios  que vão com eles à vila de Santos a levá-lo [...]." 
A ata pode até parecer cômica: quem, afinal, corria risco na prisão? O prisioneiro ou a população, do lado de fora? Mas o que fica claro, em meio ao palavrório do escrivão, é que não havia uma força policial regular disponível para acompanhar o prisioneiro pelo áspero Caminho do Mar até Santos, daí a requisição de vinte indígenas como escolta.

(1) Não, leitores, nada relacionado ao chamado "Dia da Mentira".
(2) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão. 
(3) Entre outras utilidades, o sino que geralmente havia nas câmaras e cadeias coloniais, que quase sempre ficavam no mesmo prédio, servia para alertar a população em caso de fuga de algum preso ou para dar aviso quando havia algum incêndio na localidade, esperando-se que todos os moradores que pudessem, comparecessem para ajudar a apagar o fogo. Usava-se o sino, também, quando era necessário convocar uma reunião de todos os homens da vila, para que discutissem e votassem algum assunto de interesse geral. 


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sexta-feira, 29 de março de 2024

Luto na capital do Império nas horas da Sexta-feira Santa

No Brasil do Século XIX, ostentar religiosidade fazia bem à imagem pública de qualquer pessoa - com fé ou sem ela. Por isso, em ocasiões em que tradicionalmente as práticas religiosas eram lutuosas, ninguém que se pretendesse respeitável fugia à obrigação de aparentar tristeza. Era o que acontecia nas Sextas-feiras Santas. 
O olhar observador de um mercenário alemão que esteve no Brasil entre 1824 e 1826, C. Schlichthorst, captou esta imagem em palavras, a partir do que acontecia no Rio de Janeiro, capital do Império:
"Na Sexta-feira da Paixão, todas as igrejas se cobrem de preto, os altares, as alfaias de prata e ouro se envolvem em crepes, e toda a gente põe luto. De cinco em cinco minutos, as fortalezas e navios de guerra salvam com um tiro de canhão. Põem-se as bandeiras a meio pau e braceiam-se as vergas nos navios de guerra. Para onde quer que se volva o olhar, veem-se sinais da mais profunda tristeza. [...]" (*) 
Era, como já foi dito, tristeza aparentada, como mandava a boa conduta, não necessariamente tristeza sentida. Nesse tempo, o catolicismo era religião oficial. Explica-se, portanto, que a necessidade de ostentar luto fosse muito além do espaço das igrejas, alcançando, também, as unidades militares em terra e no mar.
 
(*) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826), trad. Emmy Dodt e Gustavo Barroso. Brasília: Senado Federal: 2000, p. 118.


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quarta-feira, 27 de março de 2024

Utilidade do comércio internacional para os antigos gregos

A porção deste planeta que era perfeitamente conhecida pela maioria dos povos da Antiguidade era muito pequena. Assim, é compreensível que, para os curiosos, que queriam saber mais do mundo em que viviam, o comércio internacional oferecesse uma oportunidade muito interessante. Plutarco, ao contar os fatos que considerava relevantes na vida de Sólon (¹), o legislador ateniense, afirmou que "[...] ao tratar com pessoas de diversos povos e reinos, e ao observar os costumes e governo de outras nações, é possível, para pessoas inteligentes, obter experiência e prudência, que são virtudes mais valiosas que a riqueza proveniente do comércio." (²)
Por suposto, além do desenvolvimento dessas apreciadas virtudes políticas, o comércio internacional trazia, também, enriquecimento a quem podia se envolver nele, e Plutarco não desprezou esse fato, mostrando, também, que o intercâmbio de mercadorias era fator de sobrevivência: "Do trabalho decorrente [do comércio internacional], reinos e cidades se abastecem daquilo que precisam, e mercadorias chegam de outras regiões de onde elas são abundantes, fazendo-se provisão para que a vida se conserve" (³).
A razão que levou Plutarco a tecer essas considerações é que Sólon, durante algum tempo, se ocupou de atividades comerciais, antes de mergulhar de vez na vida pública em Atenas. O comércio marítimo era favorecido na Grécia porque seu território, cujo relevo dificultava, às vezes, as viagens terrestres, era, ao mesmo tempo, dotado de bons portos naturais, condição indispensável para o comércio internacional em larga escala na Antiguidade. 

