quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Em 2022

Estamos a poucas horas de um novo ano, 2022. Talvez, ao longo dos últimos meses, tenhamos desejado que 2021 ficasse para trás, o mais rápido possível... Mas o tempo, leitores, não transcorre segundo nossos desejos. 
O ano que está à frente será rico em datas que recordam acontecimentos importantes. Haverá, por exemplo, o centenário da Revolta do Forte de Copacabana, considerada por muitos o marco inicial do Movimento Tenentista; haverá, também, o centenário da famosa Semana de Arte Moderna, que pode nem ter sido assim tão famosa quando aconteceu, mas que ganhou prestígio mais tarde, à medida que seu significado se tornou evidente. E haverá, é claro, a mais importante celebração, ao menos para o Brasil: o bicentenário da Independência. Mundo afora, haverá muita coisa mais para lembrar.
Como veem, meus leitores, não faltará assunto para este blog (nunca falta). História & Outras Histórias já está meio velhinho – completou doze anos no último dia 25, vida longa para um blog – e, com mais de mil e quatrocentas postagens, oferece uma variedade de assuntos para quem quiser ler. Agradeço a todos os que têm acompanhado as publicações, seja lendo, comentando ou ajudando a divulgar. É para vocês que escrevo. 
Concluindo, devo dizer que começaremos 2022 com uma postagem nova por semana, às quintas-feiras, em lugar das duas que tivemos até agora. Por quanto tempo será assim? Não sei. Tenho outros projetos que demandam atenção neste momento, para que possam ser concluídos. Mas seguiremos adiante, enquanto for possível. A todos, um 2022 maravilhoso. 


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terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Seria Teseu um herói da democracia em Atenas?

Teseu é famoso pela lenda segundo a qual teria matado ninguém menos que o terrível Minotauro devorador de rapazes e moças atenienses que, como um tributo imposto por derrota na guerra, deviam ser enviados periodicamente à ilha de Creta. Mas, para os atenienses do Século II, Teseu era um herói da igualdade de direitos políticos para todos os cidadãos - foi o que disse Pausânias (¹), em sua Descrição da Grécia, ao tratar de certo lugar na cidade de Atenas em que havia uma pintura importante: "Do outro lado há uma pintura em que estão representados Teseu, a Democracia e o Povo Ateniense, sendo Teseu retratado como aquele que concedeu aos atenienses a igualdade de direitos políticos. [...]" (²).
Tudo isso, para Pausânias, não seria mais que conversa fiada, decorrente do pouco conhecimento que a população de Atenas tinha da verdade sobre seu passado: "[...] circula entre as pessoas a ideia de que Teseu foi o responsável por entregar a soberania ao povo, e que isso teria persistido até o tempo em que Pisístrato (³) se levantou como tirano. Porém muitas falsas ideias circulam entre as massas, porque, desconhecendo a História, acreditam naquilo que têm ouvido desde a infância nos coros e nas tragédias (⁴), e uma dessas é sobre Teseu, que na verdade foi um rei (⁵) [...]" (⁶). 
Convenhamos, leitores: muito tempo já se passou desde que Pausânias viveu neste planeta, mas o fenômeno por ele referido continua em voga. Quem é que não sabe que nomes famosos do passado são, às vezes, associados a ideias e valores que jamais pensaram em defender? Vocês são capazes de citar alguns? Por outro lado, não deixa de ser triste, tanto quanto surpreendente, que a cidade de Atenas, notável pela excelência na busca do conhecimento nas ciências e nas artes, tenha decaído a tal ponto que já não se sabia, mais, a quem atribuir corretamente a origem da democracia. Se o conhecimento da História serve para alguma coisa, que seja ao menos para mostrar os erros do passado que devem, a todo custo, ser evitados em nosso tempo.

(1) Geógrafo grego que viveu no Século II, provavelmente entre c. 115 e 180 d.C.
(2) PAUSÂNIAS. Descrição da Grécia, Livro I. Os trechos dessa obra aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Pisístrato viveu no Século VI a.C.; "tirano", na Grécia Antiga, não designava, necessariamente, um governante cruel, e sim aquele indivíduo que chegava ao poder contrariando as leis vigentes. 
(4) Coros e tragédias eram, respectivamente, espetáculos musicais e teatrais muito apreciados entre os antigos gregos. Neles os temas históricos eram frequentes, mas, no entender de Pausânias, muitas vezes apresentavam os acontecimentos de maneira distorcida. 
(5) A própria existência de Teseu é questionada, pela dificuldade em separar os fatos das lendas. Mas, se Teseu existiu e governou Atenas, foi certamente como um rei, não como um herói da democracia.
(6) PAUSÂNIAS. Op. cit. Livro I.


