quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Como os romanos tratavam os prisioneiros de guerra

As vitórias militares de Roma corresponderam, em muitas ocasiões, à completa ruína dos povos derrotados. O destino dos prisioneiros de guerra, como regra, resultava em uma das seguintes situações:
  • Execução sumária, em particular no caso dos chefes, como medida para impedir que as forças inimigas se reorganizassem;
  • Escravização para trabalho em obras públicas;
  • Muitos eram vendidos em mercados de escravos (a chegada de um grupo de cativos era vista como espetáculo público, especialmente se os escravizados tinham características físicas diferentes daquelas que eram usuais entre romanos);
  • Soldados vencedores recebiam prisioneiros como prêmio e podiam dispor deles como julgassem conveniente, quer conservando-os a seu serviço, quer vendendo-os para quem pagasse bem.
Embora os antigos não costumassem registrar as quantidades de escravizados segundo critérios que nós, hoje, reputamos corretos, é possível ter uma ideia aproximada do que acontecia a cada grande vitória, em virtude de relatos da época. O próprio Júlio César, em De Bello Gallico, deixou informações muito úteis, e é assim que sabemos que, em certa ocasião (¹), foram vendidos como escravos nada menos que cinquenta e três mil prisioneiros de guerra. Depois de derrotar gauleses em uma batalha naval, César julgou apropriado impor uma punição severa, por entender que embaixadores de Roma haviam sido desrespeitados: "Todos os líderes idosos foram executados e os demais prisioneiros foram vendidos como escravos" (²). E, ainda na mesma obra, é dito que, depois de derrotar Vercingetórix, César recompensou cada soldado romano com um prisioneiro de guerra (³).
Assim, guerra após guerra, Roma estendia seus domínios e multidões de prisioneiros eram trazidas para escravização, de modo que, com o correr do tempo, grande parte do trabalho passou a ser feito por mão de obra cativa. A população pobre, mas livre, já não encontrava ocupação remunerada. Outras multidões, dessa vez compostas por romanos desocupados, afluíam à capital. Os problemas sociais eram inevitáveis. Tácito, no livro quarto dos Annales, lembrou que, ao tempo em que Tibério era imperador, "os escravos [eram] uma multidão que crescia imensamente e pouco o povo de condição livre" (⁴). Era preciso, portanto, que o Estado assumisse a obrigação de alimentar e entreter os homens livres que andavam desocupados, sob pena de uma revolta social de dimensões catastróficas. Periodicamente, eram feitas distribuições de cereais. O exército ocupava uma parte dos homens livres, enquanto espetáculos públicos sangrentos divertiam multidões que tinham excesso de tempo e falta do que fazer.
Mas não era só. A entrada de tantos escravos estrangeiros ia, gradualmente, descaracterizando aquilo que se poderia chamar de "cultura romana", além de ser contínuo o temor de uma rebelião. Caio Cássio, falando no Senado romano em 62 d.C., sendo Nero o imperador, observou: "Temos fâmulos [escravos] de todas as nações, que vêm de costumes os mais variados, de religiões estrangeiras ou sem nenhuma religião, e é somente sob coerção que podemos mantê-los em obediência [...]." (⁵) 
Reconhecia-se a necessidade da força para manter tantos cativos em subordinação à minoria romana. No entanto, até mesmo o exército ia, gradualmente, admitindo estrangeiros, pois, do contrário, não haveria soldados em número suficiente para as tentativas de preservar a ordem nas fronteiras. Roma se tornara tão grande que já não conseguia ser Roma. As rupturas no tecido social que constituía o Império preparavam caminho para seu declínio e queda.

(1) De Bello Gallico, Livro Segundo.
(2) Ibid., Livro Terceiro.
(3) Ibid., Livro Sétimo.
(4) Annales, Livro Quarto.
(5) Ibid., Livro Décimo Quarto. 
Os trechos de De Bello Gallico e dos Annales aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Portugal e Holanda na luta pelo Nordeste açucareiro

