quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Leis draconianas

Quando se faz uma lei severa demais, é costume dizer-se que é "draconiana". Por quê?
Drácon foi um legislador ateniense que viveu no Século VII a.C., e, segundo Plutarco, revogar a maioria de suas leis teria sido o primeiro ato de governo de Sólon. O Código de Hamurabi, no qual vigorava a lei de talião, ou seja, a retribuição semelhante ao crime cometido - quem matava, devia morrer, quem causava um ferimento, recebia ferida igual - nem de leve chegava perto da severidade das leis de Drácon. O mesmo pode ser dito da Lei de Moisés, também regida, em grande parte, pela lei de talião - "olho por olho, dente por dente" (¹) - talvez explicável pelo contexto social em que foi produzida. 
As leis de Drácon, contudo, iam muito além, porque, segundo Plutarco, "eram em extremo severas e cruéis, impondo penas muito grandes para delitos muito pequenos. Para quase todas as infrações havia a imposição da pena de morte" (²).
É verdade que, para Drácon, aos homicidas cabia a sentença de morte, também admitida para aqueles que cometessem crime de sacrilégio (coisa tanto mais complicada quanto eram quase infinitos os deuses); mas também é fato que o crime de injúria e até mesmo o "furto de frutas e outros vegetais, ou outras coisas de pouco valor" (³), também devia significar um ponto final à existência do infrator. 
Em consequência, logo se tornou corrente o dito de que Drácon, em lugar de tinta, havia usado sangue ao escrever suas leis. Havia mais: interrogado quanto à razão de tanta severidade, Drácon teria respondido que "a seu ver, pequenos delitos mereciam ser castigados com a morte, e, quanto aos grandes crimes, não encontrava, para eles, penalidade maior que a morte" (⁴). Não parece boa a explicação, e bem se pode imaginar que, tendo Sólon revogado as leis de Drácon, toda a cidade de Atenas pôde respirar com alívio.

(1) Cf Exodus XXI, 24-25: "oculum pro oculo, dentem pro dente, manum pro manu, pedem pro pede, adustionem pro adustione, vulnus pro vulnere, livorem pro livore."  
(2) PLUTARCO, Vitae parallelae. Os trechos aqui citados da biografia de Sólon em Vitae parallelae foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Ibid. 
(4) Ibid. 


Veja também:

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Argumentos para trazer missionários jesuítas ao Brasil no Século XVI

Houve, no Século XVI, alguns casos de jesuítas que, estando muito doentes em Portugal, decidiram vir ao Brasil, acreditando que gastariam bem seus últimos dias sobre a terra se estivessem ocupados na catequese de indígenas. Ocorre que, ao chegarem ao Continente Americano, não só recuperaram a saúde, como ainda viveram largos anos, estimando-se que a mudança de ares fora a causa desse (quase) milagre. A despeito dos riscos inerentes à travessia do Atlântico, a vinda ao Brasil passou a ser vista como uma possibilidade de melhora na saúde dos padres que, vivendo no Reino, não encontravam alívio nos tratamentos a que eram submetidos. Convenhamos: a medicina da época não ajudava muito.
Mesmo assim, era reduzido o número de missionários envolvidos na catequese de indígenas e no ensino dos meninos, filhos de portugueses, e, por essa razão, os jesuítas encarregados da redação de cartas para seus irmãos de Ordem, viviam citando as palavras de Jesus nos Evangelhos, de que a seara era mesmo grande, mas eram poucos os trabalhadores (¹). Era preciso pedir mais gente para tanto trabalho. 
Que argumentos mais poderiam ser úteis para encorajar candidatos a missionários? Uma carta escrita na Bahia em setembro de 1560 pelo padre Rui Pereira, destinada aos jesuítas que viviam em Portugal, nos dá, indiretamente, algumas pistas de quais poderiam ser os pretextos para não vir - comida diferente, desconforto da vida no Brasil, etc. - e como poderiam ser refutados. Vejamos, primeiro, a questão da alimentação:
"[...] Se em Portugal há galinhas (²), cá as há muitas e mui baratas; se tem carneiros, cá há tantos animais que caçam nos matos e de tão boa carne, que me rio muito de Portugal em essa parte. Se tem vinho, há tantas águas que a olhos vistos me acho melhor com elas que com os vinhos de lá; se tem pão, cá o tive eu por vezes e fresco, e como antes dos mantimentos da terra que dele. E está claro ser mais sã a farinha da terra (³) , que o pão de lá; pois as frutas coma quem quiser as de lá, das quais cá temos muitas, que eu só as de cá me quero. [...]" (⁴) 
Mas quem quereria trocar as horas de sono em uma cama confortável, por uma rede, como aquelas em que dormiam os indígenas, fosse no mato ou em alguma povoação de colonizadores? Responde o padre Rui Pereira:
"[...] Dir-me-ão que vida pode ter um homem dormindo em uma rede pendurado no ar, que é isso cá tão grande coisa que tenho eu cama de colchões, aconselhando-me o médico que dormisse na rede, e achei tal, que nunca mais pude ver cama, nem descansar noite que nela dormisse, em comparação do descanso que nas redes acho. Outros terão outros pareceres, mas a experiência me constrange a ser dessa opinião." (⁵)
O jesuíta Rui Pereira argumentava com base em suas preferências. Talvez fosse um exemplo notável de aculturação ou, pelo menos, de adaptação às possiblidades em terra de missões. Argumentos como os seus, contudo, podem ter influenciado aqueles que, indecisos, vacilavam em "passar ao Brasil". Independentemente do que se pense do modo como aconteceu a catequese de indígenas, ser missionário no Século XVI não era para qualquer um.

