quinta-feira, 27 de junho de 2019

Panelas, chaleiras, caldeirões e outros objetos das cozinhas de antigamente

Levantem a mão se concordarem, leitores: Utensílios de cozinha devem ser práticos, leves, e fáceis de usar e limpar, certo? Pois nem sempre foi assim.
Vejam só esta chaleira de ferro, datada do início do Século XX (¹); resolvi colocá-la sobre uma balança, que assinalou exatos três quilos e cento e setenta e três gramas:


Panelas e caldeirões
de ferro,
Séculos XIX e XX (²)
Imaginem, agora, o que era limpar uma coisa dessas, depois de ser usada em um fogão a lenha. Multiplique-se o esforço por todas as panelas, chaleiras, leiteiras e demais objetos de uma cozinha, talvez do Século XVIII ou XIX, em uma casa de fazenda, e ter-se-á um panorama que Dante talvez gostasse de incluir no inferno. A questão é que, no Brasil, até a penúltima década do Século XIX, cozinha era, quase sempre, lugar de trabalho de escravas.
Caçarola de cobre (³)
Mas, como se sabe, a escravidão acabou. Veio o Século XX e, aos poucos, tudo o que se relacionava a uma cozinha ganhou praticidade. Panelas e outros objetos ficaram mais leves e, com a expansão das redes de eletricidade, os eletrodomésticos foram fazendo sua estreia e ganhando espaço. Peço apenas a opinião de vocês para mais uma questão: Acham que essas transformações teriam ocorrido se a escravidão ainda existisse?

(1) Espero que saibam o que é. Serviam para aquecer a água, e não só para fazer chá. A proprietária gentilmente emprestou-a para que eu fizesse a foto que está nesta postagem.
(2) Pertencem ao acervo do Museu Histórico de Itapira - SP.
(3) Pertence ao acervo do Museu da Mina do Ouro, Araçariguama - SP.


terça-feira, 25 de junho de 2019

Os patrícios, os plebeus, os tribunos da plebe e o jogo político em Roma

Plebeus achavam que patrícios eram seus opressores. Sob muitos aspectos, era verdade. Por isso, resolveram mostrar toda a insatisfação abandonando suas ocupações habituais, em um episódio que ficou conhecido como a retirada da plebe para o Monte Sagrado (¹). Foi como se dissessem: Já que nos oprimem, tentem viver sem nós!...
Era o ano de 493 a.C. (²), e essa espécie de greve à moda antiga forçou o patriciado romano a negociar. Afinal, os descontentes voltaram, obtendo, entre outras concessões, que fosse criado o cargo de tribuno da plebe, um magistrado virtualmente intocável, dotado de enormes poderes, cuja função seria defender os interesses dos plebeus.
Não tardou, porém, para que uma consequência dolorosa da interrupção do trabalho durante a retirada da plebe se fizesse notar. Como os campos haviam deixado de ser cultivados, ocorreu em Roma uma terrível escassez de alimentos, fazendo com que o pouco que havia se vendesse a preços exorbitantes. Tito Lívio descreveu a situação dizendo que a fome era tanta "como acontece em uma terra sitiada pelo inimigo" (³). O Senado, então, decidiu pela compra de cereais da Etrúria e da Sicília, para que fossem vendidos em Roma a preço razoável. 
Contudo, se a escassez de alimentos foi, na Antiguidade, um problema recorrente para os romanos, não faltou, diante das massas famintas, quem exibisse um problema recorrente na humanidade, o oportunismo de conveniência no jogo político, sugerindo que, diante da fome que afetava a plebe, talvez fosse boa hora para que o Senado aproveitasse a situação e somente vendesse o trigo se o direito tribunício fosse cancelado. A ideia, porém, não vingou, e as turras entre patrícios e plebeus duraram ainda muito tempo.

