sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Torneios medievais de cavalaria

A cavalaria teve grande importância social durante a Alta Idade Média. Nobres treinavam, desde a infância, para a excelência em habilidades militares. Embora as querelas entre senhores não fossem raras, nem sempre havia uma guerra de verdade à mão de quem queria ou precisava manter a forma, e, para suprir essa falta, eram realizados os torneios.
Já que a intenção era, também, fazer a maior exibição possível das virtudes guerreiras, não só os cavaleiros eram convidados para as competições. Mulheres, clérigos, nobres em geral, e a turma da diversão - músicos, bobos, etc. - todos compareciam. Montavam-se tendas para acomodar essa gente. Comida e bebida? Certamente havia, e em proporções pantagruélicas.
Como regra geral, os competidores podiam usar apenas armas "cegas", ou seja, sem corte ou pontas agudas, já que o objetivo era apenas fazer com que os oponentes caíssem dos respectivos cavalos. Não obstante, a possibilidade de ferimentos graves, e mesmo de alguma morte, era real. 
Soavam trombetas, começavam os combates, poeira e suor impregnavam a arena. A plateia assistia torcendo freneticamente por seus favoritos, principalmente no caso das damas que se sabiam cortejadas por algum dos competidores. Quem vencia, era aclamado em prosa e verso; suas façanhas, repetidas de boca em boca, acabavam, por vezes, ganhando ares lendários.
Nem sempre, porém, um torneio era apenas festa. Há muitos relatos de cavaleiros que aproveitavam a oportunidade para causar, deliberadamente, danos severos a seus desafetos, ainda que o juramento os obrigasse a competir com lealdade.
Dentro da lógica da cavalaria medieval, os torneios eram importantes como treinamento militar. Eram, também, uma ocasião, digamos, "civilizada", para que os ódios reprimidos encontrassem uma forma legítima de expressão.
Com o declínio da importância militar da cavalaria medieval os torneios foram caindo em desuso. Os cavaleiros usavam armaduras muito pesadas e eram ótimos em lutar a cavalo. A pé, tornavam-se vulneráveis, em especial diante das chuvas de flechas lançadas por exércitos de arqueiros. A introdução das armas de fogo deu, em mais de um sentido, o golpe de misericórdia na cavalaria medieval. A Europa ocidental passava, então, por grandes mudanças, novas táticas e mesmo novas tecnologias foram introduzidas no combate. Já não fazia sentido treinar cavaleiros que não teriam uso prático nas guerras.

Exércitos medievais em combate (cavaleiros e arqueiros),
de acordo com um manuscrito francês do Século XV (*)
Ah, mas havia quem não concordasse... 
Os leitores já sabem: falo do ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha,  exemplo acabado de heroísmo às avessas, correndo mundo montado em Rocinante, tendo Sancho por escudeiro e (como todo cavaleiro andante), em busca de façanhas que fizessem por merecer o amor de sua Dulcineia de Toboso. Mas o impiedoso Cervantes fez com que tudo lhe saísse muito mal.
O que tornava o Quixote ridículo? O exagero e, principalmente, o anacronismo. Preciosa lição para nossos dias

(*) ____________ Illuminated Manuscripts and Miniatures. Londres: Maggs Bros.. s.d. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 28 de outubro de 2015

"Castigo moderado"

A legislação do Brasil Império justificava castigos físicos para crianças e escravos


O Código Criminal do Império do Brasil, no Capítulo II, tratava dos "crimes justificáveis", que incluíam, por exemplo, aqueles cometidos para defesa da própria pessoa e de seus direitos (Art. 14, § 2), para defesa da família (Art. 14 § 3) e em resistência a ordens ilegais (Art. 14, § 5). Para compreensão das relações quotidianas, é notável o que se lê no Artigo 14, § 6, segundo o qual o crime era justificável e não caberia punição: "Quando o mal consistir no castigo moderado, que os pais derem a seus filhos, os senhores a seus escravos e os mestres a seus discípulos [...]."
Vejam, leitores, que estavam ainda longe os tempos em que mesmo leves palmadas em crianças desobedientes seriam questionadas; além disso, justificava-se o uso da palmatória, quer em casa (para os escravos), quer na escola (para terror dos pequenos estudantes). 
Como determinar, porém, o que seria um "castigo moderado"? E mais: como fiscalizar e/ou controlar a sua aplicação? Quem ousaria testemunhar contra um agressor que extrapolasse os limites supostamente razoáveis? 
Não há dúvida que uma tal legislação acabava por legitimar a violência. É verdade que, em casos graves de insubordinação, os senhores podiam encaminhar seus escravos às casas de correção, onde o Estado, afinal, se incumbia da prisão e da tortura, mas não são poucos os relatos existentes de escravos espancados em fazendas até que acabavam morrendo ou, pelo menos, que ficassem com lesões graves, cujas consequências deviam arrastar pelo resto da vida. Que dizer, então, dos meninos que voltavam da escola com as mãos ensanguentadas pelos "bolos" de palmatória? Ou, que falar ainda dos internatos que tinham, em suas instalações, celas onde eram trancafiados os alunos que descumpriam algum regulamento? Finalmente, que argumentar quanto a pais e mães partidários da ideia de que, quanto mais severa, melhor a educação, e que, em virtude da mesma lei, viam-se livres para espancar os pequenos como bem lhes aprouvesse? Tudo isso era "castigo moderado"?
É fato que a escravidão acabou há bastante tempo e que as velhas palmatórias escolares não passam, hoje, de objetos catalogados nos acervos de museus. Não se deve pensar, porém, que tais coisas saíram do palco sem que, em seu rastro, ficassem consequências pouco alentadoras. Costumes ruins somente são arrancados com muito esforço, daí porque a violência contra crianças, dentro das próprias famílias, ainda é, infelizmente, um mal a ser combatido.


