quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Garimpeiro

Descalço, um homem caminha entre as pedras, até que chega ao lugar preferido, mais ou menos um quarto de légua abaixo da cachoeira. Nesse ponto o rio não é nem muito largo e nem muito fundo, mas costuma render, às vezes, até um bom dourado. Aí, lança o anzol e deixa o pensamento voar.
Já se haviam passado uns dez anos desde que ouvira falar que tinham achado ouro no sertão. Gente que, ano após ano, aumentava os calos manejando a enxada, agora só pensava em enriquecer depressa. Contavam-se histórias maravilhosas de pepitas enormes, encontradas assim, quase na superfície da terra, sem muito trabalho. Com isso a vila ia ficando despovoada, ao menos de homens. Ouro, ouro, era só sobre ouro que se tagarelava, e quase todos os que tinham forças suficientes se juntavam às levas de sonhadores no caminho das minas. Depois de vender os poucos pertences, ainda que já não havia quase interessados em negociar, ele havia comprado algumas ferramentas e, tendo amarrado bem os sacos de couro com farinha e feijão, colocara tudo às costas de um pobre burrico e lá se fora. 
A maior parte dos aventureiros deixava para trás a família, prometendo enriquecer e voltar logo, embora tanto os que iam como os que ficavam se despedissem disfarçando a consciência de que talvez nunca mais se vissem. Ele não sabia dizer como lhe dera na cabeça levar também a mulher e os filhos que, resignados, haviam suportado a marcha rumo ao desconhecido, os dias de calor, as noites gélidas, as feridas nos pés, a comida que ia se acabando, as picadas dos mosquitos, as febres. Com a picareta que imaginara procurar o ouro, havia cavado o último berço para o seu menorzinho, cujo sono fora entregue à guarda de uma cruz improvisada que, bem sabia, logo seria coberta pelo mato.
Com as roupas em trapos, haviam, afinal, chegado à terra dos milagres auríferos. Mas, crua decepção... Ouro, mesmo, era para quem tinha muitos escravos e explorava uma data rentável, não para ele, que era livre, mas só podia contar com os próprios braços para procurar a riqueza nos riachos que não interessavam aos poderosos. É verdade que, esporadicamente, algum faiscador achava uma quantidade de ouro suficiente para melhorar de vida, fazendo renascer a esperança (quem sabe, a credulidade), entre o povo miúdo. Era assim também com ele. 
A mulher, no entanto, já não tinha dessas fantasias. Esperava, no casebre que haviam construído, algum peixe para o jantar. Uma fisgada mais forte na linha o faz voltar à realidade. Será um jaú? Vai puxando com cuidado. A piapara que se contorce é jogada no cesto. Um leve sorriso lhe faz cair do canto da boca o cigarrinho de palha. 


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quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Vida dura para os cães em São Paulo no Século XIX

Esqueçam as ONGs que, atualmente, protegem animais: no Século XVI, quando São Paulo era uma povoação pequenina, com poucos habitantes e separada do litoral pelo escabroso Caminho do Mar, matar cães incômodos era uma prática habitual. Não havia muita piedade para eles, embora a Câmara local insistisse com os proprietários para que, evitando o abate, tratassem de prender os animais. O tempo voa, todos sabem, mas no Século XIX, conforme já veremos, a situação dos caninos de rua ainda não havia se tornado melhor. Querem prova? 
Em março de 1820 uma postura da Câmara de São Paulo dizia:
"Que nenhuma pessoa conserve dentro desta cidade cães de qualidade alguma às suas portas, ou que andem pelas ruas, exceto tendo-os ou trazendo-os com açaimos ou focinheiras de couro, de forma que não possam fazer mal; sob pena de serem mortos, e seu dono pagar seis mil réis, a metade para o Concelho (¹) e a outra para quem os matar." (²)
Ninguém gosta de encontrar um cão ameaçador à solta na rua. Era justo, portanto, que se exigisse dos proprietários que mantivessem os cães sob o devido controle, mas é significativo que houvesse até um prêmio para quem desse um fim à existência de animais de comportamento inconveniente.  O sacrifício de animais voltaria a ser assunto em uma sessão da Câmara em 30 de setembro de 1820, quando o escrivão registrou:
"Na mesma representou que o juiz almotacel lhe pedira pólvora e chumbo para a matança dos cães inúteis, na conformidade das posturas desta Câmara, a quem foi recomendado pela mesma para sua execução; e porque além disso tem havido muitos cães danados (³); portanto determinava esta Câmara que o procurador assistisse com a pólvora e chumbo preciso todas as vezes que pelo dito almotacel lhe for pedido."
Não havia nesse tempo e lugar uma instituição com autoridade para proteger e cuidar de animais abandonados. Eliminar cães indesejados se tornava, portanto, quase uma operação de caça ou prática de tiro ao alvo. E certo que, sob esse aspecto, houve, em nossos dias, uma mudança para melhor. 

