quinta-feira, 31 de maio de 2018

A pobreza dos missionários que catequizavam indígenas em reduções na América do Sul

Para muitos missionários que se dedicavam à catequese de indígenas nos Séculos XVI e XVII, a vinda à América do Sul era uma viagem sem volta. Longe ficavam família, amigos, possibilidade de uma carreira de sucesso. À frente, o desconhecido. Para uns poucos, vida longa e a satisfação de ver o crescimento de uma obra que julgavam correta e mesmo indispensável (¹). Para a maioria, a pobreza extrema, os confrontos com indígenas e colonizadores, as doenças tropicais e, provavelmente, a morte precoce. Valia o mesmo para missionários nascidos na América.
Não havia a expectativa da chegada regular de suprimentos, até porque as viagens, nesse tempo, eram difíceis. Portanto, para o sustento diário, era preciso contar com o trabalho das próprias mãos e com a ajuda dos índios catecúmenos. Qualquer coisa diferente disso era vista como excepcional. Combatendo a escravização de indígenas, os missionários eram considerados por colonizadores como um entrave aos seus projetos de enriquecimento rápido, de modo que, entre a gente de origem europeia que se estabelecia na América, apenas os mais devotos estavam dispostos a cooperar com o sustento dos padres para a manutenção de reduções. 
Se quisermos saber como viviam os missionários nas reduções do Guayrá, devemos ir aos documentos deixados pelos próprios padres. A título de exemplo, veremos aqui o relato feito pelo jesuíta Antonio Ruiz de Montoya (²), por ocasião de uma visita aos padres José Cataldino e Simon Masseta na Redução de Nossa Senhora de Loreto (³):
"Cheguei à redução de Nossa Senhora de Loreto desejando ver aqueles dois homens notáveis, o padre José e o padre Simon. Encontrei-os pobríssimos, mas ricos de alegria. Por causa dos remendos, não era possível distinguir o tecido principal de suas roupas. Os sapatos, que haviam trazido do Paraguai, estavam remendados com pedaços de pano que cortavam da borda das sotainas." (⁴)
Isto quanto ao vestuário. Quanto à alimentação:
"O principal sustento eram batatas, bananas, raízes de mandioca [...]. A necessidade nos obrigou a semear com nossas mãos o trigo necessário às hóstias." (⁵)
A vida na América do Sul, nesses tempos, não era, portanto, muito parecida com tirar férias no paraíso. Se podemos crer no testemunho de Montoya, outro jesuíta, o padre Martin Urtazun, também missionário, veio a morrer, algum tempo depois, em consequência de severa desnutrição. Era já o Século XVII. No centênio precedente, entre os colonizadores que acompanharam D. Pedro de Mendoza na fundação de Buenos Aires, muitos morreram de fome. Os jesuítas talvez morressem com os olhos na eternidade. Para os "conquistadores" da América, porém, os reveses da vida colonial eram uma amarga decepção.

(1) Aqui, leitores, analisamos os fatos de que temos conhecimento através de documentos históricos. Não é intenção deste blog estabelecer juízo de valor em relação à catequese de indígenas.
(2) Montoya, filho de um espanhol de Sevilha, nasceu em Lima em 1582 e foi admitido na Companhia de Jesus em 1606. Passou a maior parte da vida envolvido na catequese e defesa dos indígenas contra a escravização perpetrada tanto por colonizadores espanhóis do Paraguai como por bandeirantes de São Paulo.
(3) Reputada por alguns como a mais antiga redução estabelecida no Guayrá; outros entendem que a primeira foi a de Santo Inácio.
(4) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.
(5) Ibid. Os trechos citados de Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 29 de maio de 2018

As mães-d'água do rio Tietê

Rio Tietê no local de onde partiam as monções no Século XVIII (Porto Feliz - SP)

"Os cabelos verdes, tão verdes, chegavam até os pés e ainda arrastavam; nhanhã não tem visto aqueles fios muito compridos, que às vezes andam boiando em cima d'água? a gente chama limo; são as tranças dela."
José de Alencar, O Tronco do Ipê