Robert Southey, historiador britânico que escreveu longamente sobre o Brasil, observou, em relação à tentativa holandesa de ocupação do Nordeste açucareiro e correspondente luta da população de origem portuguesa para manter o controle do território, que "duas nações se disputavam um império não menor em extensão do que a Europa civilizada, e nunca de ambos os lados chegaram as forças a quinze mil homens." (¹)
É difícil determinar com exatidão o número de homens mobilizados pela Insurreição Pernambucana; empregava-se a tática de guerrilhas, eram numerosos os chefes locais, além dos "grandes nomes", é claro, e havia gente que ia e vinha do "exército", sempre que a conveniência e/ou a necessidade requeria sua presença nos engenhos. Não obstante, pode-se considerar que, em linhas gerais, a ideia de Southey está correta, se entendermos que esse autor queria simplesmente dizer que, nem entre holandeses, nem entre portugueses, as tropas eram muito numerosas.
Por quê?
A lista de razões pode incluir vários motivos, dentre os quais:
  • A população de origem europeia era ainda reduzida no Brasil;
  • As viagens da Europa à América eram difíceis e o custo para aparelhar uma frota era muito elevado;
  • Sendo Portugal e Holanda países territorialmente pequenos, não dispunham de um enorme excedente populacional que pudessem remeter para a luta no Brasil;
  • Para suprir a falta de um exército essencialmente holandês, a Companhia das Índias Ocidentais tinha por costume contratar mercenários de diversas nacionalidades, gente que em várias ocasiões se dispôs a "trocar de lado", sempre que o inimigo insinuasse pagar um soldo mais interessante ou oferecesse alguma outra vantagem;
  • Para formar os corpos de combatentes que lutaram para expulsar os holandeses de Pernambuco eram recrutados quaisquer homens que pudessem pegar em armas, o que significa que a maioria não tinha formação militar e teve de aprender o ofício no próprio calor da luta;
  • Para suprir a falta de soldados, os comandantes de ambos os lados incluíam indígenas e escravos africanos em suas forças, mas, em caso de derrota, eram eles, geralmente, os que mais sofriam, já que africanos eram sempre reconduzidos à escravidão e indígenas, como regra, eram sumariamente degolados.
A dúvida que talvez esteja em mais de uma cabeça é: Por que, afinal, portugueses e holandeses estavam dispostos a vir de tão longe para disputar essa região da América? Vejamos, então, que a causa do confronto, em seu nível primário, estava relacionada a uma questão puramente comercial. Vender açúcar na Europa era muito lucrativo, e, se fosse possível controlar diretamente a produção açucareira, os lucros seriam ainda maiores. Sim, havia outros fatores, mas eram secundários, e, portanto, subordinados a este aspecto mercantil. 
É verdade que a Companhia das Índias Ocidentais iniciou a ocupação de Pernambuco em 1630 (²), tendo tardado uma reação no Reino porque, nesse tempo, ainda vigorava a chamada União Ibérica, e há que se reconhecer que a Coroa Espanhola, envolvida em outras questões, não deu ao assunto a importância que talvez merecesse; mais tarde, após a Restauração da independência lusitana (³), a situação política de D. João IV na Europa era por demais frágil, impossibilitando uma reação vigorosa da diplomacia portuguesa ao tratar da questão do Brasil diante de representantes da Holanda. Entende-se, pois, ao menos em parte, por que é que a guerra para expulsar as forças holandesas foi travada quase que inteiramente por "brasileiros" - sim, "brasileiros" que, nesse tempo, ainda viam a si mesmos como sendo estritamente portugueses. Tinham razões pessoais e econômicas para querer a Companhia das Índias Ocidentais bem longe do Brasil e, diante das oscilações do jogo político europeu, assumiram a iniciativa da luta, mesmo contra instruções expressas da Coroa, crendo que, com isso, prestavam um serviço a seu rei (⁴), o qual supunham não estar devidamente inteirado da situação da guerra no Brasil. 
Vejam, leitores, que é muito pouco razoável tentar forçar a existência, nessa ocasião, de algum sentimento "nativista" ou "independentista". Eram outros os interesses que moviam a gente que foi à luta na chamada Insurreição Pernambucana. 

Mapa do Recife ao tempo da presença holandesa em Pernambuco (⁵)

(1) SOUTHEY, Robert. História do Brasil vol. 2. Rio de Janeiro: Garnier, 1862, p. 365.
(2) Durou até 1654.
(3) 1640.
(4) Argumentos religiosos eram também parte do discurso com que se procurava compelir a população de origem portuguesa a entrar na luta.
(5) NIEUHOF, Johan. Gedenkweerdige Brasiliaense Zee- en Lant-Reise und Zee- en Lant-Reize door verscheide Gewesten van Oostindien. Amsterdam: de Weduwe van Jacob van Meurs, 1682, p. 16.


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sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Alfabetização de adultos no Brasil do Século XIX

O anúncio em si, que apareceu na edição de 1871 do Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro (¹), já seria interessante pelo que oferecia - em um país cuja população de analfabetos era algo entre 80 e 90%, um professor se dispunha a dar aulas noturnas para adultos que quisessem aprender a ler e escrever. Mais ainda, as aulas eram gratuitas. Não era só: segundo o mesmo anúncio, o professor fornecia todo o material necessário. Era isso na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Passa Três (²). O nome do anunciante era Francisco Melchior Gonçalves, professor público. 