(1) Ou Monte Sagrado.
(2) Ou 494 a.C., dependendo de como é interpretada a equivalência em relação ao calendário que vigorava em Roma nesse tempo.
(3) Ab urbe condita libri.


quinta-feira, 20 de junho de 2019

Datilógrafos e suas máquinas de escrever

Deu-se o nome de datilografia à capacidade de usar corretamente uma máquina de escrever (¹); datilógrafo ou datilógrafa era a pessoa que dominava essa técnica. Para ser um bom datilógrafo(a), era preciso, como regra geral, completar um curso específico, que podia ser ministrado em uma escola de datilografia ou como parte da formação mais ampla em escolas técnicas voltadas às atividades administrativas e comerciais. 
O aprendiz travava contato com o teclado das máquinas de escrever, que antes das máquinas elétricas, era um tanto pesado e barulhento: ASDF, ASDF, ASDF... (²) Era repetição e repetição. Depois, ASDFG, ASDFG, até que todo o teclado fosse perfeitamente dominado, sendo o datilógrafo(a) capaz de escrever velozmente, mesmo que as teclas estivessem cobertas. Além disso, esperava-se que os alunos(as) aprendessem a instalar e substituir fitas em uma máquina de escrever - sim, aqueles rolinhos pretos ou vermelhos e pretos que, sendo acionadas as teclas, iam imprimindo as letras sobre o papel. Máquinas antigas não tinham retorno automático, sendo necessário, no final de cada linha de texto, mover uma alavanca que fazia  o papel retornar, passando à linha seguinte (³). Ufa!

Este anúncio, publicado no ano de 1923, oferecia um curso completo de datilografia (⁴)
O advento dos computadores e a gradual expansão de seu uso em escritórios, repartições públicas, escolas e mesmo no âmbito doméstico decretou o fim da datilografia em máquinas de escrever como profissão, e as escolas de datilografia que não fizeram a transição para cursos de digitação e de outras habilidades relacionadas à informática tiveram destino semelhante: foram varridas do palco pela revolução digital.

(1) Ainda que, por extensão, o termo possa ser empregado para a digitação no teclado de um computador.
(2) Se você está lendo esta postagem em um computador, olhe para o teclado e vai entender o motivo.
(3) Exatamente quando eu digitava esta linha da postagem, o teclado sem fio que uso sinalizou que era preciso substituir as pilhas. Um datilógrafo não enfrentaria esse incômodo.
(4) A CIGARRA, Ano XI, nº 222, 15 de dezembro de 1923. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


