quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Com que frequência os escravos mudavam de roupa

Às vezes subestimamos a liberdade. Nem percebemos que esse bendito direito de fazer o que nos dá na telha (com algumas restrições, é claro), nem sempre existiu e, mesmo hoje, não é compartilhado por toda a humanidade. 
Escrava voltando da roça (¹)
O indivíduo que vivia na condição de escravo em uma fazenda no Brasil tinha a sua rotina diária estritamente regulada pelo proprietário e pelos comandos do feitor. Havia hora para acordar, para ir em fila ao trabalho, para as magras refeições, para voltar à sede da fazenda, para os trabalhos da noite, para se recolher à senzala (ainda que, lá dentro, nas habitações coletivas, a conversa, contrariado as regras, seguisse por várias horas). O controle era quase absoluto.
É verdade que todo senhor devia conceder descanso aos escravos aos domingos e feriados religiosos, mas é também verdade que nem todos os senhores assim procediam, e há registros de queixas amargas dos escravos que eram obrigados a trabalhar continuamente, em particular nos tempos coloniais. Muitos proprietários tinham verdadeira obsessão em impedir que os seus cativos tivessem oportunidades para encontros com escravos de outras fazendas, receando que tramassem alguma revolta. 
Os "regulamentos" para controlar a vida dos escravos iam ao ponto de determinar quando lhes seria permitido ou imposta a obrigação de mudar de roupa. Escreveu o segundo barão de Paty do Alferes:
"No domingo de manhã, deve o escravo vestir roupa lavada, e a suja deve na segunda-feira ir para a barrela  e enxaguar-se na terça. Quando por motivo de chuva molharem-se, devem os escravos mudar logo de fato, e estender mesmo na sua senzala o que se molhou, para o tornarem a vestir no dia seguinte, quando saírem para o serviço, pondo de reserva a outra muda." (²)
Tentem lembrar-se disso, leitores, quando mudarem de roupa meia dúzia de vezes em um só dia...
Há mais. A situação de terem dois conjuntos de roupas, descrita por Lacerda Werneck, era quase um luxo, coisa dos tempos imperiais, quando os costumes, bem ou mal, já andavam algo mais decentes. Com o produto das pequenas roças que plantavam para si mesmos, havia escravos que compravam alguma roupa extra, que podiam usar nos feriados e cerimônias da Igreja. Mas, se voltarmos ao Período Colonial, será fácil encontrar autores que não vacilavam em afirmar que os escravos andavam seminus, cobertos por verdadeiros andrajos, em particular quando trabalhavam em engenhos de açúcar. Não poucos religiosos eram enfáticos em lembrar aos senhores que as penas do inferno lhes eram devidamente asseguradas por não vestirem e alimentarem os escravos com o mínimo da caridade que se esperava de cristãos professos.
A situação dos escravos urbanos, quanto ao vestuário, também não era das melhores, pelo menos até o começo do Século XIX. Há desenhos e aquarelas de Thomas Ender, por exemplo, nos quais escravas podem ser vistas precariamente vestidas. No entanto, o estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro, tanto no Período Joanino como após a Independência, acarretou uma gradual mudança de costumes, de modo que os escravos que viviam na capital do Império principiaram a aparecer em público trajados com alguma decência. Como muitas vezes acompanhavam seus senhores nas idas e vindas pela cidade, tomavam-se providências para que os cativos usassem roupas apresentáveis. Esses escravos eram, também, menos estritamente controlados quanto a horários. Percebe-se que a gradual urbanização, mesmo não sendo o fator decisivo, acabou por contribuir para que a ordem escravista fosse desmantelada.

Escravos urbanos, usando libré, conduzem sua senhora à missa
em uma cadeirinha de arruar (³)

(1) RIBEYROLLES, Charles. Brazil Pittoresco. Paris: Lemercier, 1861. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, pp. 39 e 40.
(3) __________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Algodão para a roupa dos escravos

Grupo de escravas, de acordo com Thomas Ender (¹)