Observem, leitores, que as aulas, uma iniciativa do professor e não do Estado, eram ministradas três vezes por semana, entre as 18 e as 20 horas. 
Sabe-se que esse dedicado alfabetizador não era o único a empreender a dificílima tarefa de ensinar adultos (há registros, em alguns lugares, de professores que admitiam até escravos nas aulas noturnas). Digo dificílima tarefa, sim, porque a maioria das pessoas que vivia em localidades rurais ou pequenas povoações achava que podia passar a vida comodamente, ainda que não tivesse nenhuma instrução. Como convencer gente assim a gastar as horas de descanso em estudos?
O fato é que, nas cidades, as coisas, de boa ou má vontade, logo iriam mudar. De trabalhadores urbanos seria gradualmente requerida alguma instrução, ainda que seja fato reconhecido que, nesse tempo, havia pessoas até nos altos cargos do Império (³) - grandes senhores rurais, em particular - em tão crasso analfabetismo quanto haviam chegado ao mundo. Percebe-se, então, que, como em muitos outros aspectos, a melhoria na instrução pública viria mais por pressão do desenvolvimento urbano e, com ele, da industrialização, com sua exigência por mão de obra capacitada, que propriamente por alguma brilhante iniciativa governamental. Surpreendente? Nem um pouco. A escolarização de crianças até avançou bastante no Século XIX, se comparada à existente nos tempos coloniais, mas estava ainda longe de alcançar um patamar aceitável. Como esperar, então, um panorama muito diferente quanto à educação de adultos?

(1) HARING, Carlos Guilherme. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1871. Rio de Janeiro: E & H Laemmert, 1871.
(2) Hoje, a localidade é distrito do município de Rio Claro, Estado do Rio de Janeiro.
(3) No Senado, por exemplo, que, diga-se de passagem, era vitalício. 


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quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Por que alguns povos da Antiguidade gostavam de repolho

Repolho-roxo é roxo devido à presença de antocianinas. Exatamente por isso, a criançada das escolas costuma usá-lo para fazer um indicador ácido-base caseiro. Bem, a coisa parece mais obra de cozinha que de laboratório de química (embora esses dois lugares tenham muito em comum), mas é necessário preparar uma espécie de suco de repolho (essa ideia não soa bem...), que pode ser usado para testar uma série de substâncias. Ordenadas de acordo com o pH, as várias amostras obtidas apresentam um resultado colorido, e os jovens estudantes entendem que estão fazendo descobertas notáveis. Em seu crescimento intelectual, estão mesmo.
Pois bem, meus leitores, os povos da Antiguidade não sabiam nada sobre indicadores ácido-base, pH, antocianinas, mas tinham suas razões, culinárias ou não, para cultivar repolho. Os egípcios, gregos e romanos gostavam muito dessa crucífera: os primeiros, pelo sabor, os dois últimos, por um motivo supostamente medicinal. É que se dizia que o repolho, e em particular o de folhas roxas, era um recurso eficiente para impedir os malefícios que se seguiam à ingestão de bebidas alcoólicas. Tolice, é evidente. Apenas mais uma superstição, dentro do rico arsenal de bobagens que o combate à embriaguez tem suscitado ao longo dos séculos. 


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segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Macacos das florestas brasileiras

Cairara da Amazônia

Descrevendo as florestas brasileiras, Alphonse de Beauchamp observou, em obra publicada na segunda década do Século XIX:
"Os macacos viajam por meio destes labirintos selvagens, e neles se balançam pela cauda." (¹)
De fato, no imaginário popular, as florestas brasileiras estavam cheias de macacos, de modo que quem ousava enfrentar as dificuldades inerentes às viagens no Século XIX tinha a ideia de que logo iria topar, aqui e ali, com bandos de primatas irrequietos e barulhentos. No entanto, dependendo da região que alguém visitasse, a expectativa podia ser frustrada. Os macacos estariam lá - como não? - mas sem o estardalhaço imaginado. Um relato feito por Elizabeth Cary Agassiz (²) é bom exemplo:
"Nós nos deixamos ir por um igarapé abaixo, encantador, e pela primeira vez pude ver macacos trepados nas árvores, à beira d'água. Quando se chega ao Amazonas, imagina-se que se vão ver tais animais tão frequentemente como entre nós os esquilos; mas, embora sejam numerosíssimos, é bem raro que os consigamos ver de perto, tão grande é o medo que eles têm." (³)
Macaco-prego
A pesquisadora americana não estava errada. Ainda hoje, os macacos da Amazônia parecem menos ruidosos que os de outras áreas do Brasil, como eu mesma já constatei. Duvido, no entanto, que o silêncio seja resultante do medo da aproximação de humanos. É mais aceitável que seja precaução, para evitar uma exposição indevida a predadores. A Floresta Amazônica, como muitos têm notado, parece, às vezes, demasiado silenciosa, a despeito da vibrante explosão de vida que lá se encontra.
Por outro lado, há lugares em que os macacos não só fazem uma algazarra incrível, como são até muito amistosos. Um dia desses fui a um lugar, no Brasil Central, no qual sabia haver boa chance de encontrar uma porção de primatinhas. Estava preparando meu equipamento de fotografia quando um deles, comendo alguma coisa, veio em minha direção. Acreditem, leitores: a criaturinha gentilmente estendeu a mão, mostrando uma lagarta, como que perguntando se eu queria participar do lanche. Respondi: Obrigada, acabei de almoçar. Bom apetite!...
Não iria perder a oportunidade de registrar o momento. Meu simpático amiguinho está aí, na foto acima à esquerda, para que vocês possam conhecê-lo.