(1) Unidade municipal.
(2) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(3) Com hidrofobia. Lembrem-se, leitores, de que nesse tempo não havia vacina antirrábica.


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quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Por que espartanos não usavam tochas para iluminar o caminho à noite

Devido à quase completa escuridão que caracterizava a maior parte das cidades antigas desde que o sol se punha, quem precisava sair de casa à noite devia levar uma tocha para iluminar o caminho, tarefa que, com frequência, era delegada a um escravo. Um pouco de luz não só evitava ferir os pés com alguma pedra ou tropeçar em um buraco, como desestimulava algum encontro desagradável. Esses problemas, como se sabe, não são recentes.
Espartanos, porém, não usavam tochas à noite. Para entender o caso é preciso saber que, pelas leis atribuídas a Licurgo, ninguém, em Esparta, tinha permissão para cear em casa. Quem o fazia era visto como um perturbador da ordem social imposta a todos os cidadãos, que determinava refeições públicas bastante frugais. O quotidiano de Esparta era uma contínua preparação para a guerra. Tendo já anoitecido, encerrava-se a refeição coletiva e cada um podia voltar ao lugar em que residia. Mas, para isso, também havia uma restrição que se dizia ter vindo de Licurgo, segundo explicou Plutarco (¹): "[...] não era permitido que no caminho para casa [depois da ceia] e nem em outras ocasiões à noite, [espartanos] iluminassem as ruas com tochas, para que, a despeito de qualquer perigo que encontrassem pela frente, se habituassem a andar sem medo no escuro (²)." 
Ataques de surpresa, à noite, eram comuns em guerras da Antiguidade. Soldados que tivessem medo da escuridão tornar-se-iam, portanto, um problema para qualquer exército. Não seria razoável para Esparta, militarista como era, que se perdesse a oportunidade de exercitar continuamente os sentidos daqueles de quem se esperava que, nos campos de batalha, superassem a todos os demais guerreiros.

(1) Nascido em Queroneia em c. 45 d.C.
(2) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Quem descobriu o rio Amazonas?

No rio Amazonas

Não são poucos os inventos e descobertas que têm pater-mater-nidade duvidosa ou, ao menos, questionada. A quem cabe a primazia no invento do avião? E do cálculo? E do rádio? Quem é capaz de afirmar, fora de qualquer dúvida, quem foram os primeiros europeus a pisar na América do Norte? E no Brasil? Por que, afinal, a América tem esse nome? Se a questão é o descobridor europeu, o nome não deveria ser outro? 
Vejamos o caso do rio Amazonas. Oficialmente, Vicente Yañez Pinzón e os homens que o acompanhavam foram, em 1500, os primeiros europeus que toparam com ele, ainda que seja óbvio que, quanto à descoberta do rio, povos indígenas já o conheciam há muito tempo. Curiosamente, houve até quem acreditasse que, na Antiguidade, marinheiros fenícios que se perderam no Mediterrâneo e foram arrastados em suas embarcações para muito além das Colunas de Hércules poderiam ter acabado por chegar à foz do Amazonas. Isso não passa, no entanto, de especulação, sem qualquer solidez documental (¹).
Contudo, mesmo estabelecida a prioridade de Pinzón quanto ao Amazonas, houve outros homens que tentaram se arvorar em descobridores do grande rio. Foi o que afirmou Bernardo Pereira de Berredo e Castro, escrevendo em meados do Século XVIII, sobre gente que vivera no centênio precedente:
"Deste mesmo tempo por diante (²) se intitulou Bento Maciel primeiro Descobridor e Conquistador dos rios Amazonas e Curupá, mas com uma forte oposição do capitão Luís Aranha de Vasconcelos, que usava também dos mesmos títulos [...], que do famoso das Amazonas nenhum se podia chamar descobridor com justificados fundamentos, salvo pela parte das novas Conquistas Portuguesas, que pelas castelhanas o tinham sido sem disputa Vicente Yañez Pinzón e Aires Pinzón no ano de 1500 [...]." (³)
Cabe apenas a ressalva de que, quanto a Pinzón, seguindo costume da época, deu ao rio um nome longo, Santa Maria do Mar Doce, que, por praticidade, ficou conhecido simplesmente por Mar Doce, até que, em decorrência do relato feito por Francisco de Orellana (⁴), começou a ser chamado de rio das Amazonas. O nome pegou e é esse que usamos até hoje. 

(1) No estágio atual dos conhecimentos. 
(2) 1623.
(3) BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão, Livro VI. Lisboa: Officina de Francisco Luiz Ameno, 1749, p. 220.
(4) Relativo à expedição entre 1541 e 1542, em que atiçava a curiosidade da monarquia espanhola, sugerindo que poderia ter visto mulheres guerreiras às margens do rio. 


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