Nos tempos coloniais, eram frequentes as reprimendas do clero contra senhores que sequer tinham a preocupação de prover vestuário decente para seus escravos. Aos poucos, ao menos nesse aspecto, práticas mais civilizadas foram introduzidas, embora seja fácil perceber, pelas obras de desenhistas da primeira metade do Século XIX, que, mesmo no Rio de Janeiro, capital do Brasil, havia escravos verdadeiramente maltrapilhos percorrendo as ruas.
Na opinião do segundo barão de Paty do Alferes, todo fazendeiro deveria, em suas terras, cultivar algodão, ainda que apenas à beira dos caminhos, "embora essa não seja a cultura especial do agricultor, pois além de muitos outros usos domésticos e constantes, o algodão fiado fornece a melhor linha para coser a grosseira roupa dos escravos." (²)
Um pouco depois da Independência, um militar alemão de nome C. Schlichthorst, que esteve Brasil contratado como oficial do Segundo Batalhão de Granadeiros de Primeira Linha, observou que na capital do Império as mulheres de condição livre tendiam a usar, ao menos em público, roupas pretas ou coloridas, porém jamais peças brancas, e logo explicaria o motivo:
"As senhoras e moças vestem-se de preto ou de cores variegadas, cada qual seguindo, quanto a cores, seu gosto pessoal e não os rigores da moda. [...].
Em casa e nos passeios, senhoras e moças trazem vestidos coloridos de casa. Nunca brancos, pois esta cor é reservada ao trajar dos negros." (³)
Se é verdade que os registros de Schlichthorst eram às vezes inexatos (quer por um lapso de memória ou por falta de informação), neste caso ele estava correto, ao menos em parte: escravos, é fato, não tinham, necessariamente, que vestir roupas brancas, mas havia entre pessoas livres algum preconceito quanto a usar traje branco, que se imaginava uma característica dos cativos, já que muitas peças de vestuário usadas por escravos nos tempos do Império eram feitas com tecido rústico de algodão cru, embora camisas de tecido listrado, para os homens, e saias e turbantes coloridos, no caso das mulheres, não fossem incomuns. O caso é que, malgrado a pouca ou nenhuma delicadeza do tecido, não podemos deixar de notar que, em termos de cor, o vestuário dos escravos, com a predominância do branco, acabava sendo mais adequado ao clima de grande parte do Brasil do que eram as roupas usadas por pessoas de condição livre. No Rio de Janeiro, ao longo do Século XIX e mesmo mais tarde, a casimira inglesa, sempre em circunspectas cores escuras, tinha a preferência para a confecção do vestuário masculino usual entre a gente que se supunha de alguma importância. Imagine-se o que é que tal coisa significava sob um típico sol de verão!...
Mas voltemos ao vestuário dos escravos. 
Em algumas fazendas, o tecido de algodão era feito a partir da produção local. Porém, como muitos fazendeiros reservavam quase a totalidade de suas terras para culturas como café ou cana-de-açúcar, além da produção de gêneros de subsistência, havia espaço, no mercado, para quem se dispunha a fornecer o tecido pronto e na metragem desejada. Um anúncio de uma fábrica de tecidos de algodão do município de Magé, que apareceu no Almanque Laemmert de 1853, trazia a seguinte explicação:
"Esta fábrica [...] é de cardar, fiar, torcer e tecer algodão, tocada por água [...]. Fabrica panos grossos superiores aos de Minas, para roupas de escravos e sacaria [...]." (⁴)
Para maior comodidade dos interessados em compras, informava também ter depósito na capital:
"O depósito destes algodões é no Rio de Janeiro, Rua do Hospício, Casa de Samuel Southam &; C., únicos agentes, Rua dos Pescadores, 26." (⁵)

(1) O original pertence ao acervo da BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. 
Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, p. 22.
(3) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1924 - 1926). Brasília: Senado Federal: 2000, 92.
(4) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1853. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1853.
(5) Ibid.


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sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Um banquete de Natal fora do comum

Era o ano de 1788, e o astrônomo Francisco José de Lacerda e Almeida, a serviço de Sua Majestade, o Rei de Portugal, andava a correr terras e águas do Brasil, com o propósito de demarcar fronteiras, traçar mapas e reconhecer territórios. 
A vida dos que compunham a sua expedição não tinha facilidades. Horas e horas dentro de canoas, noites sob chuva (de água, às vezes; de mosquitos, quase sempre). Sol escaldante durante as horas dos dias claros, trovoadas, cachoeiras perigosas, até mesmo falta de comida e de água potável. Doenças desconhecidas e letais, picadas de cobras e aranhas. Tinha-se o caldo de cultura perfeito para os mais terríveis pesadelos da vida real.
Chegou dezembro e, com ele, o Natal. A expedição percorria o rio Tietê, fazendo viagem inversa à dos monçoeiros que seguiam para Cuiabá. Em seu diário, no dia 26 de dezembro, Lacerda escreveu:
"Neste dia naveguei 4 1/2 léguas por me demorar 5 1/2 horas em matar e esperar que surgisse do fundo do rio uma anta, que no fim de 4 horas apareceu com grande alegria de todos, em que eu também tive parte, por ter com que fazer o meu banquete do post diem do Nascimento do Nosso Redentor [...]."
Passou, em seguida, a explicar em que consistiu o banquete do dia de Natal propriamente dito:
"[...] O de ontem consistiu no panem nostrum quotidianum, que é feijão capaz ainda de ter filhos e netos, e em bugio cozido, e em bugio com arroz, e em bugio moqueado (*), cujo papo comi por ser a parte mais saborosa."
Pobres bugios... A despeito dos obstáculos que vinha enfrentando, Lacerda preservava algum senso de humor. 
Como que mudando de assunto, mas retornando ao princípio, ainda observou:
"Todos os rios desde o Coxim inclusive, entrando também o Tietê, têm muita abundância de antas, chamadas ruças, que são da grandeza de uma mediana vaca, e no gosto muito melhores."
Creio que ninguém terá dificuldade em compreender as preferências gastronômicas do astrônomo Lacerda, à luz, afinal de contas, da escassez que reinava nas expedições do Século XVIII que iam ao interior do Brasil. Essas viagens eram tão perigosas que aqueles que delas saíam vivos bem podiam olhar para si mesmos como personagens de muita sorte. 

(*) Tipo de churrasco à moda indígena.