(1) BEAUCHAMP, Affonso de. História do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1818, p. 85.
(2) Participou da Expedição Thayer, nos anos 1865 e 1866.
(3) AGASSIZ, Jean Louis R. et AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 227.


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sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Como os tupinambás festejavam a volta de alguém que fizera uma viagem

Culturas diferentes têm diferentes respostas a situações semelhantes. Verdade, leitores? 
Vejamos. Vários autores dos dois primeiros séculos de colonização do Brasil referiram que indígenas, em particular os tupinambás, tinham um modo muito estranho de recepcionar uma pessoa que, em razão de uma viagem, estivera ausente por longo tempo. Gabriel Soares, em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, foi um dos que descreveram o tal hábito:
"Costumam os tupinambás que vindo qualquer deles de fora, em entrando pela porta, se vai logo deitar na sua rede, ao qual se vai logo uma velha ou velhas, e põem-se em cócoras diante dele a chorá-lo em altas vozes, em o qual pranto lhe dizem as saudades que dele tinham com sua ausência, os trabalhos que uns e outros passaram, a que os machos lhes respondem chorando em altas vozes, e sem pronunciarem nada, até que se enfadam, e mandam às velhas que se calem, ao que estas obedecem." (¹)
Ora, leitores, para a mentalidade ocidental do Século XXI essa recepção que faziam os tupinambás parece um absurdo - se estavam felizes pelo regresso do amigo, por que é que choravam? É bastante provável que quisessem reforçar a coesão de seu grupo, mostrando quanto era preferível estar em casa, entre parentes e amigos, a viver longe, em outras terras.
Mas não era só. A choradeira era ainda maior, no caso de um recém-chegado que percorrera grande distância:
"Se o chorado vem de longe, o vêm chorar desta maneira todas as fêmeas mulheres daquela casa, e as parentes, que vivem nas outras, e como acabam de chorar, lhe dão as boas-vindas, e trazem-lhe de comer, em um alguidar, peixe, carne e farinha, tudo junto posto no chão, o que ele assim deitado come; e como acaba de comer lhe vêm dar as boas-vindas todos os da aldeia um a um, e lhe perguntam como lhe foi pelas partes por onde andou [...]." (²)
Podemos considerar que, quanto ao hábito de oferecer alimento para quem retornava de uma viagem, talvez houvesse uma intersecção cultural entre colonizadores europeus e tupinambás. Mas parava aí. O pranto dos índios parecia estranhíssimo aos portugueses, para quem o choro incontido quase sempre expressava tristeza, e não alegria. Engraçado, mesmo, é que nem colonizadores escapavam, eventualmente, de tão ruidosa celebração. Quando europeus e ameríndios andavam em bom relacionamento e o escambo prosperava, não era raro que a chegada dos "comerciantes", com seus espelhos, pentes, ferramentas e adornos baratos, fosse também homenageada com muitas lágrimas, para dizer o quanto a vida era ruim antes que eles viessem. Pensem nisso, leitores, da próxima vez que encontrarem amigos ou parentes que não veem há muito tempo...

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 323.
(2) Ibid., pp. 323 e 324.


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quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O grande incêndio de Roma em 64 d.C.

