quinta-feira, 28 de junho de 2018

Piratas!

Piratas e corsários eram ladrões do mar. A título de distinção oficial, pode-se dizer que corsários eram ladrões do mar patrocinados por seus respectivos governos. A diferença, pois, é que piratas roubavam para si mesmos, enquanto que corsários roubavam com apoio estatal. Todos roubavam, no entanto.
Nos primeiros dois séculos da colonização, os portugueses estabelecidos ao longo do litoral brasileiro, bem como seus descendentes, viviam com medo de ataques de piratas. Afinal, do dia para a noite (muitas vezes literalmente) podiam esses colonizadores perder tudo o que tinham acumulado com muito trabalho. Além disso, era prática corrente entre os ladrões do mar que se incendiassem as povoações atacadas, com a óbvia finalidade de minar qualquer esforço defensivo. Sabe-se, por exemplo, que Lancaster e Venner pilharam a região de Olinda em 1594, em um ataque tanto mais memorável por ter durado trinta e quatro dias. Imaginem, leitores, o dano que causaram.
No Século XVII, em razão dos meios escassos de defesa da terra, o padre Antônio Vieira referiu, em uma de suas cartas:
"Os corsários continuam a correr estas costas, e já fazem colônia nos confins delas. E isto, que é só o que temos (¹), só se conservará enquanto não houver quem o queira, segundo faltam hoje todas as assistências de armas e munições, que por muitas vezes se tem pedido, esquecendo-se de as mandar os mesmos ministros que tão exatos são em arrecadar os tributos do Brasil, e inventar outros de novo, em que tudo não só se vai arruinando, mas está quase arruinado." (²)
A pirataria, contudo, não era fenômeno novo, ou nascido a partir das navegações oceânicas europeias nos Séculos XV e XVI. Existiu muito antes disso. Marinheiros que navegavam pelo Mediterrâneo no tempo do Império Romano morriam de medo que, durante alguma tempestade, o navio em que estavam fosse jogado em um ponto desabitado do norte da África. Motivo? Piratas!
Pompeu Magno (⁷)
Ao que parece, os primeiros bandos de ladrões do mar resultaram da desintegração da esquadra que pertencera a Mitridates, rei do Ponto (³). Em consequência, não foi preciso muito tempo para que as viagens pelo Mediterrâneo se tornassem mais perigosas que o habitual, já que piratas não estavam sujeitos a regras de nenhuma espécie e tudo quanto desejavam era pilhar o que encontrassem, ainda que, para tanto, fossem cometidas enormes atrocidades. De acordo com Plínio, o Velho (⁴), coube a Pompeu Magno (⁵) a responsabilidade de fazer a "faxina" nas águas que cercavam a Península Itálica e adjacências. O mesmo autor refere (⁶) que, nessa ocasião, nada menos que oitocentas e quarenta e seis embarcações de piratas foram capturadas. Para evitar que viessem a cair novamente nas mãos de ladrões, cada navio pirata apreendido era prontamente afundado. Esse procedimento, todavia, não eliminou completamente a pirataria no Mediterrâneo. Ao contrário, variando em intensidade, o "fenômeno" persistiu. Os atores, apenas, é que mudaram.

(1) Referia-se ao fato de que, àquela altura dos acontecimentos, a maior possessão colonial que restava a Portugal era o Brasil.
(2) VIEIRA, Pe. Antônio S. J.  Cartas vol. 2. Lisboa Ocidental: Oficina da Congregação do Oratório, 1735, p. 347.
(3) c. 81 a.C.
(4) 23 - 79 d.C.
(5) Aquele mesmo do Primeiro Triunvirato - lembram-se dele? A República romana dava, então, seus últimos suspiros, e o Império estava às portas.
(6) Cf. Naturalis Historia, Livro VII.
(7) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 155.