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segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Pássaros do Brasil

Nem pensem que vou começar esta postagem com o poema de Gonçalves Dias (¹) - hoje, só autores do Período Colonial. O fato é que os europeus que vieram ao Brasil no Século XVI não podiam, em terras da América do Sul, ouvir cantar o rouxinol. Não tinham porém, muito motivo para lamentações. Um documento escrito pelo padre Anchieta na Bahia, e datado de 31 de dezembro de 1585, nos faz crer, que, bem ao contrário, a passarada do Brasil é que levava vantagem, ao menos sob o ponto de vista de missionários e colonos:
"Todo o Brasil é um jardim em frescura e bosque e não se vê em todo o ano árvore nem erva seca (²). Os arvoredos se vão às nuvens, de admirável altura e grossura e variedade de espécies. Muitos dão bons frutos e o que lhes dá graça é que há neles muitos passarinhos de grande formosura e variedade, e em seu canto não dão vantagem aos rouxinóis, pintassilgos, colorinos e canários de Portugal, e fazem uma harmonia quando um homem vai por este caminho, que é para louvar ao Senhor, e os bosques são tão frescos que os lindos e artificiais de Portugal ficam muito abaixo." (³)
Um pouco mais tarde, já no Século XVII, Nieuhof explicaria a seus leitores europeus que, no Brasil, os pássaros não tinham problemas em encontrar alimento, independente da estação:
"No Brasil os pássaros jamais sofrem falta de alimento, pois encontram-no sempre, em abundância, entre as flores e os frutos; lá, as árvores não perdem as folhas durante o inverno." (⁴)
1 - Sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris)
Nem todos os pássaros são bons cantores, mas todos sabem fazer muita algazarra ao amanhecer e ao fim da tarde. Dentre os que têm belo canto, o destaque cabe, sem dúvida, aos sabiás. José Viera Couto, especialista em mineralogia que comandou o Distrito Diamantino e que em 1801 andou em expedição aos sertões do Abaeté, para avaliar a viabilidade da exploração de diamantes e metais preciosos naquela área, anotou em seu relatório de viagem:
"Em todos estes dois dias sobre tardinha, e nas manhãs ao romper da alva, um sabiá, em extremo insigne cantor, vinha sempre pousar em uma alta árvore que ficava sobre nossas cabeças, e aí vibrando suas asas, e todo se remexendo, desfazia-se em gorjeios, que naquela espantosa solidão onde estávamos, junto com o mavioso e saudoso tom que é natural a estes pássaros, muito e muito mais nos enchiam e penetravam desta suave paixão. Não só as brutas pedras e os [...] metais terão lugar nestas minhas Memórias. Tu também, inocente habitante destes ermos o terás, e se o Céu me escuta, teus dias serão longos, pois tanto de agradeci teu canto e tua visita." (⁵)
Vieira Couto não especificou qual a espécie de sabiá observada, mas a descrição combina muito bem com o sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris), que, em época de reprodução, pode ser ouvido de longe, não só em áreas florestadas, mas também, já há algum tempo, nas cidades, onde parece ter-se acomodado a gosto.
Pois bem, senhores leitores, é primavera no Brasil, e a passarada anda na maior cantoria por toda parte. Mais uma vez chegou o tempo de fazer ninhos e alimentar os filhotes. Enquanto isso, vai aqui uma ocupação para os que leem esta postagem: nem todas os pássaros das fotos foram identificados (fotos 7, 8, 9 e 10). Quem souber o nome de algum e quiser ajudar pode escrever no espaço para comentários, sim?

Atualização em 14 de fevereiro de 2016:

O nº 8 é um garibaldi macho (Chrysomus ruficapillus); o nº 10 é um sabiá-do-campo (Mimus saturninus). Ficam esperando identificação os pássaros 7 e 9. Quem se candidata?


2 - Anu-preto (Crotophaga ani)

3 - Cabeça-vermelha ou cardeal-do-nordeste (Paroaria dominicana)

4 - Canário-da-terra (Sicalis flaveola)

5 - João-de-barro (Furnarius rufus)

6 - Lavadeira (Fluvicola nengeta)

7 - ???

8 - ???

9 - ???

10 - ???

(1) Poeta do romantismo brasileiro (1823 - 1864).
(2) É evidente que Anchieta não conhecia nem o cerrado e nem a caatinga, biomas de savana existentes no Brasil.
(3) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, pp. 430 e 431.
(4) NIEUHOF, Jean. Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil. São Paulo: Livraria Martins, p. 44.
(5) COUTO, José Vieira. Memória Sobre as Minas da Capitania de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1842, p. 71.