"O homem que anda pelos bairros mais populosos da cidade", escreveu Sêneca, o professor de Nero, "sempre terá ocasião para resvalar em muita gente, em um lugar ou outro acabará caindo ou será impedido de andar tão rápido quando quer, e mesmo acabará por sujar-se de barro [...]." (¹) Esta observação nos permite entrever como era a cidade de Roma pela época do grande incêndio ocorrido em 64 d.C. - com exceção do centro político e religioso e dos locais em que residia a gente endinheirada, as ruas eram estreitas, tortuosas e lamacentas. Se não fosse assim, por que alguém iria esbarrar nos transeuntes ou ficar sujo de barro?
Acrescente-se a isso que, nos bairros mais pobres, as construções para moradia e comércio eram bastante precárias, amontoadas irregularmente, e não será difícil perceber que, em tão lastimáveis condições, um incêndio poderia progredir com rapidez, sem precisar de qualquer "ajuda" humana para tanto.
Ocorre que nos dias do Império, incêndios não eram acontecimentos raros em Roma. Quando as chamas se espalhavam era sempre um desespero, correria, lamentações pelos bens perdidos, regadas a incontáveis maldições contra o governo romano, contra os vizinhos descuidados, até contra os deuses que não cumpriam a obrigação de proteger a cidade. O modo de apagar as chamas - usualmente com baldes de água - tinha óbvias limitações, e a população devia ficar muito satisfeita se o dano se restringisse a bens materiais.
Ora, se incêndios não eram fenômenos incomuns, por que, afinal, o de 64 d.C. é lembrado até hoje? São duas as razões principais: as proporções do sinistro e os eventos que acarretou.
Vejamos, então, de acordo com Tácito, o que foi que aconteceu. É verdade que esse historiador, nascido em 47 d.C., era ainda um adolescente quando o incêndio ocorreu, porém, mais tarde, ao escrever sobre o assunto, devia ter vivos na memória os comentários que ouvira naqueles dias de falares exaltados. Seus registros (²) nos informam que, tendo começado perto do circo, junto aos montes Célio e Palatino, passou o incêndio à área das tabernas (onde deve ter achado muito "combustível"), à medida que, sob a ação do vento, as chamas ficavam mais e mais altas, chegando a atingir as casas. O desespero era geral, havendo, segundo Tácito, quem, diante das perdas, se lançasse às chamas.
É aí que entra o detalhe interessante, para o qual temos a palavra do autor dos Annales, mas cuja veracidade é de difícil comprovação: em lugar de tratar de conter o fogo, as autoridades romanas, aos berros, proibiam sua extinção, havendo mesmo que buscasse ampliar os estragos, sob a alegação de ter recebido ordens nesse sentido.
Estranho? Não na Roma de Nero.
Quando, por falta do que queimar, as labaredas sumiram, o prejuízo, ainda de acordo com Tácito, era gigantesco:
  • Das quatorze regiões em que Roma era dividida na época, apenas quatro não foram atingidas;
  • Três regiões foram completamente arruinadas;
  • Em sete regiões poucas casas subsistiram, ainda que bastante danificadas;
  • Dentre os templos antigos, foram afetados o templo dedicado à lua por Sérvio Túlio, o altar de Hércules, o templo de Júpiter Stator, que se dizia construído sob voto do próprio Rômulo, fundador lendário da cidade e o templo de Vesta. O fogo consumiu também o palácio de Numa e enormes tesouros acumulados em decorrência das guerras desapareceram para sempre - entre eles, preciosidades da arte grega. É mesmo para se lamentar, leitores, até hoje.
Apesar de tanto estrago, o incêndio de 64 d.C. seria apenas mais um dentre muitos, não fosse o fato de que o povo extravasou a insatisfação acusando o imperador de envolvimento em provocar a catástrofe. Nunca se conseguiu definir com exatidão como é que as chamas tiveram início, mas pode-se ao menos dizer que, se é que teve alguma relação com os fatos, Nero não ateou fogo à cidade com as próprias mãos, e isso por uma razão muito simples: não estava lá. As línguas - boas ou más - diziam, porém, que olhando à distância, o imperador teria, ao som da lira, cantado um poema sobre o incêndio que pôs fim à guerra de Troia...
É claro que isso poderia ser somente um boato a mais, porém o caráter do imperador favorecia a verossimilhança. De qualquer modo, é fato: voltou à cidade e, tão logo chegou, tomou providências enérgicas para reduzir o transtorno, mandando prover abrigos temporários para os que haviam perdido suas casas e ordenando uma redução no preço do trigo. Pouco depois, seriam também adotadas normas para assegurar que, ao ser reconstruída, a cidade fosse menos vulnerável ao fogo.
Ainda assim, crescia entre a plebe o rumor de que Nero ordenara o incêndio. À vista disso, era preciso encontrar alguém a quem culpar e, dessa vez, a acusação recaiu sobre uma minoria religiosa que parecia muito estranha à mentalidade romana. Vocês sabem, leitores, que falo dos cristãos.