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quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

A celebração do Natal por missionários jesuítas e indígenas catequizados em São Paulo de Piratininga

Os jesuítas, a despeito de métodos inovadores que eventualmente empregavam na catequese, procuravam conformar os catecúmenos às práticas da Igreja quanto ao calendário litúrgico e à administração dos sacramentos. É o que se nota em uma carta escrita em São Paulo de Piratininga por José de Anchieta, em fins de dezembro de 1556, na qual descrevia práticas associadas à celebração do Natal:
"Antes do dia do Nascimento do Senhor procuramos que [os indígenas] se confessassem, o qual fizeram muitas mulheres e alguns homens, os quais diligentemente examinamos nas coisas da fé, e o que principalmente pretendemos é que saibam o que toca aos artigos da fé, scilicet ao conhecimento da Santíssima Trindade e aos mistérios da vida de Cristo que a Igreja celebra, e que saibam, quando lhes for perguntado, dar conta destas coisas [...]." (¹)
Anchieta diria ainda:
"Neste mesmo tempo do Nascimento do Senhor se confessaram e comungaram muitas mulheres mestiças com muita devoção, o qual em outros tempos muitas vezes fazem." (²)
O que se pode observar é que a catequese não ficava restrita aos indígenas, mas tinha também como objetivo, tanto quanto fosse possível, alcançar o restante da população da aldeia de Piratininga, como se vê pela referência a "mulheres mestiças", ainda que nem sempre os colonizadores estivessem dispostos a dar atenção aos padres da Companhia (³). Em todo caso, era mais frequente que, dentre a população livre, as mulheres se mostrassem mais devotas, embora os homens, até por obrigação social, não deixassem de comparecer aos ofícios religiosos em ocasiões de maior importância. Também quanto à menção de Anchieta relativamente às "mulheres mestiças", será útil recordar que eram poucas, ou melhor, pouquíssimas as mulheres que, nesse tempo, vinham do Reino para viver no Brasil, de modo que não era incomum que colonos portugueses em Piratininga se casassem com índias, nem sempre sob as leis da Igreja. Desses casamentos nasciam os chamados mamelucos, que, nos primeiros séculos de São Paulo, viriam a ser a maioria da população.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 93.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Op. cit., p. 94.
(3) Não eram incomuns os atritos entre padres e colonizadores, tendo por principal razão as objeções que os jesuítas faziam à escravização de indígenas.


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quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Natal muito triste para um jumentinho

Conta o padre Simão de Vasconcelos em sua Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, que, nos primeiros e difíceis tempos do Colégio dos jesuítas na Bahia, viveu nele um irmão de nome Domingos, mais conhecido entre os religiosos pelo apelido de Pecorela (¹). Segundo escreveu Simão de Vasconcelos, era esse Domingos Pecorela um homem de pouca instrução, mas muito devoto e extremamente dedicado aos afazeres relacionados à manutenção diária do Colégio:
"Cinco anos serviu este servo fiel à Companhia, e em todos eles se teve sempre por um escravo comprado por dinheiro para o serviço da casa, sem mais querer, nem mais pretender, que o de um servo leal. Entre os mais ofícios da obediência, o principal era ter cuidado em um jumentinho, e ir com ele a todas as partes onde era mandado em busca do sustento da casa, que era pobríssima." (²)
É fato que Simão de Vasconcelos fez sua Crônica mais de um século depois da morte do irmão Domingos, mas usava consultar registros escritos e relatos daqueles que tinham algo a contar. Além disso, não constitui grande dificuldade imaginar quanto era complicado fazer provisões para o sustento dos que viviam no Colégio quando a colonização na Bahia estava apenas começando. Assim, o relato segue explicando que, na falta de comida, Domingos Pecorela era mandado às aldeias de índios amigos, para pedir alguma doação:
"Quando faltava de comer na Casa (que era muitas vezes), não desmaiava Domingos Pecorela: ornava seu jumento, ia-se às aldeias dos índios e entrava com eles com tal graça, falando-lhes pela própria língua, em que era perito, que estes lhe faziam a carga do mais estimado de seus haveres, farinha, caça do mato, batatas, bananas, carás, que é o que possui esta gente quando mais rica, e era naquele tempo o comer de mais estima dos padres." (³)
Pecorela, sempre em companhia do fiel companheiro de quatro patas, ia também buscar lenha e água para o Colégio:
"Bastava significar-lhe o Superior: "Irmão Domingos, ide à lenha para a cozinha", e sem mais demora, a pé descalço [...], aparelhava seu jumentinho e ia ao mato a carregar de lenha, e da mesma maneira à fonte e carregar de água." (⁴)
Ora, o que haveria de incomum nesta história? No Século XVI era perfeitamente normal que animais de carga fossem empregados para o transporte de água (não havia encanamento) e de lenha (principalmente para manter aceso o fogão); por outro lado, não é surpreendente que os padres pedissem ajuda aos indígenas quando lhes faltava o necessário à subsistência. De qualquer modo, dirão os leitores, alguém no Colégio teria que cuidar do jumento...
É que Domingos Pecorela era mesmo muito afeiçoado ao animal que estava sob sua responsabilidade:
"Era tal a humildade simples e simplicidade humilde deste bom irmão, que chegava a ter-se por obrigado a servir ao próprio jumento; assim curava ele, assim se compadecia de seu trabalho, como se fora criatura racional; chegava a descuidar de si por cuidar do asninho." (⁵)
Exagero? O padre Simão de Vasconcelos estava disposto a provar que não:
"Pareceu-lhe [a Domingos Pecorela] algumas vezes que vinha carregado sobre suas forças; e logo compadecido tirou parte da carga das costas do jumento, e pôs às suas, e caminharam ambos carregados; e aos que lhe perguntavam por que tomava aquele trabalho, respondia cheio de compaixão: Porque esta pobre criatura não pôde mais, e que se diria de mim, se viesse ela arrebentando com a carga, e o irmão Domingos folgando?" (⁶)
Pecorela faleceu no Colégio da Bahia em 24 de dezembro de 1554, ou seja, na véspera do Natal. Quanto ao jumento, não se têm dele mais notícias, nem sabemos se, acaso, foi colocado, na mesma noite, em algum presépio vivo. Mas deve ter sentido muito a perda de seu melhor amigo.

