quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

O Catetinho

Projetado em 1956 por Oscar Niemeyer, o Catetinho evidencia as características óbvias de uma construção planejada para uso temporário (inclusive pelo emprego de madeira, em lugar de alvenaria). Quem o observa, logo nota a semelhança entre ele e outros prédios, também provisórios, utilizados durante a construção de Brasília. Até que o Palácio da Alvorada fosse concluído, funcionou como residência presidencial, que Juscelino Kubitschek usava sempre que vinha acompanhar de perto as obras da nova capital. Foi chamado "Catetinho" porque, na época, o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, era a sede do Executivo federal, posição que ocupou até 1960. 
Hoje o Catetinho é um museu. O acervo não é muito grande, mas tem importância por conservar a memória de um momento significativo para o Brasil, além de objetos que eram usuais na época e que, para maioria de nós, atualmente, talvez pareçam um pouco estranhos: rádio, lampião, telefone antigo - a futura capital estava longe dos maiores centros urbanos - além de roupas e objetos de uso pessoal do presidente Juscelino Kubitschek.  As fotos darão a vocês, leitores, uma ideia do que há para ver. 

Vista geral do Catetinho

Escada para acesso ao segundo piso (fotografia infravermelha a 720 nanômetros)

Refeitório

Uma das janelas do Catetinho (fotografia infravermelha a 720 nanômetros)

Gabinete do presidente no Catetinho


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terça-feira, 25 de dezembro de 2018

A celebração do Natal durante a expedição missionária do padre Antônio Vieira em 1653

Véspera de Natal, 1653: uma expedição percorre o rio Tocantins. Para os jesuítas que dela participam, o objetivo é estabelecer contato com indígenas que pretendem catequizar. Mas vão também colonizadores, e estes têm outras ideias (¹). A data, porém, pede celebração. Mas, que fazer, em meio à floresta?
A simplicidade deu o tom, pelo que se depreende de um relato feito pelo padre Antônio Vieira, que liderava os missionários jesuítas:
"Tínhamos determinado fazer alto neste dia mais cedo que nos outros, para gastar toda a tarde em adereçar uma capela de palma, em que celebrar com mais decência os mistérios desta sagrada noite, mas não tivemos lugar para mais que de engenhar uma pequena choupana mal coberta com as toldas das canoas, aonde armamos o nosso altar. [...]." (²)
Aos missionários não ficou sequer a alegria de celebrar missa com todos reunidos. É que uma das canoas não acompanhou o ritmo das demais, conforme explicação do próprio Vieira:
"Não nos achamos juntos mais que os padres Francisco Veloso, Manoel de Sousa e eu, porque o padre Antônio Ribeiro com a sua canoa não pôde avançar tanto, e ficou em outro lugar, aonde também aportaram algumas canoas que não estavam conosco, e por esta tardança e apartamento vieram uns e outros a ter a consolação da santa missa aquela noite." (³)
Desse modo, a ocasião foi marcada pela celebração de missas e por uma refeição muito simples - quem esperaria encontrar uma autêntica ceia de Natal em meio às águas e matas ainda desconhecidas para europeus? Sigamos com as informações do padre Vieira:
"O padre Antônio Ribeiro contentou-se só com a água sem farinha, os demais [...] não tiveram mais sobre a farinha que um pouco de peixe seco, mas Deus tempera de maneira estes regalos que os não trocarão os que gostam deles pelos maiores do mundo. O trabalho tão extraordinário de todo o dia parece pedia o descanso da noite, mas toda ela se passou em vela sobre a terra nua da choupana, oferecendo cada um ao Menino nascido não só os desamparos de seu Belém, mas as saudades da devoção e concerto que esta santa noite celebra nos colégios da Companhia. À meia-noite dissemos três missas, que todos ouviram, as demais se disseram às suas horas, e no dia comungaram alguns portugueses e alguns índios." (⁴)
Entre preces e reflexões que talvez não ousassem compartilhar, missionários passaram as horas do Natal. Fatigados pela viagem, a mente inquieta pelo temor quanto às péssimas intenções de alguns integrantes da expedição, deram as boas-vindas a algum repouso. Concluindo o informe desse Natal atípico, Vieira escreveu: "Por celebridade do dia não fizemos jornada nele [...]." (5)