(1) Cf. Evangelium Secundum Mattheum, 9. 37, 38 - "[...] messis quidem multa operarii autem pauci / rogate ergo dominum messis ut eiciat operarios in messem suam"; Secumdum Lucam 10. 2 - "messis quidem multa operari autem pauci rogate ergo Dominum messis ut mittat operarios im messem"
(2) A carne de galinha era vista, na época, como um alimento favorável aos enfermos. 
(3 Farinha de mandioca.
(4) Cf. LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro, tomo VI. Rio de Janeiro: Seignot-Plancher, 1835, p. 153.
(5) Ibid., p. 154.


Veja também:

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Em defesa da leitura

Já ouvi alguns amigos falando de sua preocupação com os filhos em idade escolar, que não querem ler nada que tenha mais de duas ou três linhas. A dificuldade é mais ou menos a mesma quando se trata de escrever. Seja porque não querem, ou porque alegam não gostar, ou ainda porque não adquiriram a capacidade para isso, muitas crianças e adolescentes evitam qualquer tipo de leitura, principalmente se for tarefa requerida pelos professores. Quanto à escrita, nem se fala. Pais e mães, ansiosos devido à situação, tendem a responsabilizar os meses (anos, em alguns casos) de aulas virtuais que, para muitos alunos, foram um tempo de aula nenhuma. Simplesmente dormiam diante do computador. 
Seria completa tolice supor que os mais jovens não foram afetados pelos tempos difíceis da pandemia. Sofriam a seu modo, talvez observando em silêncio a tensão que a família deixava transparecer, quando, devido ao isolamento social, o tempo de convivência doméstica aumentou. Mas, e agora que as coisas estão razoavelmente normais, ou pelo menos parecem estar? 
Meu ponto de vista é bem simples: a escola deve priorizar a aquisição de capacidades fundamentais, deixando de lado, temporariamente, os penduricalhos que chegam a engessar o programa das disciplinas. Minha abordagem sobre o desenvolvimento da leitura, e, por consequência, também da escrita, partirá desse princípio.
Leitura corrente é indispensável. Seu desenvolvimento não pode estar ligado apenas ao processo de alfabetização. Tem de persistir ao longo de toda a escolaridade. E, é bom já dizer, não há equivalência entre assistir filmes e ler obras literárias. É pouco provável que alguém interrompa um filme para refletir sobre ele. Quanto à leitura, oferece oportunidade para reflexão sobre o texto, sobre as ideias que o autor apresenta. Segue em ritmo pessoal, não no ritmo adotado por um diretor de cinema. 
Alega-se que a geração atual não tem mais a concentração necessária à leitura de obras de maior fôlego. Isso pode ser decorrência, ao menos em parte, da alfabetização deficiente. A péssima leitura, a capacidade muito limitada de escrita e o vocabulário reduzido, fenômenos encontráveis, infelizmente, até com certa frequência, mesmo em estudantes do ensino superior, explicam muito do desinteresse por livros. No entanto, não há crescimento intelectual sem leitura e sem capacidade de reflexão. Por isso é tão importante que, desde os anos iniciais, a aquisição da capacidade plena de leitura e o desenvolvimento das habilidades necessárias à produção de textos claros, ainda que simples, sejam prioridade absoluta. Disso depende, em larga escala, o sucesso de um estudante à medida que avança na escolarização.