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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Método usado pelos saxões para determinar se um acusado era inocente

A dificuldade existe desde tempos imemoriais - como descobrir se alguém acusado de um delito qualquer é ou não culpado?
Da Mesopotâmia de uns mil e setecentos anos antes de Cristo veio o Código de Hamurabi, segundo o qual o denunciado devia ser jogado no rio Eufrates. Se sobrevivesse, era declarado inocente. Se não... Se não, era considerado culpado, já estava, de todo modo, morto e, como vantagens adicionais, poupava aos magistrados o trabalho da execução e lançava a responsabilidade da sentença sobre as águas do rio ou sobre os deuses.
Os saxões que, durante a Idade Média, foram migrando da Europa Continental para a Grã-Bretanha, tinham um método para determinar a culpabilidade que lembra um pouco a "lógica" do Código de Hamurabi. Como verão, senhores leitores, o procedimento era bastante simples.
Uma bola de ferro era aquecida, até que ficasse incandescente. O acusado era então trazido à presença dos magistrados, sendo por eles convidado a segurar a dita bola de ferro. Se não sofresse qualquer queimadura, era declarado inocente e, ato contínuo, posto em liberdade. Antes dessa horripilante prova o acusado ou acusada tinha um tempo apropriado para jejuar e fazer suas orações, o que era, afinal, uma evidência de grande humanidade e justiça, não é mesmo?

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quarta-feira, 21 de outubro de 2015

A primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil

O Brasil, ao contrário do que aconteceu na América Espanhola, nunca teve um tribunal fixo do Santo Ofício da Inquisição. Seria perda de tempo: o vasto território colonial era escassamente habitado, e cada pequeno núcleo de colonos ficava, em geral, muito longe de qualquer outro. Por isso, a presença do Santo Ofício em terras do Brasil aconteceu através das chamadas "Visitações" que, de um modo muito simples, podem ser descritas como uma versão ambulante do Tribunal, com uma estrutura mínima de funcionários: bastava haver um visitador, um notário e um meirinho. Quando comparadas à complexa estrutura inquisitorial estabelecida em Portugal e Espanha, as Visitações eram o que havia de mais modesto.
Ora, a primeira Visitação, tendo à frente o visitador Heitor Furtado de Mendonça, principiou na Bahia, na época capital do Brasil português, com a publicação dos chamados Editos da Fé e da Graça em 28 de julho de 1591. A população da Cidade do Salvador e adjacências, reunida na Sé, em cerimônia religiosa que se reputava de comparecimento obrigatório, foi informada de que tinha trinta dias de prazo para confissões e acusações. Mandava-se também que todos os livros existentes na cidade e/ou listas de livros das bibliotecas (!) fossem apresentados ao inquisidor, que pretendia verificar se não havia algum que constasse no Index Librorum Prohibitorum...
Para quem vive no Século XXI isso tudo pode parecer um grande absurdo; na época, tinha início uma temporada de medo para a população. As pessoas corriam a confessar mesmo coisas irrisórias, temendo que, antes disso, alguém fizesse uma denúncia do suposto crime contra a fé. Seria longo demais expor aqui toda a lista de confissões, mas vale a pena mencionar alguns casos, para que os leitores tenham uma ideia nítida de coisas que ocorriam no Brasil no final do Século XVI:
  • O primeiro a aparecer diante do visitador foi um padre, que confessou ter praticado "tocamentos desonestos" com umas quarenta pessoas (esse indivíduo foi citado em muitas outras confissões);
  • Várias pessoas apareceram para confessar ou acusar alguém de "práticas judaizantes", tais como não usar banha de porco ou mudar a roupa de cama e mesmo tomar banho antes do sábado;
  • Uma pessoa confessou ter dito que "não devia nada a ninguém, nem a Deus";
  • Um mestre de açúcar confessou que, sendo casado na Madeira, viera ao Brasil e casara de novo;
  • Uma mulher declarou ter comido abacaxi antes de receber a comunhão;
  • Um estudante de dezessete anos confessou ter-se envolvido com o padre que fizera a primeira confissão (o visitador perguntou ao rapaz se mais alguém sabia do caso);
  • Um homem confessou ter dito que não acreditava no Evangelho de S. João;
  • Um padre mameluco confessou ter tido envolvimento sexual com duas escravas de seis ou sete anos [sic!!!];
  • Duas mulheres confessaram relacionamento homoafetivo;
  • Um homem que fora prisioneiro de ingleses confessou que, "por medo", havia presenciado serviços religiosos protestantes;
  • Uma pessoa alegou que "por curiosidade", entrara em uma sinagoga;
  • Um estudante confessou que ouvira dizer e repetira que "dormir homem com mulher não era pecado";
  • Um rapaz confessou que tivera práticas sexuais com três pessoas: um seu irmão, um mameluco e um homem que iria ser ordenado ao sacerdócio;
  • Várias pessoas confessaram blasfêmias, assim como práticas rotuladas como feitiçaria.
Essas confissões aparecem nos registros da Visitação a Salvador e adjacências. O visitador e seus ajudantes foram, posteriormente, ao Recôncavo Baiano, e vale dizer que, em linhas gerais, as confissões versaram lá sobre os mesmos temas. Terríveis tempos, esses, quando, por medo de prisão, tortura e mesmo de uma morte cruel, as pessoas corriam a revelar, diante de um burocrata da Igreja a quem se conferiam poderes quase ilimitados, assuntos que, em sua maioria, não deveriam sair dos limites da vida privada.