Mitos envolvendo criaturas aquáticas capazes de atrair e enfeitiçar humanos são tão antigos quanto numerosos. Embora as sereias da Antiguidade fossem retratadas como seres alados (¹), já na Idade Média surgiram representações de figuras femininas, com cabeça, tronco e braços humanos e uma longa cauda de peixe, feiticeiras das águas, a cujos encantos os que ousavam navegar para longe de casa temiam sucumbir. 
No Brasil, leitores, há, entre as tradições indígenas, algumas que referem a existência de um ser misterioso, que emerge das águas de rios para atrair pescadores incautos - é a uiara, iara ou mãe-d'água (²) - mas há também a lenda do boto, que busca mocinhas namoradeiras... Esses mitos são geralmente associados à região amazônica, com toda a sua exuberância aquática, mas Francisco J. de Lacerda e Almeida (³), ao percorrer o rio Tietê, ouviu de um proeiro (⁴), narrador da lenda como coisa verdadeira, que em pontos de maior profundidade havia, além de fartura de peixes, também as famosas mães-d'água:
"Contou-me [...] que nestes poços havia mães-d'água encantadas, que levantavam grandes ondas e faziam muita bulha, e tinham morto alguns homens, etc. Pedi-lhe a descrição destas encantadas matronas, e ele (não obstante nunca tê-las visto) [sic] me fez a descrição de um monstro mais horrendo que aqueles que nos pinta Horácio. Intentei desabusá-lo; mas ele e toda comitiva se mostraram tão ressentidos e pertinazes, que para o contentar, e evitar alguma sublevação, me vi obrigado a seguir o partido das mães-d'água encantadas." (⁵)
A conversa de Lacerda e Almeida com o proeiro aconteceu em 1788. Talvez ela demonstre que a lenda da mãe-d'água fosse mais generalizada do que às vezes se supõe. Seja como for, é evidente que, àquela altura, já era parte do acervo de crenças populares correntes entre monçoeiros. Nos longos dias de uma viagem pelas águas do Tietê, lendas encontravam abastança de tempo e cenário para propagação.

(1) Como as mencionadas entre as muitas peripécias da Odisseia, quando Ulisses e seus companheiros empreendiam a viagem de retorno a Ítaca, após a conclusão da guerra de Troia.
(2) Alguns estudiosos acham que a lenda apontava, originalmente, para um homem-peixe, e que, somente mais tarde, sob a influência de colonizadores europeus, teria sido identificada como uma mulher de encantos irresistíveis e mortais.
(3) Integrou uma expedição demarcadora de limites entre terras de Portugal e Espanha na América em 1780.
(4) O proeiro era o líder da equipe de remadores em uma embarcação monçoeira (batelão) no Século XVIII. Veja, para mais detalhes, O Trabalho do Proeiro nas Embarcações Monçoeiras do Século XVIII
(5) ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Demarcação dos Domínios da América Portuguesa. São Paulo: Typographia de Costa Silveira, 1841, p. 84.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Animais que interferiram na vida política do Egito Antigo

Podem os animais interferir na vida política de uma grande potência? Se acreditarmos no que escreveu Maneton, ao tratar das dinastias que governaram o Egito na Antiguidade, a resposta será, necessariamente, afirmativa. 
Porém, antes que nos ocupemos dos animais, talvez seja útil dizer alguma coisa sobre o próprio Maneton, nossa fonte de informação. Quem foi ele? Embora haja divergências, a opinião de maior fundamento é a de que foi um sacerdote egípcio que viveu por volta do Século III a.C. e que, a pedido de Ptolomeu I Sóter, general de Alexandre Magno que veio a ser governante do Egito, produziu, com base nos registros sagrados, um relatório (¹) dos monarcas que, desde os tempos mais remotos, haviam exercido o mando na região do Nilo. Este é, portanto, o contexto dos escritos de Maneton, dedicados ao rei estrangeiro (macedônio), que precisava da ajuda da elite sacerdotal para conhecer alguma coisa da história e cultura do país que pretendia governar.
Voltemos, agora, ao assunto da intromissão dos animais na política. De acordo com Maneton, "a primeira sequência de reis {primeira dinastia que governou o Egito] enumera oito reis, sendo Menes de Teinite o primeiro, e reinou durante sessenta e dois anos. Morreu ferido por um hipopótamo".
Leitores, Maneton não tinha nenhuma intenção de gracejar. Embora não saibamos se tudo aconteceu assim mesmo, parece que, naqueles dias, não era algo muito constrangedor que a sucessão ao trono fosse aberta porque um hipopótamo havia trucidado o monarca reinante. Pensem em todas as intrigas palacianas que costumavam cercar a ascensão ao poder de um novo faraó, e vejam de que um hipopótamo foi capaz! 
Time flies... Chegamos à nona dinastia, da qual Aktoes foi o primeiro faraó, segundo a cronologia de Maneton:   
"Aktoes foi pior do que todos os que vieram antes dele. Foi muito mau para os egípcios. Enlouqueceu e foi morto por um crocodilo."
Reconheçamos o mérito desse réptil: prestou um serviço à humanidade. Quem dera sua nobre ação houvesse servido de advertência para todos os mandatários perversos que viveram pelos séculos e milênios seguintes!
Vigésima quarta dinastia, e já vamos acabando (ainda que as dinastias não tenham chegado ao fim): "Bonkoris, saíta, reinou por seis anos. Uma ovelha falou." Menos agressiva que um hipopótamo ou um crocodilo, a criaturinha ovina não teve a capacidade de mandar para o Além algum filho de Rá. Um registro como esse fica aqui para mostrar que tipo de informação os antigos egípcios valorizavam e que não coincide, necessariamente, com aquilo que gostaríamos de saber. O conceito de História, deles e nosso, não é e nem poderia ser o mesmo. 