O que vemos são crianças e jovens com aversão a qualquer coisa escrita. Não estou combatendo os vídeos e outras mídias. Espero que não reste dúvida, no entanto, de que o ambiente escolar é feito para fornecer um conhecimento que não virá de outro lugar.
Por que gastar tempo repisando informações que os pais, de qualquer condição, podem dar às crianças? Aliás, é alto tempo de chamar pais às responsabilidades da educação doméstica, que lhes pertencem, por direito e por obrigação. A escola, na atual conjuntura, precisa ter o foco em capacidades que a ela correspondem, e que não poderiam, facilmente, ser desenvolvidas sem sua intervenção. Ocorre que, com o passar do tempo, mais e mais obrigações, antes desempenhadas pelas famílias, foram lançadas sobre as escolas. A ocasião é favorável para reverter esse processo desastroso.
Assim, digo aos amigos preocupados, aos pais e mães que leem este blog, aos professores: não permitam, na formação de seus filhos e/ou alunos, que outras atividades, ainda que importantes, tomem o lugar da leitura e do desenvolvimento da capacidade de expressar as ideias na forma escrita. Não deem incentivo à preguiça ou às realizações medíocres como se fossem dignas dos maiores elogios. Trabalhoso? Sim, mas que sirva de encorajamento a certeza de que isso é o que se espera de educadores conscientes da importância do que fazem para o futuro das crianças e adolescentes que hoje estão sob sua responsabilidade. 


Veja também:

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Bem-te-vi!

Bem-te-vis, entre outras aves, em ilustração do final
do Século XIX, com desenhos de Ernesto Lohse (³)
Bem-te-vi é uma avezinha nativa do Continente Americano, cujo canto pode parecer alegre, até divertido, ou extremamente irritante - tudo depende do estado de espírito de quem o ouve. 
Nuno Marques Pereira, autor do primeiro best-seller brasileiro, o Compêndio Narrativo do Peregrino da América, devia, pois, estar profundamente feliz quando escreveu:

"Despertando o pitauá,
Com impulsos de rigor, 
Disse logo: bem te vi,
Deste lugar em que estou."
(¹)

Outro que se lembrou das façanhas do cantar do bem-te-vi foi Castro Alves (²), poeta cuja obra está bastante ligada às questões abolicionistas. Estes versos pertencem ao poema A Cachoeira de Paulo Afonso:

"Mimosa flor das escravas!
O bando das rolas bravas
Voou com medo de ti!...
Levas hoje algum segredo...
Pois te voltaste com medo
Ao grito do bem-te-vi!"

Já Lima Barreto, desta vez em prosa, escreveu, em O Triste Fim de Policarpo Quaresma:

"O flange batia na erva, a enxada saltava e ouvia-se um pássaro ao alto soltar uma piada irônica: bem-te-vi!"

Resta observar que a impressão de que o pássaro seja algo dado à intriga e à fofoca é coisa de humanos, não de aves - só diz "bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi", porque assim nos parece ou queremos entender. Podia ser outra palavra ou expressão que soasse, aos nossos ouvidos, como coisa conhecida. Afinal, bem-te-vis não falam português.

(1) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 48.
(2) Castro Alves morreu muito jovem, coisa que em seu tempo não era incomum. Nascido em 1847, faleceu em 1871. Envolvido com a campanha abolicionista, acabou conhecido como "o poeta dos escravos". 
(3) GOELDI, Emílio A. (org.). Álbum de Aves Amazônicas. Rio de Janeiro: Livraria Clássica de Alves e Cie., 1900, p. 34.


Veja também: