terça-feira, 30 de abril de 2019

O dinheiro dos astecas

Olhem para este fruto, leitores: quem de vocês, de imediato, o relaciona a dinheiro?



Poucos, eu creio, com exceção de alguém que cultive cacau - é disso que se trata - ou desenvolva atividade econômica relacionada à sua produção. 
Os astecas, porém, não pensariam assim. É que, entre eles, sementes de cacau eram usadas como dinheiro. Fenômeno parecido aconteceu com muitos outros povos, visto que, antes que qualquer tipo de moeda entrasse em circulação, uma variedade de substâncias, algumas delas até esquisitas, foram usadas como meio de troca. O sal é um bom exemplo: de onde vocês acham que vem a palavra "salário"? O uso de quantidades de metais, ouro e prata em particular, precedeu a cunhagem de moedas, que se diz ter surgido na Lídia (¹), por volta do Século VII a.C. Para que assim acontecesse foi necessário o desenvolvimento das técnicas de trabalho com metais.
Desde então, a maioria dos povos construiu um sistema monetário envolvendo a cunhagem de moedas, sistema esse de complexidade variável, é verdade, mas sempre em vantagem em relação a outros meios de troca, pelas seguintes razões:
  • Moedas eram duráveis (²);
  • Ofereciam uniformidade, tendo por base a quantidade de um dado metal que a(s) moeda(s) contivesse(m);
  • Apresentavam resistência às intempéries, como só metais podem ter;
  • Eram facilmente transportadas de um lugar para outro;
  • Eliminavam as muitas inconveniências (e divergências) decorrentes das trocas diretas;
  • Dispensavam a obrigação de pesar metais a cada nova transação comercial;
  • Finalmente, mas nada desprezível, a cunhagem de moedas podia resultar em uma homenagem a deuses e homens, cuja imagem era nelas gravada (³) - lembrem-se, leitores, de que isso era muito importante, em tempos nos quais os recursos midiáticos para o desenvolvimento do culto à personalidade de líderes políticos eram ainda escassos.
Voltando aos astecas, é preciso considerar que, a despeito do alto grau de desenvolvimento dessa civilização em muitos aspectos, seu sistema monetário, baseado em sementes de cacau, ainda não havia atingido o estágio da cunhagem de moedas quando espanhóis invadiram e conquistaram o México. Os sobreviventes dos constantes massacres de indígenas somente teriam contato com dinheiro amoedado sob a dominação dos novos senhores da região.

(1) Segundo o que disse Heródoto em suas Histórias.
(2) Esse fator é muito importante até hoje: uma dentre as várias técnicas para datar sítios arqueológicos consiste em avaliar a época de cunhagem das moedas neles eventualmente encontradas.
(3) Não se pode afirmar que isso tenha sido uma vantagem para Luís XVI da França.


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quinta-feira, 25 de abril de 2019

Assim agiam os bandeirantes

À testa de uma bandeira, Fernão Dias fez enforcar um filho acusado de conspirar contra sua liderança