terça-feira, 18 de junho de 2019

A ilha do índio que fugiu

Pedro Sarmiento de Gamboa foi escolhido para comandar uma expedição que, saindo do Peru, devia percorrer o Estreito de Magalhães, para mapear a região e procurar locais favoráveis ao estabelecimento de povoações colonizadoras. A razão para isso é que se supunha, com sobejas razões, que o extremo sul do Continente, apesar de ser área de navegação dificílima, andava a receber a visita de corsários - aliás, de um corsário em particular, o famoso Francis Drake. Julgava-se, portanto, que era necessário efetivar o controle espanhol da região. Essa expedição de Sarmiento aconteceu entre os anos de 1579 e 1580.
Nas instruções dadas pelo vice-rei antes da partida, havia uma em que se dizia, expressamente, que fizessem o possível para conseguir, com bons modos, índios que servissem de "línguas", ou seja, de intérpretes: "E achando algumas povoações de índios, depois de havê-los tratado com carinho e dado das coisas que levais de tesouras, pentes, facas, anzóis, botões coloridos, espelhos, guizos, contas de vidro e outras coisas das que se dão a eles (¹), procurareis levar alguns índios para línguas às partes onde fordes [...], aos quais fareis todo o bom tratamento [...]." (²)
É possível que, além de ter intérpretes para a viagem, o que já é surpreendente, por ser improvável que encontrassem naquela distante região indígenas que, além de sua língua materna, falassem espanhol, os espanhóis também quisessem trazer alguns ameríndios ao convívio colonial, para que, ao tempo em que se estabelecessem colônias nos arredores do Estreito, fossem com os povoadores e facilitassem o contato com a população nativa. Pergunto: como seria possível conseguir, apenas com a prática de boas maneiras, que alguém deixasse sua família, seu grupo tribal, e fosse, contra a vontade, viajar e viver entre desconhecidos? Contraditório, não? Na formalidade dos documentos é preciso ver além daquilo que se diz. 
De acordo com o relatório feito durante a expedição, Pedro Sarmiento procurou, em todo o tempo e nos menores detalhes, ser o mais obediente cumpridor das instruções do vice-rei. Foi com seus homens em dois navios, costeando a América do Sul, e, com o uso de outra pequena embarcação, às vezes descia em terra para ver o que havia. Assim, logo encontrou indígenas, com os quais procurou fazer contato, e, tendo sucesso, convenceu-os a ir ao lugar em que havia deixado o que trazia, embora desconfiasse, sempre, da possibilidade de um ataque dos nativos. Sua intenção, porém, era, tão pronto quanto possível, capturar um "língua": "Ao chegar ao alojamento, Sarmiento pôs, por segurança, duas sentinelas; procurou tomar algum [dos indígenas] para língua, e com toda a diligência conseguiu tomar um deles, e em seguida Pedro Sarmiento o abraçou, [...], vestiu e o meteram no batel, e nos embarcamos todos [...]." (³)
Missão cumprida? Nada disso: "[...] No quarto da alva o índio que havíamos tomado fugiu daquele que o vigiava; mandando buscá-lo [...] pela beira do mar, o guarda de quem ele havia fugido encontrou-o, e, ao agarrá-lo por uma camisa que vestia, deixou-a em suas mãos, lançou-se ao mar e se foi. [...]" (⁴) Quem, em plena razão, esperaria outra coisa?
No relatório da viagem, o escrivão acrescentou: "Chamamos a este lugar "a ilha do índio [que] fugiu". (⁵)" Aos muito curiosos, informo que, posteriormente, Sarmiento e sua gente capturaram outros índios, com o mesmo propósito de obter intérpretes, e não se fez qualquer menção de que houvessem conseguido escapulir.

(1) Eram as práticas correntes de escambo, não só na chamada América Espanhola, como no Brasil.
(2) GAMBOA, Pedro Sarmiento de. Viaje al Estrecho de Magallanes. Madrid: Imprenta Real de la Gazeta, 1768, p. 16. Todos os trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Ibid., p. 111.
(4) Ibid., pp. 116 e 117.
(5) Ibid., p. 117.


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quinta-feira, 13 de junho de 2019

Papel ruim

Além de escasso, o papel existente no Brasil Colonial era, frequentemente, de má qualidade


Já expliquei aqui no blog a razão para economia de papel por aqueles que viviam no Brasil Colonial. É que todo o papel vinha da Europa. Em consequência da distância e das dificuldades de transporte, era mercadoria cara e não facilmente encontrada. Vejam só o que se escreveu em uma ata da Câmara de São Paulo, no ano de 1576:
"E na dita câmara [5 de maio de 1576] mandaram os senhores oficiais que se cumprissem e guardassem as posturas contidas no Livro da Câmara que estão e serviu no ano de mil e quinhentos e setenta e seis anos, digo e setenta e quatro anos, e que fossem apregoadas [...] com as penas nelas contidas, as quais não mandaram aqui tresladar para não gastar papel por o não haver na terra [...]." (*)
Se o escrivão fosse mais eficiente, a tão necessária economia de papel poderia ser maior... O problema, contudo podia ir além do aspecto quantitativo, invadindo o âmbito do qualitativo.
De que estou falando? Não só havia falta de papel, mas o que havia às vezes era péssimo. Outra ata de São Paulo, desta vez relativa ao ano de 1590, assinalava a necessidade de abandonar o livro de atas em uso - deixemos falar o escrivão daquele ano: "Este livro deixaram os ditos oficiais de fazer vereações nele por ser de ruim papel, e mandaram fazer esta declaração. Eu, Belchior da Costa, o escrevi." (*) Outro livro foi providenciado, ao qual foi dada abertura em 27 de janeiro de 1590, com as devidas formalidades reconhecidas por escrivão, procurador, juízes e vereadores daquele ano.
Livros também eram raros nesse tempo. Havia em São Paulo um Evangelho sobre o qual juravam os que haviam de servir em ofícios públicos, mas mesmo o livro das Ordenações andava em falta. Um escrivão após outro se desesperava porque, sendo seu dever ler para os oficiais de cada ano as obrigações que tinham, não se achava na vila um só exemplar de tal livro. Sendo requerida pelo escrivão a aquisição de um, os vereadores de 1587 responderam "que na terra não havia livreiros nem quem nos vendesse, mas que eles fariam o impossível [sic!!!] pelo haver mais prestes que pudessem [...]." (*) Vários autores têm observado quanto paulistas desse tempo eram rústicos e turbulentos, e não estão errados. Seria injusto, todavia, esperar muita cultura letrada dessa realidade.