Hipopótamo e crocodilo em gravura do Século XVI (²)

(1) Infelizmente, apenas fragmentos de sua obra são conhecidos na atualidade. Os trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) GESNER, Conrad. Icones Animalium Quadrupedum Viviparorum et Oviparorum. Zürich: Christof Froshover, 1560, p. 82.


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terça-feira, 22 de maio de 2018

Preparativos na Vila de São Paulo na iminência de um ataque indígena

Corriam os anos da segunda metade do Século XVI. A pequena Vila de São Paulo, encarapitada e isolada no planalto, vivia situação precária, em se tratando da defesa dos colonizadores - seus habitantes - diante do temor de um ataque vindo de povos indígenas. As constantes provocações contra os ameríndios, que incluíam a captura e escravização de muitos deles, suscitavam tentativas de retaliação. Aí, era hora do medo. Sendo improvável qualquer ajuda das povoações litorâneas, competia aos moradores, se zelavam pela própria pele, tomar medidas que possibilitassem a defesa, na eventualidade de uma rija ofensiva dos injuriados nativos.
A leitura das atas da Câmara de São Paulo lavradas nos anos de 1562 e 1563 traz informações que nos permitem classificar as providências defensivas em três aspectos:

1. Conclusão e conservação do muro que rodeava a Vila


"Aos cinco dias do mês de novembro da era de mil e quinhentos e sessenta e dois anos fizeram os oficiais câmara [...] e na dita câmara requereu o procurador do conselho que se acabassem os muros e baluartes e logo pelos ditos oficiais foram repartidos os moradores para os acabarem [...]." De boa ou má vontade, competia aos moradores, que muito provavelmente mandariam ao trabalho os seus "administrados" (¹), a tarefa de concluir as obras no muro da Vila. O que se deduz, então? A localidade era ainda bastante pobre, de modo que não havia recursos públicos para as obras necessárias. Se tinham amor à vida, mesmo os turbulentos residentes em São Paulo precisavam obedecer.
Do ano seguinte, 1563, existe outra ata em que a conclusão do muro é ordenada. No dia primeiro de fevereiro o procurador requereu aos administradores da Vila "que mandassem suas mercês cobrir a guarita que estava por trás do muro e mais acabar e cobrir as cercas e o que for necessário, e requereu mais o dito procurador [...] que mandassem pôr pena a alguns homens que estão de caminho para o mar, que não vão porquanto estamos esperando por guerra [...]".
Informando, de passagem, que "pôr pena" significava, geralmente, ameaçar com multa e prisão, devemos notar, ainda, que em outra ata, desta vez datada de 13 de fevereiro de 1563, o procurador (era Salvador Pires, na ocasião) requereu "que mandassem suas mercês tirar portas que estavam nos muros desta vila [...]". Não era uma menção aos portões "oficiais" que, por razões óbvias, a povoação deveria ter, e sim às portas que, por conveniência, alguns moradores haviam aberto no muro, em lugar próximo às suas casas. Gente indisciplinada!

2. Pedido de pólvora ao capitão-mor de São Vicente, que governava a Capitania em nome do donatário


"Aos seis dias do mês de março da era de mil e quinhentos e sessenta e três anos foram juntos os oficiais da Câmara à casa de Simão Jorge juiz para fazerem câmara e na dita câmara requeriam suas mercês que mandassem pedir pólvora ao capitão para esta vila [...]." Reconhecendo sua inferioridade numérica, os colonizadores tinham consciência de que a única vantagem que poderiam ter diante dos indígenas vinha do uso de armas de fogo. Portanto, acreditando em um ataque iminente à Vila, era preciso assegurar um suprimento de pólvora.