(1) Da Ira. O trecho citado é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Annales, Livro XV.


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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

A utilidade do ensino de um ofício aos escravos

Escravos serrando madeira, de acordo com Debret (¹)

De um modo geral, escravos treinados em um ofício manual tinham, no mercado, um preço mais alto do que aquele que era praticado em relação aos demais cativos. Mas, além do valor de mercado, havia outra razão para ensinar uma profissão aos escravos: é que as fazendas, isoladas como eram costumeiramente, precisavam de trabalhadores que atendessem às necessidades locais. De outro modo, seria difícil, em áreas agrícolas, contratar mão de obra, fosse livre ou escrava, para determinadas tarefas.
O segundo barão de Paty do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, em sua Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda, cujo objetivo era dar instruções ao filho que iria começar a vida de fazendeiro, escreveu:
"Tende o cuidado logo, em princípio, de pôr alguns escravos moços a aprender os ofícios de carpinteiro, ferreiro e pedreiro; em pouco tempo estarão oficiais e tereis de casa operários, tendo-vos assim aproveitado do tempo despendido na aprendizagem.
Não vos esqueçais de fazer ensinar também algum a oleiro para fazer a telha e tijolo para o gasto da fazenda." (²)
O ensino de um ofício aos escravos resultava, portanto, na conveniência de ter trabalhadores qualificados à disposição, mas também em economia. Quanto à recomendação de ensinar "escravos moços", o motivo, facílimo de compreender, é que seria provável tê-los por mais tempo.
Já nas cidades, era bom negócio ser proprietário de um escravo qualificado em um ofício, uma vez que era costume alugar seus serviços a quem deles precisasse. A renda, é óbvio, ia para as mãos, ou melhor, para os bolsos do senhor, embora sempre houvesse um caso ou outro em que, para estímulo ao trabalho, à obediência, e para evitar fugas, se desse ao escravo uma pequena parte do valor obtido com a diária. Era, sim, uma brutal exploração, que muita gente, submersa na lógica escravista, nem conseguia enxergar e achava a coisa mais normal deste mundo. 

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, p. 50.


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sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Para não pagar os reais quintos

Artimanhas dos contrabandistas de ouro no Brasil Colonial


A maioria dos mineradores do Brasil Colonial achava que pagar à Coroa um imposto de 20% sobre todo o ouro extraído era um absurdo. Afinal, não eram eles, os mineradores, que corriam todos os riscos do negócio, que arrancavam o ouro da terra (¹), que muitas vezes trabalhavam sem nada encontrar? Ora, que direito tinha o rei, então? 
Tinha, estava nas Ordenações do Reino. O pressuposto é que o rei era dono do território que governava e que, por imensa bondade, concedia a seus leais súditos a graça de explorar o ouro, em troca de módicos 20% - os famosos e famigerados "reais quintos". Julguem os leitores essa questão como quiserem, que eu estou apenas explicando qual era a lógica jurídica que norteava a cobrança dos impostos.
Para fugir à obrigatória transformação do ouro em barras e automática quintagem nas casas de fundição, as estratégias mais insólitas eram imaginadas. Sim, escravos que surrupiavam ouro, sonhando com a compra da liberdade, eventualmente guardavam seu "pecúlio" dentre de imagens de santos em suas capelas, por tradição consagradas a Nossa Senhora do Rosário ou Santa Ifigênia. Os homens livres, porém, não corriam tal risco. Parece que preferiam ter o ouro bem perto de si. Literalmente, ao alcance da mão... O britânico Richard Burton, que viajou pelo Brasil na década de 1860, encontrou, ainda nesse tempo, quem se lembrasse e lhe fizesse o relato de alguns dos expedientes para ocultação do ouro:
"O contrabandista armazenava seus valores no cabo do chicote, ou na coronha da garrucha, ou, ainda, no forro da sela." (²)
Sim, leitores, funcionava. É verdade que a vigilância era severa e o infrator apanhado em flagrante era duramente punido. Estima-se, porém, que muito mais era o ouro contrabandeado do que aquele sobre o qual, mediante a transformação em reluzentes barras com o selo da Coroa, eram pagos os direitos devidos a Sua Majestade. 

(1) Com a força dos escravos, naturalmente.
(2) BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 70.