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terça-feira, 26 de junho de 2018

O que havia de elogiável em São Paulo no Século XVI

"Esta terra parece um novo Portugal" (¹), escreveu o jesuíta Fernão Cardim. A que terra se referia? A São Paulo de Piratininga e seus arredores, na Capitania de São Vicente. Era o Século XVI.
Cardim acompanhava o visitador Cristóvão de Gouvêa em viagem (²) de supervisão pelos colégios e missões que a Companhia de Jesus havia estabelecido no Brasil. Causara espanto o luxo que ostentavam os moradores da Bahia e Pernambuco, que, através do vestuário dispendioso, comprovavam a prosperidade dos empreendimentos açucareiros coloniais. Porém, chegando a São Paulo, Cardim se põe a gabar, não os veludos, plumas e sedas, mas a fertilidade da terra, que devolvia em farta produção todo o trabalho realizado por colonizadores e indígenas. Foi tão pródigo em elogios, que vale a pena dividir seu relatório em itens:

A Vila tinha boa localização
"A vila está situada em bom sítio, ao longo de um rio caudal [...]." (³)
Os moradores da Vila tinham muito respeito pelos padres
"Não têm cura nem outros sacerdotes senão os da Companhia, aos quais têm grande amor e respeito [...]." (⁴) Quanto a isto, ou Cardim era de uma inocência admirável, ou os moradores de São Paulo tinham, nesse tempo, incrível talento cênico - talvez acontecesse um pouco das duas coisas. Quem é que não sabe que os colonizadores viviam às turras com os "padres da Companhia", sempre que estes tentavam obstar a escravização de indígenas? Os primeiros missionários enfrentaram João Ramalho e sua numerosíssima prole; no Século XVII, o "amor e respeito" foi tanto, que chegaram a expulsar os jesuítas da Vila, somente readmitidos quando prometeram solenemente que não haveria intromissão nos assuntos "seculares".
Os moradores da Vila eram generosos no sustento dos padres
"Os moradores sustentam seis ou sete dos nossos, com suas esmolas com grande abundância [...]." (⁵)
Havia boas pastagens onde se criava gado bovino
"É terra de grandes campos e muito semelhante ao sítio d'Évora, na boa graça, e campinas, que trazem cheias de vacas, que é formosura ver." (⁶)
Vinhas eram amplamente cultivadas
"Têm muitas vinhas e fazem vinho [...]: nunca vi em Portugal tantas uvas juntas, como vi nestas vinhas [...]." (⁷)
A produção de figos e marmelos era notável
"[A terra] tem grandes figueiras de toda sorte de figos [...], muitos marmeleiros que dão quatro camadas, uma após outra, e há homem que colhe doze mil marmelos, de que fazem muitas marmeladas [...]." (⁸) Sob esse aspecto não há discussões, a produção de marmelada de São Paulo em fins do Século XVI era suficiente não só para a demanda local, como também para comércio em outras capitanias.
Havia cultivo de rosas-de-alexandria
"[A terra] tem muitas rosas-de-alexandria, e porque não tem das outras rosas, das de-alexandria fazem açúcar rosado para mezinha (⁹), e das mesmas cozidas [...] fazem açúcar rosado para comer, e fica sofrível. [...]." (¹º)
Os pinhões eram de boa qualidade
"Há muitos pinheiros, as pinhas são maiores, nem tão bicudas como as de Portugal, e os pinhões são também maiores, mas muito mais leves e sadios [...]." (¹¹)
Era boa a produção de trigo e cevada
"Dá-se trigo e cevada nos campos: um homem semeou uma quarta de cevada e colheu sessenta alqueires; é terra fertilíssima, muito abastada [...]." (¹²)
Vejam, leitores, que Cardim fazia elogios, elogios e mais elogios. Uma coisa, porém, não foi capaz de gabar: o vestuário dos paulistas. Logo no início da descrição da Vila, comentara, reparando que todo o trajar era rústico e antiquado: "Vestem-se de burel e pelotes pardos e azuis, de pertinas compridas, como antigamente se vestiam." (¹³). Pode-se com justiça supor que o jesuíta, estranhando a moda, tenha perguntado aos moradores a que se devia tanto amor ao passado. Da explicação recebida, obteve a conclusão que aparece depois de toda a loquacidade quanto às virtudes do lugar: "Tem [esta terra] grande falta de vestido, porque não vão os navios a S. Vicente, senão tarde e poucos". (¹⁴)
Em São Paulo quase não circulava dinheiro amoedado. Mas, ainda que houvesse dinheiro, não havia roupas finas à venda, por ser reduzido o comércio de artigos vindos do Reino. Tecidos, portanto, só os da terra, de algodão; talvez alguma lã. E foi isso que Cardim viu.

