quinta-feira, 30 de julho de 2020

Um trabalho de Hércules (que não está entre os doze famosos)

Vem do terreno das fábulas e mitos da Grécia Antiga, mas é caso interessante. Segundo Plutarco (¹), o caminho entre Trezena e Atenas era terrível, não por sua configuração geográfica, mas por causa dos homens que o frequentavam, gente de capacidade física notável e de brilhantes dotes mentais, ambos aplicados para fazer tudo o que havia de mais pérfido. Tão perigosa era essa rota, que os que precisavam ir de uma cidade a outra por ela, levando em conta os riscos à vida, preferiam fazer a viagem por mar. Talvez haja nisso uma explicação mitológica para a opção grega pela navegação. Face às dificuldades oferecidas pelos caminhos terrestres, em virtude do relevo acidentado, as viagens marítimas mostravam-se mais rápidas e, em alguns casos, até mais seguras.
Com lendas ou sem elas, não havia força policial na Grécia de tão remotos tempos, à qual pessoas de bem pudessem recorrer. É nesse cenário que emerge ninguém menos que Hércules, para realizar um trabalho que não costuma aparecer na famosa lista dos doze maiores que, segundo as crenças dos antigos gregos, realizou: "Hércules nascera com grande coragem para as maiores façanhas, e ao saber que o caminho [de Trezena a Atenas] estava repleto de assaltantes, resolveu percorrê-lo, movido pela coragem, a fim de torná-lo seguro, eliminando os malfeitores que nele havia. Foi assim que matou um grande número de ladrões audaciosos, que havia por lá naquela época." (²)
Pergunto: ao limpar o caminho, matando os salteadores que o infestavam, não teria Hércules agido de modo semelhante a eles? Será que os antigos gregos, quando contavam as lendas (que, para eles, eram mais que lendas) achavam que um herói tinha o direito de arbitrar quem era bom ou mal, quem merecia viver ou morrer? Hércules, afinal, nem sempre era um herói bondoso: foi por matar a mulher e os filhos durante um acesso de fúria que teve de realizar os célebres doze trabalhos. 
Não deixa de ser intrigante que tantos povos da Antiguidade tivessem, em suas coleções de lendas exaustivamente repetidas, referências a heróis valentes, capazes de, pela força, às vezes aliada à astúcia, resolver problemas que, de outro modo, seriam insolúveis. Hércules, dos antigos gregos, foi apenas mais um desses.

(1) c. 45 - 125 d.C.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho de Vitae parallelae aqui citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 28 de julho de 2020

Procedimento indígena para dar força às flechas

"Às costas cada qual suspende a aljava
Pejada de farpadas leves flechas,
E o arco sobraçando, a maça empunha."

Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios

Indígenas portando armas (²)
Indígenas faziam amplo uso de flechas, tanto para a caça, com a finalidade de obter alimento, como em guerra contra grupos inimigos. Prepará-las cuidadosamente era, portanto, conhecimento essencial à sobrevivência na floresta. De acordo com Francisco Bernardino de Sousa, que escreveu no Século XIX sobre aspectos interessantes da região amazônica, as flechas indígenas poderiam ser classificadas em três grupos:
"Há três espécies de flechas usadas na guerra, diz o sr. Gonçalves Dias, uagike comm, a arpoada, uagike méran, e a outra para caça dos animais menores, uagike bacamnumok." (¹)
Passa, em seguida, a descrever os três tipos:
"A primeira tem a ponta alongada ou elíptica, feita de taquara; tostam-na para ficar mais dura, e raspam-na e aparam para que fique cortante como faca, e a ponta fina como agulha. O animal, ferido dela, sangra muito, porque um dos lados é côncavo. A ponta da flecha arpoada, que tem polegada ou polegada e meia de comprimento, é feita de pau-d'arco ou de airi (³). É fina e muito aguda. Tem oito ou dez arpéus, e se emprega na caça de animais grandes e pequenos e também na guerra: A sua ferida é perigosa por ser de difícil extração. As flechas da terceira espécie são obtusas e matam por contusão: tomam para isso uma vara que tenha três ou mais nós, formando como um botão, de que fazem a extremidade da flecha." (⁴)
Havia, finalmente, um detalhe na técnica, que podia tornar mais fortes as flechas do primeiro tipo:
"Para dar mais força às primeiras, untam-nas com cera, passam-nas ao fogo para que penetre melhor e assim fazem também com os arcos." (⁵)
Estes eram saberes da floresta, acumulados ao longo de gerações e transmitidos sempre oralmente, no contexto de culturas ágrafas, mas nem por isso menos ricas. 