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quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Preparando as ruas da vila de São Paulo para os festejos do Natal

Quem anda pelas ruas logo percebe que, nesta época do ano, são intensos os preparativos para as festas de Natal e Ano-Novo. Vitrines estão repletas de luzes e produtos convidativos. A decoração, a seu modo, aquece o coração das pessoas que, com certa sensação de felicidade, se dispõem a gastar mais.
Com a ajuda da imaginação, voltemos ao começo do Século XVII, para ver o que acontecia na pequena vila de São Paulo, quando Natal e Ano-Novo se aproximavam. A vida era simples e rústica, como só poderia ser na povoação encarapitada no planalto e que apenas podia ser alcançada, vindo do litoral, por quem se dispunha a escalar o complicado Caminho do Mar. Muito de sua população vivia, durante a semana, não na vila, propriamente, mas nas fazendas e aldeias das redondezas. Aos domingos e feriados, para ouvir missa, é que essa gente punha os pés em São Paulo. Portanto, para que a vila não fizesse má figura durante as celebrações de final de ano, os oficiais da Câmara, naquele distante 1602, mandaram que uma providência essencial fosse tomada de imediato:
"Aos quatorze dias do mês de dezembro de mil e seiscentos e dois anos, nesta vila, na casa da Câmara dela, estando aí os oficiais da Câmara José de Camargo e Francisco da Gama, vereadores, e Francisco Velho, juiz, e João de Santana, procurador, [...] acordaram o seguinte, que se mandasse lançar pregão que carpam as ruas para a festa [...]." (¹)
Pensem comigo, leitores: se era preciso carpir as ruas para a festa, como eram elas habitualmente? Eram os próprios moradores que executavam o trabalho de manutenção, fazendo-o por si mesmos ou por meio de seus escravos ou "administrados" (²). A Câmara era pobre, muito pobre, como já mostrei em outros textos neste blog, e não dispunha de funcionários para fazer a conservação de áreas públicas. Ao menos neste caso, a religiosidade imperante na época devia ser motivo para que a limpeza das ruas se fizesse sem muitos protestos. Era o espírito do Natal em ação, à moda colonial.

(1) Este trecho de ata da Câmara de São Paulo foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(2) "Administrado" era um eufemismo legalmente utilizado na época para se referir ao indígena que, na prática, era escravizado por um colonizador.


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terça-feira, 21 de dezembro de 2021

De que madeira eram feitas as bateias usadas por mineradores

Já vai tão longe a época da mineração colonial, que a maioria das pessoas nem faz ideia de que as bateias usadas na procura de ouro eram feitas de madeira. Mas eram, e para quem não sabe o que eram as bateias, digo que eram redondas, um pouco fundas e em formato de funil. Nelas, uma quantidade de água de um rio ou córrego aurífero era habilmente agitada, para que o ouro, separando-se de outros materiais, fosse ao fundo e, assim, recolhido pelo trabalhador.
Quanto à madeira empregada para fazer bateias, vejamos o que disse o barão de Eschwege (¹), que esteve no Brasil durante o governo joanino:
"Esses recipientes [as bateias] foram provavelmente introduzidos no Brasil pelos africanos e aperfeiçoados pelos brasileiros, que os faziam de madeira rija, maiores e de menos fundo. Empregavam sobretudo jacarandá, que não racha facilmente e resiste durante muito tempo, conservando-se sempre liso.
As bateias mais comuns, feitas de gameleira ou de figueira-brava, gastam-se facilmente com o uso. [...]" (²)
Portanto, bateias feitas de jacarandá eram melhores e duravam mais. Como tudo nas minas, deviam ser mais caras que as de gameleira ou figueira-brava. Pode-se supor que as primeiras eram as preferidas dos que recebiam uma "data", como era chamado o terreno aurífero promissor, concedido pelas autoridades coloniais aos que tinham recursos e escravos para explorá-lo. Bateias inferiores, de madeira menos resistente, porém mais fácil de trabalhar para a obtenção do formato adequado, seriam uma opção para aqueles que, fossem livres ou escravos, faiscavam ouro, ou seja, procuravam-no sozinhos e por conta própria em locais desprezados pelos grandes proprietários de minas.

(1) Especialista em minas, foi contratado para estudar o que podia ser feito para revitalizar a mineração no Brasil, que estava decadente nas primeiras décadas do Século XIX. 
(2) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 272.