(1) CARDIM, Pe. Fernão S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, p. 106.
(2) A viagem durou de 1583 a 1590. A Narrativa Epistolar foi dirigida ao provincial jesuíta em Portugal.
(3) CARDIM, Pe. Fernão S. J. Op. cit., p. 104.
(4) Ibid., p. 104.
(5) Ibid.
(6) Ibid.
(7) Ibid., pp. 104 e 105.
(8) Ibid., p. 105.
(9) Ou seja, para uso supostamente medicinal.
(10) CARDIM, Pe. Fernão S. J. Op. cit., p. 105.
(11) Ibid., p. 105.
(12) Ibid.
(13) Ibid., p. 104.
(14) Ibid., p. 105.


quinta-feira, 21 de junho de 2018

A adoção de filhos e o aprendizado de uma profissão, de acordo com o Código de Hamurabi

Um rapazinho que vivesse em alguma cidade europeia em fins da Idade Média teria de passar por um longo processo de formação, caso desejasse ser um artesão qualificado e com a devida licença para trabalhar na corporação de ofício que lhe correspondia.
Como ainda hoje acontece, havia meninos que queriam seguir a profissão do pai, para perpetuar algum ramo de atividade familiar. Mas, como também acontece até hoje, havia quem quisesse ter uma profissão completamente diferente daquela exercida por seus ancestrais. Na Idade Média, convenhamos, o caminho ficava mais difícil: era preciso deixar a própria família e ser aceito como aprendiz na oficina de um mestre do ofício desejado (¹), e isto significava ir morar lá, com outros aprendizes, fazendo todo o trabalho ordenado, por horas, dias e anos a fio. Não se deve imaginar que os ditos aprendizes fossem tratados com muita gentileza. A educação medieval não era para tanto.
O tempo passava e, penosamente, o jovem adquiria as habilidades necessárias para ser aprovado em um exame rigoroso em sua corporação. A partir daí, era visto como um profissional, ainda trabalhando com seu mestre, para juntar o dinheiro necessário a fim de, algum dia, ser também um mestre, com oficina própria e aprendizes.
Se fizermos o cronômetro da eternidade retornar ao Século XVIII a.C., iremos encontrar na Mesopotâmia um modo de aprendizado profissional que, a seu modo, antecipava o padrão da Baixa Idade Média (²). Ditava o Código de Hamurabi:
"Se um artesão adota um menino para criá-lo e lhe ensina seu ofício, essa criança não poderá ser reclamada de volta. Mas, se o artesão não lhe ensinar o ofício, o filho adotivo poderá voltar à casa de seu pai."
De saída, é possível constatar que a criança adotada não era órfã ou abandonada, já que, se não fosse devidamente ensinada em um ofício, poderia retornar à família de origem. Sabe-se que, na Antiguidade, havia pessoas que, não tendo de modo algum um filho "natural", adotavam um sucessor (³), que deveria exercer funções sacerdotais em sua nova família ou clã, mas a questão decisiva, aqui, parece ser outra, ou seja, o ensino de uma profissão: um artesão adotava um menino para fazer dele alguém de seu ofício, na expectativa, talvez, de ter nesse jovem aprendiz um auxiliar. 
Alguma semelhança entre o ensino profissional dos antigos mesopotâmios e o das corporações de ofício medievais? Sim, mas sem qualquer intencionalidade (⁴). A História tem dessas coisas.