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quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Sobre barquinhos de papel e grandes navegações

Um dia desses, um menino de mais ou menos três anos veio na minha direção com uma folha de papel e pediu que eu fizesse um barquinho. Leitores, fiquei preocupada. Não tinha certeza de que ainda me lembrava de todas as dobras necessárias, mas, para não decepcionar o guri, peguei a folha e, disfarçando a indecisão, comecei a trabalhar.
Ufa!... Tudo saiu bem, mas o melhor foi ver, no momento da última dobra, que o rostinho do menino se iluminava. Talvez, para ele, fosse algo como mágica que a folha de papel virasse um barquinho. E lá se foi correndo, todo feliz, para lançar seu transatlântico nas águas revoltas da piscina.
Lembram-se daquelas bússolas que fazíamos na escola quando tínhamos uns oito ou nove anos? Uma vasilha com água, uma rolha, uma agulha friccionada em um imã - o mais incrível é que, toscamente, sempre funcionava. Os chineses afirmam que a primazia desse invento pertence a eles, como, de resto, afirmam em relação a quase tudo o que existe. O caso é que não poucos historiadores estão de acordo quanto à bússola ser invenção de algum lugar do Oriente, tendo chegado à Europa pela mão dos cruzados que voltavam da guerra. Como veem, é prudente reconhecer que, com absoluta certeza, não há quem saiba dizer quem foi o pai da criança, digo, desse invento que, devidamente aperfeiçoado, foi decisivo para libertar a humanidade da navegação de cabotagem. 
Não se deve imaginar que grandes navegações somente ocorreram depois da invenção da bússola, mas, até então, era preciso, por segurança, ir costeando o litoral. Cada vez que a coragem era maior que o medo, navegadores iam um pouco mais longe, o conhecimento aumentava e os desenhos rústicos que faziam do caminho seguido eram tratados como segredo de Estado. Foi assim desde a Antiguidade: segundo Heródoto (sempre ele...), marinheiros fenícios, a mando de um faraó, teriam contornado a África, saindo pelo Mar Vermelho e retornando pelo Mediterrâneo. Se isso for verdade, esse périplo africano deve ter acontecido mais de seiscentos anos antes de Cristo.
Mas sempre era navegação de cabotagem. Ir mais longe seria arriscadíssimo, ainda que técnicas de orientação baseadas na posição do sol e das estrelas estivessem, aos poucos, disponíveis. O que aconteceria, porém, com vários dias de tempo nublado? (*) A invenção da bússola, do astrolábio e, mais tarde, do sextante e de outros instrumentos náuticos, permitiu navegação sem as incertezas dos velhos tempos. O mar ainda era (e é) perigoso, tem lá suas surpresas nem sempre muito agradáveis, mas em tempo relativamente curto não sobrou, para ocupação dos descobridores, nenhuma terra desconhecida neste planeta. A solução para o tédio foi começar a exploração do espaço sideral.

(*) Esse era um dos grandes medos entre os navegantes da Antiguidade. Corria-se o risco de ficar em meio ao mar agitado, sem saber exatamente onde é que a embarcação estava. Não foram poucos os marinheiros que perderam a vida nessas circunstâncias. 


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segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Escravas trabalhavam como intérpretes para comerciantes franceses

Na capital do Império do Brasil, a Rua do Ouvidor era um centro de comércio em que as madames podiam encontrar os artigos de moda mais recentes - recentes, é claro, depois de uma longa viagem de navio entre a Europa e o porto do Rio de Janeiro. Era lá, portanto, que muitos comerciantes franceses estabeleciam suas lojas. Porém, como é que esses empreendedores podiam fazer contato com a clientela, tendo em vista o obstáculo da diferença de idioma?
Será bom lembrar, primeiro, que, nesse tempo, as meninas de famílias ricas começavam a receber aulas de francês (¹), um conhecimento que passaria a ser considerado indispensável à boa educação. Por isso, letreiros das lojas e mesmo anúncios em jornais e revistas de moda que circulavam no Império vinham, muitas vezes, escritos em francês - essa mania foi longe, e existiu até em tempos já republicanos. Supõe-se, pois, que pelo menos algumas freguesas eram capazes de falar a língua dos lojistas. 
Por outro lado, C. Schlichthorst, um militar alemão contratado como oficial para o Segundo Batalhão de Granadeiros entre 1824 e 1826, fez um registro muito interessante sobre quem eram as pessoas que, em caso de necessidade, atuavam como intérpretes para os comerciantes franceses que não falavam português (²):
"Os franceses são na generalidade negociantes a retalho ou de modas, o que para eles torna indispensável o uso da língua. Contudo não a aprendem e na Rua do Ouvidor se encontram muitas lojas com negras servindo de intérpretes." (³)
A visão popular de escravos no Brasil é a de homens suando nos canaviais do Nordeste ou nos cafezais de São Paulo - quem imaginaria, então, que escravas pudessem atuar como intérpretes? Mas, se Schlichthorst está correto (e, neste caso, não parece haver razão para suspeita de engano), podemos concluir, sem levar sua observação longe demais, que:
a) Escravas atuavam como intérpretes para comerciantes franceses que não falavam português;
b) Para que pudessem servir como intérpretes, essas escravas deviam falar não somente português, mas também o suficiente de francês - eram, no mínimo, bilíngues;
c) Para um país como o Brasil, no qual grande parte da população era analfabeta, essas escravas, a seu modo, eram bastante instruídas.
Ainda assim, eram escravas. 
Por hoje é só, leitores. Ponto final.