(1) SOUSA, Francisco Bernardino de. Lembranças e Curiosidades do Vale do Amazonas. Belém do Pará: Typ. do Futuro, 1873, p. 271.
(2) STADEN, Hans. Wahrhaftige Historia und beschreibung eyner Landtschafft der Wilden Nacketen Grimmigen Menschenfresser Leuthen. Marburg: 1557. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Variedade de palmeira.
(4) SOUSA, Francisco Bernardino de. Op. cit., pp. 271 e 272.
(5) Ibid., p. 272.


Veja também:

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Hábitos alimentares de César Augusto

Levando em conta as preferências de outros imperadores romanos, famosos pelos banquetes intermináveis, até que Augusto era um sujeito de hábitos frugais, se forem corretas as informações de Suetônio (¹) em De vita Caesarum (²):
  • Gostava de alimentos simples e em pequenas quantidades;
  • Seus alimentos favoritos eram pão caseiro, queijo fresco, figos e peixes;
  • Não era dado a ter horário fixo para as refeições, e, por isso, comia alguma coisa sempre que tinha fome.
Em consequência desses costumes, não era incomum que comesse sozinho, antes ou depois dos horários convencionais entre os romanos, de modo que, comparecendo a banquetes por dever de ofício, acontecia, às vezes, que nem tocasse na comida. Nesse sentido, foi, sem dúvida, bem diferente de muitos de seus sucessores.

(1) Caio Suetônio Tranquilo, 69 - 141 d.C.
(2) Livro II.


terça-feira, 21 de julho de 2020

Carros de bois não eram usados na primeira capital do Brasil

Por muito tempo os carros de bois foram amplamente empregados no Brasil. Não obstante, no Século XVI não eram utilizados na cidade da Bahia (Salvador), a primeira capital (¹). Por quê?
No contexto da construção do primitivo convento dos franciscanos em Salvador, frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, autor setecentista, explicou, em seu Novo Orbe Seráfico, que as obras foram difíceis, a princípio, porque era necessário carregar pedras desde as proximidades do mar, e que não se podia contar com carros de bois para tão penosa tarefa. É justamente aí que diz o motivo:
"Continuava-se a obra dos corredores com grande fervor e vontade de todos, assim religiosos como seculares, mas servia-lhe de grande embaraço para se avançar e crescer adiante o material da pedra, que lhes era necessário ir buscá-la ao baixo da Bahia e costas ao mar das pederneiras, que cercam as suas praias, que suposto abundantes e em distância não mui prolongada, contudo dificultosa a sua condução, por não ser possível trazê-la acima em carros por se não usarem na Cidade os bois pelo empinado e difícil da sua subida [...]." (²)
A topografia, portanto, era a explicação para que, diversamente do que ocorria em muitos outros lugares, os carros de bois não fossem o modo habitual de transporte para cargas. Outra pergunta, portanto, se impõe: como foram carregadas as pedras do convento, e, por extensão, como eram transportadas as cargas na Cidade da Bahia?
Continua Jaboatão:
"[...] era preciso, como ainda hoje se faz, conduzi-las em carretas, às mãos e força de braço as maiores, e as comuns à cabeça de escravos, e servia isto de um grande estorvo e vagar, além do muito gasto para a continuação e presteza da obra [...]." (³) 
Das palavras de Jaboatão se conclui que era à força de escravos que a maior parte do trabalho pesado se realizava, que o sistema persistia em meados do Século XVIII, porquanto afirma "como ainda hoje se faz", e que foi desse modo que se construiu tudo ou quase tudo na primeira capital do Brasil. Tempos difíceis!