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segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Danos à saúde dos escravos carregadores

Em outras postagens deste blog já mencionei o fato de que, durante o Império, mercadorias que chegavam à alfândega do Rio de Janeiro eram transportadas por escravos. Mostrei, inclusive, que os cativos que conduziam sacas de café para embarque eram vistos, com frequência, cantando enquanto trabalhavam.
Ora, o fato de que escravos cantavam e tocavam chocalhos em suas tarefas pode dar a impressão de que, afinal, sua ocupação era até divertida, e que cantavam para externar alegria. A realidade, porém, estava bem longe disso. O naturalista Louis Agassiz e sua mulher, Elizabeth Cary Agassiz, que estiveram no Brasil entre 1865 e 1866, observaram que os escravos carregadores sofriam danos graves à saúde em razão do trabalho que executavam - e isso, é bom recordar, a despeito de  Louis Agassiz ser defensor ardoroso de ideias que nós, hoje, classificaríamos, sem pestanejar, como racistas e, principalmente, segregacionistas. Lemos no diário de viagem do casal (¹): 
"Os escravos, pelo menos nas cidades, são verdadeiras bestas de carga. Móveis pesados, pianos, aparadores, malas pesadas, barricas empilhadas umas sobre outras, tudo isso, até caixas de açúcar e sacas de café de mais de cem libras de peso, é transportado nas ruas na cabeça dos pretos. Por causa disso, esses infelizes ficam frequentemente com as pernas entortadas; não é raro vê-los, na força da idade, curvados inteiramente ou estropiados, e podendo a custo andar com um pau na mãos. [....] Alguns anos atrás, segundo nos dizem, não se podia encontrar uma carroça para fazer uma mudança: fazia-se na cabeça." (²)
No entanto, os Agassiz cuidaram em fazer notar que, já naqueles dias, o uso de escravos como carregadores ia diminuindo:
"Em boa justiça, deve-se acrescentar que tal prática, tão chocante para o estrangeiro, vai diminuindo." (³)

Escravos carregando um piano, desenho de E. Riou a partir de esboço
feito pelo pintor François Biard (⁴)
Observemos que, ao menos para eles, que vinham dos Estados Unidos,  a "tal prática" não devia ser assim tão chocante, uma vez que a escravidão ainda existia por lá, e ambos somente tiveram notícia do fim da Guerra de Secessão e do assassinato de Lincoln quando já estavam no Brasil. Quanto ao trabalho dos escravos carregadores, é fato que desapareceu. Acabou-se com o fim da escravidão. 
Cabe, aqui, porém, um outro questionamento: Quantos não serão ainda hoje os trabalhadores, considerados livres segundo as leis, é fato, cujas ocupações são muitíssimo danosas à saúde (como acontecia aos antigos carregadores), e que nelas continuam somente porque não têm outro modo pelo qual prover o sustento para si mesmos e para suas famílias?

(1) O diário de viagem foi escrito pelo casal Agassiz, sendo um tanto difícil determinar que parte foi escrita por qual deles, ainda que seja dada como certa a predominância dos textos de Elizabeth Cary.
(2) AGASSIZ, Jean Louis R. e AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, pp. 82 e 83.
(3) Ibid.
(4) BIARD, François. Deux Années au Brésil. Paris: Hachette, 1862.


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sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Elementos totêmicos nos estandartes dos exércitos da Antiguidade

Bandeiras nacionais geralmente são desenhadas para representar o que um país tem de melhor. São uma expressão de orgulho patriótico. Espera-se que isso seja compreendido pelos cidadãos, ainda que nem sempre esteja, em um piscar de olhos, ao alcance de estrangeiros.
O hábito de ter algum tipo de estandarte à frente dos exércitos vem da Antiguidade, mesmo se levarmos em conta que, naqueles tempos, a forma retangular não exercia, como hoje, um predomínio quase absoluto. A presença simbólica de representações de animais era, no entanto, bastante comum. Já em nossos dias, o uso de elementos totêmicos diminuiu muito, ao menos nas bandeiras nacionais. Não se pode dizer o mesmo em relação às bandeiras de clubes de futebol ou de outras modalidades esportivas...
Sem gracejos, leitores. Vamos adiante, lembrando apenas, como exemplificação, a importância das águias nos estandartes romanos, ou dos bodes nos da Macedônia, tão celebrada pela rapidez de suas conquistas sob Filipe e, principalmente, sob Alexandre. Pensando bem, talvez valha a pena dissecar este segundo exemplo.
A coisa é um tanto lendária, mas, com o objetivo de mostrar que sua monarquia era de origem grega, diziam os macedônios que, ao tempo das grandes migrações em território grego e adjacências, um grupo de pessoas deixou a cidade de Argos em busca de um novo lar. Pondo em prática uma das superstições favoritas da época, consultaram um oráculo, que lhes fez uma estranha recomendação (era sempre assim), a de seguirem a direção que as cabras iriam mostrar. Enquanto prosseguiam em sua peregrinação toparam com um rebanho de cabras, foram atrás delas, acharam uma cidade, a qual conquistaram, e, subjugando seus habitantes, deram início ao reino da Macedônia. Aliás, a cidade conquistada, Egas, foi a primeira capital do grande reino, e, por isso mesmo conhecida como "a cidade das cabras".
Não seria essa apenas mais uma dentre as muitas lendas da Antiguidade? É difícil saber, mas não há como negar que, fato ou fábula, tem algum charme, não é mesmo? Para Alexandre, o Grande, a dita história deve ter sido também muito útil em seus esforços para assegurar a dominação do turbulento mundo grego, já que a suposta veracidade fazia dele, afinal, um grego também - ou, pelo menos, alguém de origem grega, coisa que, naqueles tempos, dava no mesmo (por linha materna, afirmava-se que descendia de Aquiles, um dos heróis da Guerra de Troia). Assim, fica fácil  entender o motivo pelo qual a representação de um bode constituía-se num orgulho, a ponto de figurar entre os símbolos presentes nos estandartes empunhados pelos guerreiros do grande império que o jovem Alexandre construiu em cerca de doze anos de comando.