A tropa, que saíra tão animada, sertão afora, andava já descontente com o chefe. Experiente e poderoso - até havia recebido cartas do rei -, ele não tivera dificuldade em reunir um bando considerável para procurar ouro e pedras preciosas. Mas o tempo passava e a esperança de riqueza para todos ia minguando. Famintos, às vezes beirando a inanição, e com as roupas já pouco melhores que trapos, os homens lutavam contra o desespero. E nada de o teimoso líder resolver-se a voltar para casa. Adiante, adiante, sempre adiante. Para onde, afinal?
Em silêncio, olhares insatisfeitos achavam cúmplices. A conspiração tomava forma.
Não é por acaso que se diz que paredes têm ouvidos e mato tem olhos. Ora, mato é que não faltava naquelas paragens. Do fundo de sua obsessão por esmeraldas, o chefe farejou a revolta em andamento, e uma investigação mostrou quem estava à testa dos rebeldes. Um enforcamento silenciou aquele que ousara contestar o obstinado comandante. Era ninguém menos que um filho que havia gerado fora dos limites do casamento (¹).
Não, leitores, isto não é uma página de ficção histórica. Está na Nobiliarchia Paulistana, escrita no Século XVIII por Pedro Taques de Almeida Paes Leme, ao tratar da bandeira de Fernão Dias Paes (²), famoso pela procura de esmeraldas:
"Enquanto [...] penetravam os sertões [...] se introduziu uma diabólica sugestão contra a vida do governador Fernão Dias [...]. Foi autor deste sacrílego e bárbaro atentado o mameluco José Paes, filho bastardo dos delírios da mocidade [sic!] do governador Fernão Dias, que por muitas vezes pôs em desconfianças de que o seu amor excedia para com este bastardo aos grandes merecimentos de seu legítimo filho e primogênito Garcia Rodrigues Paes, que com os brios do sangue que lhe animava as veias sabia constante sofrer as calamidades e misérias do sertão para acompanhar nele [...] a seu pai. [...]"
Tenham paciência com a linguagem do Século XVIII, leitores, e passemos adiante. Depois de explicar que uma delação levara Fernão Dias ao conhecimento da conspirata, prossegue Pedro Taques:
"[Fernão Dias] prontamente se armou, e sem mais companhia veio examinar as vozes dos agressores, que ainda existiam no seu ajuntamento; retirou-se para logo, e com as cautelas e silêncio que pedia o caso, passou o restante da noite. Amanheceu o dia, e comunicando a gravidade da matéria a seu filho legítimo e mais oficiais parentes e amigos, procedeu na prisão dos culpados, que fazendo-os separar uns dos outros, se averiguou a verdade da capital culpa, que toda recaiu no filho mameluco; porém como o caso pedia um exemplar castigo para evitar outra futura ruína, negou-se ao amor e piedade de pai, e todo cheio de reta justiça, fez levantar o réu ao alto, e depois de confessado (³) e desenganado de que não escapava, o fez enforcar à vista de todo o arraial, com horror e temor dos mais companheiros."
Duas pequenas observações, e com elas vamos concluir:
  • Pedro Taques parece falar do "mameluco José Paes" em um tom pouco favorável (⁴), o que não deixa de ser curioso, já que a maior parte da população de São Paulo nesse tempo era mestiça - havia na terra poucas mulheres de origem portuguesa e, sendo assim, era com índias cristãs que muitos colonizadores se casavam (⁵);
  • Mesmo que o cabeça da rebelião fosse Garcia Rodrigues Paes, o primogênito legítimo de Fernão Dias, e não o filho mameluco, é provável que, sem qualquer demonstração de misericórdia, também fosse enforcado. Era assim que agiam os bandeirantes, era assim que se fazia justiça nas bandeiras que iam ao sertão.

(1) Filho natural era chamado aquele que nascera fora dos limites do casamento devidamente reconhecido pela Igreja. Na época, a distinção entre "filhos legítimos" (provenientes de um casamento formal) e "filhos naturais" era frequente em documentos, devido a uma série de implicações legais.
(2) 1608 - 1681.
(3) Admitindo que os fatos tenham sido exatamente como descritos por Pedro Taques, fica evidente que a bandeira de Fernão Dias contava com pelo menos um capelão.
(4) Quem lê a Nobiliarchia logo vê que Pedro Taques tinha a intenção de enfatizar a nobreza e "limpeza de sangue" da gente de São Paulo, com suas implicações civis e eclesiásticas, ainda que para isso fosse preciso fechar os olhos para o processo de mestiçagem em curso.
(5) A influência ameríndia era tão acentuada que, por séculos, a língua indígena é que foi falada em São Paulo no âmbito doméstico.


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terça-feira, 23 de abril de 2019

O que é perda de tempo?