(1) A ideia, óbvia para quem conhece alguma coisa sobre a conduta dos colonizadores da época, era escravizar indígenas.
(2) Cf. MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 467.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) Ibid.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Riscos existentes na prática do comércio e da agricultura entre os antigos romanos

Qual seria a ocupação mais honesta e rentável para um romano da Antiguidade? O austero Marco Pórcio Catão (¹), que escreveu De agri cultura, achava que era o cultivo do solo. Demos a palavra a ele, portanto:
"O comércio, não fora os riscos que encerra, seria uma atividade tão recomendável quanto propícia ao enriquecimento; o mesmo poderia ser dito dos banqueiros, desde que honestos. Pensando nisso, nossos antepassados fizeram constar nas Leis que um ladrão estava obrigado a restituir em dobro aquilo que roubasse, enquanto que os usurários seriam condenados à restituição do quádruplo, evidenciando, assim, que, em seu julgamento, os usurários eram cidadãos piores que os ladrões. Por outro lado, sempre que pretendiam elogiar um homem, diziam-no proprietário de terras e bom agricultor [...]."
Depois de afirmar que tinha os bons comerciantes em alta conta, lamentando, porém, os riscos em que incorriam, o mesmo Catão alardeava as vantagens que supunha haver na agricultura:
"É dos labores do solo que emergem os melhores cidadãos, fisicamente vigorosos e ótimos soldados (²), resultando da agricultura um ganho honesto, absolutamente seguro e não sujeito à inveja [de quem quer que seja]." (³)
Convido os leitores a uma reflexão sobre quais seriam os riscos envolvidos no comércio em larga escala na Antiguidade. Primeiro,. comerciantes precisavam viajar muito, por terra e por mar, e as viagens, nesse tempo, podiam ser bastante perigosas. Além disso, mercadorias eventualmente se estragavam ou "desapareciam" por obra de ladrões. Talvez os potenciais compradores não se interessassem pelos artigos à venda e, no caso de Roma, incêndios em armazéns adjacentes ao porto de Ostia não eram um fenômeno desconhecido. Finalmente, havia a ameaça de piratas que, à espreita em áreas litorâneas pouco habitadas, aguardavam uma oportunidade para a captura de embarcações que iam e vinham pelo grande "lago salgado" romano em que o Mediterrâneo se tornara após a destruição de Cartago.
Contudo, também a agricultura envolvia riscos. Falta de chuva ou estiagem prolongada, um inverno demasiado rigoroso ou um verão escaldante, podiam arruinar o trabalho de uma temporada. Mas não era só: se houvesse guerra, talvez acontecesse que, por conveniência estratégica, uma fértil área de cultivo fosse transformada em campo de batalha, sem falar nas pilhagens feitas por inimigos ou na possibilidade do confisco de toda a lavoura, já pronta para a colheita, para sustento das tropas. Nessas condições, como alguém podia supor que a agricultura fosse uma atividade isenta de contratempos? E por que, afinal, Catão via nos proprietários de terra figuras tão dignas de elogios?
O motivo, meus leitores, talvez possa ser encontrado no próprio Catão, cuja vida transcorreu em uma época na qual, como resultado das conquistas militares, o luxo ia já invadindo Roma e caindo no gosto de seus outrora rústicos habitantes. Nesse cenário, Marco Pórcio Catão teimava, como político, em buscar a aprovação de leis que limitassem os gastos e obrigassem a gente abastada a viver "como nos velhos tempos", em que líderes militares romanos deixavam o arado para empunhar armas e, vitoriosos, voltavam rapidamente ao trabalho, para não prejudicar a lavoura. Era assim, idilicamente agropastoril, que Catão supunha a Roma ideal. Mas estava sem sorte: seus concidadãos tinham outras ideias, o comércio experimentava um crescimento absurdo, a agricultura perdia importância e o cultivo do solo era entregue a prisioneiros de guerra escravizados. Roma, senhora de uma parte considerável do planeta, passou, pouco a pouco, a depender das remessas de cereais que vinham de outras terras - principalmente do Egito - para sobreviver. O Século seguinte à morte de Catão se encarregou de consolidar essa nova tendência.

