quinta-feira, 29 de março de 2018

Como a deusa favorita dos atenienses ganhou um nome extra

Nomes indígenas, explicou Hans Staden, eram em geral referências às qualidades de animais, plantas e do que mais havia na natureza. Ao nascer, cada menino tupinambá recebia um nome, e assim ficava, até que, já adulto, estava apto a matar inimigos. Então, àquele a quem era conferida a honra de abater um prisioneiro em um ritual de antropofagia, concedia-se o privilégio extra de "ganhar um nome", ou seja, de anexar ao seu próprio o nome do guerreiro de outra tribo que matara. Por isso, a lista de nomes que um tupinambá podia ostentar era diretamente proporcional ao número de inimigos mortos. Entretanto, como documentava o "currículo", se pertencia a uma cultura ágrafa?
Ainda de acordo com Hans Staden, após matar o prisioneiro que seria devorado, o tupinambá tinha o braço riscado com um dente pontiagudo de algum animal. Essa cerimônia tinha grande importância e devia ser realizada pelo chefe da aldeia. A cicatriz que daí procedia era o comprovante inequívoco da coragem e valentia que o caracterizavam como um verdadeiro herói diante de sua gente.
Agora, leitores, vamos voar até a Grécia Antiga, onde encontraremos alguém que também ganhou um nome. Atena - lembram-se dela? - a deusa que nasceu da cabeça de Zeus, entrou em combate, ao lado do pai, contra gigantes que ameaçavam o Olimpo. Matando um deles, cujo nome era Palas, arrancou-lhe a pele, da qual fez um revestimento para o escudo que usava. Com isso, a deusa grega, que não era tupinambá, também ganhou um nome, passando a ser conhecida como Palas Atena, e lá se foi mitologia afora, para viver novas aventuras.


terça-feira, 27 de março de 2018

Jesuítas acampavam quando iam ao sertão

Tendo indígenas como guias, missionários jesuítas foram, em diversas ocasiões, a vanguarda da exploração do território brasileiro por europeus.
Em suas expedições de catequese era frequente que precisassem acampar, uma vez que, sertão adentro, não havia povoações de colonizadores, onde pudessem encontrar abrigo quando anoitecia. Um relato escrito pelo jesuíta José de Moraes em meados do Século XVIII oferece uma ideia de como se arranjava um missionário quando precisava "baixar acampamento":
"Todos os dias antes de ser noite fazia alto com os índios que o acompanhavam, mandava armar o rancho, que era uma casa formada de paus e coberta de palha, que para tudo dão comodidade os matos do Brasil; tratavam de cozinhar o que entredia de caminho tinham morto, ou na caça ou na pesca, de que há abundância nestas terras, por serem muito destros os índios neste exercício em que rara é a vez que voltam sem trazer alguma coisa. Acabada a ceia à luz de muitas fogueiras, que faziam ao redor da casa para se defenderem das feras e de infinidade de mosquitos, que de ordinário se não atrevem a chegar junto do fogo, se deitavam a dormir até o seguinte dia de madrugada, que continuavam a sua viagem." (¹)
A vivacidade da explicação dada pelo padre José de Moraes até nos leva a imaginar, em sua rústica cabana improvisada, o que conversariam, o missionário, usualmente com um companheiro também jesuíta, e os indígenas, nessas horas em que, não fossem as palavras, ficariam apenas a ouvir os sons noturnos da floresta (²). Falariam em coisas da religião? Ouviriam com interesse as lendas e tradições indígenas? Ainda que sem pôr os sentimentos em palavras, teriam receio do caminho adiante? Embora não tenhamos resposta para tais questões, ficamos com a certeza de que os aspectos práticos da jornada deviam ocupar muito do tempo desses expedicionários que estavam dispostos a gastar a vida na propagação de suas convicções religiosas. 
Se o lugar não era favorável para arranchar, era preciso armar as redes (como os indígenas), em algum ponto nas árvores. O modo de fazer fogo era também aquele aprendido com os filhos da terra. Talvez possamos falar, portanto, em um estilo colonial de acampar, comum a jesuítas e bandeirantes, e, mais tarde, a partir do Século XVIII, adotado também por tropeiros, e aprendido, em grande parte, com os mestres ameríndios, verdadeiros especialistas em sobrevivência na variedade de paisagens naturais de que se compunha o Brasil.