(*) Os trechos citados de atas foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável.


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terça-feira, 11 de junho de 2019

Conhecimento, na Antiguidade, era questão de ver e de ouvir

beatus qui legit et qui audiunt verba prophetiae et servant ea quae in ea scripta sunt tempus enim prope est
APOCALYPSIS IOHANNIS I, 3

"Para a aquisição de conhecimento", escreveu Estrabão, "a audição é mais importante que a visão" (¹). Essa ideia, é fácil notar, contraria a percepção de hoje no Ocidente, em que se concede um privilégio acentuado ao visual. O que é que levava esse grego da Antiguidade, que viveu no mundo romano, a favorecer o sentido do ouvir? 
No contexto de sua Geografia, Estrabão, explicando que havia viajado muito, mais do que a maioria dos contemporâneos que escreviam sobre o mesmo assunto que ele, afirmou que, a despeito de tudo quanto observara, precisava recorrer continuamente a informações ouvidas de outros, daí a importância que atribuía aos relatórios dos que haviam visitado lugares remotos, nos quais ele próprio nunca pusera os pés.
Contudo, meus leitores, havia razões, na Antiguidade, que, de fato, contribuíam para a relevância do ouvir na aquisição do conhecimento. É que a alfabetização, como vocês sabem, estava longe de ser universal. Assim, os felizes alfabetizados se tornavam leitores para os incapazes de ler. Mas não era só: por estranho que pareça, textos da Antiguidade eram, em muitas línguas, escritos sem qualquer separação entre as palavras (²), e esse detalhe nada insignificante dificultava, se é que não impedia por completo, a leitura silenciosa. Portanto, se havia alguém a ler para si mesmo, compulsoriamente em voz audível, havia gente por perto para ouvir, desejando ou não. Quanta informação não terá circulado dessa maneira!...
Finalmente, havia outro aspecto, que remete ao modo como livros eram publicados no mundo romano. Não havia, é claro, nenhum processo mecânico para a multiplicação de exemplares e, por consequência, qualquer pessoa que escrevesse um livro precisava, para publicá-lo, encomendar cópias manuscritas que, depois, eram distribuídas ou vendidas. Sendo poucos os exemplares, uma atividade social entre a elite era convidar amigos para reuniões de leitura, em que alguém lia, enquanto todos os demais ouviam. É razoável supor que essas reuniões se tornavam mais interessantes na eventualidade de que o autor de uma obra fosse, também, seu leitor, mas é preciso admitir, por certo, que em alguns casos deviam ser um grande tédio, que precisava ser tolerado a bem da etiqueta. Até mesmo em banquetes havia leitura, para entretenimento dos comensais. Quanta atenção, todavia, era dada a essa fração intelectual do cardápio, podemos presumir, meus leitores, por tudo o que sabemos quanto às práticas correntes nos banquetes da velha Roma.