(1) Provavelmente faziam um trocadilho com o termo italiano Pecorella, ou seja, ovelha.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 105.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) Ibid., pp. 105 e 106.
(6) Ibid., p. 106.


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segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Preocupações ambientais: do "Brasil holandês" à época da Independência

Embora não haja muito rigor técnico na expressão, é comum que o período de permanência de holandeses no Nordeste brasileiro entre 1630 e 1654 seja chamado de "Brasil holandês". Esse tempo teve início sob a União Ibérica (¹) e a rivalidade entre a Espanha e os Países Baixos explica, ao menos em parte, a tentativa de estabelecimento de uma colônia holandesa nas ricas áreas de produção açucareira do Nordeste.
É fato que todo o período colonial, independente de quem estivesse no comando, foi assinalado por uma exploração dos recursos naturais disponíveis, com pouca preocupação quanto às questões de preservação ambiental. Como regra, esse não era um tema que naquela época despertasse muito interesse, mesmo porque o objetivo principal era sempre extrair ou produzir aquilo que pudesse ser vendido na Europa com altos lucros.
Apesar disso, durante os anos de presença holandesa, vez por outra houve uma lembrança de que os recursos naturais não eram ilimitados, daí a ocorrência de recomendações no sentido de preservá-los. Dois casos serão suficientes para demonstração desse fato, ambos relatados por Jean Nieuhof, em sua Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil. Lembremo-nos de que esse autor viveu em Pernambuco entre os anos 1640 e 1649.
Referindo-se à Ilha de Itamaracá, Nieuhof observou que "em certa época, foi ela grandemente infestada por animais selvagens que depredaram os canaviais. Foi então que Pieter Bas, diretor da Capitania de Itamaracá, consultou o Conde Maurício e o Grande Conselho, em 1647, sobre se seria melhor empreitar a destruição desses animais daninhos ou dar-lhes caça a fim de servir de alimento às guarnições." (²)
Imaginam os leitores que, por consequência, um festival de caça foi organizado, não é? Nada disso. Explicou Nieuhof:
"O Conselho, entretanto, rejeitou ambas as alternativas e limitou-se a aconselhar o povo a que não sacrificasse inutilmente os animais, abatendo apenas os que invadissem as plantações, pois era do interesse da Companhia preservá-los para uma eventual necessidade. Os canaviais poderiam ser protegidos por meio de cercas de pau a pique, evitando assim que fossem danificados." (³)
Lembrando, de passagem, que essa prática tão sábia bem podia valer até hoje, vamos ao outro caso de que temos notícia, em virtude de um registro pelo já mencionado Jean Nieuhof. Dessa vez o alvo das preocupações conservacionistas foi o célebre pau-brasil, que era, então, extraído em proporções absurdas:
"Quando os holandeses conquistaram parte do Brasil, encontraram grande quantidade dessa madeira já preparada e pronta para ser utilizada. Essas partidas foram, porém, pelos portugueses, vendidas à Companhia holandesa. Desde então tanto portugueses como holandeses passaram a cortar pau-brasil em larga escala, e tal foi a quantidade de madeira exportada em 1646 e 1647, que os membros do Grande Conselho do Brasil Holandês, Srs. Hendrik Hamel, Bullestrate e Kodde, conhecedores dos ruinosos métodos adotados no corte dessa árvore - e que com o correr do tempo poderia acarretar o seu extermínio - fizeram publicar uma proclamação coibindo tais abusos." (⁴)
Neste ponto será bom recordar que, após a saída dos holandeses, tendo Portugal retomado o controle pleno do Brasil, não foram poucas as vezes em que, ao enviar governantes, o monarca luso incluiu, em suas instruções, ordens expressas no sentido de que se evitassem as derrubadas inúteis de matas, de que engenhos não fossem construídos a pouca distância uns dos outros (pois não seria possível que houvesse madeira suficiente para todos), ou mesmo de que se restringisse a captura de baleias no litoral brasileiro, já que estas, antes bastante numerosas, começavam a escassear. 
Tais medidas, no entanto, provaram-se sempre insuficientes. A administração colonial, ainda que eventualmente quisesse executar as ordens, parecia incapaz de fiscalizar seu cumprimento. O resultado disso, sem mais rodeios, foi que, pela época da Independência, já havia muitas regiões do Brasil que não tinham, nem de leve, o aspecto primitivo. Saint-Hilaire, naturalista francês que esteve em São Paulo em 1822, observou:
"A cerca de uma légua de Guaratinguetá, a vegetação dos brejos desaparece completamente, mas é difícil determinar se o que apreciamos é, em toda a parte, resultante do trabalho destruidor dos homens, ou se, em alguns pontos, a paisagem foi sempre tal qual a vemos hoje. Em nenhum trecho deparamos com verdadeiras florestas virgens." (⁵)
Interessante é que o próprio Saint-Hilaire, em um rasgo quase profético, acabaria por assumir que tinha consciência do valor de seu trabalho, ao descrever as paisagens naturais que ainda podiam ser encontradas, antes que chegasse o tempo em que elas não mais existiriam:
"[...] Julgo não ter sido inútil à ciência, fazendo conhecer a topografia botânica das diversas regiões que visitei e cuja vegetação primitiva ainda não desapareceu. Saber-se-á, assim, o que foram essas belas campinas antes de se transformarem nas culturas de milho, de mandioca ou de cana-de-açúcar que um dia as cobrirão; e, talvez, qualquer amante da natureza terá saudade das brilhantes flores dos campos, da majestade das florestas virgens, dos cipós enlaçados em festões pelas árvores e da imponente voz dos desertos." (⁶)
Ah, leitor, em nosso tempo em que já nem são mais os cultivos agrícolas que recobrem muitas das áreas percorridas por Saint-Hilaire, bem podemos avaliar o quanto tinha ele razão. Retorno ao passado? Não é possível, e talvez, sob alguns aspectos, nem seja desejável. Mas é perfeitamente razoável esperar, hoje, um manejo inteligente dos recursos naturais com que este País é favorecido.