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quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Mulheres romanas se casavam muito cedo

Comparando os costumes dos romanos aos dos gregos de Esparta, Plutarco (¹), que viveu entre os séculos I e II, observou que, por determinação atribuída a Licurgo, as jovens espartanas apenas se casavam quando já estavam fisicamente adultas. Não era assim entre os romanos: "Os romanos costumeiramente casam as filhas quando chegam aos doze anos, e, às vezes, até antes disso" (²).
A razão para essa prática, segundo Plutarco, se encontrava nas leis instituídas pelo rei Numa Pompílio, figura semilendária que teria exercido o governo de Roma depois da desaparição de Rômulo. O modelo de casamento proposto por esse rei, assim como suas ideias em relação à conduta das mulheres, seriam explicação para a entrada precoce das jovens na vida conjugal: Numa "ensinou que [as mulheres] deviam estar sempre sóbrias e ter vida moderada, quis que se habituassem a guardar silêncio e a não fazer uso de vinho, de modo que, para uma mulher romana, beber era indecente" (³).
Duas razões justificariam o casamento aos doze anos:
1. Nas palavras de Plutarco, "os romanos achavam perigoso que virgens já crescidas permanecessem em casa dos pais [sic]" (⁴);
2. Quando a mulher se casava cedo, o marido poderia educá-la como quisesse, de modo a satisfazer suas preferências e interesses: "havia oportunidade para afeiçoá-las aos hábitos do marido, moldando-as como queriam, como se fossem de cera [sic!!!]" (⁵).
Mulher romana não identificada (6).
Romana não identificada (⁶)
Quer os costumes romanos em relação às mulheres e ao casamento viessem de Numa, quer não, uma coisa é certa: a autoridade do pai na família era incontestável, até mesmo no âmbito de vida e morte. Portanto, era o pai que decidia quando e com quem uma filha se casaria, e, embora não se possa descartar elementos de afetividade no relacionamento familiar, está claro que não eram uma prioridade. Não se deve supor, contudo, que não acontecessem exceções, com mulheres se casando mais tarde, com quem queriam, ou mesmo recusando um casamento. Mas casos assim fugiam à regra, principalmente em se tratando da elite senatorial, para quem interesses políticos estavam em jogo em cada aspecto da vida. 
Muitos costumes romanos permaneceram ativos no Ocidente, mesmo quando Roma, enquanto império, já havia desaparecido há muito tempo. Querem uma prova, leitores? Muitos exemplos poderiam ser citados, mas basta um. O que me dizem da estrutura familiar predominante no Brasil Colonial, nos grandes engenhos de açúcar, em que os senhores, como regra, exerciam um férreo patriarcado? 

(1) c. 45 - 125 d.C.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelae.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) Ibid. Todas as citações de Vitae parallelae foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(6) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 286. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 14 de dezembro de 2021

As amazonas, a lagoa dourada e os indígenas que supostamente tinham cauda

O desconhecido sempre faz nascer expectativas. Muitas não passam de fantasias, com pouco ou nenhum sentido de realidade. Foi assim na Antiguidade, quando a maior parte do Continente Africano e do Extremo Oriente era pouco conhecida de gregos e romanos, e continua pelo mesmo caminho até hoje - basta ver o que se supõe sejam os "seres extraterrestres", também chamados de alienígenas. Para os muito fantasiosos, a atual exploração do solo marciano deve ser uma grande decepção.
A Amazônia, com seus rios espantosos e floresta repleta de mistérios, já foi, também, alvo de lendas. A mais famosa, até pelo nome, é sem dúvida a das amazonas, mulheres indígenas que, cansadas da hegemonia masculina, teriam abandonado as aldeias em que viviam para formar uma tribo isolada, na qual não se permitia a presença de homens, a não ser em uns poucos dias a cada ano, para garantir a perpetuação da espécie. Vários autores escreveram sobre elas, afirmando sua existência, segundo depoimento deste ou daquele indígena, cujo pai, avô, tio, havia tido um encontro infeliz com a suposta tribo. Claro, os escritores que falaram delas também nunca tinham visto uma amazona, mas arrazoavam, segundo toda a lógica que conseguiam arregimentar, que elas de fato existiam. Contra essa corrente (de proporções amazônicas), Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, que foi pessoalmente às povoações da Capitania de São José do Rio Negro entre 1774 e 1775, observou: "Se eu devo agora também dizer o que me parece, confesso que não cabe no meu entendimento igual opinião. E se examinarmos esta matéria pela regra da verdadeira lógica e sólida crítica, devemos assentar que a existência das amazonas da América é uma daquelas preocupações populares, que achando fundamento no maravilhoso, que o povo ama, se propagam com extraordinária facilidade." (¹)
Filho do Século do Iluminismo, Ribeiro de Sampaio andou muito bem nesta questão das amazonas. Foi lúcido, igualmente, ao tratar da lenda da "lagoa dourada", "lago dourado" ou, mais exageradamente, de uma cidade inteiramente de ouro, que se imaginava existir em algum ponto da América do Sul. Não seria antes uma projeção da cobiça de quem queria riqueza rápida e fácil? Era essa a sua opinião: "Enfim o Lago Dourado, se existe, me persuado que é somente na imaginação dos espanhóis, que tenho notícia certa ainda atualmente fazem diligência para achá-lo: mas na verdade esta matéria só deve ser tratada pelo modo alegórico e irônico, com que dela escreveu certo autor famoso (²)". (³)
Contudo, neste mundo, como todos sabem, nada é perfeito. Plínio, o Velho, falando de povos diferentes dos gregos e romanos, que se supunha viverem em terras distantes, listou, entre muitos outros, aqueles que teriam cauda, e talvez suas ideias tenham influenciado Ribeiro de Sampaio. Vejam só, leitores, o que afirmou, fazendo referência a indígenas que viviam na região do rio Juruá: "Diz-se que os índios desta nação têm rabo do comprimento de três e quatro palmos, ou mais. [...] Parecerá esta relação uma fábula, ou para melhor dizer, uma quimera; mas sendo certo que nada tem de impossível [...] está o testemunho de um grande número de índios descidos do Juruá, que conheceram a dita nação, e está sobretudo o incontrastável documento de uma certidão jurada, que eu vi em poder do reverendo visitador e vigário-geral desta capitania [...]." (⁴)
Neste caso, Ribeiro de Sampaio não viu. Mas acreditou, como outros, em seu tempo, ainda criam na existência das amazonas e procuravam a lagoa dourada.