Vocês acham que a vida é curta, leitores? Isaías, um profeta hebreu da Antiguidade, pensava que sim, tanto que a comparou à vegetação efêmera da Palestina (¹). Contudo, Sêneca (²), o filósofo estoico dos dias de Nero, julgava que a vida não era breve, e sim mal utilizada: "A vida é longa, desde que saibamos aproveitá-la", afirmou. Vejamos, em suas palavras, a exposição daquilo que supunha ser perda de tempo, ao dirigir-se a Paulino, já centenário, com quem sustenta uma interlocução retórica em Da brevidade da vida:
"Quanto de tua vida gastaste com credores, quanto com algum amigo, quanto cuidando dos interesses da República, quanto com teus parentes, quanto em desentendimentos com tua mulher, quanto em castigar escravos, quanto andando às pressas pela cidade? Deves acrescentar a isto o tempo que estiveste doente e o tempo passado na ociosidade e verás que tens muitos anos a menos do que podes contar." (³)
Não é difícil perceber que a fala de Sêneca dá uma ideia das ocupações rotineiras de um membro da elite romana de seu tempo. Além disso, entre a população livre em geral, havia abundância de ociosidade, decorrente da multidão de escravos - prisioneiros de guerra - à disposição para todo tipo de trabalho. De fato, talvez não fossem poucos os que, tendo gasto muito tempo em espetáculos de gladiadores, corridas de cavalos e de bigas, representações nos teatros, além de horas e mais horas nas termas, chegassem, com o correr dos anos, a pensar que a vida ia-se escoando como areia entre os dedos, ou desaparecendo como a frágil vegetação das regiões semiáridas. 
Entretanto, se excluirmos da vida algumas coisas mencionadas por Sêneca, tais como o convívio com amigos e familiares, não estaremos desprezando parte daquilo que a existência tem de melhor? Curioso é que o filósofo estoico, que gastou uns bons anos em educar e aconselhar Nero, não tenha, em Da brevidade da vida, dito nada sobre o que é que, de fato, faria a existência valer a pena. 

(1) Cf. Is. 40, 7: "exsiccatum est faenum et cecidit flos quia spiritus Domini sufflavit in eo vere faenum est populus".
(2) 4 a.C. - 65 d.C.
(3) O trecho citado de Da brevidade da vida foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


quinta-feira, 18 de abril de 2019

Os primeiros povoadores do Brasil, de acordo com os tamoios

Não, não foram os portugueses os primeiros que pisaram nestas terras. O povoamento do Brasil é coisa muito mais remota, sobre a qual há mais dúvidas que certezas. Os índios tamoios (¹), contudo, e com eles vários outros povos indígenas, tinham sua própria versão quanto a quem teriam sido os primeiros e heroicos povoadores do Brasil, e, a seu modo, verdadeiros Rômulo e Remo destas paragens. Foi o franciscano Antônio de Santa Maria Jaboatão quem contou (²) em sua maior obra, Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil, escrita no Século XVIII, ao relatar esta pitoresca lenda indígena, que atribuiu aos tamoios:
"Se é certa a tradição comum, que em toda esta gente há (³), [...] os primeiros povoadores das costas do Brasil foram dois irmãos, com suas famílias, que de outras partes do mundo vieram dar a estas, e aportaram em Cabo Frio, e daí por certas contendas, que sobre a posse de um papagaio bem-falante que houve entre as mulheres destes, de que resultou apartar-se um deles com todos os seus daquela província para outra [...]." (⁴)
Vejam, portanto, meus leitores, que, ao contrário do que sucedeu em Roma, não houve fratricídio: os irmãos, em virtude da contenda provocada pelo papagaio (!), se separaram e; indo viver em rumos distintos com seus descendentes, teriam povoado o Brasil...
Jaboatão só não explicou a quem coube o papagaio da discórdia, mas, supondo que não se tenha aplicado nenhuma justiça salomônica, podemos supor que os contendores devem ter concluído que não havia motivo para disputa por coisa que em terras brasílicas era tão vulgar - vulgaríssima, diríamos, se quiséssemos falar como o José Dias da famosa obra de Machado de Assis (⁵).

(1) No Século XVI, viviam em terras dos atuais Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Os seguidos confrontos com colonizadores resultaram na gradual extinção desse importante grupo indígena.
(2) Nascido em Pernambuco em fins do Século XVII.
(3) Falava dos indígenas e, mais especificamente, dos tamoios.
(4) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil  Volume 1. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, p. 27.
(5) Refiro-me, naturalmente, a Dom Casmurro.