(1) 234 - 149 a.C.
(2) Lembrem-se, leitores: Catão foi um combatente na Segunda Guerra Púnica.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

De onde vinha o óleo que mantinha as candeias acesas no Brasil Colonial

Óleo de baleia na iluminação de casas e engenhos coloniais


Uma parte nada desprezível na adaptação dos colonizadores à vida no Brasil estava relacionada a encontrar substitutos para artigos de uso corrente em Portugal. Foi assim, por exemplo, quanto ao óleo usado para manter acesas as candeias que, à noite, asseguravam que casas e engenhos não ficassem às escuras. Com o passar do tempo, o chamado "óleo de baleia" seria muito utilizado; contudo, as baleias (¹), que nos primeiros tempos da colonização eram em extremo numerosas ao largo da costa do Brasil, foram gradualmente desaparecendo, em razão da autêntica guerra de extermínio que a cobiça moveu contra elas. "As baleias são em tão grande número, que só nesta Bahia anda hoje o Contrato Real sobre elas em quarenta e três mil cruzados por tempo de três anos" (²), escreveu o padre Simão de Vasconcelos no Século XVII. Era a suposição, nascida à altura do descobrimento, de que, no Brasil, água, terra, matas, tudo, enfim, era infinito. As baleias infinitas pagaram caro por isso.

Algumas alternativas para iluminação


Óleo de copaíba
Exemplar jovem de copaíba
Curiosamente, no Século XVI as candeias queimaram um óleo vegetal bastante perfumado, o de copaíba. Depois reputado medicinal, queimá-lo passou a ser, para os colonizadores, um desperdício. Na explicação de Gabriel Soares, senhor de engenho na Bahia por dezessete anos, a copaíba "é árvore grande, cuja madeira não é muito dura, e tem a cor pardaça, e faz-se dela tabuado; a qual não dá fruto que se coma, mas um óleo santíssimo em virtudes, o qual é da cor e clareza de azeite sem sal, e antes de se saber de sua virtude servia de noite nas candeias. Para se tirar esse óleo das árvores, lhes dão um talho com um machado acima do pé, até que lhe chegam à veia [sic], e como lhe chegam corre este óleo em fio, e lança tanta quantidade cada árvore, que há algumas que dão duas botijas cheias, que tem cada uma quatro canadas (³)." (⁴)

Óleo de fígado de peixe-serra
Seguindo o procedimento de aproveitar o que estava à mão, o óleo de fígado de peixe-serra também serviu para iluminação, assim como para calafetar embarcações. Disse Gabriel Soares: "Aragoagoay é chamado pelos índios o peixe a que os portugueses chamam peixe-serra [...]. Este peixe [...] tem tamanhos fígados [sic], que se tomam muitos de cujos fígados se tiram trinta a quarenta canadas de azeite, que serve para a candeia e para [...] o breu para os barcos." (⁵)

Óleo de fígado de tubarão
Ainda de acordo com Gabriel Soares, "porque se não podem brear as naus sem se misturar com a resina graxa, na Bahia se faz muita de tubarões, lixa e outros peixes, com que se alumiam os engenhos e se breiam os barcos que há na terra [...]" (⁶).

Além desses, outros óleos foram utilizados, à medida que, movido pela necessidade, o conhecimento quanto aos recursos naturais que a terra tinha a oferecer se expandiu . A interação entre colonizadores e indígenas, quando pacífica (⁷), foi, nesse sentido, muito produtiva.

(1) A carne de baleia era dada aos escravos para alimentação; outras partes tinham grande variedade de uso, até mesmo na composição de argamassa para construção de muros.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 280.
(3) Uma canada corresponde a 1,4 litros.
(4) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 196.
(5) Ibid., p. 281.
(6) Ibid., p. 358.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