(1) SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. Diário da Viagem que em Visita e Correição das Povoações da Capitania de São José do Rio Negro Fez o Ouvidor e Intendente-Geral da Mesma. Lisboa: Typografia da Academia, 1825, p. 29.
(2) O autor faz referência a Voltaire.
(3) SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. Op. cit., p. 101.
(4) Ibid., p. 54.


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quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Dez fatos interessantes sobre a Guerra do Peloponeso

A chamada "Guerra do Peloponeso", entre 431 e 404 a.C., opôs, é verdade, as cidades-Estado de Atenas - finalmente derrotada - e Esparta. Mas foi muito mais que isso. Aqui estão alguns fatos interessantes sobre esse longo confronto:

1. A causa da guerra seria simplesmente inveja. Essa era a opinião de Tucídides, autor de História da Guerra do Peloponeso, que era ateniense e lutou no conflito, sendo, portanto, dono de um ponto de vista que não pode ser considerado exatamente imparcial: tendo liderado a Grécia na guerra contra os persas, Atenas se tornara senhora de uma poderosa frota e construíra um império, que Esparta e outras cidades invejavam.

2. Não só espartanos e atenienses se envolveram na guerra. Ao longo do conflito, fenícios, persas e habitantes do sul da Itália participaram das ações. Os gregos, que com unhas e dentes haviam defendido sua liberdade diante do ataque do Império Persa, chegaram a negociar com os persas para obter ajuda na manutenção das tropas mobilizadas.

3. Nas forças espartanas, não só esparciatas entraram na luta: hilotas e ex-hilotas, que haviam sido libertados, participaram maciçamente em muitos combates.

4. A guerra, que se pretendia rápida, foi se arrastando, ano após ano. Consultar oráculos era uma prática constante entre os gregos, e alguns teriam previsto que duraria três vezes nove anos.

5. A prática de alianças ofensivas e defensivas entre cidades conduziu um número crescente de participantes aos campos de batalha, porque quando uma localidade era atacada, suas aliadas corriam a socorrê-la, já que tinham interesses em comum.

6. Gregos eram apaixonados por ouvir grandes oradores, que tiveram muita importância durante a guerra, por sua capacidade de convencer os cidadãos reunidos em assembleia quanto à validade de seus pontos de vista.
  
7. Devastar as terras cultivadas por cidades inimigas foi uma prática usual durante toda a guerra; o saque de tudo o que podia ter utilidade foi também muito frequente. Nem é preciso dizer que esses procedimentos contribuíram muitíssimo para enfraquecer a Grécia diante de seus vizinhos.

8. Fogueiras, à noite, eram usadas para sinalização e envio de mensagens entre vários corpos de exército que se achavam espalhados em diferentes localidades.

9. No início da guerra, Atenas era temida por sua força naval. Ao longo dos anos de conflito, seus oponentes aprenderam a construir embarcações melhores e adquiriram habilidade em combates no mar, de modo que chegaram a suplantar as forças atenienses até nesse meio.
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10. A guerra foi algumas vezes interrompida por períodos de trégua formal. As alianças entre cidades, bem como suas consequências, foram importantes para a ruptura da paz e o reinício das hostilidades.