(1) Criada para ser a primeira capital do Brasil, foi também a primeira povoação com status de cidade.
(2) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil Segunda Parte. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1859, p. 59.
(3) Ibid.


quinta-feira, 16 de julho de 2020

Félix: liberto, governador da Judeia, cruel, corrupto

Em Roma, ex-escravos eram chamados "libertos", ainda que o mesmo nome fosse dado, eventualmente, a filhos de ex-escravos. Libertos podiam se tornar muito ricos, e alguns até atingiram postos importantes no governo. Foi o caso de Félix, um liberto do imperador Cláudio.
Assim, somos conduzidos a um aspecto significativo da escravidão em Roma, onde cativos não eram, necessariamente, pessoas destituídas de instrução, entregues sempre a trabalhos brutais. Sim, isso também acontecia, mas havia exceções e elas não eram raras. Ao contrário: gregos derrotados em combate se tornaram, mesmo escravizados, mestres dos meninos romanos, fazendo com que a língua e cultura gregas viessem a ser atributos muito valorizados entre a elite senatorial. Calcule-se, portanto, a influência que exerceram. Muitos deles foram, depois de algum tempo, libertados, mas, em Roma, um liberto tinha ainda certas obrigações para com seu antigo proprietário.
Isto posto, voltemos a falar de Félix, o liberto de Cláudio. No dizer de Suetônio (¹), o imperador tinha tanta afeição a ele, que lhe concedeu autoridade sobre unidades militares e, como se fora pouco, fez dele o governador da Judeia. Tácito, por sua vez, chegou a dizer que Félix, nesse posto, "entendia poder fazer, impunemente, qualquer malefício" (²). Mas por que alguém iria querer deixar Roma para assumir o mando em uma província distante?
Pode-se falar em pilhagem, extorsão, malversação de fundos - para as províncias exploradas não havia muita diferença prática - o fato é que a possibilidade de enriquecimento tornava atraente o cargo de governador, a despeito do desconforto causado pelo deslocamento e pela necessidade de sufocar revoltas entre a população pouco ou nada satisfeita com o domínio de Roma. Félix, o liberto de Cláudio, foi apenas mais um dentre os muitos corruptos que exerceram algum cargo no governo de províncias do Império.

(1) De vita Caesarum, Livro V.
(2) Annales, Livro XII.


terça-feira, 14 de julho de 2020

Invenções curiosas

O começo do Século XX foi marcado por muito entusiasmo com novas invenções. A maioria delas vinha de países distantes, mas logo encontrava adeptos no Brasil, graças às promessas de que tornariam a vida mais prática e confortável. A expansão das redes de energia elétrica para residências favoreceu, até certo ponto, o comércio de alguns equipamentos, embora nem tudo o que aparecia precisasse ser ligado a uma tomada para funcionar. 
Com o passar do tempo, algumas dessas invenções se mostraram um êxito retumbante, passageiro, em alguns casos, mas duradouro, em outros, de modo que seus sucessores andam por aí até hoje. Que dizer, no entanto, de certas invenções que as publicações da época anunciavam, e que hoje nos servem para fazer rir? Para a diversão de vocês, leitores, selecionei algumas dessa espécie. Vejam e digam se gostariam de ter em casa uma delas...

Esticadores de calças (¹)


A utilidade desse equipamento estava ligada, provavelmente, aos tecidos da época, muito mais "amassáveis" que os de hoje.

Palmilhas elétricas (²)


Quem tinha algum desconforto nos pés podia ser tentado a comprar...

Porta-livros (³)


Não faço ideia de como esta engenhoca funcionava. Se alguém souber, fará um grande favor em deixar uma explicação.

Cilindro de chocolate para fonógrafo (⁴)


Só faltava isto! Alguém devia estar brincando com a credulidade alheia. É certo que chocolates em formatos variados, desses que são bons para presentear quem tem hobbies - em forma de instrumentos musicais, artigos esportivos, escudos de equipes de futebol - podem ser encontrados em lojas especializadas. Mas um cilindro comestível para fonógrafo? A música nem importaria muito, concordam?

(1) ECHO PHONOGRAPHICO, ano III, nº 22, janeiro de 1904, p. 4.
(2) Ibid., ano III, nº 35, janeiro de 1905.
(3) Ibid.
(4) Ibid., ano III, nº 22, janeiro de 1904, p. 5. Todas as imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.