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quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Danças dos povos indígenas do Brasil

Uma característica comum aos povos indígenas do Brasil, conforme relatos dos mais variados autores que tiveram contato com eles no Período Colonial, era o grande apreço pela música e pela dança. Os missionários jesuítas, longe de trabalharem por banir essas preferências, trataram de usá-las como aliadas na catequese. No Rio de Janeiro, por exemplo, para celebrar a chegada do visitador dos jesuítas, padre Cristóvão de Gouvêa (¹), os meninos indígenas apresentaram, de acordo com relato do padre Fernão Cardim, "a mais aprazível dança":
"Era para ver uma dança de meninos índios, o mais velho seria de oito anos, todos nuzinhos, pintados de certas cores aprazíveis, com seus cascavéis (²) nos pés, e braços, pernas, cinta e cabeças com várias invenções de diademas de penas, colares e braceletes; parece-me que se os viram nesse Reino, que andaram todo o dia atrás deles; foi a mais aprazível dança que destes meninos cá vi [...]." (³)
No Século XIX, em razão do crescimento tanto do interesse como da curiosidade pelo Brasil, viajantes estrangeiros percorreram vários pontos do País, e alguns deles deixaram depoimentos escritos quanto às danças indígenas que tiveram a oportunidade de presenciar. É difícil dizer o quanto as danças observadas eram, ainda, autenticamente indígenas, já que em alguns casos há indícios de que pareciam encomendadas para "agradar aos turistas". Mas vamos a dois registros, apenas para dar uma ideia do que podia ser visto.
Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff (1825 - 1829), presenciou uma série de movimentos lúdicos dos bororos, executados a partir da formação de um círculo:
"A princípio não fazem mais do que levantar um pé e depois outro, seguindo uma toada lenta que marcam batendo com as mãos, e acompanhada de um canto rouquenho, baixo e demorado como o compasso. De repente param, dão um grande berro e saltam [...]. Em seguida recomeçam com a monótona dança.
Enquanto os bororos a executavam, dois deles, dentro do círculo, representavam o jogo do tamanduá. Um põe-se de quatro pés com uma criança agarrada às costas: é a fêmea do tamanduá-bandeira e seu filhote. Outro o incita, pondo-lhe a ponta de um pau no nariz, imitando com muita fidelidade os movimentos letárgicos do animal; o que faz de tamanduá levanta devagar a cara e uma das mãos, com os dedos curvos como que querendo agarrar o pau: quando se adianta, o outro recua. [...].
Esses índios imitam também suas lutas com a onça, a caçada da anta, lobo, veado, etc." (⁴)
O Príncipe Adalberto da Prússia, que chegou ao Rio de Janeiro em 1842, observou uma dança dos puris, cujo propósito era, também, imitar os movimentos de vários animais nativos da América:
"A dança consistia num bambolear dum lado para o outro acompanhado dum canto monótono, muito fanhoso. Devia representar simbolicamente, a luta de um anum (eu porém compreendi que era duma mosca) contra um boi; uma outra mais tarde descrevia o caititu, o porco-do-mato, correndo dum lado para o outro na floresta; assim foi, pelo menos, que me explicou o próprio puri esta espécie de improvisações." (⁵)
Ora, meus leitores, os bovinos não são originários do Continente Americano. Se, de fato, a dança presenciada representava um desentendimento entre um anum (ave) e um boi, já havia nela uma construção posterior ao início da colonização. 

Dança dos índios puris (⁶)
Muitos autores trataram desse tema das danças indígenas em seus diários de viagem e quem quiser um aprofundamento no assunto não terá dificuldade em encontrar material para estudo. Deve-se levar sempre em conta, porém, que viajantes estrangeiros observavam as danças através do filtro de sua cultura de origem e, sendo numerosos os povos indígenas do Brasil, é preciso cuidado para não incorrer em generalizações que empobreçam a investigação de suas expressões rituais e/ou artísticas.