(1) Século VI a.C.
(2) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.  
(3) Ibid


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segunda-feira, 25 de março de 2024

Cupins

Terrivelmente destrutivos, os cupins tinham uma função importante na preservação das estradas brasileiras até o Século XIX


Cupinzeiro
A simples menção da palavra "cupim" pode provocar uma reação negativa em quem já teve móveis ou casa de madeira arruinada por eles. Não há limite à voracidade desses isópteros. Contudo, já houve quem visse neles uma incrível utilidade, no tempo em que havia poucas e péssimas estradas no Brasil, continuamente em risco de deixarem de existir pela expansão das florestas que as cercavam. 
Ao viajar pelo interior do Brasil pouco depois da Independência, o brigadeiro Cunha Matos pôde observar a ação dos cupins sobre troncos que caíam em caminhos, já, de si mesmos, precários:
"Os caminhos abertos a machado em toda a extensa região da serra, só merecem o nome de estradas no Brasil há pouco saído dos braços da natureza. [...] A Providência criou nestes lugares o benéfico e voraz cupim, que, na habitação do homem, se reputa um ente mui fatal. É a este pequeno inseto que se deve a pronta corrupção dos imensos troncos que os séculos, as estações, o fogo e os meteoros (¹) naturais lançam por terra, e que, a não ser aquele diminutíssimo inseto, obstruiriam as estradas [...]." (²)  
Cupinzeiro (outro "modelo")
Assumindo que talvez nem todos os seus leitores soubessem exatamente o que eram os cupins de que falava, Cunha Matos passou, em seguida, a descrevê-los.
"Estes animalejos", disse ele, "vivem em república que se assemelha à das abelhas; as suas casas, as suas galerias, os seus armazéns [sic] são admiráveis; a mesma contextura do edifício mostra a ciência do grande Arquiteto que os ensinou. [...]" (³).
Quem poderia lutar contra os cupinzeiros? Havia na fauna brasileira um ser com essa capacidade: 
"[...] Uma matéria glutinosa liga o pó da terra e as mais pequenas fibras da madeira, e forma um betume [sic], que só não escapa à dura e recurvada unha do tamanduá, que introduzindo a delgada língua nas galerias, recolhe ao estômago os vorazes insetos [...]." (⁴)
(1) "Meteoro", no sentido usado por Cunha Matos, designa fenômenos como chuva, granizo, vento e outros mais. 
(2) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 42.
(3) Ibid.
(4) Ibid.


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sexta-feira, 22 de março de 2024

Batelões no Paranapanema

Batelões foram usados nas monções cuiabanas do Século XVIII, que, através do Tietê e de outros rios, conduziam pessoas que pretendiam chegar às regiões auríferas de Mato Grosso. Depois disso, foram caindo em desuso e, finalmente, foram abandonados nas primeiras décadas do Século XIX, certo?
Errado! Batelões ainda eram usados no final do Século XIX na navegação pelo rio Paranapanema, divisa entre os Estados de São Paulo e Paraná. Foi o que afirmou Adolpho Augusto Pinto em História da Viação Pública de São Paulo:
"As embarcações em uso nesta seção do Paranapanema são grandes canoas, chamadas batelões, feitas de um só tronco de árvore gigantesca, que permite dar à embarcação um comprimento de 12 a 15 metros, largura de 1 m a 1,2 m, calando 0.45 m a 0.60 m sob a carga de 200 arrobas, além da tripulação, ordinariamente composta de quatro homens armados de varejões e remos, e de um piloto ou prático do rio." (¹)
Como embarcações a remo que eram, os batelões precisavam da ajuda de braços humanos em seu deslocamento na água:
"Os canoeiros são índios mansos [sic] da colônia Jatahy no rio Tibagi ou do Piraju; trabalham de modo inexcedível, ninguém nada melhor ou afronta uma cachoeira com mais denodo." (²) 
Uma observação faz-se necessária: para construir um batelão era preciso uma árvore enorme. Por conseguinte, árvores desse porte deviam ser ainda encontradas nas matas da região do Paranapanema, nessa época de que tratamos. Porém, como em outras áreas, ficavam cada vez mais raras.