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terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Rotina de trabalho nas casas de fundição

As casas de fundição não eram repartições públicas muito apreciadas. Era nelas que todo o ouro encontrado devia, obrigatoriamente, ser convertido em barras com o selo real, e nelas, também, era descontado o imposto sobre o ouro (os famigerados quintos). Existiam, portanto, para a cobrança de impostos e para impedir o contrabando de ouro. Como tudo o mais no Brasil Colonial e mesmo mais tarde, estavam longe de realizar integralmente o que se pretendia. 
Eram estabelecimentos que poderiam muito bem trabalhar com poucos funcionários, mas não era esse o caso. Os empregados eram numerosos e, a depender do cargo que ocupavam, recebiam salários elevados. Como, gradualmente, a produção das minas foi declinando, o trabalho nas casas de fundição diminuiu, mas os funcionários continuaram lá. Durante o Governo Joanino o crescimento numérico do funcionalismo público foi explosivo, e as casas de fundição chegaram ao ponto de não arrecadar impostos em valor suficiente para cobrir os custos de seu próprio funcionamento. 
Especialistas foram contratados na Europa para a introdução de técnicas mais modernas de exploração aurífera. Um deles, o barão de Eschwege, logo descobriu o minucioso trabalho das casas de fundição, mas onde pouco se realizava, porque pouco ouro havia para quintar. Anos mais tarde, de volta à Alemanha, escreveu: "A organização das Casas de Fundição é excepcionalmente simples; o pessoal, porém, é numeroso e complicado. Há os escritórios, onde o ouro levado pelos mineiros é pesado e quintado; o forno refratário, onde é fundido, e, em seguida, restituído; uma câmara de ensaio, onde é provado [...]. Isso constitui o essencial na Casa de Fundição [...]" (¹).
Havia todo um processo burocrático até que, descontados os reais quintos, o ouro voltasse às mãos do proprietário: "A quantidade de ouro, por menor que seja, entregue pelo dono, é fundida barra por barra. Esta é então encaminhada ao ensaiador, que determina o seu título e nela imprime as armas reais, o quilate e o peso, entregando-a de novo ao proprietário, com uma guia que deve acompanhá-la sempre, e na qual são também inscritos o valor, o peso e o título" (²).
Já que não havia muito serviço, seria razoável fechar as casas de fundição de pouco movimento e demitir os funcionários dispensáveis. Essas medidas, contudo, iriam na contramão do que acontecia na Corte do Rio de Janeiro (³), de onde, afinal, vinham as ordens para as minas. Portanto, na época, não se viam mudanças no horizonte.

(1) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 214.
(2) Ibid.
(3) Ao funcionalismo já existente no Brasil adicionou-se, em 1808, todo o que veio do Reino em companhia da Família Real. Nos anos seguintes, muitos outros funcionários foram admitidos, em uma política de proliferação da burocracia que teve impacto significativo na sociedade brasileira, com consequências que - acreditem - podem ser observadas até hoje.


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quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Algumas razões para as guerras por território na Antiguidade

Ninguém precisa gastar muito tempo em observação para perceber que o planeta em que vivemos apresenta uma grande variedade de paisagens. Alguns lugares são altamente favoráveis à sobrevivência de seres humanos, enquanto outros não são muito promissores. Há lugares, até, em que é quase impossível viver. Tecnicamente, dizemos que uma região favorável é "ecúmena", enquanto as desfavoráveis são chamadas "anecúmenas".
Tentem agora, leitores, visualizar grupos humanos que viveram em tempos remotos (históricos ou mesmo pré-históricos). Se uma comunidade fosse nômade e praticasse a caça, por exemplo, como fonte de subsistência, provavelmente iria entrar em conflito com qualquer outro grupo que tentasse habitar o mesmo território. Vê-se, pois, que não era questão de um grupo ser mais ou menos amistoso. Era a sobrevivência que estava em jogo. Uma guerra, ainda que de pequenas proporções, poderia ocorrer sempre que dois ou mais grupos humanos entrassem em disputa por um dado território. Valia o mesmo quanto às pastagens, se uma comunidade fosse voltada ao pastoreio, ou às áreas de cultivo, sempre que a agricultura fosse praticada e um grupo invasor tentasse ocupar um território já habitado, no todo ou em parte. 
Morte de Saul, rei dos hebreus, em campo de batalha, 
de acordo com Gustave Doré (*)
Por suposto as guerras, nesse tempo, não se faziam com armas de fogo, muito menos com bombas atômicas. As batalhas eram travadas com pedras, hastes de madeira, arcos e flechas, e a grande vantagem estaria com aqueles que já fizessem uso, ainda que rudimentar, de algum tipo de metal. Mais tarde viria a cavalaria e, com ela, os carros de guerra - carroças, se quiserem -, mas ainda assim um diferencial importante para quem dispusesse de tal recurso. O resultado de um combate podia vir na forma de crânios esfacelados, braços e pernas triturados, dentes a menos, feridas que eventualmente terminavam em uma infecção letal. Não era pouco, convenhamos. Aos derrotados competia cair fora, tão rápido quanto possível, se é que tinham juízo. Com os vitoriosos ficavam as comemorações enaltecendo a supremacia tribal, com direito à aclamação dos heróis do combate, uma prática que, no futuro, teria imitadores e consequências nada desprezíveis.
Será que mudamos muito ao longo dos milênios? Dificilmente dois países entrarão em conflito, hoje, por território de caça, ou por alguns palmos a mais de pastagens verdinhas para as ovelhas e cabras. As armas, por sua vez, já não se mostram tão inocentes quanto as de outrora. Por que matar um inimigo de cada vez, quando se pode eliminar multidões? Brigar por espaços na Terra já anda até causando tédio. Que tal transferir as conflagrações para o Sistema Solar? Isso já vem acontecendo há tempos em séries de televisão e em jogos eletrônicos... Só falta passar à vida real. A ideia não é mesmo para surpreender a quem quer que seja.