O ódio dos romanos à monarquia

Os romanos odiavam a monarquia. É um tanto difícil separar os fatos das lendas quando se trata do período da história romana conhecido como realeza (que vai da fundação lendária de Roma em 753 a.C., fazendo de Rômulo o primeiro rei, até a expulsão de Tarquínio, o Soberbo, último dos famosos "sete reis de Roma"), mas parece evidente que o ódio à realeza ter-se-ia originado com os desmandos do último rei. Cícero, político e escritor romano do Século I a.C., perguntou: "Tu não vês que a maldade e a soberba de Tarquínio fizeram com que o título de rei fosse odiado pelo povo?" (¹) Também disse, apontando aquela que, para ele, era a deficiência fundamental de uma monarquia: "Dentre tudo o que falta ao povo cujo governante é um rei, a primeira delas é a liberdade, a qual não consiste em ter um senhor justo, mas em não ter qualquer senhor." (²)
Ora, meus leitores, esse ódio dos romanos à realeza estava muito longe de ser apenas uma questão de palavras. Os desdobramentos práticos são de arrepiar os cabelos. Vejamos:
  • De acordo com Cícero (³), Espúrio Cássio, um político importante da República, foi acusado de buscar o favor do povo com vistas a fazer-se rei e, por isso, foi condenado à morte, com voto popular e aprovação de seu próprio pai, que se declarara convencido da culpa do filho (⁴);
  • O cônsul Lúcio Júnio Bruto, um dos líderes do movimento que afastou Tarquínio do poder em 509 a.C., fez executar seus dois filhos, porque os rapazes eram partidários do monarca, fato que levou Aneu Floro a escrever: "O pai mostrou publicamente que adotava o povo romano em lugar dos filhos"; (⁵)
  • Durante uma grande escassez de alimentos no Século V a.C., Espúrio Mélio, conforme relato de Tito Lívio (⁶), comprou trigo na Etrúria para distribuição gratuita entre a plebe, levantando suspeitas de que se quisesse fazer aclamar rei, mas por ordem do ditador escolhido para aquela ocasião extrema, foi executado, e sua casa, a título de exemplo, foi completamente arrasada;
  • Nas intrigas que se acumularam após o assassinato de Júlio César, Otávio, que pretendia suprimir a concorrência de Marco Antônio, não vacilou em acusá-lo de ter pretensões monárquicas, até porque não lhe faltava, para isso, argumento convincente, já que, segundo Aneu Floro, quando estava em companhia de Cleópatra, o triúnviro adotava a indumentária típica de um rei: "Levava cetro de ouro na mão, espada ao lado, vestia púrpura adornada com pedras preciosas e usava um diadema [...]" (⁷).
Suponho, a esta altura, que alguns de meus leitores já tenham franzido a testa, com um muito razoável questionamento: Se tal era o ódio à monarquia, como explicar que Roma tenha se tornado um império? Não foram monarcas os imperadores de Roma?
É necessário dizer, portanto, que muitos romanos dos dias do Império ficariam surpresos se soubessem que, séculos depois, seu governo seria rotulado de monárquico, segundo nosso ponto de vista, mas não de acordo com o deles. Para os romanos, aquele a quem chamamos imperador era apenas príncipe, ou seja, nada mais que o principal cidadão da República romana, a despeito do componente dinástico eventualmente introduzido. A conservação do senado e de outros cargos e instituições típicas da República foi fundamental para manter as aparências - ou a cegueira conveniente, se preferirem.

(1) CÍCERO, Marco Túlio. De re publica, Livro I.
(2) Ibid., Livro II.
(3) Ibid.
(4) Foi jogado da Rocha Tarpeia em 485 a.C.
(5) FLORO, Aneu. Epitome rerum Romanarum.
(6) LÍVIO, Tito. Ab urbe condita libri.
(7) FLORO, Aneu. Op. citAs citações das obras de Cícero e Aneu Floro foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Como sertanistas de São Paulo descobriam o rumo de alguém no sertão