quinta-feira, 9 de julho de 2020

A praça do mercado público de Tenochtitlán

Os primeiros europeus, parte do bando de Hernán Cortés, que foram à praça do comércio de Tenochtitlán, a capital asteca, ficaram deslumbrados com o que viram. Reinava ali a maior ordem e limpeza, e vasto mercado público atestava o poderio econômico, bem como o desenvolvimento técnico notável, de uma civilização que, não obstante, estava prestes a naufragar, ante a força e astúcia de invasores.
É certo que a visita dos europeus se fez sob olhares atentos de oficiais astecas, mais que desconfiados das intenções dos "hóspedes". Contudo, Bernal Díaz del Castillo, um soldado jovem naquela ocasião, que, muitos anos depois, decidiu pôr no papel suas recordações desses acontecimentos notáveis (para bem e para mal), guardava vívida memória do que havia visto, e escreveu: "[...] quando chegamos à grande praça, que se diz o Tatelulco (¹), como ainda não a havíamos visto, ficamos admirados da multidão de gente e de mercadorias que nela havia, e da grande organização que em tudo tinham [...]; cada tipo de mercadoria tinha seu lugar marcado" (²).
Os homens de Cortés arregalavam os olhos, e mal podiam conter o espanto. Mais de um deve ter tido ímpeto de se lançar sobre as mercadorias à venda. Acompanhemos Bernal Díaz, que, não por acaso, começou a lista de artigos disponíveis por... Ouro, é claro:
"[...] Comecemos pelos mercadores de ouro, prata e pedras preciosas, plumas, mantas [..], escravos e escravas; digo que eram tantos os que estavam à venda naquela grande praça, como são os negros de Guiné que trazem os portugueses, e estavam atados a umas varas longas e com colares no pescoço para que não fugissem, mas outros andavam soltos." (²)
Não era tudo: 
"Em seguida estavam outros mercadores, que vendiam roupas mais simples e algodão, além de outras coisas de fio torcido, e vendedores de cacau, e desta maneira estavam quantos gêneros de mercadoria há em toda a Nova Espanha, ordenadamente, de modo semelhante ao que há em minha terra, que é Medina del Campo, onde se fazem feiras, que em cada rua estão as mercadorias distribuídas por tipo, e assim estavam na grande praça [...]." (²)
Bernal Díaz notou, também, vendedores de peles de animais, alimentos diversos, objetos de cerâmica, madeira, sal, facas de pedra, machados de vários metais e muitos outros objetos. Não havia tempo para observar tudo de uma vez: "[...] a grande praça estava cheia de gente, era cercada de portais, e em um único dia não seria possível ver tudo o que havia [...]." (²)
Talvez os espanhóis ainda não soubessem, mas mercadores, que, por dever de ofício, viajavam de uma parte a outra do Império Asteca, eram frequentemente recrutados para espionagem. Quem mais poderia bisbilhotar sem levantar suspeitas? Tanta prosperidade, porém, tinha os dias contados. Haveria, é certo, um acervo de peripécias à frente, mas, auxiliados por povos indígenas oprimidos, espanhóis derrotariam os astecas e seus aliados. Um império desabava, tornando em escombros sua cultura, visão de mundo, crenças religiosas, estrutura política e econômica. Como sempre acontece, outro mundo estava prestes a surgir, amalgamando elementos antigos àqueles que traziam os europeus.

(1) Tlatelolco.
(2) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. Todos os trechos dessa obra aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 7 de julho de 2020

Um réptil no jantar de alguns bandeirantes paulistas

Nem as cobras escapavam de virar refeição, quando faltava aos bandeirantes comida melhor