(1) 1580 - 1640.
(2) NIEUHOF, Jean. Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil. São Paulo: Livraria Martins, p. 49.
(3) Ibid., pp. 49 e 50.
(4) Ibid., pp. 297 e 298.
(5) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 197.
(6) Ibid., p. 199.


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sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O culto aos imperadores em Roma

Após derrotar os germanos dalém do Reno (que eram comandados por Armínio), os romanos ergueram uma coluna com as armas capturadas, na qual, segundo Tácito (Annales, livro II), lia-se: "DEBELLATIS INTER RHENVM ALBIMQVE NATIONIBVS EXERCITVM TIBERII CAESARIS EA MONIMENTA MARTI ET IOVI ET AVGVSTO SACRAVISSE" ("Tendo dominado os povos entre o Reno e o Elba, o exército de Tibério César consagra este monumento a Marte, Júpiter e Augusto").  (¹)
Vê-se, aqui, em ação, o chamado "culto ao Imperador", neste caso um já falecido, ou seja, Augusto, e que, portanto, passava ser venerado como um deus, segundo as tradições romanas de culto aos antepassados. Nos dias de Nero, todavia, de acordo com o mesmo Tácito, um adulador tentou fazer aprovar no Senado a construção de um templo para o  imperador ainda vivo, ao que o autor dos Annales juntou a observação de que "não se honra um príncipe como um deus enquanto ainda vive entre os homens" (²), ainda que não desconsiderasse a possibilidade de que a tal homenagem fosse um agouro da morte do "Divo Nero" (³).
À medida que o tempo passava, as honras civis e militares prestadas aos imperadores adquiriam, mais e mais, um cunho religioso, e a não adesão de cristãos a essas cerimônias estava entre as causas mais recorrentes para que fossem perseguidos no segundo e terceiro séculos. De acordo com Tertuliano (⁴), o estopim da perseguição nos dias de Sétimo Severo foi a ausência dos cristãos nas festividades decretadas para comemorar o aniversário do imperador. Ora, um raciocínio simples e lógico é que os adeptos da fé cristã não participavam dessas cerimônias porque viam nelas elementos de caráter cultual, e não simples festejos pelo aniversário do governante de Roma. Além disso, o próprio Tertuliano admitia que a recusa dos cristãos em participar das festas foi interpretada como apoio a rebeliões civis ocorridas pouco antes.
Usualmente, esperava-se que cidadãos romanos oferecessem sacrifícios aos deuses em favor do imperador, para que vivesse muito e fizesse Roma sempre maior e mais próspera; dos soldados, exigia-se um juramento de lealdade ao imperador, no qual eram invocadas as divindades tradicionais de Roma como testemunhas e executoras de castigo aos perjuros. A essas práticas os cristãos, que eram monoteístas, não aderiam, segundo explicou Tertuliano:
"Dizem que nós, os cristãos, somos sacrílegos e réus de lesa-majestade, porque não prestamos culto aos deuses, e nem oferecemos sacrifícios em favor do imperador. [...] Não adoramos aos deuses porque estamos convencidos de que os que assim são chamados, não são deuses." (⁵).
Vê-se, afinal, que as honras religiosas prestadas à figura do imperador tinham, em Roma, um aspecto cívico-patriótico, que poderia, mutatis mutandis, ser comparado ao hasteamento da bandeira ou ao cantar do hino nacional em nossos dias, com a diferença de que, ao menos no Ocidente, essas práticas não têm significado religioso (espera-se!). Mas em Roma, não importando se as pessoas ainda acreditavam na existência dos deuses, deixar de honrar divindades e imperadores era incorrer em suspeita de traição à pátria, e quem agia dessa maneira assumia o risco de terríveis consequências.

(1) Os trechos das obras de Tácito e Tertuliano citados nesta postagem são tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(2) Annales, Livro XV.
(3) Honra idêntica foi proposta a Tibério, que a recusou; em Pérgamo, na Ásia Menor, um templo foi edificado em honra de Augusto e da cidade de Roma, quando o imperador ainda vivia. 
(4) Apologia.
(5) Ibid


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quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Religiosos que contrabandeavam diamantes no Brasil Colonial