(1) Geografia, Livro II.
(2) Como exemplo, a epígrafe desta postagem ficaria mais ou menos assim, já que, originalmente, foi escrita em grego: 
ΜΑΚΑΡΙΟΣΟΑΝΑΓΙΝΩΣΚΩΝΚΑΙΟΙΑΚΟΥΟΝΤΕΣΤΟΥΣΛΟΓΟΥΣΤΗΣΠΡΟΦΗΤΕΙΑΣΚΑΙΤΗΡΟΥΝΤΕΣΤΑΕΝΑΥΤΗΓΕΓΡΑΜΜΕΝΑΟΓΑΡΚΑΙΡΟΣΕΓΓΥΣ 
Alguém se candidata a ler? Não será demais recordar que, como na Antiguidade tudo o que havia para ler era sempre manuscrito, a caligrafia do copista era um fator a mais para facilitar ou dificultar a leitura.


quinta-feira, 6 de junho de 2019

Nos primeiros tempos da Capitania de Ilhéus

Era comum, no princípio da colonização, atribuir à intervenção sobrenatural qualquer coisa que os novos povoadores julgavam ser a eles favorável. Em consequência das ideias religiosas populares que então circulavam, não havia muito espaço para questionamentos de caráter ético e/ou moral em relação à conduta dos colonizadores. Um episódio relativo ao princípio da capitania de Ilhéus, contado por frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, ilustra muito bem este assunto. À semelhança daquilo que ocorria em outras capitanias, o contato algo amistoso entre portugueses e indígenas logo foi transformado em confronto aberto:
"Mas sobrevindo [...] a praga dos selvagens aimorés, causaram em tudo grande destruição, e tornou muito atrás esta capitania, assim em fazendas como em moradores. Costumavam estes fazer suas entradas ao sertão contra os aimorés, e em uma destas lhes armaram eles uma tal cilada, que de todos os que entraram, só dizem escaparam quatro, para trazerem as novas (¹) à Vila da morte dos companheiros. [...]." (²)
Assim escaldados, nem por isso desistiram os colonizadores, tampouco registrou-se que tenham eles considerado que suas entradas ao sertão, recobertas de más intenções, é que poderiam ter engendrado a reação dos aimorés, que, por suposto, já tinham ouvido sobre a escravização de indígenas e não queriam ser as próximas vítimas. Sua vitória, contudo, teve vida curta, porque os colonizadores sobreviventes não tardaram em preparar a revanche. Continua Jaboatão:
"Para os vingar ajuntaram amigos e parentes dos mortos uma boa esquadra, com que repetindo as entradas, em uma deixaram sem vida a muitos, e trouxeram presos e cativos uma grande multidão daqueles bárbaros." (³)
Era a lógica da colonização em movimento. Curioso, mas não surpreendente, é que os colonizadores, derrotando e escravizando indígenas, atribuíssem o sucesso a uma intervenção sobrenatural:
"Foi atribuída esta desejada vitória ao socorro e patrocínio da Senhora das Neves, titular e venerada em uma capelinha, sita na mesma Vila dos Ilhéus ao pé do monte que nela se vê no fim da rua que chamam de S. Bento. [...]." (⁴)
As ações dos que viveram no passado não podem ser julgadas apenas pela lógica de hoje. Parte do estudo da História envolve a compreensão da mecânica das relações sociais, dos valores e dos processos mentais daqueles que viveram em tempos diferentes dos nossos. Mas fica evidente que, por volta do primeiro centênio da colonização, as ideias e crenças religiosas não só balizaram comportamentos como foram ferramentas muito úteis para justificar os métodos empregados e - por que não? - para eventualmente acalmar consciências incomodadas com a carnificina que se perpetrava de parte a parte.