(1) Legalmente, o jovem medieval que deixava a família para aprender uma profissão não era considerado filho do mestre de ofício com quem ia morar. Em alguns casos, a família de origem do jovem até pagava pelo ensino profissionalizante que o filho recebia.
(2) Dependendo do lugar, o sistema de controle e ensino mediante corporações de ofício continuou a existir muito além dos tempos medievais.
(3) Esse procedimento foi bastante comum entre os romanos. Inicialmente, a adoção tinha por objetivo assegurar a existência de alguém que continuasse o culto aos antepassados da família. Mais tarde, as adoções passaram a ter enorme significado político: mesmo tendo filhos biológicos, houve imperadores que adotaram outros indivíduos, tencionando fazê-los seus sucessores no poder.
(4) Quem vivia na Idade Média não sabia nada a respeito de Hamurabi e seu famoso Código. Isso vale inclusive para os eruditos da época.



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terça-feira, 19 de junho de 2018

Escravos ao mar!

A trágica viagem dos escravizados que eram transportados da África ao Brasil


Suponho que os leitores conheçam bem estes versos:

"Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar..."

São, como sabem, de Castro Alves, em O Navio Negreiro. O poema foi escrito em 1869, quase duas décadas depois da abolição definitiva do tráfico (¹) de africanos, portanto. Quem o lê, pode supor que seu jovem autor, escrevendo para impressionar o público que comparecia aos comícios abolicionistas, talvez exagerasse o horror das viagens que, em outros tempos, traziam escravizados ao Brasil. Afinal, era preciso despertar a sensibilidade da opinião popular. Mas não era esse o caso. Nem mesmo o talento do poeta condoreiro seria suficiente para pintar, em palavras, o que fora a perfídia do tráfico.
Em uma obra escrita e publicada no contexto da luta pela proibição da entrada de novos escravos vindos da África, Frederico Leopoldo César Burlamaqui reuniu uma coleção de relatos horripilantes, dentre os quais selecionei dois, apenas para mostrar o que podia acontecer em navios negreiros - ou tumbeiros, como, não por acaso, também eram chamadas as embarcações de traficantes de escravos. Vamos ao primeiro caso:
"Um navio negreiro transportava uma carregação [sic] de escravos, e foi encontrado por um cruzador inglês que lhe deu caça. O traficante, vendo que não podia escapar, para não sofrer as penas da sua pirataria, começou a lançar ao mar toda a sua carregação, de sorte que apenas o cruzador pôde salvar poucas vidas." (²)
Escravos recém-chegados
ao Rio de Janeiro,
de acordo com Thomas Ender (⁶)
Agora, o segundo episódio:
"Não há muito tempo que um fato horroroso teve lugar em uma das províncias (³) do Império [...]. Viu-se de terra estarem lançando ao mar, de um navio de negros, alguns tonéis; estes tonéis continham os escravos ainda vivos, atacados do mal de Luanda (⁴), que o capitão, para evitar o contágio dos outros, fazia perecer nas ondas!" (⁵)
A obra de Burlamaqui era, explicitamente, propaganda abolicionista. Aos que acham que seu autor talvez exagerasse, pergunto: teria ela alguma força se, em lugar de se ater aos fatos, apresentasse mentiras?

(1) Pela Lei Eusébio de Queirós, em 1850.
(2) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Memória Analítica Acerca do Comércio de Escravos e Acerca dos Males da Escravidão Doméstica. Rio de Janeiro: Tipografia Comercial Fluminense, 1837, p. 12.
(3) Em nota de rodapé, Burlamaqui informou que o incidente ocorrera em 1834, ao largo do litoral rio-grandense.
(4) Escorbuto. Além de tudo, a morte desses infelizes em nada impedia que outros manifestassem a doença, decorrente da carência de vitamina C.
(5) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Op. cit., p. 12. (6) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 14 de junho de 2018