As autoridades administrativas das regiões mineradoras do Brasil Colonial tinham horror à presença, em áreas sob sua jurisdição, de religiosos "peregrinos", para os quais as Ordenações do Reino traziam instrução enfática de que, como "clérigos revoltosos e travessos", fossem reconduzidos às respectivas Ordens religiosas. 
No vigiadíssimo Distrito Diamantino, onde quase tudo era proibido, o superintendente tinha ordens expressas para fazer sumir de lá todos os frades andarilhos que ousassem aparecer. É que, numa época em que a maioria da população tinha pouca ou nenhuma escolaridade, os frades chamavam para si o papel dar esclarecimentos indesejáveis aos interesses da Coroa, de acordo com o que explicou Joaquim Felício dos Santos nas suas Memórias do Distrito Diamantino:
"O ódio que o governo votava aos frades provinha principalmente de que estes diziam aos povos que os quintos, que eles pagavam, eram tributos e não direitos reais, como o governo se expressava em seus bandos." (¹)
Não obstante a ojeriza aos religiosos, eles acabavam entrando no Distrito Diamantino e - quem diria! - como contrabandistas de diamantes. Veremos o caso de dois deles, citados por Joaquim Felício dos Santos.
O primeiro era um certo padre Plácido, que, entre uma ocupação religiosa e outra, negociava escravos (²), mas que, ao que parece, tinha atividade ainda mais rendosa: "E sendo este padre assaz conhecido neste dito arraial por contrabandista de diamantes..." (³)
O outro era frei Joaquim, que, além de andar envolvido em negócios ilícitos com diamantes, ainda dava razão aos temores da administração colonial, já que recebia em sua casa a gente do Distrito Diamantino que, irritada com os desmandos a que estava submetida, tramava uma rebelião:
"Quotidianamente formavam-se reuniões secretas para deliberar-se sobre os meios mais convenientes a sacudir o jugo, que por tanto tempo pesava sobre nós. Estas reuniões faziam-se na casa denominada do Hospício, na rua do mesmo nome, onde residia um célebre frei Joaquim, cobrador da Terra Santa, homem de grande importância, e afamado contrabandista, pelo que diz a tradição." (⁴)
Parece, leitores, que a vigilância não funcionava conforme esperado, não é mesmo? A severidade dos intendentes, respaldada pelos regulamentos do Regimento Diamantino (o "livro da capa verde") não garantia a produção desejada; os métodos de extração eram antiquados e deficientes, e o sistema de exploração, para benefício exclusivo da Coroa, com o passar dos anos provar-se-ia um enorme fracasso.

(1) SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro Frio. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1868, p. 32.
(2) As Ordenações do Reino proibiam aos religiosos o exercício de atividades comerciais, julgadas incompatíveis com a vida dedicada à Igreja que tinham por obrigação levar, em razão de seus votos. Tem-se, portanto, um exemplo acabado de que ninguém proíbe aquilo que não se faz.
(3) SANTOS, Joaquim Felício dos. Op. Cit., p. 207.
(4) Ibid., p. 251.


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segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Matador de onças


Percorrendo o Brasil Central pouco depois da Independência, o Brigadeiro Cunha Matos (¹) chegou à moradia de um matador de onças. É isso mesmo! O sujeito não apenas matava onças, mas, além disso, ainda conservava as cabeças das felinas como troféus, segundo relatou o militar luso-brasileiro:
"[...] Cheguei ao sítio denominado Fazendinha, pertencente a Adão José da Silva, homem pardo, estropiado pelas onças de que foi o mais famoso matador da Província, e cujos troféus (as cabeças) conserva espetadas em estacas junto à choupana em que habita." (²)
"Estropiado pelas onças" - quem imaginaria outra coisa? Pois vai aqui uma de suas histórias de caçador, à qual o próprio Cunha Matos achava difícil dar crédito, mesmo afirmando que o narrador parecia digno de confiança. Vamos ao caso.
Foi-se o caçador um dia à procura de uns queixadas, encontrou-os, mas ao invés de conseguir abatê-los, foi por eles perseguido, a ponto de ter de subir em uma árvore para se proteger. Os queixadas, porém, não lhe davam trégua, fazendo, embaixo da árvore, o enorme barulho que lhes é característico quando estão em grandes bandos. Então... Segue a narrativa de Cunha Matos:
"[...] Sentiu cair-lhe sobre a cabeça [do caçador] uma coisa líquida como água, e olhando para cima viu uma grande onça acuada, assentada sobre outros braços da mesma árvore. A fortuna permitiu que os porcos depois de inúteis esforços se retirassem, e ele Adão descendo da árvore, matou à espingarda a onça a que estivera tão chegado." (³)
É, como eu disse, leitores, uma história de caçador.

(1) Militar português, aderiu à Independência do Brasil e ocupou cargos importantes no Império.
(2) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 181.
(3) Ibid.


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sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

O primeiro censo realizado em Roma

Sabemos, por informação de Tácito, no Livro XI dos Annales, que no ano 801 da fundação de Roma (ou 48 d.C.), foi realizado um censo, que apontou a existência de seis milhões e novecentos e quarenta e quatro mil cidadãos no Império. 
Ora, a realização de censos era uma prática muito antiga entre os romanos, e, de acordo com Tito Lívio (Ab urbe condita libri), o primeiro deles ocorreu durante o governo de Sérvio Túlio, sexto rei de Roma. Naquele primeiro censo (¹) foram contados cerca de oitenta mil cidadãos romanos militarmente válidos (²). 
É interessante notar que, para os romanos, a contagem dos cidadãos ia muito além de um levantamento de informações que pudessem favorecer projetos militares ou tributários dos governantes. Sabemos que havia, também, um elemento religioso envolvido, na intenção de assegurar o favor dos deuses, tanto para os homens destinados à defesa da cidade como para os que iam à guerra contra inimigos externos. Esse aspecto fica evidente na maneira como foi organizada a cerimônia que assinalou a conclusão do primeiro censo: todos os cidadãos foram reunidos no Campo de Marte, onde teve lugar um ritual de purificação chamado Lustro, no qual foram sacrificados, ao que tudo indica em honra do deus da guerra, um porco, uma ovelha e um touro.