Era 1736. Paulistas já haviam encontrado ouro "nos Goyazes" (¹) e no "sertão do Cuiabá". Portanto, estavam ocupados povoar em a região, ao mesmo tempo em que reviravam a terra à cata do tão cobiçado metal. Quase não havia córrego que não fosse explorado, ainda que ouro, em profusão, nem sempre viesse. Nesse tempo, colonizadores de origem portuguesa andavam às turras com os vizinhos "castelhanos". Afinal, mesmo que ninguém soubesse exatamente por onde passava a "linha" - uma referência aos limites estipulados no Tratado de Tordesilhas - havia certa desconfiança de que os súditos de Portugal já vinham, há muito tempo, entrando em terras que, ao menos pelo acordo de 1494, deviam ser de Espanha. Deviam, mas...
Sendo essas as circunstâncias, Manoel Dias da Silva, à frente de um grupo armado, foi ao chamado "Sertão da Vacaria". Não achou os castelhanos, que, de acordo com a Nobiliarchia Paulistana, já haviam se recolhido às povoações em que residiam. Achou, porém, um monumento por eles deixado, atestando a posse da área para o monarca espanhol. Conta Pedro Taques de Almeida Paes Leme (²), autor da Nobiliarchia, que o dito marco era "um padrão de pedra lavrada, em forma de cruz, posta ao alto, a que servia de base outra pedra em figura triangular, de seis palmos de alto, com proporcionada grossura à altura do padrão; nele estavam abertas as letras do idioma castelhano, que diziam: "Viva el-rei de Castela, senhor dos domínios destas campanhas""
Se podemos crer no que escreveu Pedro Taques, Manoel Dias e sua gente trataram de pôr abaixo o monumento, substituindo-o por outro. Na impossibilidade de erguer um marco de pedra, foi usada a melhor madeira disponível: "Do madeiro mais grosso e menos corruptível mandou lavrar em quatro faces uma cruz (³), em que lhe gravou as letras no idioma português, que diziam: "Viva o muito alto e muito poderoso rei de Portugal D. João V, senhor dos domínios deste sertão da Vacaria"."
É difícil saber se as coisas aconteceram assim, como é também duvidoso se alguma vez el-rei tomou conhecimento de tão notável dedicação da parte de seus súditos. Contudo, foi no fim do reinado de D. João V que se costurou o Tratado de Madri (⁴), com a intenção de colocar termo às divergências em relação às fronteiras entre terras de Portugal e Espanha na América do Sul. 
Mais interessante, talvez, seja o registro do método usado por paulistas quando, em perseguição a quem quer que fosse, precisavam descobrir por onde andava o seu "alvo". Disso somos informados também por Pedro Taques, justamente ao narrar as aventuras de Manoel Dias. Lembrem-se, leitores, de que paulistas desse tempo não eram notáveis por conhecimentos acadêmicos de geografia; mapas, à exceção de garatujas feitas por sertanistas, eram quase inexistentes e, como é óbvio, não era possível consultar um GPS: "[...] até pela figura dos ranchos e cinzas do fogão conheciam os sertanistas, pouco mais ou menos, o tempo que tinha passado depois que naquele sítio estivera alguma tropa [...]."
Em suma, essa gente tinha o faro do sertão. Com quem tal habilidade fora aprendida? Com indígenas, certamente. Aliás, muitos paulistas desse tempo eram mamelucos. O lado trágico da questão é que esse mesmo conhecimento foi empregado, muitas vezes, com o objetivo de caçar e aprisionar ameríndios para escravização.

(1) Era essa a grafia na época.
(2) 1714 - 1777.
(3) Observe-se o uso que era feito do símbolo da cruz, tanto por colonizadores espanhóis como por portugueses.
(4) 1750.



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quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Como o látex era usado para iluminação nos tempos coloniais

A exploração do látex, extraído da Hevea brasiliensis (seringueira, se preferirem) da região amazônica, proporcionou, em fins do Século XIX e início do Século XX, um período de prosperidade para o norte do Brasil que é, frequentemente, chamado surto ou ciclo da borracha (¹). 
A Hevea brasiliensis não é, contudo, a única árvore fornecedora de látex (²). Das explorações conduzidas por Félix de Azara (³) no Século XVIII ficaram registros que demonstram a importância do látex extraído em áreas de colonização espanhola na América do Sul:
"O mangaysy é uma árvore [...] cuja resina é bastante conhecida no mundo todo com o nome de goma elástica. [...] Neste país (⁴) só a vi ser empregada para fazer bolas com que os meninos brincam e para iluminação à noite no deserto (⁵)." (⁶)
É pouco provável que Azara falasse da Hevea brasiliensis, que, como já disse, é nativa da região amazônica, mas, havendo outras árvores que produzem látex, ainda que de qualidade inferior, não surpreende que crianças logo encontrassem aplicação para tão útil recurso natural. Como, porém, seria o látex usado na iluminação? Voltemos a Azara:
"[...] faz-se desta resina uma bola que é posta na água; observando-se o lado que flutua, apertam-na para fazer uma espécie de mecha à qual se põe fogo e, acesa, é colocada na água, onde queima a noite toda, até que se consome inteiramente." (⁷)
Distantes da Europa, colonizadores precisavam improvisar (muitas vezes) e investigar, entre a população nativa, materiais que suprissem a falta dos recursos a que estavam acostumados. O uso do látex para iluminação parece, assim, ser um exemplo interessante a comprovar tal fato (⁸). 