Em suas empreitadas de apresamento de indígenas, bandeirantes paulistas levavam uma provisão de farinha de mandioca e de milho, feijão e alguns outros alimentos que se conservassem bem por algum tempo. Além disso, como não eram nem veganos e nem vegetarianos, comiam quanta caça lhes caísse nas unhas. Frutas silvestres, palmito e, em circunstâncias de extrema penúria, até raízes, eram mastigados para acalmar o estômago.
Aqueles dentre os sertanistas que tomavam o rumo das missões jesuíticas de Guairá, pretendendo capturar índios já catequizados e instruídos em um ofício, podiam contar, para alimentação, com fartura de pinhões, que encontravam pelo caminho. Disse Simão de Vasconcelos, jesuíta e escritor do Século XVII, em Vida do Padre João de Almeida, ao tratar das sementes da Araucaria angustifolia:
"[...] É comum mantimento dos bárbaros (¹) e de exércitos inteiros de índios e brancos, que hoje talam aquelas campanhas cada dia, a fazer guerra ao gentio, que habita junto ao Paraguai, terra dos castelhanos, e detendo-se os tais exércitos anos inteiros por estes sertões, bastam só os pinhões para sustento deles. É mantimento doce mais que castanha de Europa, e come-se da mesma maneira que esta, ou cru, ou assado ou cozido. [...]." (²)
Cabe explicar que "exércitos", neste caso, era o modo de Simão de Vasconcelos indicar bandos de homens armados que iam ao sertão, alguns por ordem de administradores coloniais, partindo do "lado espanhol", supostamente para "pacificar" indígenas, mas a maioria formada por gente que saía de São Paulo, e, em um e outro caso, para efeitos práticos, o objetivo era o mesmo: escravizar quantos ameríndios fossem capazes de capturar.
Tentem agora, leitores, usar a imaginação para pintar, mentalmente, a cena: bandeirantes e indígenas que os acompanham, já cansados de um longo dia de caminhada, procuram um lugar conveniente para passar a noite. Aí, depois de armadas as redes, fazem fogo e põem a cozinhar o feijão, que servirá, com a farinha, para a refeição da noite e para o dia seguinte. Alguns, tentando algo mais para o jantar, vão à caça. Coloquem na cena, agora, estas palavras, ainda de Simão de Vasconcelos, em referência às cobras que havia nos sertões:
"[...] se criam cobras tão monstruosas em grandeza, que se conta por certo que da carne de uma só delas, comeu um exército inteiro, e não parece grande o espanto aos que sabem a disforme grandeza daquelas [...] a que chamam jiboias vulgarmente." (³)
Bem, se fosse, não uma jiboia, mas uma sucuri... Ou se o tal exército não fosse muito numeroso... Simão de Vasconcelos talvez quisesse provocar espanto em seus leitores que viviam no Velho Mundo. Uma coisa é certa, porém: não parecia absurdo que sertanistas andassem pelo mato a devorar cobras, se não houvesse nada mais interessante para o jantar.


Jiboia vista em um córrego no interior do Estado de São Paulo

(1) Por "bárbaros", Simão de Vasconcelos fazia referência aos indígenas da região.
(2) VASCONCELOS, Simão de S. J. Vida do Padre João de Almeida. Lisboa: Oficina Craesbeeckiana, 1658, p. 54.
(3) Ibid., p. 55.


quinta-feira, 2 de julho de 2020

Danos causados pelas guerras na Antiguidade

Façam um esforço de imaginação, leitores, e tratem de pensar que estão assistindo a um desfile triunfal na Antiguidade. O lugar não importa: pode ser no Egito, na Nínive dos assírios, na Babilônia, talvez em Roma, porque, nesse sentido, foi mais famosa. O que vocês veriam ao redor?
Os triunfos, ou desfiles militares de comandantes vitoriosos e seus soldados, estavam longe de ser procissões solenes, ainda que sempre incluíssem um aspecto religioso, e não de pouca importância. Quem assistia tinha licença não só para aplaudir os vencedores e aclamar líderes políticos e militares, como para zombar à vontade dos inimigos derrotados. Uma euforia perversa tomava conta das multidões.
No entanto... Que dizer dos sentimentos de parentes e amigos daqueles que, mesmo lutando do lado vitorioso, haviam morrido em combate? Será que alguém se lembraria deles, em meio às comemorações?
Tenho mais perguntas. Quantas terras não eram devastadas devido às guerras, tanto pelos que se defendiam, para não facilitar o trabalho dos invasores, como pelos que invadiam, para nada deixar aos inimigos que eventualmente sobrevivessem? Recordem-se, leitores, de que grandes desmatamentos, e por motivos nem sempre muito nobres, não são coisa apenas de nosso tempo. Vejam, abaixo, o que mostra um relevo assírio, velhinho de milênios:

Fragmento de um relevo assírio em que soldados aparecem derrubando árvores (*)
Só mais um tópico interrogativo, para não cansar quem lê: quanto da produção cultural da humanidade não terá se perdido, em bibliotecas e templos destruídos por exércitos invasores, para quem o fogo era a melhor ferramenta de conquista? Quanto saber penosamente acumulado não terá virado, literalmente, pó e cinza, para prejuízo das gerações subsequentes? Vocês, leitores deste blog, são pessoas instruídas, e não terão dificuldade em considerar ocasiões em que um povo cultural e/ou cientificamente avançado foi vencido, na guerra, por outro mais forte apenas nas armas. Não são poucos os casos em que um triunfo militar foi seguido por anos e, até, séculos de declínio nas artes e na ciência. Não, a marcha da humanidade não tem sido uma ascensão contínua. Ao contrário, ao contrário...
Para ficar claro: isto não é um protesto pacifista.

(*) LAYARD, Austen Henry. The Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.