(1) Século VI a.C.
(2) A cidadania estava, então,  vinculada à prestação do serviço militar.


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quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Restrições à liberdade das mulheres no Brasil Colonial

Em muitas famílias de certa importância, residentes na Capitania de São Vicente, as mulheres viviam reclusas. Para elas, até mesmo dentro de casa havia restrições, quando visitas estavam presentes. Duas breves referências na biografia do padre Belchior de Pontes, escrita no Século XVIII pelo também padre Manoel da Fonseca serão, creio, mais do que suficientes para comprovar esse fato. Na primeira, explica-se que, indo o padre Pontes doutrinar escravos (índios "administrados") que viviam nas terras de Amador Bueno (¹), a mulher do fazendeiro assistia à doutrina "da parte de dentro da casa" (²); o mesmo fazia outra paulista, Águeda Pedrosa: "...na verdade Águeda Pedrosa já estava no lugar costumado, e com o mesmo cuidado e recato com que sempre acudia a ouvi-lo, se tinha ocultado." (³)

Mulheres usando mantilha (⁴)
Atribui-se a reclusão de mulheres aos chamados "costumes mouriscos" que vigoravam entre as muitas famílias de origem espanhola que viviam em São Paulo - as gelosias em construções coloniais ainda existentes seriam uma prova disso, assim como o hábito, que então era generalizado, de que "mulheres honestas" apenas aparecessem em público quando cobertas por mantilhas ou biocos, confeccionados, de preferência, em tecidos pesados, sem nenhuma transparência e de cor preta. A explicação, no entanto, não soa muito convincente porque também entre famílias de proprietários de engenhos no Nordeste as mulheres viviam trancafiadas, até mais do que em São Paulo, e lá  não se poderia argumentar com o pretexto de que as famílias senhoriais eram, em grande parte, originárias da Espanha. Dizia Antonil, no começo do Século XVIII, ao tratar da recepção aos hóspedes nos engenhos:
"Ter casa separada para os hóspedes é grande acerto, porque melhor se recebem e com menor estorvo da família, e sem prejuízo do recolhimento que hão de guardar as mulheres, e as filhas, e as moças de serviço interior, ocupadas no aparelho do jantar e da ceia." (⁵)
Havia até quem aconselhasse que, para as casadas, era preferível evitar mesmo a proximidade com religiosos e parentes do sexo masculino:
"Fujam de todo o trato e conversações de homens, e de lhes aparecer, ainda que sejam parentes [...].
Fujam, quanto puderem, de ter trato ou familiaridade com pessoas eclesiásticas, porque suposto sejam comparadas com os anjos, tem sucedido muitas vezes pelo caminho da virtude entrarem na estrada da maldade. [...] Vejam que o demônio é como o ladrão: este furta nas estradas, aquele na ocasião." (⁶)
Ora, apesar de tantas restrições à liberdade das mulheres, há documentos relativos ao Período Colonial que comprovam a existência de senhoras que mandavam e desmandavam em suas propriedades, tomavam decisões pelos filhos, faziam testamento e, ainda que usando a famosa mantilha ou bioco, não hesitavam em aparecer em público sempre que necessário, fosse para ir à igreja, ou fosse porque tinham negócios a tratar junto à administração da localidade em que residiam. 
Que mulheres eram essas? Não trato aqui das condenadas a degredo que, contra a vontade, vinham ao Brasil, nem daquelas que, com família ou sem ela, viviam entre a população de baixo estrato social nas povoações ou em áreas rurais.  Falo, sim, das paulistas casadas com os bandeirantes, homens que tinham ido ao sertão para capturar índios ou procurar ouro, e ninguém sabia por onde andavam, e se é que andavam. Na ausência dos maridos, elas acabavam tendo que assumir o comando do trabalho nas fazendas e a administração dos negócios familiares, a não ser que tivessem parentes adultos do sexo masculino que resolvessem incumbir-se desses encargos. Elas iam às igrejas rezar pelos maridos ausentes, e isso mesmo faziam em casa, todos os dias, diante dos oratórios que certamente não faltavam. Não são poucos os supostos milagres, atribuídos a religiosos com fama de santidade, que teriam, a pedido de alguma mulher, previsto a volta deste ou daquele sertanista do qual há muito não havia notícia. Por tudo isso, ou apesar disso, para que os leitores reflitam, proponho a seguinte questão: Não seriam as andanças dos bandeirantes pelo interior do Brasil uma verdadeira libertação para suas mulheres? 

(1) Sim, é o da "Aclamação".
(2) FONSECA, Manoel da, S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752, p. 111. Reedição da Cia. Melhoramentos de S. Paulo.
(3) Ibid., p. 163.
(4) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 31.
(6) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 327.