A educação dos meninos persas na Antiguidade

Cada povo educa suas crianças e jovens para aquilo que mais preza; valem, aqui, as habilidades, os valores, os conhecimentos. Mesmo as famílias (nas sociedades em que as crianças são educadas em família) tendem a passar à geração seguinte o que julgam de maior importância. 
Não nos enganemos: se uma determinada sociedade, na educação de seus jovens, não atribui importância a algum aspecto do saber acumulado pela humanidade, é porque, afinal, esse aspecto não tem, para ela, valor algum. O recado está dado, leitores.
Mas vamos adiante, que o assunto de hoje é o modo como os antigos persas educavam meninos. Heródoto, grego de Halicarnasso, gostava de viajar e, na Antiguidade, eram os que viajavam que tinham, como regra, boas histórias para contar. Contou, por exemplo, que entre os persas, um menino ficava sob os cuidados da mãe e de outras mulheres da família até que completasse cinco anos. Antes disso (segundo Heródoto!), o pai sequer ia ver o filho, para evitar a enorme tristeza que poderia ter em caso de morte de seu rebento. Verdadeiro ou não, esse relato de Heródoto diz muito sobre a mortalidade infantil na Antiguidade.
A partir dos cinco anos, o rapazinho passava a ser instruído nas três habilidades reputadas essenciais para um homem: "cavalgar, atirar com arco e falar somente a verdade". Assim era até que atingisse a idade de vinte anos. Vejam, leitores, que a instrução era voltada, como em muitas outras culturas, para a formação de um bom soldado.
Heródoto nada disse quanto à educação das meninas. Eis um caso em que a omissão, por si, é de uma eloquência notável.


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terça-feira, 12 de junho de 2018

Por que vir de tão longe buscar pau-brasil?

"Oh! e quão loucos são e ambiciosos!
Por um pouco de pó, por uma pedra,
Por um tronco de pau, eles se matam
Parece que têm medo que lhes falte
Terra e mar, ar e céu, aves e bosques!"
Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios


"Pau-de-tinta" foi um dos muitos nomes dados ao pau-brasil (Paubrasilia echinata). Na Europa do Século XVI essa notável madeira servia, entre outros usos, à construção naval e à fabricação de móveis e de instrumentos musicais, além do emprego em tinturaria. Foi sua abundância na costa do Brasil que contribuiu para dar à terra algum interesse por parte da Metrópole, uma vez que, nesse tempo, o comércio dos artigos vindos do Oriente tinha, ainda, a preponderância. 
Indígenas cortando pau-brasil com ferramentas
fornecidas por europeus (¹)
Não demorou muito e indígenas do litoral, encantados por objetos trazidos por europeus (tais como facas, tesouras e machados), também se envolveram em cortar madeira e arrastá-la até pontos junto ao mar, chamados arrogantemente de "feitorias", mas que, como regra, não passavam de amontoados de árvores cortadas, cobertas, no melhor dos casos, por alguma simples construção ao estilo indígena, aguardando que embarcações comparecessem para o escambo. Ora, leitores, nem era necessário que portugueses estabelecessem uma dessas feitorias: um relato (ao que tudo indica, verídico), presente no Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa, mostra que indígenas, motivados pelo escambo, chegavam a tomar a iniciativa de ir aos navios para oferecer madeira que, por conta própria, haviam preparado:
"A terra é toda chã, cheia de arvoredo. Como nos achegamos mais a terra se nos fez o vento sueste, e no meio-dia surgimos em fundo de onze braças, uma légua de terra. [...]. Este dia vieram de terra, a nado, às naus, índios a perguntar-nos se queríamos brasil."
Deste documento, datado de 3 de fevereiro de 1531, podem ser extraídos dois fatos importantes:
  • O escambo já despertava grande interesse entre os indígenas;
  • Indígenas e portugueses já eram capazes de razoável comunicação, ou não seria o caso de Pero Lopes de Sousa registrar que os "naturais da terra" haviam perguntado se havia interesse por madeira.
Indígenas cortando pau-brasil,
imagem do Século XVI (⁴) 
Sucede que não eram apenas os portugueses que viam no pau-brasil uma oportunidade de comércio e, portanto, de lucro. Navegadores de outras nacionalidades, especialmente franceses, eram assíduos frequentadores do litoral brasileiro, e diante deles as chamadas expedições guarda-costas eram quase inócuas. Jean de Léry (²), em conversa com tupinambás, foi interrogado quanto ao interesse dos franceses pelo pau-brasil - aos nativos da América parecia estranho que europeus viessem de muito longe para buscar lenha com que fazer fogueiras... Coube ao francês explicar que não era para queimar, mas para a extração de tinta que se usava o arabutan.
A incômoda pergunta seria repetida, um pouco mais tarde, a outro francês, o capuchinho Yves d'Évreux (³), que esteve no Maranhão entre 1613 e 1614:
"Um dia disseram-me alguns [indígenas], que era preciso haver muita falta de madeira em França, e que experimentássemos muito frio para mandarmos navios de tão longe, à mercê de tantos perigos, carregarem de paus.
Respondi-lhes que não era para queimar, e sim para tingir de cores." (⁵)
Leitores, nada de achar graça na questão levantada pelos indígenas. Ignorando completamente como era a vida na Europa, eles apenas podiam imaginar o mundo segundo a vivência que tinham. Era choque de culturas, sim. Pergunto: Não serão muitos dos conflitos atuais, que assolam este mundo, resultantes, também, do quanto ainda desconhecemos em relação àqueles que diferem de nós?