(*) Essa é uma concepção artística de Gustave Doré, que viveu durante o Século XIX. É pouco provável que os hebreus, na época que se atribui ao reinado de Saul, contassem com cavalaria para uso militar.


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terça-feira, 30 de novembro de 2021

Fugitivos da Justiça seriam perdoados se participassem da resistência à ocupação holandesa

O ano de 1530 mal começava, quando os moradores da região litorânea do Nordeste brasileiro foram informados de que uma grande esquadra, preparada pela Companhia das Índias Ocidentais, estava a caminho do Brasil. O alvo provável era Pernambuco, cuja riqueza na produção açucareira interessava muito aos holandeses.
Tendo retornado há pouco ao Brasil, Matias de Albuquerque liderou os preparativos para a defesa, assumindo que a tentativa de invasão iria mesmo ocorrer, e nisso não se enganava. Tinha de lutar, porém, com a falta de equipamentos bélicos, tão grave quanto a falta de homens treinados para a guerra. Para aumentar o contingente disponível, decidiu convocar até os foragidos da Justiça, segundo relato de Duarte de Albuquerque Coelho:
"Com bandos (¹) publicou, em todas as paróquias de fora, que livre e seguramente podiam comparecer todos os que receassem prisão por crimes ou dívidas, e que, de acordo com o comportamento na defesa, seriam perdoados [...], conforme as ordens reais que tinha para esse caso." (²) 
Não eram incomuns as promessas de perdão em ocasiões de emergência como essa. Qual seria, no entanto, o resultado prático? A situação era, de fato, desesperadora, e a própria existência de tal anúncio já é prova disso. Mas, exatamente por esse motivo, é bem pouco provável que, num arroubo de civismo, muitos foragidos se arriscassem ao comparecimento. 
A promessa de perdão aos que se alistassem para lutar nos conduz à constatação de um fato interessante: havia um número nada desprezível de pessoas que, tendo cometido delitos na Europa ou no Brasil, encontravam refúgio e segurança nas terras coloniais, tão vastas e escassamente exploradas como eram no Século XVII. Recordem-se, leitores, de que as Ordenações do Reino, particularmente no Livro Quinto, atribuíam penalidades terríveis para infrações que hoje consideramos muito leves, mas que, no Século XVII, eram punidas com severidade. Quem conseguia fugir devia dar-se por feliz, sem correr o risco de alguma aventura desastrada. E, lembrem-se, havia ainda a Inquisição, que não tinha e nunca teve tribunal permanente no Brasil, mas que, de vez em quando, resolvia fazer uma visita. Por que um fugitivo que se ocultava com segurança em algum lugar arriscaria o pescoço diante de uma vaga promessa de perdão, no caso de se bater com valentia e, evidentemente, no caso de sobreviver ao ataque holandês? Isto é, se e somente se as armas de Portugal e Espanha - eram tempos de União Ibérica - fossem vitoriosas contra as de Holanda... Como se sabe, não foi o que aconteceu em 1630.