(1) E também de piano, além dos clássicos trabalhos de agulha, etc., etc., etc...
(2) Schlichthorst tinha uma explicação sobre o motivo pelo qual comerciantes franceses que viviam no Rio de Janeiro não aprendiam português, mas deixei de transcrevê-la aqui porque, ao que parece, seria antes um reflexo dos velhos revanchismos nacionalistas da Europa que propriamente uma justificativa.
(3) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 68.


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sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Carroças de aluguel

O fim da escravidão levou ao aparecimento de alternativas para o transporte de cargas e mudanças na capital do Império do Brasil 


Viajantes estrangeiros que chegavam à capital do Brasil no Século XIX logo constatavam que o transporte de objetos de qualquer dimensão sempre era feito por escravos. Até mesmo mudanças eram realizadas assim, de modo que não era incomum que cativos devessem, percorrendo as ruas do Rio de Janeiro, carregar todos os móveis de uma casa para outra. O pintor francês François-Auguste Biard chegou a ver um grupo de escravos carregando um piano! Isso foi em 1858.
À medida, porém, que leis restritivas à escravidão entravam em vigor, proibindo, por exemplo, o tráfico de africanos (¹), ficou evidente que a escravidão, mais cedo ou mais tarde, acabaria. Surgiu, então, a necessidade de encontrar outros modos de realização do trabalho. Nascia também, ainda que tardiamente, um sentimento de que o trabalho escravo devia ser abolido, já que era uma desonra para o País. Escravos carregadores passaram a ser vistos mais raramente. 
Não imaginem os leitores que tais reflexões provocaram, de imediato, alguma louca aventura modernizadora. Se não era mais possível ou aceitável que escravos percorressem as ruas carregando móveis, a tarefa passou a ser atribuída a animais de carga que puxavam carroças. Vejam este anúncio que apareceu no Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1871 (²):


Observem a menção ao aluguel de carroças para transporte de café, que deve ser contrastado com o método usado décadas antes, quando grupos de escravos, levando sacas sobre a cabeça, eram vistos repetindo uma cançãozinha monótona, que servia para marcar o ritmo do trabalho. Vejam que, ainda que lentamente e sob a pressão das circunstâncias, os costumes mudavam. Isso não significa que carroças e outros veículos com tração animal não fossem usados anteriormente - é claro que eram -, e nem que os escravos carregadores tenham, de um dia para outro, sumido das ruas. Tudo o que se pode dizer, então, é que demorou, mas a péssima mania chegou ao fim.

(1) Lei Eusébio de Queirós, 1850.
(2) HARING, Carlos Guilherme. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1871. Rio de Janeiro: E & H Laemmert, 1871, p. 610.


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quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Epitáfios

Já pensou em escrever seu próprio epitáfio (¹), leitor? Não, não pare de ler. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis, escrevendo pelo autor-defunto ou defunto-autor, observou, a propósito de um funeral:
"Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás, gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou."
Se você, como Brás Cubas, também gosta de epitáfios, provavelmente irá notar, na eventualidade de um passeio por algum cemitério antigo, que algumas lápides têm expressões um tanto curiosas. E, por suposto, será difícil encontrar alguma que detrate a imagem daquele ou daquela que ali foi sepultado(a). Poucas serão comparáveis, porém, ao teor desta lápide (²), que consta ter existido no Século XIX, em um cemitério no norte da Inglaterra:


Observe que, depois dos elogios de praxe, quem passa e lê é informado de que a viúva continua a administrar o estabelecimento comercial da família. No auge do requinte, há uma recomendação para que o endereço não seja esquecido. Quem já viu alguma coisa parecida? Seria mesmo de arrancar um sorriso a Max Weber!... (³)

(1) Não, senhores, que ninguém venha com aqueles versos de Bocage, que este aqui é um blog muito sério. 
(2) SAMPSON, Henry.  A History of Advertising. London: Chatto and Windus, 1874, p. 531.
(3) Para quem não se lembra, Max Weber é o autor de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.


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