(1) THEVET, André. Cosmographie Universelle vol. 2. Paris: Guillaume Chaudiere, 1575, p. 950.
(2) Francês, esteve no Rio de Janeiro em 1557, na malograda tentativa de estabelecimento da "França Antártica".
(3) Trabalhou como missionário na tentativa de estabelecimento da "França Equinocial", que, à semelhança da "França Antártica", fracassou.
(4) THEVET, André. Les Singularitez de la France Antarctique. Paris: Maurice de La Porte, 1558, p. 117.
(5) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 65.

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Sobre a opinião da plebe

"Non sequeris turbam ad faciendum malum [...]."
Exodus XXIII, 2

Ir contra a multidão exige uma força moral que não é exatamente virtude generalizada na humanidade. Falemos sério, leitores: são poucas as pessoas que ousam manifestar e defender opinião contrária àquela que a maioria parece apoiar. Por outro lado, a força das multidões é incontestável - mas estariam elas sempre certas?
Fiz uma pequena seleção de momentos em que a atitude das massas teve importância para o rumo dos acontecimentos, todos relacionados à Antiga Roma. Então, leitores, vejam o que vem a seguir, mas com a convicção de que se trata apenas de uma amostra. A lista poderia ser muitíssimo mais longa - em se tratando de dar a volta ao mundo, faria concorrência a Fernão de Magalhães.

Espetáculos de gladiadores para agradar a plebe


Os primeiros torneios de gladiadores foram realizados em Roma para dar oportunidade de treinamento aos cidadãos livres, em ocasiões em que estavam dispensados de deveres militares. No entanto, os espetáculos sangrentos caíram no gosto dos romanos, de modo que figuras de destaque na vida política passaram a ver na realização de lutas entre gladiadores profissionais (¹) a ocasião perfeita para assegurar o favor popular. Daí resultaram consequências desastrosas, conforme argumentou Aneu Floro (²):
"Por que motivo os gladiadores se revoltaram contra seus treinadores, a não ser pelo fato de que se obtinha o favor da plebe com a realização de espetáculos, nos quais supliciar o oponente vencido chegou a ser uma arte?" (³)

Envolvimento popular na Conjuração de Catilina


De acordo com Salústio (⁴), "a plebe, desejando algo novo, apoiava o plano de Catilina" (⁵). Surpreendente? Nem um pouco. Qualquer um que levantasse a voz contra a autoridade senatorial tinha enorme chance de obter apoio da plebe, e foi, em princípio, exatamente o que ocorreu neste caso. Quando, porém, a maré se tornou desfavorável a Catilina e seus adeptos, as massas mudaram de partido, um fenômeno que também não é nenhuma raridade. Na interpretação de Salústio, "a plebe que, inicialmente, desejando coisas novas, favorecera a guerra civil, uma vez descoberta a conjuração, mudou de ideia, passou a execrar Catilina e a elevar Cícero aos céus, e, como se liberta de uma escravidão, se agitava em alegria e comemorações". (⁶)
Parece que a plebe teria compreendido que não lhe era nada favorável o plano de Catilina de incendiar a cidade de Roma. Afinal, as poucas coisas que o povo comum tinha como suas seriam consumidas pelas chamas.