(1) Há divergências quanto à nomenclatura.
(2) Embora o látex dela extraído seja considerado da mais alta qualidade.
(3) Viveu entre 1742 e 1821. Ao liderar a Comissão Demarcadora de Limites da Espanha entre 1789 e 1801, teve a oportunidade de fazer inúmeras observações quanto às condições geográficas no Paraguai, Argentina e Uruguai, bem como sobre a fauna e a flora dessa região.
(4) Referia-se ao território atual do Paraguai.
(5) Deserto, aqui, significa uma área desabitada.
(6) AZARA, Félix de. Viajes por la América del Sur 2ª ed. Montevideo: Imprenta del Comércio del Plata, 1850, pp. 80 e 81.
(7) Ibid., p. 81. Os trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(8) Não foi o único meio de iluminação obtido mediante o uso de recursos naturais conhecidos pela população indígena da América do Sul.


terça-feira, 4 de dezembro de 2018

De que se ocupavam os barbeiros

Parece óbvio que barbeiros são profissionais especializados em aparar barba e cabelo, certo? Já houve tempo, porém, em que, no Brasil, barbeiros tinham, além dessas, outras atribuições. Mas, a título de curiosidade, vamos começar pela Roma Antiga, onde o hábito de fazer a barba foi introduzido muito depois da origem da cidade. Pelo menos, é o que diz Plínio, o Velho (¹), no Livro VII de Naturalis historia:
"De acordo com Varrão, os primeiros barbeiros que vieram a Roma foram trazidos da Sicília por Públio Titínio Mena no ano 454 da fundação da cidade (²); antes disso, os romanos jamais se barbeavam. [...]. O divino Augusto sempre manteve o hábito de se barbear." (³)
Passemos agora ao Brasil, onde, por muito tempo, a escassez de profissionais de saúde devidamente qualificados foi enorme, e, por essa razão, barbeiros tiveram uma gama de atribuições que não se restringiam ao corte de barba e cabelo. Vejam, leitores, este relato feito pelo militar alemão C. Schlichthorst (⁴), sobre a experiência de ter a barba devidamente aparada por um barbeiro português no Rio de Janeiro, a capital do Império:
"Não preciso recear a mão pesada dum barbeiro alemão. A aveludada e perfumada mão dum português de Portugal, como gostam de ser chamados os brasileiros vindos da Metrópole, ata-me ao pescoço imensa toalha guarnecida de rendas, ensaboa-me durante cinco minutos com água de flor de laranjeira e gasta dez para raspar minha barba com outras tantas navalhas, sem que eu sinta mais do que o leve roçar do aço e um pouquinho de tédio. Depois de empoar-me o rosto para amaciar a pele, o fígaro penteia meus cabelos e gasta muito tempo quanto pomada para dar-lhe uma forma elegante. E ainda não acabou! Oferece-se para arrancar-me este ou aquele dente, o que cortesmente não aceito. Então, lava-me o rosto e fricciona-me a nuca com a mesma água de flor, apresenta-me o espelho e diz com profunda mesura: - 'Vossa Excelência está preparado para fazer sua reverência à dama de seu coração'." (⁵)

Barbeiros ambulantes trabalhando no Rio de Janeiro na primeira metade
do Século XIX, de acordo com Debret (⁶)

Schlichthorst entrou, está claro, em uma barbearia algo sofisticada. Contudo, havia, nesse tempo, até barbeiros ambulantes nas ruas do Rio de Janeiro, e deles não seria possível exigir tantos cuidados. Suponho, porém, que os leitores devem ter ficado um tanto intrigados com a proposta feita pelo barbeiro, quanto à extração de dentes. Ora, não se espantem, era coisa comum no Século XIX. E não só: barbeiros também eram chamados para fazer sangrias, recomendadas principalmente quando alguém tinha febre. O avanço dos conhecimentos científicos desobrigou os barbeiros de tal prática, poupando, com isso, muitas vidas.


Barbeiros e sangradores estabelecidos no Rio de Janeiro em meados do Século XIX




Esta lista de barbeiros e sangradores estabelecidos na capital do Império foi publicada na edição de 1854 do Almanaque Laemmert (⁷). Observem-na atentamente e vejam que, além dos serviços tradicionais de um barbeiro, eram também oferecidas aplicações de ventosas e sanguessugas (hirudíneos).

(1) 23 - 79 d.C.
(2) 300 a.C. 
(3) Naturalis historia, Livro VII. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Esteve no Brasil pouco depois da Independência, como oficial do Segundo Batalhão de Granadeiros do Império.
(5) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, pp. 86 e 87.
(6) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(7) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1854. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1854, pp. 512 e 513.