(1) Uma referência implícita ao livro de Jó: "...et effugi ego solus uti nuntiarem tibi" (I, 19)
(2) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil  Volume 1. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, pp. 88 e 89.
(3) Ibid., p. 89.
(4) Ibid.


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terça-feira, 4 de junho de 2019

A boleadeira usada por alguns povos indígenas da América do Sul

Usada tanto como arma em combate como para caçar, a boleadeira era já conhecida de indígenas da América do Sul antes da chegada de colonizadores. Mais tarde, depois da introdução do gado de origem europeia, passou a ser usada também na captura desses animais, e a própria confecção da arma veio a incluir, sincreticamente, o emprego de materiais somente disponíveis a partir da colonização, que vocês, leitores, não terão dificuldade em identificar nesta explicação dada pelo espanhol Félix de Azara (¹), ao dizer que havia constatado o uso de boleadeiras de dois tipos (²):
"Estas [boleadeiras] são de duas classes: a primeira se compõe de três pedras redondas do tamanho de um punho, forradas de couro de vaca ou de cavalo e atadas a um centro comum com cordas de couro de uma polegada de espessura e comprimento de três pés. Eles (³) seguram na mão a menor das três bolas e, fazendo as outras girarem com velocidade por cima da cabeça, lançam as três a uma distância de até cem passos; estas bolas se enredam e cruzam de tal modo nas pernas, pescoço ou corpo de um animal ou homem, que é impossível escapar." (⁴)
Perceberam a referência ao emprego de couro de vaca ou de cavalo? Tal coisa somente seria possível a partir da introdução de bovinos e equinos na América do Sul por colonizadores europeus. O outro tipo de boleadeira descrito por Azara, como ele próprio observou, era chamado de "bola perdida":
"A outra classe de bola se reduz a uma só pedra, que eles (⁵) chamam de bola perdida: ela tem o mesmo tamanho das outras, mas quando é feita de cobre ou chumbo (⁶), como acontece muitas vezes, ela é muito menor. É forrada de couro e atada a uma corda do mesmo material com cerca de três pés de comprimento. Para usá-la, seguram a ponta da corda e fazem a bola girar como uma funda, que disparam oportunamente, dando um terrível golpe a cinquenta passos, e mesmo a maior distância, pois eles fazem o lançamento a cavalo, correndo a toda velocidade." (⁷)
É quase desnecessário observar que o emprego de bolas de metal, bem como o lançamento a cavalo são mostras evidentes da aquisição de elementos da cultura e tecnologia dos colonizadores. Para que ninguém incorresse no erro de julgar que boleadeiras eram armas quase inofensivas, Azara acrescentou uma amostra prática do estrago que podiam fazer:
"No tempo da conquista, com esta arma eles [os índios pampas] mataram em uma batalha a Dom Diego de Mendoza, irmão do fundador de Buenos Aires, e outros nove dentre os principais capitães que estavam a cavalo, além de muitos outros espanhóis. Embrulhando bolas perdidas em palha acesa, conseguiram queimar muitas casas de Buenos Aires, e até alguns barcos." (⁸)
Os tempos conflituosos da colonização passaram. As boleadeiras, contudo, permaneceram, usadas na caça por gaúchos, quer de origem indígena ou europeia, durante os dias de cuidado do gado nos campos do sul do Continente.

(1) Félix de Azara foi enviado à América do Sul como comandante da Comissão de Limites Espanhola, cargo que desempenhou entre 1789 e 1801.  
(2) Azara menciona boleadeiras com uma e com três bolas, mas imagens antigas mostram o emprego, também, de boleadeiras com duas bolas.
(3) Referia-se aos índios pampas.
(4) AZARA, Félix de. Viajes por la América del Sur 2ª ed. Montevideo: Imprenta del Comércio del Plata, 1850, p. 188. Todos os trechos desta obra aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) Nova referência aos índios pampas.
(6) Outra evidência do contato com a tecnologia dos colonizadores.
(7) AZARA, Félix de. Op. cit., p. 188.
(8) Ibid.


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