Participação da plebe na perseguição de cristãos


Na visão de Tertuliano (⁷), a partir da primeira perseguição aos cristãos em Roma, nos dias de Nero, tornou-se usual colocar a culpa nos adeptos do cristianismo, sempre que o Império era afetado por algum problema grave. A perseguição recrudescia e, por consequência, nos circos havia novos banhos de sangue para abrandar o descontentamento público:
"A plebe amotinada pedia a perseguição dos cristãos, dizendo-os inimigos públicos do imperador e do Império, da religião, da pátria, da natureza e do mundo." (⁸)
E mais: 
"Se o Tibre alcança os muros da cidade, ou se o Nilo não transborda o suficiente para as plantações, se o céu, sem nuvens, não traz chuva, se há tremor de terra ou se ocorre escassez de trigo, ou se grassa a peste, o povo não tarda a gritar para que 'joguem os cristãos ao leão'. Para tantos cristãos um só leão?" (⁹)

Perdoem-me a aparente redundância, leitores, mas não sei se é preciso concluir com uma conclusão. Os fatos não falam por si mesmos? É fácil perceber que um abismo separa a democracia saudável das agitações incoerentes, nascidas talvez de causas legítimas, porém manipuladas para fins que não se ousa explicitar. Sêneca (¹º), cidadão romano, filósofo estoico, professor de Nero, opinou que "homens e mulheres, idosos e crianças, governantes e povo acorrem unânimes, e umas poucas palavras agitam de tal modo a multidão, que esta vai mais longe do que pretendia o agitador" (¹¹). Estava ele certo ou errado?

(1) Geralmente estrangeiros escravizados após derrota em luta contra os exércitos de Roma.
(2) Um autor contemporâneo do imperador Adriano.
(3) Epitome rerum Romanarum, Livro III.
(4) 86 - 34 a.C.
(5) Catilinae coniuratio.
(6) Ibid.
(7) c. 160 - 220 d.C.
(8) Apologia.
(9) Ibid.
(10) 4 a.C. - 65 d.C.
(11) De Ira. As citações de obras de Floro, Salústio, Tertuliano e Sêneca que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 5 de junho de 2018

Quando o imperador dizia não

A Constituição Imperial de 1824 previa em detalhes o ritual a ser adotado quando a Assembleia Geral (composta pela Câmara dos Deputados e pela Câmara do Senado) aprovava um decreto qualquer, que, em seguida, devia ser encaminhado ao imperador para sanção, sem a qual não entraria em vigor. A fórmula de encaminhamento, estipulada no Capítulo IV, Artigo 62, era esta:
"A Assembleia Geral dirige ao imperador o Decreto incluso, que julga vantajoso e útil ao Império, e pede a Sua Majestade Imperial se digne dar a sua sanção."
Se o imperador concordava, devia responder: "O Imperador consente." (Art. 68). Não deixa de ser curiosa, porém, a fórmula estabelecida no caso de que Sua Majestade Imperial negasse a sanção, conforme se lê no Artigo 64:
"Recusando o Imperador prestar o seu consentimento, responderá nos termos seguintes - O Imperador quer meditar sobre o Projeto de Lei, para a seu tempo se resolver - ao que a Câmara responderá, que Louva a sua Majestade Imperial o interesse que toma pela Nação."
Os leitores deste blog, raciocinando dentro da lógica de uma democracia do Século XXI, talvez julguem que o imperador não fazia nada além de seu mais óbvio dever ao tomar interesse pelos assuntos da nação, sendo, portanto, dispensável qualquer louvor neste caso. Afinal, não era para isso mesmo que o imperador existia e era mantido com recursos públicos? Sim, mas em uma época em que havia ainda, mundo afora, muitos governos absolutos, o Império do Brasil, com sua Assembleia Geral de membros eleitos (por voto censitário), talvez não estivesse completamente mal. Ou estava?


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