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terça-feira, 16 de abril de 2019

Quando o consumismo não é possível

Por que algumas sociedades tenderam ao consumismo e outras ficaram longe dele? Pode parecer demasiado óbvio, mas só existe consumismo quando há o que consumir, quando a produção de bens de consumo é tão farta que possibilita o exagero do ter, embora a desigualdade na distribuição também seja característica da maioria das sociedades consumistas - alguns têm muito mais que o necessário, outros menos do que precisam. 
Um consumista típico é apaixonado por shoppings centers, embora as compras on-line sejam cada vez mais frequentes e tenham já uma multidão de adeptos. No entanto, se você tiver que trabalhar duro para fazer por si mesmo os objetos de que precisa, dificilmente acalentará ideias consumistas. Pelo menos, é improvável. Isso explica, ainda que parcialmente, por que algumas sociedades se tornaram altamente consumistas, fosse pela exploração da mão de obra, mesmo que assalariada, fosse através do manejo de tecnologia voltada à produtividade (não descartando algum nível de combinação de ambas as possibilidades), enquanto outras, não dispondo de largos contingentes de trabalhadores para explorar e/ou sem tecnologia suficiente para maximizar a produção e a produtividade, tenderam apenas a produzir para consumo próprio, não chegando, em alguns casos, ao hábito da troca, a que chamamos comércio. Foi o caso de muitos povos indígenas da América.
Vejamos. Logo abaixo está uma foto de pilões (*) feitos por indígenas do Brasil. O método para produzi-los consistia em queimar a madeira no local a ser escavado e, depois, com ferramentas primitivas, dar a forma desejada. Esse processo é chamado escarificação. Até a chegada de colonizadores, era assim que povos indígenas do Brasil fabricavam canoas, potes e outros objetos de madeira, apenas para uso da própria comunidade, e não para troca. O corte de árvores era em extremo trabalhoso e o emprego de ferramentas de pedra tornava todo o processo muito lento. Não é preciso um exagero de imaginação para entender o motivo que impedia o consumismo de imperar nessas culturas.


Ora, leitores, não vai aqui nenhum juízo de valor em relação às sociedades e indivíduos consumistas. Sendo este um blog dedicado à História, a ideia é apenas mostrar que, no caso dos povos indígenas, o processo de colonização, incluindo o estímulo ao escambo, introduziu mudanças nada desprezíveis no modo como os ameríndios entendiam a produção e, por consequência, em seus conceitos relativos à propriedade individual e coletiva.

(*) Os pilões vistos na foto pertencem ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF).

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Embarcações usadas pelos caetés

Indígenas do Brasil faziam excelentes canoas, construídas geralmente a partir de um único tronco, já que as árvores do Brasil eram gigantescas. Sim, isto é certo, mas é preciso acrescentar que a criatividade indígena parecia quase não conhecer limites. Onde não havia grandes árvores, nem por isso ameríndios deixavam de navegar, usando, neste caso, jangadas feitas com vários troncos menores, amarrados entre si com firmeza. Porém, havia mais: de acordo com Antônio de Santa Maria Jaboatão (¹), os caetés, que viviam no Nordeste brasileiro, chegavam a fazer suas jangadas, não com troncos, mas com um tipo de palha comum na região em que viviam, usada também na confecção de outros objetos:
"[...] usavam de embarcações, que faziam de certas palhas compridas [...] a que ainda chamam todos piripiri, e fazem delas os moradores daquelas partes esteiras e enxergões para as camas. Estas, depois de bem secas ao sol, ajuntavam em molhos, dentro dos quais metiam varapaus do comprimento que lhes era necessário, e atados em roda destes muito bem aqueles molhos, com cipós a que chamam timbós, brandos e fortes, e assim unidos uns molhos com outros, formavam uma larga esteira, seguros e ligados com outras travessas de paus, à maneira das que hoje chamam jangadas, e com aquelas embarcações assim, atravessavam o rio e iam dar os seus assaltos aos tupinambás da outra parte. [...]" (²)
Convenhamos: o estilo de Jaboatão, nem sempre fluente, pode ser de difícil compreensão para leitores do Século XXI que não estejam habituados ao modo de expressão da gente instruída do Século XVIII. Aqui, porém, estamos interessados em verificar quanto os povos indígenas - caetés, entre eles - eram capazes de obter recursos para a subsistência, mesmo quando o meio em que viviam não era dos mais favoráveis. As jangadas de palha, segundo o mesmo autor, não apenas serviam para navegação fluvial, como podiam, ainda, sendo requerido, servir às incursões que seus construtores ousavam, mar afora: "[...] chegava a tanto o seu atrevimento [dos caetés], que algumas vezes nestas mesmas embarcações foram cometer estes e outros insultos pelas costas do mar até junto à Bahia, que são mais de cinquenta léguas. [...]" (³). Mesmo sem declaração explícita de Antônio de Santa Maria Jaboatão, podemos deduzir que as curiosas embarcações foram usadas, não poucas vezes, em investidas dos caetés contra europeus e seus descendentes, já que esses indígenas viviam perto de uma região de intenso fôlego colonizador nos Séculos XVI e XVII. 
Já vamos concluindo, mas não sem referir, também, que embarcações feitas com algum tipo de palha, junco, cana, vime ou taquara podem ser encontradas em civilizações muito diferentes e distantes entre em si, quer no tempo, quer no espaço. No Egito Antigo, na China, entre povos da África ou entre indígenas do lago Titicaca, lá estavam (ou estão) elas. Aparentemente, sem nenhuma conexão. Eis aí um assunto interessante para estudo.