3. Proibição da saída de colonizadores e índios para o sertão


Conforme ata já citada, colonizadores foram advertidos a "não ir ao mar", quer isso significasse uma descida ao litoral, quer fosse referência a cruzar o Atlântico para ir ao Reino; foi também emitida uma ordem para que ninguém que tivesse índios "administrados" pensasse na ideia de mandá-los ao sertão. Lemos nos registros de 26 de junho de 1563 (²):  "[...] por razão que diziam que vinha guerra sobre nós [...] os oficiais acordaram e lhes pareceu bem para o povo, visto a necessidade que temos dos índios e sermos poucos nesta vila [...] que todo homem desta vila e fora dela não leve índio desta vila sem licença da Câmara [...]."

As comunicações, na época, eram difíceis. Não era possível contar com a ajuda de outras povoações, distantes, serra abaixo, pelo malsinado Caminho do Mar. A expectativa de um ataque indígena nascera de informações de índios aliados que, tendo estado no sertão, voltaram relatando os preparativos dos "contrários". Ficamos a imaginar a tensão reinante, muros adentro, entre os habitantes da Vila de São Paulo. Mas em que resultou tudo isso?
A despeito de numerosas escaramuças contra indígenas, ocorridas ao longo dos anos, a teimosa povoação no campo de Piratininga não apenas sobreviveu, mas prosperou. Gerações de mamelucos - assim foram chamados os filhos de pai português e mãe indígena - formaram grande parte das tropas de bandeirantes que atacaram missões, aprisionaram e escravizaram índios, procuraram ouro e, em meio a tantas desordens, fizeram pouco-caso (³) da linha de Tordesilhas, expandindo enormemente o território sob domínio português na América do Sul.

(1) "Índios administrados" era o nome hipócrita que se dava, na época, aos nativos escravizados.
(2) Decorridos mais de seis meses desde a primeira ata citada, o ataque ainda não acontecera. 
(3) Ou nenhum caso...


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quinta-feira, 17 de maio de 2018

Pastores de ovelhas na Mesopotâmia de Hamurabi

Uma economia pastoril, com o correspondente estilo de vida, foi praticada por muitos grupos nômades na Antiguidade. A sedentarização gradual conduziu à inserção dos rebanhos e seus condutores no contexto de comunidades urbanas.
Com o objetivo de inibir confrontos entre agricultores e pastores, o Código de Hamurabi (c. 1750 a.C.) determinava que aqueles que tinham rebanhos eram obrigados a indenizar proprietários de plantações que, eventualmente, fossem danificadas por animais. O Código disciplinava, também, as relações entre pastores assalariados e seus patrões, os proprietários de rebanhos, através de leis que podem ser assim sistematizadas:

1. Circunstâncias em que os pastores estavam obrigados a compensar os proprietários de quem recebiam um salário:
  • Se matassem algum animal intencionalmente (para comer);
  • Se, por sua negligência, o rebanho diminuísse ou o número de nascimentos, que deveria fazer crescer o rebanho, não fosse satisfatório;
  • Se algum acidente evitável, ainda que dentro do estábulo, resultasse em perda de animais.

2. Dano intencional ao patrimônio de um proprietário de rebanho, causado por trabalhador assalariado:
  • Se um pastor cometesse alguma fraude que resultasse em perda do rebanho ou de parte dele, ou se vendesse os animais sob seu cuidado, estava obrigado a pagar ao proprietário dez vezes (!!!) o valor estimado do prejuízo que causara. 

3. Situações em que um pastor estava isento de penalidade:
  • Se um acidente inevitável - a lei sugere que por obra de algum deus (¹) - atingia o rebanho, o pastor devia jurar diante daquele deus (²) que era inocente, e não seria obrigado a compensar o proprietário;
  • Um pastor era também considerado sem culpa e, portanto, desobrigado de qualquer ressarcimento, se um animal sob seu cuidado fosse morto e/ou devorado por um animal selvagem.

Então, leitores, podemos disso extrair ao menos três conclusões. A primeira delas é que, embora houvesse ênfase na criação de ovelhas, as leis eram aplicáveis também para quem cuidava de caprinos e bovinos; a segunda, sugerida pela quantidade de regulamentos associados ao pastoreio, é que a pecuária tinha muita importância nesse tempo, mesmo para comunidades sedentárias; finalmente, como as leis faziam referência a trabalhadores assalariados para o cuidado dos rebanhos, eles deviam ser a maioria nessa atividade, sem exclusão, no entanto, do emprego de mão de obra escrava, talvez em caráter auxiliar.

(1) Na Antiguidade havia deuses associados a diferentes fenômenos, tais como tempestades, fogo, etc.
(2) Diante dos juízes ou talvez no templo correspondente.


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terça-feira, 15 de maio de 2018

Trabalhos executados por indígenas nas expedições coloniais que iam ao sertão

Remos de uso indígena, etnia tukano
(São Gabriel da Cachoeira - AM)
Não importa se eram oficiais, de catequese ou de particulares que queriam escravizar ameríndios e encontrar ouro - sempre que expedições eram organizadas nos tempos coloniais para viagens ao interior em grande parte ainda desconhecido do Brasil, indígenas que já conviviam com colonizadores eram chamados a participar. Às vezes faziam o trabalho de livre e espontânea vontade, recebendo, inclusive, alguma remuneração, em particular quando missionários jesuítas importunavam as autoridades coloniais para que os salários fossem devidamente pagos; muito mais comum é que fossem forçados a trabalhar, porque, escravizados, não tinham opção. De um modo ou de outro, indígenas eram reputados imprescindíveis, tanto para a realização do trabalho braçal como por seu conhecimento do sertão e do modo de sobrevivência nas selvas da América do Sul.
Antes que uma expedição ao interior começasse, eram os ameríndios que faziam canoas; eles mesmos, mais tarde, empunhariam os remos, já que, não havendo estradas, os rios eram as vias de escolha, por onde as embarcações, feitas cada uma de um só tronco, deslizavam com incrível velocidade. Cachoeiras à frente? Eram os nativos que removiam as cargas, transportavam-nas por terra e faziam passar as canoas. Para completar as refeições de campanha, lá iam indígenas à caça.
É possível ter uma ideia do que acontecia pelo relato de um jesuíta do Século XVIII, o padre José de Moraes:
"Aqui será bem que se note que os índios são os que fazem as canoas, as toldam, as calafetam, os que as velejam, os que as remam, e muitas vezes [...] os que as levam às costas, e os que cansados de remar as noites (¹) e os dias inteiros vão buscar o que hão de comer eles e os portugueses (que é sempre o mais e melhor), os que lhes fazem as casas (²), e se se há de marchar por terra os que lhes levam as cargas e ainda as armas às costas." (³)
Isso não quer dizer que africanos escravizados não fossem, sob algumas circunstâncias, também incluídos entre os que faziam o trabalho pesado nas entradas, tampouco seria razoável desconsiderar que colonos de origem europeia precisavam, a bem da sobrevivência, "colocar a mão na massa". Mas o interior do Brasil era repleto de armadilhas naturais para quem o desconhecia, daí o valor daqueles que sabiam, como ninguém mais, ali viver. Como eram premiados tão notáveis serviços? Vejamos, leitores, o que mais escreveu José de Moraes:
"Tudo isto fazem os tristes índios sem paga alguma mais que o chamarem-lhes cães e outros nomes muito mais afrontosos, e o melhor galardão que podem tirar dessa jornada os miseráveis é acharem (o que poucas vezes acontece) um cabo (⁴) que os não trate tão mal. Jornada tem havido em que dos índios que partiram não voltaram a metade [sic], porque a puro trabalho e mau-trato os mataram." (⁵)

(1) Em virtude do calor durante o dia, no norte do Brasil as viagens eram feitas frequentemente durante as horas da noite.
(2) Abrigos temporários construídos com troncos e folhas de árvores.
(3) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 464.
(4) Chefe de expedição ao interior.
(5) MORAES, José de S.J. Op. cit., p. 464.


quinta-feira, 10 de maio de 2018

Quanto durava a gestação de um bebê espartano

Não inventei esta história, foi Heródoto (¹) quem a contou. Havia um espartano de nome Demarato, filho de Aríston, diarca entre os lacedemônios. Morto o pai, surgiu na cidade uma disputa quanto à verdadeira paternidade de Demarato. A razão para a dúvida era esta: na ocasião em que Aríston, estando em reunião com os éforos, recebera a notícia de que sua terceira mulher acabara de trazer ao mundo um menino, fizera com os dedos algumas contas e, espantado, afirmara: "Por Zeus, esse menino não pode ser meu filho!..."
Ora, o jovem Demarato, angustiado com a fofoca de que era alvo, foi ter uma conversa séria com a mãe, exigindo dela toda a verdade quanto ao seu nascimento (²). Veio, portanto, esta claríssima explicação:
"Os que dizem que és ilegítimo se apoiam na afirmação de teu pai diante de vários homens, de que não podias ser seu filho, pois ainda não se haviam passado dez meses; ele, porém, disse isso porque desconhecia o que de fato acontece, porque algumas mulheres dão à luz depois de nove, outras depois de sete meses, nem sempre esperando que se completem dez, e eu mesma te trouxe ao mundo com sete meses. Aríston [teu pai], pouco depois, percebeu seu desconhecimento do assunto." (³)
A plateia tem licença para rir! E não venham dizer que Heródoto talvez estivesse aproveitando a ocasião para zombar dos espartanos. Vejam, agora, o que escreveu Plínio (⁴), que é considerado o grande enciclopedista da Antiguidade e um dos maiores gênios do mundo romano:
"Os animais têm tempo certo para gerar e parir filhotes, mas os humanos geram filhos o ano todo, e a gestação é variável, excedendo em alguns casos os seis meses, ou sete, ou quase onze [...]." (⁵)
Poderíamos, leitores, lembrar que a aquisição de conhecimentos na Antiguidade era fruto da observação (quase sempre), mas sem a sistematização de um método verdadeiramente científico, ao menos para nossos padrões. Também seria possível alegar a segregação das mulheres da época como justificativa para o desconhecimento masculino quanto àquilo que a elas se relacionava, mas isso não explica satisfatoriamente por que as próprias mulheres achariam normal que uma gestação durasse dez ou onze meses. Finalmente, esses erros, que hoje soam grotescos, não devem ser atribuídos a pequenas variações existentes entre calendários. O saber era e é dinâmico. Abandonar erros do passado, mesmo quando provenientes de fontes respeitáveis, foi essencial para que a humanidade progredisse. Como se sabe, nada disso se fez sem despertar severa oposição.

(1) Século V a.C.
(2) Além do tempo de gestação, a própria concepção de Demarato estaria cercada de mistérios. Perguntem a Heródoto...
(3) Heródoto, Histórias
(4) 23 - 79 d.C.
(5) Naturalis Historia, Livro VII.
Os trechos citados de Histórias de Heródoto e de Naturalis Historia de Plínio foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 8 de maio de 2018

A vida difícil dos trabalhadores livres em um Império escravista

A escravidão era ruim para os escravizados, fato que dispensa qualquer demonstração. Mas, como abolicionistas se esforçavam para comprovar, era má também para os proprietários de escravos. Ao fim e ao cabo, a imensa fonte de lucro que imaginavam ter resultava em prejuízo. Além disso, a preferência por mão de obra cativa era péssima para quem não era nem escravo e nem senhor: o trabalhador livre, que tinha enorme dificuldade para encontrar uma ocupação remunerada, da qual pudesse viver.
O sonho dourado de toda pessoa em tal condição era um emprego público, mas é fácil perceber que, por mais que o Estado lançasse seus tentáculos nessa direção, não havia vagas para todos. Cumpre notar que, nos dias do Império, os cargos públicos eram providos por nomeação, que vinha de uma indicação... Não tenho dúvidas quanto à compreensão de meus leitores quanto às consequências práticas que daí decorriam. 
Acompanhemos, agora, um trabalhador livre que não obteve nomeação para cargo público; sendo qualificado, ele teria a possibilidade de exercer aquilo que se chamava de um "ofício manual". A posição, no entanto, era vista como demasiado humilhante para um homem livre, porque significava, na prática, fazer concorrência aos escravos. Sabia-se que empregadores preferiam contratar escravos de aluguel em lugar de ter homens livres a seu serviço. Vejam, leitores, esta observação feita por Frederico L. C. Burlamaqui em 1837:
"É tal a nossa cegueira a este respeito que a alguns miseráveis [sic!] que se oferecem para um tal emprego, reputado o mais indecoroso, só se promete metade do que se costuma dar a um escravo alugado." (¹)
O anúncio ao lado, publicado no jornal Aurora Paulistana em 17 de junho de 1852, demonstra com simplicidade a preferência pela contratação dos serviços de uma cativa (cujo salário, por suposto, seria pago a seu proprietário). Diz o texto: "Na rua da Freira nº 11 precisa-se de uma pessoa para cuidar de uma criança, pagando-se-lhe cinco mil réis por mês, e sendo cativa, melhor, quem pretender dirija-se ao lugar indicado." (²)
Notaram? "sendo cativa, melhor"... Por quê? Ora, leitores, porque uma escrava não poderia, se doente, faltar ao trabalho, não ousaria erguer a voz contra eventuais injustiças, não protestaria contra uma jornada excessiva e, se o fizesse, acabaria silenciada com umas bordoadas. Parece horrível, sim, mas a escravidão, como muitos já assinalaram, tinha a capacidade de cegar mesmo as pessoas mais decentes às injustiças e brutalidades quotidianas.
Diante da dificuldade na obtenção de trabalho e do receio de perder a dignidade executando tarefas geralmente atribuídas aos escravos, não eram poucos - acreditem - os homens livres que preferiam mendigar. Entretanto, a mendicância "sem necessidade" e a vadiagem eram, pelo Código Criminal do Império do Brasil, consideradas crime policial, conforme se vê na Parte IV - Dos Crimes Policiais, Capítulo IV, Artigo 295: "Não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta e útil de que possa subsistir, depois de advertido [sic] pelo juiz de Paz, não tendo renda suficiente." A punição para infratores variava de prisão simples a prisão com trabalhos forçados, mas, a julgar pela quantidade de mendigos que viajantes estrangeiros alegaram ter visto nas ruas do Rio de Janeiro, em especial na primeira metade do Século XIX, parece que a severidade da lei não funcionava a contento. Entretanto, fugindo às generalizações (quase sempre perigosas), devemos considerar que nem todo homem livre que não fosse funcionário público ou militar, que não trabalhasse em um ofício mecânico ou no comércio era, necessariamente, um mendigo. Sempre há exceções. 
Um aspecto subentendido do Artigo 295 já citado é que, se um indivíduo tivesse recursos suficientes para viver sem trabalhar, ainda que esses recursos fossem oriundos da exploração da força de trabalho de escravizados, estava livre para ser tão desocupado quanto quisesse. Disso decorria uma espécie de Plano B para quem precisava trabalhar para viver, mas falhava em obter um emprego público: acumular economias suficientes para comprar ao menos dois ou três escravos que, postos a ganho, permitiriam ao dono, se quisesse, passar os dias a dormir suavemente em uma rede. Era assim que pensava C. Schlichthorst, um militar alemão que esteve no Rio pouco depois da Independência: "[...] No Brasil não se pode empregar seu dinheiro melhor do que comprando escravos e alugando-os para trabalhar." (³) Tão arraigado era esse costume, que escravos que obtinham, de algum modo, a liberdade, se chegavam, já livres, a adquirir recursos suficientes, logo tratavam de ter seus próprios cativos para alugar.
Mas esse estado de coisas teria que sofrer mudança, e ela veio, meio forçada, com a extinção definitiva do tráfico de africanos. A partir de então, passou a ser considerado de bom-tom ter criadagem livre em lugar de escravos domésticos. Antes mesmo da Abolição, a entrada de colonos europeus (⁴) iria contribuir, também, para uma gradual mudança de mentalidade. 

(1) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Memória Analítica Acerca do Comércio de Escravos e Acerca dos Males da Escravidão Doméstica. Rio de Janeiro: Tipografia Comercial Fluminense, 1837, p. 60.
(2) AURORA PAULISTANA, Ano I, nº 52.
(3) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 150.
(4) Senhores de escravos não estavam dispostos, todavia, a uma mudança ampla em suas ideias; até tentaram ser "senhores de colonos", aplicando, com os imigrantes, as mesmas práticas que adotavam com escravos. Revoltas de colonos são testemunho desse fato.


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quinta-feira, 3 de maio de 2018

Uma história de arrepiar os cabelos: prática de canibalismo por colonizadores da América do Sul