(1) "Passar bando" era o método usual na época quando se queria fazer um comunicado oficial à população de uma localidade. 
(2) COELHO, Duarte de Albuquerque. Memorias Diarias de la Guerra del Brasil. Madrid: Diego Diaz de la Carrera, Impressor del Reyno, 1654. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Licurgo não deixou leis escritas

Dentre as grandes conquistas da Antiguidade, a existência de leis escritas tem muita importância. Por mais estranhas que nos pareçam algumas regras estipuladas no Código de Hamurabi, na Lei de Moisés ou na Lei das Doze Tábuas, elas eram garantia contra muitas arbitrariedades, ainda que soem demasiado severas à nossa sensibilidade de ocidentais do Século XXI.
Esparta, contudo, não tinha leis escritas. Mas não foi Licurgo seu legislador? Afirmava-se que sim, que ditara leis rígidas e que, numa estratégia para impedir que seus regulamentos fossem abandonados, cometera suicídio. De acordo com Plutarco, "Licurgo não permitiu que se escrevessem as leis que estabeleceu na reforma feita em Esparta [...], [proibindo] que se escrevessem em tábuas de metal ou outro material qualquer, mas que fossem escritas e esculpidas na alma dos homens" (¹).
Percebem nisso, leitores, uma das razões para o questionamento da própria existência de Licurgo? (²) Espartanos, não obstante, conservadores como eram, seguiam rigorosamente as leis a ele atribuídas, ainda que com algumas inevitáveis modificações no correr do tempo. Não deixa de ser digno de nota que, à medida que as leis antigas foram sendo abandonadas, a corrupção se insinuou entre a aristocracia e Esparta perdeu muito de sua força.

(1) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Não é prova irrefutável, porém, de que não tenha existido.


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terça-feira, 23 de novembro de 2021

Método cruel de caça às onças usado na América do Sul

Onças, fossem pardas ou pintadas, despertaram a curiosidade dos primeiros exploradores europeus que chegaram à América do Sul (¹). Como muitos deles nunca tinham visto leões e tigres de verdade, acharam que a onça-parda (Puma concolor) era leão, e a pintada (Panthera onca), tigre. Estavam errados, é claro, mas isso não muda o fato de que tiveram medo delas. Lindas e ferozes, as onças eventualmente atacavam pessoas e animais domésticos. Não demorou até que fossem impiedosamente caçadas, de um modo diferente do método empregado por indígenas.
Há uma descrição interessante da caça às onças feita por Félix de Azara, espanhol que viajou pela América do Sul no Século XVIII. Segundo ele, era desta maneira extremamente cruel que estancieiros, aborrecidos com ataques de onças ao gado na Argentina e no Paraguai, abatiam as felinas:
"O modo de caçá-las é perseguindo-as com dois homens montados em bons cavalos. Ao encontrar árvore ou macega a onça se senta, e um dos cavaleiros investe contra ela para que fuja [...], enquanto o outro atira o laço [e, estando presa], corre em disparada, até que veja que [a onça] já está morta, e [se não], o outro prende-a também com o laço, puxando, um de cada lado, até matá-la." (²)
É razoável supor que método semelhante de caça fosse, ao menos ocasionalmente, empregado também no Brasil. Justifica-se essa hipótese por uma gravura de Debret, na qual uma onça, presa por laços, parece ser puxada por vários cavalos. Vejam abaixo, leitores, e tirem suas conclusões.

Caça à onça, conforme Debret (³)

De acordo com Debret (⁴), nos campos do atual Estado do Paraná onças eram caçadas a laço e, quando capturadas, abatidas por um caçador pedestre.

(1) Podem ser encontradas também em outras áreas do Continente Americano.
(2) AZARA, Félix de. Viajes Inéditos de D. Félix de Azara. Buenos Aires: Imprenta y Librería de Mayo, 1873, p. 25. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) Cf. DEBRET, J. B. Op. cit., p. 134.


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quinta-feira, 18 de novembro de 2021

A salada de azeitonas de Catão

Bom dia, amigos leitores! Quais são os seus ingredientes favoritos para uma salada? Como está na moda experimentar receitas culinárias antigas, por mais estranhas que pareçam ao paladar médio dos ocidentais do Século XXI, apresento a vocês esta receita para uma salada de azeitonas, que não é minha, e sim de Marco Pórcio Catão, o austero romano que escreveu De agri cultura (¹). 
Primeiro, recomendou, era necessário escolher azeitonas variadas e cortá-las bem. Vinha, então, o "segredo", um tempero todo especial: "Adicione um tempero de azeite, vinagre, coentro, cominho, funcho, arruda e menta; misture em um prato de cerâmica e sirva com azeite" (²). Alguém se aventura a experimentar? (³)
Ora, meus amigos, como nosso interesse está no aspecto histórico dessa receita de Catão, devemos observar que, parcimonioso como era, esse romano que viveu entre 234 e 149 a.C. propôs o uso daquilo que podia ser facilmente encontrado em qualquer mercado da Península Itálica. Sua salada era composta, fundamentalmente, por coisas que sua propriedade agrícola ideal, descrita em De agri cultura, poderia produzir, e não por artigos dispendiosos, vindos de lugares distantes. 
Contudo, o sucesso militar de Roma e o relacionamento crescente com povos estrangeiros levaram os romanos a mudar de ideia, passando a apreciar tudo o que era exótico. Sugeridas por Apício em De re coquinaria, esquisitices vindas de terras remotas tornaram-se alta moda nas cozinhas em que os banquetes luxuosos do Império eram preparados. Catão morreu muito antes que a introdução de novos costumes pudesse ser, para ele, um grande desgosto. 