(1) Essa Visitação ao Brasil ocorreu entre 1583 e 1590.
(2) Guizos.
(3) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, p. 92.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 169.
(5) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazônia - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 147.
(6) SPIX, Johann B. von et MARTIUS, Carl F. P. von. Atlas zur Reise in Brasilien. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O trabalho ininterrupto de homens e animais nas moendas de cana-de-açúcar

Em muitos engenhos coloniais a época de safra da cana-de-açúcar era marcada por atividade incessante. Não há aqui exagero ou apenas um modo de dizer. De fato, nessas ocasiões, as moendas eram mantidas em funcionamento ininterrupto, até que a safra fosse concluída.
Uma razão para isso é que a cana, uma vez colhida, tinha de ser moída em um prazo máximo de vinte e quatro horas, já que não tardava a atingir um estado de deterioração, em particular sob condições climáticas desfavoráveis (como calor intenso, por exemplo). No entanto, o funcionamento contínuo das moendas levava trabalhadores escravos e animais de carga à exaustão.
Para entender o procedimento de moagem usado nos engenhos, temos uma ótima descrição feita, no final do Século XVIII, por José Caetano Gomes, em sua Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar, escrita com a intenção de propor melhorias nas práticas agrícolas e açucareiras adotadas naquele tempo:
"Um escravo apresenta um feixe de cana pela sua ponta em linha horizontal, entre a moenda do meio e uma das dos lados; continua a meter segundo, terceiro, quarto, quinto e sexto [feixes], e outro escravo, da parte oposta, à proporção que os feixes de cana passam, depois de espremidos na primeira, os apresenta da mesma sorte à segunda; tornam a passar pela primeira e repassar pela segunda, o que faz que esta cana seja espremida quatro vezes, sempre em linha horizontal. Em alguns engenhos chegam a passar cinco e seis vezes [...]." (¹)
Imaginem os leitores qual era o resultado desse trabalho monótono, repetitivo, feito em grande velocidade (sob a pressão do chicote de um feitor), por horas e horas a fio... Os acidentes eram comuns e, como consequência, não poucos escravos sofriam mutilações vitalícias.
Enquanto isso, do lado de fora da moenda, os carros de bois iam e vinham com novos carregamentos de cana. Os animais empregados no transporte eram, também, quase sempre maltratados com trabalho excessivo - afinal, a cana já cortada no campo tinha de ser levada ao engenho rapidamente, para que não se estragasse. Engenhos reais tinham rodas d'água para manter a moenda em funcionamento, mas em alguns lugares eram mais comuns os engenhos conhecidos como trapiches, cuja moenda era mantida girando com a força de animais, igualmente sobrecarregados com excesso de trabalho. 
Sobre o trabalho contínuo José Caetano Gomes ainda registraria:
"Vejo que há engenhos que, para três ou quatro mil arrobas [de açúcar], principiam em maio e acabam em dezembro, por não poderem mais, empregando dia e noite nesse trabalho, e assim mesmo perdem cana, que não podem moer." (²)
Inevitável, também, era o desgaste e mesmo a perda de vidas de trabalhadores e de animais:
"Trabalhando-se desta sorte, os homens e os animais se estragam; o dia é para trabalhar e a noite para descansar, esta é a ordem da natureza, que se não inverte impunemente." (³)
Mas os senhores de engenho tinham outras ideias. Para eles, como regra geral, tudo o que interessava era a produção e, consequentemente, o lucro que poderiam obter. Os ganhos compensavam, de longe, alguma perda, fosse de homens ou animais, que nem era sequer encarada como um grande prejuízo. A fadiga de quem trabalhava não era coisa que ousasse frequentar o universo de preocupações de um típico senhor de engenho.

(1) GOMES, José Caetano. Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar. Lisboa: Casa Literária do Arco do Cego, 1800, pp. 30 e 31. O original consultado pertence à BNDigital.
(2) Ibid., p. 37.
(3) Ibid.


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sexta-feira, 9 de outubro de 2015

A perseguição aos cristãos no Império Romano

Por séculos os cristãos que viviam no Império Romano foram perseguidos. Eram presos, torturados para que negassem sua fé e, muitas vezes, condenados à morte, o que se executava com extrema crueldade, e até mesmo como espetáculo público.
Quem, afinal, teve a ideia de iniciar tal prática?
De acordo com a Apologia, escrita por Tertuliano no ano 200 d.C. (com a finalidade de defender a causa dos cristãos diante do Senado romano, por ocasião de uma perseguição movida pelo próprio Senado e referendada pelo imperador Sétimo Severo), os cristãos de Roma foram perseguidos, pela primeira vez, sob o mando de Nero:
"Procurem nos registros anuais e irão encontrar que Nero foi o primeiro a ensanguentar a espada dos Césares no sangue da religião cristã, quando ela começava a fazer-se conhecer em Roma." (*)
Tertuliano ainda acrescentaria:
"Não há maior elogio à religião cristã que haver sido perseguida por Nero, uma vez que um homem tão mau não poderia senão perseguir algo completamente bom."
É perceptível que, ao final do segundo século da Era Cristã, a imagem de Nero entre os romanos não era das mais favoráveis, ou Tertuliano não teria se referido a ele do modo como o fez. Mas, voltando à questão da primeira perseguição aos cristãos, ocorreu ela porque Nero, vendo-se sob suspeita de ter ordenado o incêndio que arrasou a capital do Império, tratou de achar a quem incriminar, e lançou a responsabilidade sobre os cristãos, que, nesse tempo (64 - 65 d.C.) não deviam ser assim tão numerosos em Roma. No livro XV dos Annales, Tácito escreveu:
"Para afastar os rumores, Nero incriminou e passou a punir com toda sorte de tormentos a uma gente desagradável, os cristãos, como vulgarmente eram chamados. [...] Zombando deles, eram vestidos com peles de animais, sendo, em seguida, lançados aos cães, enquanto outros eram crucificados, e outros, ainda, queimados quando anoitecia, para que servissem de iluminação."
Sabe-se que, pela época que o cristianismo chegou a Roma, a crença nos antigos deuses já andava em declínio. No entanto (como se vê, mutatis mutandis, até hoje sob algumas circunstâncias), sempre que ocorria alguma grande catástrofe o povo romano corria aos templos, tentando aplacar a fúria das divindades esquecidas. Foi também Tácito, a despeito de seu mau humor para com os cristãos, quem registrou:
"Entendeu-se que o incêndio fora devido à fúria dos deuses, e tomaram-se providências para acalmá-los. [...] Livros sibilinos foram consultados, sendo então dirigidas súplicas a Vulcano, Ceres e Proserpina, enquanto as matronas faziam propiciação a Juno no Capitólio e, depois, junto ao mar, levando dali água para aspergir o templo e a estátua da deusa."
Estando o imperador envolvido no incêndio ou não, naquela hora o expediente serviu para que Nero escapasse da ameaça popular e ainda caísse, momentaneamente, nas graças da plebe, que acorria aos espetáculos públicos nos quais cristãos eram sacrificados, com o pretexto de que isso seria em extremo agradável aos deuses. 
Nem por isso o cristianismo desapareceu, e nem mesmo as sucessivas perseguições tiveram o efeito de fazer com que os cristãos sumissem do Império. Ao contrário. Se nos dias de Nero os cristão eram, em Roma, relativamente pouco numerosos, quase um século e meio mais tarde, sob nova perseguição, Tertuliano diria: "Nascemos ontem, e já hoje enchemos o Império [...]."