(1) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 95.
(2) Que não são exatamente tranquilizantes.


quinta-feira, 22 de março de 2018

Ulrich Schmidel e os animais da América do Sul

A difícil tarefa de descrever criaturas desconhecidas para leitores do Século XVI


Ulrich Schmidel, o mercenário alemão que veio à América do Sul no Século XVI na armada de Pedro de Mendoza (fundador de Buenos Aires), escreveu um livrinho (¹), depois de retornar à Alemanha vinte anos mais tarde, em que narrou com estilo simples, talvez até rude, as peripécias vividas no Novo Mundo. Entre uma aventura e outra, incluiu algumas referências a seres vivos que seus conterrâneos ainda desconheciam. Para dar a vocês, leitores, uma ideia da curiosa capacidade descritiva de Schmidel, selecionei três exemplos, sendo dois deles de mamíferos e o terceiro e último, de um réptil.

1. Guanaco


Tratando de indígenas do sul do Continente, Schmidel informou que tinham "ovelhas tão grandes como uma mula" (²). De que, exatamente, falava? Do guanaco, na certa, porque, ainda que tenha encontrado outros camelídeos da América do Sul nas expedições de que participou, só este poderia ser enquadrado na descrição e no lugar em que, naquele momento, estava o nosso conciso escritor.


Guanaco

2. Anta


Anta ou tapir
De acordo com Schmidel, a anta "é um animal parecido com um burro, tendo pés como os de uma vaca e o couro muito espesso [...]." (³) A referência ao couro de anta não é fruto do acaso: colonizadores, tanto da América Espanhola quanto do Brasil, aprenderam com indígenas que ele podia ser usado para a fabricação de equipamentos de defesa - couraças, por exemplo - que apresentavam notável resistência às armas em uso na época.

3. Jacaré


"Achkeres", disse Schmidel, "é um peixe [sic] de couro muito duro, que não pode ser perfurado com arma [branca] nem com flechas indígenas; é um peixe [sic] grande, e causa aos outros peixes muito dano. Põe os ovos na terra, a uma distância de dois ou três passos da água [...]. Nesse peixe [sic] o melhor é a cauda, mas o restante não é ruim; vive o tempo todo na água." (⁴)
Ulrich Schmidel estava longe de ser um cientista, e não seria razoável esperar dele um rigor técnico que nem mesmo alguns sábios do Renascimento foram capazes de ostentar. Sua preocupação com os animais era essencialmente utilitária, e suponho que, se alguém lhe houvesse solicitado que classificasse os animais nativos da América que conhecera, muito provavelmente iria dividi-los em bons e maus para a panela... Não era gula. Centenas de homens que vieram com Pedro de Mendoza para lugares que hoje conhecemos como Argentina e Paraguai morreram de fome ou de doenças decorrentes de severa desnutrição. A miséria extrema acabou resultando em cenas macabras, mas isto já é assunto para outra postagem.


Jacaré

(1) A primeira edição de Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart foi publicada na Alemanha em 1567; para esta postagem foi consultada a edição de 1599.
(2) SCHMIDEL, Ulrich. Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart. Nürnberg: Levinus Hulsius, 1599, p. 17.
(3) Ibid., p. 30.
(4) Ibid., p. 49. Todos os trechos citados de Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.