(1) Nascido em Pernambuco em 1695, esse franciscano foi autor de várias obras importantes, de grande utilidade para o estudo e compreensão do Brasil Colonial.
(2) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil  Volume 1. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, p. 16.
(3) Ibid.


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terça-feira, 9 de abril de 2019

O que um fazendeiro romano deveria vender

A propriedade agrícola ideal, imaginada por Marco Pórcio Catão (¹) em sua obra De agri cultura, destinava-se, antes de tudo, a dar lucro. Secundariamente, devia dar lucro. Finalmente - vocês já sabem - devia dar lucro. Era para isso que um romano deveria almejar ser dono de uma fazenda. Assim, ao expor seu projeto de enriquecimento, opinou que seria bom que latifundiários vendessem tudo o que fosse, de algum modo, supérfluo, com o fim de obter dinheiro: "Observe o gado e veja o que pode ser vendido; havendo preço compensador, venda também o azeite, o vinho e o trigo excedentes, os bois velhos, as ovelhas de corte, a lã e as peles, a carroça velha, as ferramentas velhas e os escravos velhos e doentes - venda tudo, de qualquer maneira. Um fazendeiro deve ser sempre vendedor, e não comprador." (²)
Não se trata, aqui, de julgar a moralidade dessa prática, mas de constatar que, provavelmente, era usual entre os romanos, a ponto de Catão recomendá-la sem nenhum constrangimento. Não obstante, chama a atenção o tratamento dispensado aos escravos: existiam para trabalhar e, se não estivessem em condições de satisfazer a essa premissa, deveriam, sem demora, ser vendidos. Mas que expedientes adotaria o probo fazendeiro romano que queria se desfazer de bois velhos, de uma carroça imprestável ou de um escravo velho e/ou doente, para levar alguém a adquirir suas "mercadorias"?!
É notável que um tal pensamento viesse de um romano considerado verdadeiro paradigma em sua geração, e mesmo muito depois dela. Sabe-se que nem todos os integrantes da elite romana pensavam de igual modo, e houve até quem se notabilizasse por entreter amizade com escravos cultos, que apenas eram cativos formalmente. Contudo, o indivíduo apontado como modelo era Marco Pórcio Catão, cuja lógica - a de que era preciso obter dinheiro com tudo que se referisse a uma propriedade agrícola - desconhecia qualquer sentimento de compaixão.

(1) Também conhecido como "o Censor" (234 - 149 a. C.).
(2) CATÃO, Marco Pórcio. De agri cultura. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


quinta-feira, 4 de abril de 2019

A hora de dormir em uma aldeia indígena

O dia podia ser muito ocupado: preparo da mandioca, caça e pesca, cuidado das crianças, confecção de cerâmica, redes e cestos. Mas entardecia e, com o escurecer, as muitas ocupações geralmente iam chegando ao fim. À noite, ao redor de uma grande fogueira sob a luz das estrelas, os homens conversavam, contavam histórias, faziam planos para o futuro. Então, vinha a hora de dormir. Ninguém é de ferro. 
Índios puris usando rede para dormir (³)
Frei Vicente do Salvador, que viveu entre a segunda metade do Século XVI e a primeira do XVII, descreveu assim o interior de uma habitação coletiva de indígenas, durante as horas da noite: 
"A noite toda têm fogo para se aquentarem, porque dormem em redes ao ar, e não têm cobertores nem vestido, mas dormem nus, marido e mulher na mesma rede, cada um com os pés para a cabeça do outro, exceto os principais (¹), que como têm muitas mulheres dormem sós nas suas redes, e dali quando querem se vão deitar com a que lhes parece, sem se pejarem de que os vejam." (²)
Esteira de buriti usada para dormir,
etnia kayapó (⁵)
Interessante como é, este relato não dá conta da variedade de preferências quanto ao modo de dormir existente entre os povos indígenas. Para muitos, a rede era obrigatória, mas os casais dormiam em redes separadas, ficando sempre a da mulher abaixo da do homem, porque competia a ela manter acesa a pequena fogueira que os aquecia. Francisco Bernardino de Sousa, autor do Século XIX, explicou que a etnia tapuia-ereté tinha outros hábitos: "Em vez de redes ou de peles de animais, que servem de leito à maior parte dos índios das tribos conhecidas, repousam estes dentro de uma espécie de balaio comprido." (⁴)
A fogueira, porém, era indispensável para a maioria dos indígenas. Por quê?
Havia pelo menos três razões: para aquecer (já que, mesmo no verão, as noites podem ser frias dentro de uma floresta), para espantar os insetos e, finalmente, para afastar as onças e outros animais. Quem iria dormir em paz se soubesse que, a qualquer momento, poderia acordar com o bafo de um grande felino por perto?

(1) Referia-se aos chefes indígenas.
(2) Acredita-se que o manuscrito da História do Brasil de frei Vicente do Salvador estivesse concluído por volta de 1627.
(3) _______ Bilder-Atlas Siebenter Band. Leipzig: F. A. Brockhaus. 
A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) SOUSA, Francisco Bernardino de. Lembranças e Curiosidades do Vale do Amazonas. Belém do Pará: Typ. do Futuro, 1873, p. 128.
(5) Esta esteira pertence ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF).


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terça-feira, 2 de abril de 2019

Deveres das mulheres paiaguás

Entre a maioria dos povos indígenas da América do Sul predominava aquilo que tecnicamente recebe o nome de divisão sexual do trabalho, ou seja, havia tarefas destinadas a homens e a mulheres, em exclusividade (ainda que, eventualmente, ocorresse alguma exceção). Caça e pesca, por exemplo, eram, como regra, ocupações masculinas, enquanto que trabalhos em cerâmica e preparação de alimentos cabiam às mulheres. 
Se podemos crer no que escreveu Félix de Azara, que é, quase sempre, bastante confiável, os paiaguás podem ser também listados entre os que dividiam as obrigações quotidianas desse modo. Para refrescar a memória dos leitores, recordo que os monçoeiros paulistas que iam ao sertão no Século XVIII faziam referência aos paiaguás como "o gentio canoeiro", e tiveram, com eles, confrontos memoráveis (¹). Mas, como o assunto aqui está ligado aos deveres de homens e mulheres desse grupo indígena, passemos ao que escreveu Azara:
"É dever das mulheres fazer esteiras, construir e organizar as cabanas, confeccionar as mantas e as panelas e pratos de barro. Estes pratos estão cobertos por desenhos, porém não são devidamente cozidos. Elas [as mulheres] devem cozinhar os legumes e às vezes o pescado, embora apenas esporadicamente, porque os maridos é que vão buscar lenha e preparar a carne e o pescado." (²)
Parece evidente que reservar aos homens a caça e a pesca era um modo de mantê-los ativos e fisicamente aptos para a guerra. Como negar, entretanto, que a quantidade de tarefas atribuídas às mulheres era muito maior que a destinada a indivíduos do sexo masculino? O relato de Félix de Azara trazia, ainda, esta informação: "Eles [os paiaguás] comem de tudo, mas as mulheres jamais provam carne, porque dizem que lhes seria prejudicial" (³). Azara não explicou o motivo.

(1) Os monçoeiros do Século XVIII davam aos paiaguás o nome de "gentio canoeiro", em razão da enorme habilidade desses índios na natação e em manobrar canoas; os guaicurus, por sua vez, eram chamados "gentio cavaleiro". Paiaguás e guaicurus eram, sem dúvida, os indígenas mais temidos pelos que participavam das monções cuiabanas.
(2)  AZARA, Félix de. Viajes por la América del Sur 2ª ed. Montevideo: Imprenta del Comércio del Plata, 1850, p. 218.
(3) Ibid. Os trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.