(*) As citações da Apologia de Tertuliano e dos Annales de Tácito incluídas nesta postagem são tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Ensino e catequese no Brasil após a expulsão dos jesuítas no Século XVIII

Os jesuítas vieram inicialmente ao Brasil com Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral, em 1549. Desde então passaram a desenvolver a catequese de indígenas e a ensinar filhos de colonos em seus colégios. Sucede que a Companhia de Jesus tornou-se muitíssimo poderosa na América, a ponto de ser acusada de ter intenções de estabelecer, no sul do Continente, um verdadeiro império sob seu controle. No Século XVIII o ideário iluminista, influente até mesmo sobre alguns governantes na Europa (¹), fez com que as suspeitas contra os jesuítas chegassem ao auge, resultando na supressão da Ordem em 1773 (²). A expulsão de Portugal e seus domínios ocorreu antes, em 1759, até porque o Marquês de Pombal, ministro do rei D. José I, não tinha por eles nenhuma simpatia. 
O que aconteceu às missões no Brasil que os jesuítas foram obrigados a abandonar?
Saint-Hilaire, naturalista francês, percorrendo o Rio Grande do Sul um pouco antes da Independência, observou:
"Outrora ensinava-se a ler e a escrever em todas as aldeias, mas essas lições cessaram há muito tempo." (³) 
Referia-se, naturalmente, às aldeias de índios guaranis que haviam sido catequizadas por jesuítas. Deve-se notar que, expulsos os missionários da Companhia, competia ao governo português prover instrução básica à população. Como, porém, notou o próprio Saint-Hilaire, os salários oferecidos aos professores eram muito baixos, disso resultando um desinteresse pelo cargo e, por consequência, muitas povoações deixaram de ter escolas.
Não só o ensino foi abandonado em muitos lugares. A saída dos jesuítas também interrompeu a catequese, ainda que, em alguns casos, religiosos de outras Ordens tenham assumido as missões. Um resultado curioso desse abandono foi registrado no Diário da Expedição que em 1780 saiu para demarcação da América Portuguesa, com a constatação de que havia indígenas semicatequizados que, sem uma doutrinação completa, chegavam, quando interrogados, a expressar uma lista algo sincrética de crenças que, se eram em parte cristãs, eram, também parcialmente, bem pouco ortodoxas. Exemplo? Veja-se o que disse o chefe indígena de uma tribo da região amazônica, que já tinha "alguma luz da doutrina cristã":
"...indagado por alguns princípios da religião que seguiam nas suas terras, respondeu que os bons depois de mortos iam ter muitas mulheres, e os maus iam para uma cova muito funda em que havia muito fogo."

(1) Os chamados "déspotas esclarecidos".
(2) A bula papal, permitindo a restauração da Companhia de Jesus, data de 1814.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 341.


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segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Homenagem às mulas dos tropeiros

"Eu cá, não deixo a minha mula paulista. Esses cavalos da moda, que vocês apreciam por serem muito grandes e muito caros, não me servem."
José de Alencar, Sonhos d'ouro

Este blog tem várias postagens dedicadas aos tropeiros que, até bem adiantado o Século XIX, realizavam o transporte de mercadorias no Brasil, guiando tropas de muares. Não há, porém, nenhuma postagem dedicada às mulas... 
Sim, a elas que, afinal, faziam o maior esforço, levando as cargas às costas, gastando as ferraduras em estradas e trilhas, ora empoeiradas, ora lamacentas, mas sempre cheias de buracos, nos quais as pobres criaturas de quatro patas não poucas vezes acabavam morrendo. E, o que é pior, morriam abandonadas pelos tropeiros, que seguiam adiante com as mulas sobreviventes.
Pois bem, vamos hoje sanar essa grande injustiça. Falemos das mulas.
Em viagem pelo interior do Brasil no ano de 1867 o britânico Richard Burton, talvez mais célebre como orientalista, teve oportunidade de entabular um relacionamento com as mulas, sem as quais quase ninguém, nesse tempo, viajava pelo País. Como resultado dessa experiência, tinha algo a escrever:
"Não há viajante que não se queixe da teimosia e rabugice das mulas; não há viajante que não alugue mulas, um mal necessário, pois os cavalos não aguentam fazer longas viagens, nesta parte do Brasil. [...]. A mula não toma afeição ao dono, por melhor que ele a trate; o cavaleiro jamais pode confiar nela, e, de todos os animais, é o mais afetado pelo medo. Seus truques são inúmeros, e a mula parece ter consciência de que sua traição pode sempre levar a melhor em uma luta; os velhos, portanto, preferem os cavalos às mulas. É um engano acreditar-se na resistência desses animais: aqui, pelo menos, cheguei à conclusão de que o sol cedo os cansa e que eles exigem muito alimento, muita água e muito descanso." (*)
Perdoem-me a paráfrase, mas não há leitor que não se queixe da teimosia e rabugice... de Burton! Trato já de esclarecer que o trecho omitido na citação acima foi excluído em razão de expor o mais grosseiro racismo que alguém possa imaginar. Convenhamos, meus leitores, que às ideias de Burton só falta mesmo exigir que as mulas sobrevivessem fazendo fotossíntese. Os pobres animais, carregados muitas vezes além de sua capacidade, transitando por horas a fio em caminhos horrorosos, são atacados verbalmente sob o pretexto de exigirem "muito alimento, muita água e muito descanso". Melhor: só faltou mesmo que Burton sugerisse a introdução de camelos nas rotas de tropeiros, tendo em vista uma substancial economia de água.  
Como não tenho e nem nunca tive uma mula, acho difícil avaliar o  comportamento delas. Seriam mesmo pouco confiáveis, traidoras, até? Que responda algum leitor que já tenha tratado com elas. Mas, à vista da ocupação a que estavam submetidas, não seria estranho se ostentassem um temperamento meio azedo. Digo apenas que, se quisermos fazer justiça às mulas, teremos que admitir, não sem algum gracejo, que por muito tempo elas carregaram o Brasil nos lombos (ou pelo menos, aquilo que se produzia no Brasil) e, malgrado alguns coices e mordidas, fizeram bem o trabalho. Ficam, pois, devidamente homenageadas aqui em História & Outras Histórias.

(*) BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 129.


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sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Sêneca e sua teoria sobre a decadência dos impérios

Grandes impérios, na Antiguidade, surgiram, dominaram, mas desapareceram. Em alguns casos o sumiço foi tão exagerado que, por séculos e séculos, estudiosos achavam que sua existência era apenas lendária. Um exemplo disso foi o notável império assírio que, subvertido por conquistadores babilônios e medos, principalmente, permaneceu oculto até que escavações arqueológicas comprovassem sua autenticidade. 
Outros impérios passaram por lento declínio, ainda que subsistindo por muito tempo, sem, no entanto, conservarem o brilho que assinalou seu apogeu. O Egito da Antiguidade ilustra muito bem este caso.
Não poucos historiadores têm dedicado tempo e neurônios à investigação dos fatores responsáveis pela ascensão e queda dos grandes impérios. Desavenças políticas internas, fracassos em batalhas, catástrofes naturais, declínio de valores cívicos e/ou morais - a lista poderia seguir, com elementos que são assíduos entre as explicações oferecidas ao fenômeno do desaparecimento de povos, reinos, civilizações até. E, diga-se de passagem, este é um tema cuja investigação já intrigava pensadores na própria Antiguidade (¹). Sêneca (²), filósofo estoico romano do primeiro século d.C., famoso por ter sido professor de Nero, escreveu em De Ira:
"Lembre-se de que cidades notáveis, das quais hoje apenas se sabe a localização, foram destruídas pela ira. Olhe as vastas regiões hoje desabitadas, e veja que foi a ira que as tornou um deserto." (³)
Você, leitor, concorda com Sêneca? É pouco provável que ele desconsiderasse fatores políticos, econômicos, sociais ou naturais. Só que, em seu pensamento, buscava causas profundas para as querelas entre poderosos, para as revoltas populares, para as desordens na estrutura econômica, e ia encontrá-las na falta de serenidade, tanto de governantes quanto de governados, que davam vazão irrestrita às emoções violentas, embotando o uso pleno da razão. Isso se deduz pelo que escreveu na mesma obra, propondo o ideal de governantes e juízes que, impassíveis, sem qualquer traço de irritação, administrassem os negócios públicos e fizessem aplicar a justiça. Tinha isso como meta, aliás perfeitamente compatível com o pensador estoico que era. O quanto Sêneca foi bem-sucedido em implantar tal ideário, ao menos em seus dias, nós podemos ver pela conduta de seu famoso discípulo-imperador, que supondo o mestre envolvido em uma conspiração para assassiná-lo, ordenou-lhe que cometesse suicídio. Uma prática que, afinal, era comum em Roma
Sêneca, estoicamente, obedeceu.

(1) É lógico que os antigos não se achavam "antigos". Nós é que os rotulamos assim...
(2) 4 a.C. - 65 d.C.
(3) O trecho citado de De Ira é tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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