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segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Escravos domésticos

Portuguesa com escravos no Rio de Janeiro do Período Joanino,
de acordo com desenho de Thomas Ender (¹)

Fala-se muito sobre os escravizados que trabalhavam nos engenhos de cana-de-açúcar, na mineração ou nas fazendas de café. Mas havia, também, escravos que trabalhavam em casas de famílias das áreas urbanas, e estes tinham, naturalmente, um modo de vida algo diverso em relação àqueles que labutavam em atividades agrícolas ou extrativistas.
Pessoas abastadas adoravam ostentar uma grande escravatura - era um indício externo de riqueza e, por vezes, também de poder. O número de escravos variava, então, com as dimensões da casa e a fortuna dos moradores. C. Schlichthorst, militar alemão contratado como oficial do Segundo Batalhão de Granadeiros ao tempo de D. Pedro I, comparou o costume brasileiro de ter escravos domésticos ao dos europeus que ostentavam vasta criadagem, e observou que, como regra, famílias ricas urbanas (²) tinham entre dez e vinte escravos:
"É uma espécie de vaidade fazer-se servir por muitos, luxo que, como todo exagero, acaba se tornando incômodo. Nas casas ricas, empregam-se geralmente de dez a vinte. [...] Lisonjeia o orgulho do brasileiro ser acompanhado à missa ou aos passeios por longa filha de escravos e escravas, cuja ociosidade como que até causa prazer aos senhores. A mesma coisa ocorre não raras vezes na Europa." (³)
É difícil determinar o quanto trabalhavam os escravos domésticos, e se havia, de fato, alguma ociosidade entre eles, ao menos nos casos de famílias que tinham mais escravos do que o trabalho requeria. Sabemos, porém, que os escravos eram ocupados em uma grande variedade de tarefas: limpar a casa, cozinhar, costurar, bordar, amamentar bebês, cuidar de crianças, conduzir meninos à escola, cuidar de cavalos, conduzir pelas ruas o tílburi ou sege de propriedade da família, buscar água, descartar lixo e outros dejetos, cuidar dos jardins, levar recados, fazer compras, lavar e passar a roupa, carregar cadeirinhas de arruar ou liteiras - a lista poderia ir mais além, mas isto já é suficiente para os leitores que quiserem formar um juízo adequado da movimentação existente, no dia a dia, em uma casa de família de posição econômica elevada. Se havia muitos escravos, talvez o trabalho não fosse tão árduo, mas, com um número menor, as tarefas eram, sem dúvida, mais do que suficientes para garantir a ocupação de todos.

(1) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) No Rio de Janeiro, capital do Império.
(3) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1924 - 1926). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 149.


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sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Agripina, mãe de Nero, não era nenhuma santa

É sabido que Nero providenciou a morte de Agripina, sua mãe, primeiro com uma tentativa (fracassada) de afogamento, e depois, de um modo talvez mais prático e explícito, pela espada de seus subordinados. Mas, se o filho era péssimo, Agripina, por sua vez, não era nenhuma santa. "Tal mãe, tal filho", dirão alguns dos leitores, ou, sem prejuízo da causalidade, tal filho, tal mãe...
Apenas para contentar quem duvida da capacidade de causar dano que tinha a senhora Agripina, lá vai um episódio relacionado àquela mestra de intrigas, contado por Tácito no Livro XII dos Annales. Em poucas palavras, os leitores terão um exemplo acabado do que é perfídia.
Havia em Roma um sujeito muito rico, cujo nome era Estatílio Tauro. Esse homem era proprietário de um belíssimo pomar, que Agripina invejava e queria para si. A terrível mulher arquitetou então um plano para pôr as mãos na propriedade alheia, arranjando um cúmplice que acusou Estatílio Tauro de coisas gravíssimas, relacionadas a uma suposta improbidade quando havia exercido o cargo de procônsul na África; como se isso fosse coisa de pouca monta, juntaram-se acusações de envolvimento com magia.
Levado a julgamento, Estatílio Tauro cometeu suicídio, antes que o Senado desse o parecer final sobre o caso (em Roma, isso era muito comum). Se serve de consolo, diga-se que a decisão do Senado não foi favorável aos interesses de Agripina, mesmo porque, a essa altura, deviam ser poucos os senadores que tinham alguma simpatia por ela. De qualquer modo, é bom recordar que, pelas leis romanas, os bens de um sentenciado à morte, cometendo este suicídio, eram distribuídos segundo suas disposições testamentárias, em lugar de passar ao Estado, o que explica a atitude do ex-procônsul.


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quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Cadeirinhas, liteiras e redes para alugar

Cadeirinhas de arruar e liteiras podiam ser vistas nas ruas das cidades e vilas coloniais porque não estavam disponíveis meios de transporte mais eficientes, certo? Carregar pessoas em redes, então, nem se fala...
Pois vou mostrar aos senhores leitores que cadeirinhas, liteiras e redes continuaram em uso por muito tempo, mesmo quando ia bem adiantado o Século XIX e o Brasil já era, há décadas, um país independente. Ah, e não pensem que isso só acontecia em lugarejos de alguma província remota. Nada disso! Era na própria capital do Império, o Rio de Janeiro.
Vejam só, no Almanaque Laemmert de 1854 foram listados nada menos que dez endereços de "Alugadores de Cadeirinhas, Liteiras e Redes" (*), sendo um deles especializado em liteiras, enquanto um outro anunciava alugar carroças, também. 


Parece-me supérfluo argumentar com a reduzida probabilidade de alguém anunciar a prestação de um serviço para o qual não houvesse uma clientela em potencial. Talvez, em meados do Século XIX, as cadeirinhas e liteiras até já estivessem em decadência, mas ainda havia gente que gostava delas, e sempre houve e continuará a existir quem resista às novidades.

(*) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1854. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1854, p. 508.


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