(1) PINTO, Adolpho Augusto. História da Viação Pública de São Paulo. São Paulo: Typographia e Papelaria de Vanorden & Cia., 1903, p. 311.
(2) Ibid. 


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quarta-feira, 20 de março de 2024

Como Heródoto descreveu Babilônia

Imaginava-se que Babilônia seria assim,
antes que escavações arqueológicas a partir
do Século XIX revelassem mais sobre ela (²) 
Muitas cidades da Antiguidade destruídas em guerra foram, depois, reconstruídas. As ruínas eram trituradas e, sobre elas, a nova cidade era erguida. Sucessivas guerras e destruições acabavam criando uma colina artificial, formada pelo entulho acumulado, uma reconstrução após outra. 
A Babilônia que Heródoto conheceu no Século V a.C. já estava decadente. Fora conquistada em 539 a.C. pelos exércitos de Ciro, o Grande. Mas continuava a existir, como lembrança do esplendor que tivera nos dias de Nebuckadnezar II (¹).
Voltemos a Heródoto. Foi assim que ele descreveu Babilônia, afirmando que tinha a forma de um quadrado e que estava situada em uma grande planície:
"Babilônia é cortada pelo rio Eufrates, um rio extenso, profundo e de correnteza veloz [...]. A muralha que cerca as duas partes da cidade corre até chegar ao rio, onde começa uma parede de tijolos cozidos, que segue pela margem. A cidade está repleta de casas com três e até quatro andares e é atravessada por ruas retilíneas, tanto as que existem no sentido do comprimento como as que cruzam por elas e chegam até o rio. Cada rua que chega ao rio tem uma porta de bronze que permite acesso às margens do Eufrates, e, dessa forma, há uma porta para cada bairro existente entre as ruas." (³)
Assim como tantas outras, a cidade de Babilônia também passou por destruições e reconstruções. Mas sobreviveu para, finalmente, ser alvo de um projeto urbanístico e estratégico avançadíssimo para os padrões da Antiguidade. Além da muralha externa de estrutura complexa, era rodeada por um fosso profundo e largo, com o propósito de torná-la virtualmente inexpugnável.  A descrição feita por Heródoto demonstra que foi planejada, ao contrário de muitas povoações da época, que surgiam e cresciam ao acaso, fruto da gradual sedentarização.
Como os babilônios poderiam imaginar que alguém teria a ousadia de entrar na cidade através do rio? A confiança de seus habitantes era tanta que teriam esquecido de trancar as famosas portas de bronze que levavam ao Eufrates, e foi por elas que os exércitos de Ciro alcançaram facilmente os bairros, tendo entrado na cidade pelo leito do rio, cujo curso haviam alterado para que o nível da água baixasse. Heródoto afirmou que o mais importante templo da cidade, o de Bel Marduk, ainda existia em seus dias, e no Século IV a.C., a cidade encantou Alexandre Magno, que nela morreu em 10 de junho de 323 a.C. Depois, Babilônia foi, aos poucos, se transformando em um conjunto de ruínas. 

(1) Mais conhecido pela forma helenizada do nome, Nabucodonosor. 
(2) Cf. MALLET, Alllain Manesson. Beschreibung des ganzen Welt-Kreises. Frankfurt am Main, Johann Adam Jung, 1719. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(3) HERÓDOTO, Histórias. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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segunda-feira, 18 de março de 2024

Diamantes ou pedras de construção?

Quem tem mais valor: diamantes ou pedras para construção?
Pedras usadas em construções devem ser fortes, resistentes, não devem se desfazer facilmente. Será ótimo, também, se forem de baixo custo. Diamantes - ninguém pensaria em usá-los na construção civil ou em fortificações, nem têm eles dimensões para isso - são caríssimos. Ninguém dá muita importância à notícia da descoberta de um local de onde podem ser extraídas pedras para construção. Quanto aos diamantes, uma nova jazida que se encontra pode resultar em falatório por muito tempo.
Filipe Patroni, autor do Século XIX, tomou o partido das pedras de cantaria, ao falar de uma antiga lavra de diamantes que fora abandonada:
"O rio das Mucaúbas [sic] é também adamantino, e a administração nacional do Tejuco [sic] ali teve noutros tempos um serviço de diamantes; não dando porém grandes vantagens, foi abandonado e entregue aos cuidados de quem quisesse ter o enfadonho trabalho de procurar aquelas pedrinhas, cuja utilidade é, sem contestação alguma, menor do que a de um lajedo ou pedra de cantaria, que serve para fazer casas e cômodas habitações [...], enquanto que o diamante serve só para luzir aos olhos de quem o enxerga, e não dá por conseguinte utilidade a quem é cego. [...]" (*)  
Patroni talvez estivesse errado. Diamantes têm, para muita gente, um encanto quase místico. Imagina-se que quem os pode usar em joias ganha em beleza. Talvez por isso, são muito lucrativos. Ninguém andaria à cata dessas pedrinhas brilhantes se não fosse pelo retorno que oferecem. Nisso reside toda a questão. 

(*) PARENTE, Filipe Alberto Patroni Martins Maciel. A Viagem de Patroni Pelas Províncias Brasileiras 2ª ed. Lisboa: Typ. Lisbonense, 1851, p. 31.


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sexta-feira, 15 de março de 2024

Prodígios antes da morte de Júlio César

Busto de Júlio César em mármore (*)
Para os antigos romanos, não poderia haver um grande acontecimento - fosse bom ou mau - sem ser precedido por um ou mais prodígios, eventos "fora da curva", contra o curso da natureza ou que evidenciassem aviso dos deuses. 
De acordo com Suetônio em De vita Caesarum, Livro I, estes prodígios e presságios precederam o assassinato de Júlio César em 15 de março de 44 a.C.:
  • Em Cápua, um grupo de colonos que removia um cemitério muito antigo para, em seu lugar, construir casas, teria encontrado uma placa de bronze, na qual se lia, em grego, que, ao ser aberta aquela sepultura, um membro da família Júlia seria morto por seus concidadãos, e que, após sua morte, haveria uma série de infortúnios em toda a península itálica;
  • Dias antes de sua morte, os cavalos que César havia consagrado ao Rubicão, por ocasião de sua travessia, subitamente teriam parado de comer e começado a chorar;
  • Um arúspice teria avisado César, por ocasião de um sacrifício, que se guardasse de grave perigo nos idos de março;
  • Um bando de aves, perseguindo um pássaro que levava um ramo de louro, alcançou-o e o fez em pedaços;
  • Na véspera de seu assassinato, o próprio César teria visto, em sonho, que voava entre nuvens e tocava a mão direita do deus Júpiter;
  • Enquanto isso, Calpúrnia, mulher de César, também sonhava, e, em seu sonho, via cair o teto da casa em que estava, enquanto segurava, em seus braços, o corpo do marido assassinado;
  • Finalmente, como se tantos sonhos agitados fossem pouca coisa, afirmou-se que, de súbito, as portas do quarto em que Calpúrnia dormia teriam sido abertas sem intervenção humana.
Era um exagero de prodígios para a mentalidade romana. César, talvez tentando dar a todos uma demonstração de racionalidade, ignorou os supostos avisos, e foi ao encontro dos senadores que o aguardavam. Não voltaria vivo para casa. 

(*) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 158. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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quarta-feira, 13 de março de 2024

Como o professor particular deveria ser recebido na casa de um aluno

Foi comum, até bem adiantado o Século XIX, que pais com recursos suficientes tivessem professores particulares para os filhos, não apenas para aulas de música, mas para a instrução regular. Nem sempre havia escolas adequadas por perto, existindo, também, quem preferisse ver o filho recebendo aulas dentro de casa. Um livrinho interessante, escrito pela professora Guilhermina de Azambuja Neves, com o título de Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade, sugeria o modo como um aluno deveria receber seu professor particular para a lição do dia:
"Suponhamos que o mestre toma o trabalho de ir à casa do discípulo para lhe dar as lições. Não se deve jamais fazê-lo esperar, nem esquecer de ter tudo à mão: os livros, o papel, o tinteiro (¹) sobre a mesa e junto desta a cadeira.
Chegando o mestre, deve o menino levantar-se, tomar-lhe o chapéu, o guarda-chuva ou a bengala (²) e convidá-lo a sentar-se.
Começando a lição, será ela ouvida com atenção, e bem assim os conselhos que o mestre der sobre o modo de estudar ou de proceder." (³) 
Iam além as instruções da professora Guilhermina, especificando o modo correto de responder quando o professor ou professora fizesse alguma pergunta:
"O tratamento que se lhe deve dar será o de Sr. Professor; e nas respostas afirmativas ou negativas dir-se-á: sim, senhor, não, senhor; ou se for mestra: sim, senhora, não, senhora." (⁴) 
Quando, finalmente, a aula era concluída, havia um modo correto de agir ao despedir-se o aluno do professor:
"Terminada a lição deve o discípulo agradecer-lhe o trabalho e o interesse que toma por seu progresso nos estudos, entregar-lhe o chapéu, o guarda-chuva ou a bengala, e acompanhá-lo até a escada ou a porta, cumprimentando-o com respeito." (⁵)
Sim, coisas do Século XIX... E qual era a solução do dito século para os meninos que não se mostravam tão polidos e estudiosos? Não é difícil imaginar, e olhem leitores, que mesmo no século seguinte o remédio seria idêntico. Voltemos à professora Guilhermina e seus meigos conselhos:
"Este procedimento é tão bonito, como censurável o do menino Simeão, que nunca sabe as lições, e durante a explicação do mestre ocupa-se em ver passar quem vai pela rua.
Teimoso, vadio e mal-educado, nada sabe, nada aprende e é por isso que os vizinhos o chamam de madraço (⁶).
Sabes qual foi o resultado de tudo isso?
Seus pais resolveram metê-lo de pensionista (⁷) em um colégio, com a recomendação de usarem para com ele de todo o rigor e severidade." (⁸) 
Não é de hoje, portanto, que há quem prefira terceirizar a educação dos filhos, ainda que os métodos, em nosso tempo, tenham mudado. 

(1) Vê-se, nessas palavras, qual era o material escolar mais comum no Século XIX.
(2) Objetos de uso pessoal comuns para homens no Século XIX.
(3) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade, 2ª ed. Rio de Janeiro: 1875, pp. 37 e 38.
(4) Ibid., p. 38.
(5) Ibid., p. 39.
(6) "Madraço" significa preguiçoso.
(7) Ou seja, mandaram-no para um internato.
(8) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Op. cit., pp. 39 e 40. 


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segunda-feira, 11 de março de 2024

Dote de casamento em cabeças de gado

No passado, em muitos lugares, o pretendente a noivo pagava um dote de casamento ao pai da pretendida noiva. No Brasil Colonial, e mesmo no Império, era a noiva que devia ter um dote para poder se casar. Por conta disso, muitas moças que não tinham dote ficavam sem casamento, enquanto havia homens esperando que uma noiva com dote vantajoso aparecesse no caminho, para, como se dizia, "arrumarem a vida". 
Antes que leitores e leitoras comecem a lamentar as injustiças da sociedade (talvez por razões diferentes), temos aqui um caso interessante, ocorrido em São Paulo nos tempos coloniais, quando quase não havia moeda em circulação -  a família da noiva pagou o dote para o casamento em cabeças de gado. Está na Nobiliarchia Paulistana, escrita no Século XVIII por Pedro Taques de Almeida Paes Leme, com o aborrecido estilo próprio das (longas) genealogias dos que se supunham nobres:
"João Pires (filho de Salvador Pires [...]) foi nobre cidadão de S. Paulo, e teve grande voto nas assembleias do governo político, como pessoa de muita autoridade, respeito e veneração. Foi abundante em cabedais com estabelecimento de uma grandiosa fazenda de terras de cultura [...], que lhe foi concedida de sesmaria em 1610 com o seu sertão para a serra de Juqueri. Teve grande cópia de gados vacuns, cavalares e de ovelhas, de sorte que, dotando a nove filhas [...], cada uma levou duzentas cabeças de gado vacum, ovelhas e cavalgaduras. [...]"
Portanto, todo o conjunto pago como dote pelo casamento das nove filhas resultou em mil e oitocentos animais. Nada mal para a época em que isto aconteceu, no Século XVII. Deve ter sido um espetáculo público ver a procissão conduzindo a bicharada para as terras do noivo, a cada novo casamento que se realizava.


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sexta-feira, 8 de março de 2024

Roupas e acessórios masculinos que eram moda na época da chegada da família real ao Brasil

Primeiras semanas de 1808. Estando perto os navios que traziam a família real, além de uma pequena multidão que incluía gente da nobreza, funcionários públicos e mesmo alguns que não eram nem uma coisa e nem outra, mas que haviam conseguido embarcar, a cidade do Rio de Janeiro pôs-se agitada. 
Toda pessoa que tinha alguns recursos e que pretendia ir às ruas para ver a passagem do cortejo real tratou de arranjar roupa que julgava adequada.  Ninguém queria fazer má figura diante da nobreza que aportava. Nas palavras de José Vieira Fazenda, "as meias de seda, os sapatos rasos de fivela de ouro e prata, as cabeleiras de rabicho ou de bolsa, os espadins, os coletes de cetim bordados a matiz e os chapéus armados subiram de preço" (*). 
O desembarque de D. João, então príncipe regente, aconteceu em 8 de março de 1808. Poderíamos falar em uma corrida às lojas nos dias que o antecederam? Seguindo a índole do comércio nesses tempos já distantes (e não só neles), os preços elevaram-se bastante. Não há razão para crer que, após o desembarque, os preços baixassem, uma vez que os que chegavam também iam às lojas à procura dos artigos a que estavam habituados.
O comércio do Rio de Janeiro era, então, modesto. Mas ganhou força com a chegada da corte, que atraiu comerciantes ingleses e franceses, estes últimos, geralmente dedicados ao vestuário de luxo e outros artigos de moda. Quem, nesse momento, poderia prever quão longe iriam as mudanças que apenas começavam a acontecer?

(*) FAZENDA, José Vieira, Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1940, p. 40. 


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quarta-feira, 6 de março de 2024

Óleo de baleia para reforçar construções

As baleias já foram muito numerosas ao longo do litoral brasileiro. Apareciam em belo espetáculo, muitas vezes acompanhadas de filhotes, mas nada disso despertava a ternura dos colonizadores. As baleias foram, portanto, impiedosamente caçadas. Não se queria a carne, ainda que fosse dada aos escravos. O que se esperava era obter delas a gordura, chamada também de óleo ou azeite de baleia, usado na iluminação pública e das residências.
A vaidade era outra fonte de assassinato das pobres criaturas. Eu disse vaidade? Talvez devesse dizer tortura. As barbatanas eram empregadas na confecção de espartilhos, aqueles instrumentos deprimentes que mulheres usavam para dar ao corpo um contorno supostamente mais favorável.  
Alguém, contudo, descobriu que as borras de azeite de baleia - entenda-se, sobras de azeite de baleia - podiam ter alguma utilidade. Em Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro, José Vieira Fazenda afirmou:
"É sabido: os antigos construtores serviam-se dessa borra [...] ligada à cal do reino para as edificações, e é por isso que nas demolições de antigos edifícios é preciso muitas vezes empregar a dinamite (¹). Um rico contratador ofereceu ao vice-rei, marquês de Lavradio, os resíduos do azeite para as obras da Casa do Trem em vez de lançá-los fora da barra (²). Deram as experiências bom resultado e o marquês recomendou à munificência régia esse benemérito [...]." (³)
Em Paraty, há algum tempo, um morador da cidade mostrou-me um muro e assegurou-me que, mesmo restaurado, ainda tem uma parte original, feita com pedra e massa na qual se incluíra o óleo de baleia, evidência de que essa prática teve certa amplitude nos tempos coloniais. 

Muro em Paraty, que se afirma ter sido originalmente construído
com adição de óleo de baleia 

(1) Segundo o autor citado, que seja entendido. 
(2) Certas preocupações ambientais que hoje povoam nossa cabeça não eram exatamente uma prioridade no Século XVIII, ainda que seja justo reconhecer o mérito de quem tentou achar um uso digno para as sobras do óleo de baleia. Melhor seria que as mamíferas houvessem continuado a viver e procriar sem obstáculos e ameaças nos mares deste planeta. 
(3) FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1940, p. 439.


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