Seria possível que os autodenominados "conquistadores da América", na ânsia pela sobrevivência e enriquecimento rápido, abandonassem completamente as regras de conduta que haviam aprendido em sua terra de origem? Não poucos episódios sugerem uma resposta afirmativa. Hoje veremos um deles.
Colonizadores que vinham ao Continente Americano no Século XVI precisavam enfrentar um problema terrível: não havia, assim que desembarcavam, nenhum hotel de classe turística à espera deles, nem algum lauto banquete que recompensasse a dificultosa travessia do Atlântico. Era preciso estabelecer um acampamento, pelo menos até que casas, mesmo simples, fossem construídas. E, necessidade imediata, era indispensável encontrar alguma coisa que servisse como alimento. Com sorte, haveria caça e pesca à disposição, e, para quem soubesse cultivar a amizade dos ameríndios, talvez a possibilidade de conseguir vegetais por meio de escambo. Mas, em regiões inóspitas, nada disso poderia ser obtido, e mesmo a pilhagem de suprimentos em poder dos indígenas não resolveria a maior das dificuldades: a fome.
Retrato de Ulrich Schmidel, de acordo com
a edição de 1599 de Warhaftige Historien
einer wunderbaren Schiffart
Foi, meus leitores, exatamente essa a situação defrontada pela expedição que partiu da Espanha em 1534, com destino à América do Sul, sob o comando de Pedro de Mendoza, a quem se deve a fundação de Buenos Aires (¹). Em extrema penúria, os "conquistadores" perderam toda a referência quanto ao que seria ou não adequado para alimentação - é o que se conclui do depoimento de Ulrich Schmidel, um soldado alemão que também viera na esquadra de Pedro de Mendoza, e que, depois de vinte anos no Continente Americano, retornou à Alemanha e escreveu um livro (²), no qual registrou:
"Era tão grande a pobreza e fome que não ficaram ratos, ratazanas, cobras e outros bichos que não fossem comidos, e até os sapatos e objetos de couro foram consumidos. Aconteceu que três espanhóis sorrateiramente roubaram e comeram um cavalo; foram descobertos, aprisionados e, sob tortura, confessaram o que haviam feito; condenados a enforcamento, foram executados. Na mesma noite, outros três espanhóis foram até as forcas, cortaram as coxas e outras partes do corpo dos enforcados e levaram-nas ao alojamento com a intenção de comê-las, tal era a fome. Assim também um espanhol, para saciar a fome, devorou seu irmão que havia morrido na cidade de Buenos Aires." (³) 
Quem lê uma coisa dessas fica logo pensando que Schmidel devia estar mentindo ou, no melhor dos casos, exagerando. No entanto, vários contemporâneos seus deixaram relatos semelhantes. É o caso, por exemplo, do que se encontra em uma carta datada de 1556, cujo autor, Francisco de Villalta, expôs os mesmos fatos, apenas com a diferença de que os enforcados e canibalizados seriam dois, e não três, como disse Schmidel. Portanto, ao que parece, essa história de arrepiar os cabelos aconteceu mesmo.

(1) Neste caso, a primeira fundação; há alguma controvérsia quanto à data.
(2) A primeira edição alemã data de 1567.
(3) SCHMIDEL, Ulrich. Warhaftige Historien einer wunderbaren Schiffart. Nürnberg: Levinus Hulsius, 1599, pp. 10 e 11. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.

terça-feira, 1 de maio de 2018

O poeta José de Anchieta

Praia de Iperoig (Ubatuba - SP), onde se supõe
que Anchieta tenha escrito o Poema à Virgem

Anchieta é famoso pelo Poema à Virgem, do qual todo mundo ouve falar na escola, mas que quase ninguém lê - os versos foram escritos em latim e, segundo o próprio Anchieta relatou, registrados originalmente nas areias de Iperoig enquanto foi refém dos tamoios (¹). Sobre a habilidade de Anchieta em fazer versos, o padre Simão de Vasconcelos, jesuíta como ele, escreveu:
"Compôs [...] em várias partes do Brasil, com vivo e raro engenho, muitas obras poéticas, em toda a sorte de metro, em que era mui fácil, todas ao divino e a fim de evitar abusos e entretenimentos menos honestos." (²) 
Como professor, Anchieta era adepto de rimas, não apenas por questões estéticas, mas como recurso didático, a fim de doutrinar indígenas e colonizadores. Estes últimos, como se sabe, eram pouco ilustres pelos afetos religiosos. Os versos tornavam mais fácil e atraente a memorização, e, lendo as quadrinhas seguintes, até podemos imaginar o padre José, (como era habitualmente chamado por seus contemporâneos), ensinando os meninos que acorriam às suas aulas:

"Noé fez a grande arca 
em que o homem racional 
junto com o bruto animal 
escapassem, como em barca
do dilúvio universal."

"Davi com grande vigor
um leão mui carniceiro
e um urso roubador,
com o gigante espantador
matou, com ser ovelheiro." (³)

Não me parece justo discutir o mérito artístico destes singelos versinhos. Como já disse, o propósito de José de Anchieta era, com suas rimas, embutir assuntos religiosos na cachola da população colonial. Para uso nas festas religiosas, era comum que as palavras fossem vestidas com música, que, porém, com o tempo, se perdeu. Que pena!...

(1) Escrever na areia foi o método escolhido por Anchieta para reter os versos na memória.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Vida do Venerável Padre José de Anchieta. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1672, p. 26.
(3) ANCHIETA, José de S.J. Carta da Companhia.


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