terça-feira, 20 de março de 2018

Para reduzir o número de casamentos

Frequentemente ouvimos dizer que o índice de divórcios está bastante elevado, a despeito dos esforços de conselheiros matrimoniais, terapeutas de casais e mais gente especializada. Pois bem, leitores, na falta de uma fórmula mágica para acabar com os divórcios, vai aqui uma para reduzir - substancialmente - o número de casamentos. A prática, corrente entre os mundurucus, impressionou viajantes e exploradores do território brasileiro no Século XIX, e ainda hoje é adotada, com pequenas variações, por alguns grupos indígenas. Mas vamos ao que interessa, conforme exposto no Itinerário e Trabalhos da Comissão de Estudos da Estrada de Ferro do Madeira e Mamoré:
"Os mundurucus infligem àqueles que se querem casar as mais severas provas e extravagantes torturas. Ao índio que pede a noiva em casamento é aplicado um aparelho de palha trançada, cheio de formigas tocandeiras (¹), ao braço direito, sendo o desgraçado mordido por espaço de seis horas. Se antes desse prazo a dor o forçar a arrancar do braço o aparelho, é impossível a união: não podendo suportar o mal das formigas, também não poderá defender a mulher da cobiça dos estranhos." (²)
Deixando de lado o fato de que a finalidade do teste talvez seja interpretação de quem escreveu o relato da expedição de 1883, devo informar que a mesma obra faz referência a uma prova semelhante entre os maués (³). É possível que vocês, leitores, nunca tenham visto uma formiga tucandeira. Pois eu já vi, e posso assegurar-lhes: seriam um ingrediente da maior perfeição para um filme de terror, cujo título poderia ser "O Ataque das Tucandeiras"... Reconheço, faltou criatividade. Quem pensaria em ser o roteirista?

(1) Também chamadas tucandeiras ou tocandiras.
(2) _____________ Itinerário e Trabalhos da Comissão de Estudos da Estrada de Ferro do Madeira e Mamoré. Rio de Janeiro: Soares e Niemeyer, 1885, p. 130.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Assírios eram orgulhosos torturadores de prisioneiros de guerra

Em nosso tempo, a maioria dos países tenta manter uma imagem favorável junto às outras nações, zelando, no âmbito diplomático, para que nada comprometa as aparências em questões como respeito às leis, aos direitos dos cidadãos e ao cumprimento de acordos internacionais que assegurem a manutenção da paz. Afinal, o que turistas estrangeiros (¹) pensariam de um país em que alguns dos principais monumentos fossem consagrados à valorização de todos os tipos imagináveis de tortura contra inimigos derrotados em combate? Pois saibam, leitores, que, na Antiguidade, um lugar assim de fato existiu: estamos falando da Assíria. 

Relevo assírio em que inimigos aparecem decapitados - veja no alto da imagem (²)

Relevo assírio em que soldados são mostrados carregando cabeças de inimigos - observe à esquerda (³)

Agricultura, pastoreio e comércio eram atividades econômicas correntes entre os assírios; a guerra, porém, com seus afazeres, era a verdadeira obsessão. Viviam prontos para ela, procurando pretextos para novas operações militares, e, através da caça, treinando a prontidão para o combate. Por quê? Ora, leitores, não simplesmente porque tivessem um insaciável apetite sanguinário, mas pelo lucro resultante da pilhagem de tudo quanto tinham os inimigos derrotados. Do desenvolvimento de máquinas de guerra (⁴) à suprema crueldade na tortura física e psicológica dos prisioneiros, tudo convergia para um só propósito, ou seja, assegurar que as riquezas acumuladas por outros povos fluíssem continuamente para as cidades assírias. Se era possível obter tal resultado apenas pela eficácia da intimidação (que "produzia" o pagamento de tributos mais que extorsivos por aqueles que não tinham nem as forças e nem a coragem para enfrentar os assírios), ótimo. Caso contrário, a formidável máquina de guerra era posta em operação, para obter, pela força, aquilo que as ameaças não haviam conseguido. Nos palácios assírios, as conquistas militares e a avalanche de crueldades praticadas eram, sem falta, celebradas em relevos que inflavam o ego dos naturais do país e horrorizavam os visitantes.
Quem ousaria negar que, quando os assírios foram finalmente derrotados em 612 a.C., sobejava a uma parte significativa do mundo antigo razões suficientes para comemoração?

(1) Se é que haveria muita gente disposta a fazer turismo em um tal lugar.
(2) LAYARD, Austen Henry. The Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853.
(3) Ibid.
As imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.
(4) Que, sob o manto das novas tecnologias, têm sucessoras até hoje.


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terça-feira, 13 de março de 2018

Geração espontânea

Um capuchinho francês e suas ideias sobre a origem de mosquitos e grilos


Geração espontânea: lembram-se dela, leitores? É aquela teoria maluca, há muito abandonada, segundo a qual seria possível que seres vivos "surgissem", não como descendentes de outros seres vivos, mas a partir de coisas não vivas, ou seja. a partir de matéria orgânica ou inorgânica (¹).
Ora, os defensores da geração espontânea eram tão sérios em seu "método científico" que sugeriam até experimentos comprobatórios. Uma camisa suja de suor, por exemplo, à qual eram adicionadas algumas espigas de milho, podia, perfeitamente, produzir ratos, desde que se esperasse algum tempo. Ou, como se sabe, um pedaço de carne, deixado à decomposição, produziria, espontaneamente, uma porção de vermes!... Curioso é que ninguém tinha o cuidado de isolar o "sistema" para a obtenção de resultados imparciais. Foi somente na segunda metade do Século XVII que a teoria da geração espontânea, até então candidamente aceita, começou a ser questionada com maior profundidade.
Enquanto isso não acontecia, um capuchinho francês, missionário que veio ao Brasil em 1613, escrevia, entusiasmado, sobre as condições naturais nos arredores da colônia que seus compatriotas tentavam fundar no Maranhão. E, como homem de seu tempo, esse missionário, padre Yves d'Évreux, não cogitava excluir a geração espontânea das explicações que formulava para o que via à sua volta. Mosquitos, por exemplo, tão comuns e tão irritantes (²), eram "criados por águas":
"Há neste país diversas espécies de mosquitos [...]. Originam-se de um humor acre, gostam dos sabores picantes e ácidos, e por isso encontram-se muito no mar e suas praias no tempo do inverno, formados pelo humor e vapores do mar.
[...].
Nos lugares mais próximos à água, maior abundância deles existe, visto serem criados por águas, como já disse." (³)
E havia também o caso dos grilos, ao menos no parecer do padre d'Évreux, que ainda se deu ao trabalho de construir uma argumentação para "demonstrar" a origem desses insetos:
"De todos os animais que fazem companhia ao homem no Brasil, nenhum há que se iguale ao grilo, chamado pelos selvagens Cuju [...].
Nasce da corrupção (⁴).
Quando se faz uma casa coberta de palma fresca, aparecem num momento milhões e milhares desses grilos ou Cujus. Virão dos bosques vizinhos? Não pode ser, porque nas casas cobertas de palma velha não são encontrados (⁵), logo força é confessar que se formam na palma nova com o auxílio do sol.
[...]. 
Além disso originam-se também de ervilhas e favas podres, o que conheci por experiência [sic]." (⁶)
Não, leitores, não critiquem as ideias do padre d'Évreux. Ele apenas olhava o mundo através de uma janela muito pequena, cujas vidraças eram meio embaçadas: estou falando da ciência, tal qual ela era no começo do Século XVII.

(1) A teoria da geração espontânea pode ser chamada abiogênese. Evitei o uso desse termo porque, atualmente, ele é empregado também em outro sentido.
(2) Infelizmente, no comportamento desses monstrinhos de asas não houve qualquer melhora ao longo dos séculos. Lamentável!
(3) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, pp. 164 e 165.
(4) Ives d'Évreux se referia à matéria em decomposição, embora a mesma expressão fosse eventualmente usada para lixo ou sujeira.
(5) Circunstância que, sob um raciocínio correto, poderia ter levado Yves d'Évreux a outras conclusões.
(8) D'ÉVREUX, Yves. Op. cit., pp. 165 e 166.


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quinta-feira, 8 de março de 2018

O comércio, a pesca marítima e o desenvolvimento das técnicas de navegação

Sobrevivência e expectativa de lucro são dois elementos eficazes para vencer a preguiça e forçar a humanidade a ir além do habitual - alguém discorda? Plínio, um romano que viveu entre 23 e 79 d.C., escreveu no Livro VI de Naturalis Historia (¹): "O interesse pelo lucro encurtou a distância até a Índia." (²)
É claro que Plínio não estava sugerindo que a Terra havia encolhido - suas palavras eram, sim, uma referência à descoberta, ainda em tempos do Império Romano, de uma rota marítima mais favorável, com base nas monções. A propósito, este é um bom momento para demolir a ideia absurda que ainda anda pela cabeça de alguns, segundo a qual foi somente durante as Cruzadas que artigos de luxo do Oriente despertaram o interesse de europeus. Como se vê, o apreço por sedas, joias, especiarias, móveis sofisticados e muitos outros artigos finos vem da Antiguidade. Era por isso que marinheiros cruzavam o Índico, embora, desde a Península Arábica, a rota fosse completada por terra.
Embarcação egípcia da Antiguidade (³)
A ampliação dos conhecimentos de navegação não favorecia somente o comércio de luxo. Havia o benefício à pesca, que não era uma questão de mera curiosidade, lazer ou de desenvolvimento do saber científico; também não era, em suas origens, intrinsecamente vinculada a projetos de expansão territorial. Tinha como meta a obtenção de alimento. Se houvesse bastante para o comércio, tanto melhor, mas era, com prioridade, uma questão de sobrevivência para os povos litorâneos, que tinham, às vezes, território escasso para cultivo e pastagens. Romanos, por exemplo, eram vorazes apreciadores de atuns, mas, para obtê-los, deviam enfrentar as águas do Mediterrâneo. Como regra geral, consideravam que os melhores atuns eram provenientes dos arredores da ilha de Samos, embora os de Bizâncio e da Sicília também fossem apreciados.
Soa mal dizer que a necessidade de assegurar um suprimento de proteínas e a paixão pelo lucro foram vitais para o desenvolvimento da navegação astronômica? Fica a seu critério, leitor, decidir o caso. Mas foi assim que a navegação estritamente de cabotagem foi superada. Os conhecimentos científicos resultantes, a princípio meros efeitos colaterais, seriam, posteriormente, decisivos para a humanidade, inclusive para "encolher" de vez este planeta, a partir dos Séculos XV e XVI.

(1) Pode-se dizer que, sob vários aspectos, Naturalis Historia foi uma espécie de enciclopédia da Antiguidade; o fato notável é que essa obra de tão vasto alcance foi escrita por uma só pessoa.
(2) A citação de Naturalis História foi traduzida por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) LINDSAY, W. S. History of Merchant Shipping  vol. 1. London: Sampson Low, Marston, Low, and Searle, 1874, p. 56.



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terça-feira, 6 de março de 2018

Material didático usado nas escolas do Brasil Colonial

Cada época tem o material escolar correspondente à sua cultura. Assim, fossem placas de argila (na antiga Mesopotâmia), papiros (entre os egípcios e outros povos) ou mesmo tábuas recobertas por finas camadas de cera (comuns entre os romanos), o fato é que estudantes de todas as idades precisaram e ainda precisam de um suporte adequado ao registro de suas lições. Por trás disso, como sempre, um amargo recurso pedagógico (¹): repetir, repetir e repetir, até que a lição, com boa ou má vontade, encontre um lugar no cérebro. 
Isso era na Antiguidade. Lembro-me de ter entrevistado alguns idosos que frequentaram o jardim da infância nos anos vinte ou trinta do século passado, quando era comum que cada criança dispusesse, na sala de aula, de um pequeno quadro-negro ou lousa, no qual, com giz, podia garatujar as primeiras letras, sem medo de errar e sem desperdício de papel. Quando a lição terminava, era só apagar o quadro, ainda que as mãos dos pequenos ficassem logo sujas do incômodo pó branco ou colorido. O detalhe curioso é que esses quadrinhos tinham o formato aproximado de um tablet com tela de mais ou menos dez polegadas, daí ser possível pensar em um antes e um depois dos gadgets na educação. Desculpem-me, leitores, se a ideia parecer estranha, mas não pude evitar a comparação quando, dias atrás, vi uma menininha de quase seis anos, em fase de alfabetização, escrevendo, apagando o que escrevera e tornando a escrever no tablet que havia recebido como presente no último Natal...
Mas, por exigência do título, falemos do Brasil nos tempos coloniais. Não eram pequenas as dificuldades enfrentadas pelos jesuítas que exerciam a função de educadores no Século XVI. Anchieta, por exemplo, chegava a passar noites em claro para copiar as lições que, no dia seguinte, devia entregar aos alunos. No centênio posterior, o décimo sétimo, as dificuldades, persistentes, eram acrescidas do pouco interesse por parte de colonizadores em mandar a filharada para a escola. Sabe-se que, chegando ao Pará como missionários em 1653, os jesuítas que tinham por superior o padre Antônio Vieira logo constataram que a população, fosse adulta ou infantil, estava longe de primar pela solidez acadêmica. Que fazer? Os enérgicos inacianos não tiveram dúvidas em, tão pronto quanto possível, dar início às classes, para sanar tão lamentável deficiência. Um depoimento datado de 1654, tendo por autor certo licenciado de nome Matheus de Souza Coelho, diz:
"Abriram os ditos padres escolas públicas, em que logo começaram a ensinar, não só aos filhos dos portugueses, mas também a religiosos de diferentes religiões (²)." (³) 
No entanto, para desasnar a criançada (⁴), os padres precisaram fazer mais que dar aulas - tiveram que fornecer também o material escolar, conforme explicou Matheus de Souza Coelho no já citado documento, em que, de passagem, faz referência a um problema crítico no Brasil Colonial, que era a falta de papel: "...dando os ditos padres a todos, de graça, as artes (⁵), cartapácios (⁶) e mais livros por onde haviam de aprender, que para este efeito tinham trazido do Reino, e até o papel em que escrevessem os estudantes por haver pouco na terra, e não chegarem as posses de todos ao poder comprar". (⁷) 
Observem, leitores, que o improviso não era marca da ação educacional do grupo de missionários que Vieira liderava. Se haviam trazido material didático do Reino é porque planejavam, tão logo chegassem, dar início à instrução, não só dos indígenas, a quem queriam catequizar, mas também dos filhos dos portugueses que viviam no Brasil como colonizadores. Vieira nascera em Lisboa, mas se criara na cidade da Bahia, e, portanto, tinha uma ideia exata das carências que haveria a defrontar, assim que tornasse a pôr os pés no Brasil.

(1) Nem sempre muito recomendável, ainda que praticado em larga escala até hoje.
(2) A referência, aqui, é aos membros de diferentes ordens religiosas.
(3) Citado em MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 432.
(4) Não se assustem, leitores: as escolas de alfabetização eram, no Brasil Colonial, conhecidas como "escolas de desasnar"...
(5) Livros-texto ou cartilhas.
(6) Livros para anotações, cadernos.
(7) MORAES, José de S.J. Op. cit., p. 432.


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quinta-feira, 1 de março de 2018

Profissões perigosas na Mesopotâmia de Hamurabi

Quem pode trabalhar bem, se sabe que está sob pena de morte ou de mutilação, na hipótese de algum erro? Era essa, leitores, a situação de cirurgiões e construtores que viviam e trabalhavam na Mesopotâmia por volta do Século XVIII a.C. - tempos complicados, não?
Dizia o Código de Hamurabi:
"Se um cirurgião, usando um instrumento de bronze, fizer um corte grande em alguém, e essa pessoa morrer ou ficar cega, a mão do cirurgião será cortada."
Isso acontecia caso a desastrada cirurgia fosse feita em uma pessoa de condição livre. Se, no entanto, a pessoa que passasse por cirurgia e morresse fosse cativa, competia ao cirurgião pagar o valor desse escravo ou escrava ao seu respectivo proprietário.
A situação dos construtores não era muito melhor, uma vez que o mesmo rigorosíssimo Código estipulava:
"Se um construtor edificar uma casa para alguém, mas não a fizer de forma apropriada, e, em consequência, a casa cair, matando o proprietário, o construtor será morto. Se morrer o filho do proprietário, o filho do construtor será executado."
Com leis assim, é até difícil imaginar que alguém quisesse ser construtor ou cirurgião nesses tempos remotos (¹), quando o conhecimento científico era bastante limitado. Diante dos riscos evidentes, é provável que mais de um cirurgião recusasse atendimento (²), ao vir à sua presença algum caso difícil. Os "instrumentos de bronze" utilizados não passavam por qualquer esterilização, mesmo porque ninguém fazia a menor ideia da existência de microrganismos, e disso os leitores podem facilmente extrair as consequências. Resguardadas as diferenças nas ocupações, o mesmo pode ser dito quanto a quem assumia a responsabilidade pelas construções da época.

(1) No caso de algumas profissões, o Código estipulava até mesmo quanto podia ser cobrado para cada trabalho a ser feito. Cirurgiões, por exemplo, tinham sua remuneração estipulada em lei, assim como aqueles que cuidavam de animais doentes (os precursores dos modernos veterinários).