(1) Também chamada De re Rustica.
(2) CATÃO, Marco Pórcio. De re Rustica. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(3) Eu não testei, nem tenho a intenção de fazê-lo.


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terça-feira, 16 de novembro de 2021

Escravos para o trabalho na mineração deviam ser jovens

O trabalho nas minas coloniais era muito desgastante. Além do esforço físico requerido, das longas jornadas e das condições precárias de alimentação, os escravos deviam enfrentar as dificuldades inerentes às regiões inóspitas em que o ouro fora encontrado. Por isso, a mortalidade entre cativos que trabalhavam na mineração era alta. Houve proprietários que perderam quase todos os escravos em decorrência de alguma enfermidade.
Entre as regras estipuladas para as sociedades de mineração (¹) que o governo joanino projetou criar em 1817, encontramos este item, que, mesmo posterior aos melhores tempos da extração aurífera, nos oferece uma ideia de como deveriam ser os escravos que trabalhariam nas minas:
"[...] O fundo das Sociedades será formado com ações de 400$000 cada uma, em dinheiro, ou de três escravos (²) moços e sem defeitos de 16 a 26 anos de idade, que serão aprovados pelo inspetor-geral [...]." (³)
A experiência das décadas precedentes deve ter demonstrado que escravos dessa faixa etária eram mais resistentes às condições insalubres das minas, mesmo se tivessem a desvantagem da falta de prática no trabalho. Cabe recordar, a título de conclusão, que escravos não se faziam acompanhar por uma certidão de nascimento, pela qual se verificasse que idade tinham. À exceção de uns poucos nascidos no Brasil, que talvez soubessem dizer quantos anos tinham, os cativos denominados "negros novos", que acabavam de chegar do Continente Africano, tinham a idade apenas estimada. 

(1) A ideia da criação de sociedades de mineração pode até ter sido boa, porque se pretendia que adotassem métodos corretos de exploração aurífera, em lugar da precariedade vigente ao longo do Século XVIII. Foi só ideia, porém. Em sua maioria, as sociedades que chegaram a ser estabelecidas tiveram vida curta. 
(2) Note-se que esse regulamento, que pressupunha trabalho escravo na mineração, foi expedido quando o governo joanino já havia assumido um compromisso de, gradualmente, eliminar o trabalho compulsório no Brasil.
(3) Cf. ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 185.


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quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Tintas antigas para escrever

Uma senhora bastante idosa contou-me, já faz vários anos, que, em sua infância e adolescência, lá nas primeiras décadas do Século XX, era comum, na pequena localidade em que residia, que se utilizasse um preparado feito com amoras, quando se desejava ter um pouco de tinta vermelha para escrever. 
Ora, por que é que alguém quereria exatamente tinta vermelha? Talvez porque tinta preta fosse facilmente encontrada à venda, mas vermelha, não. Porque minha informante talvez gostasse das artes da caligrafia. Porque com ela seria possível deixar as tarefas escolares mais bonitinhas. Porque... Porque tinta vermelha talvez fosse útil para adornar uma cartinha que, discretamente, se fazia chegar a algum rapaz simpático das redondezas...
Compreendam, meus leitores: eram tempos sisudos, nos quais se tinha por falta gravíssima que uma moça expressasse mesmo o mais ínfimo afeto por um rapaz, sem o conhecimento e consentimento dos pais (principalmente do pai). Não era sem causa, pois, que, nas ruas e quintais, a meninada, brincando de roda, cantasse:

"Papagaio louro, 
Do bico dourado, 
Leva esta carta,
Pro meu namorado..." (¹)

Mas como é que se fazia tinta, não para umas poucas linhas, porém em quantidades maiores, ainda que artesanalmente, com fins comerciais? Nem todos os lugares tinham lojas especializadas, e alguns não tinham loja nenhuma. Esta receita, de uma publicação americana datada de 1867, pode dar uma ideia:
"Pegue 1 libra de campeche (²) e um galão de água (³); deixe ferver por uma hora em um recipiente de ferro; dissolva 24 grãos de bicromato de potássio e 12 grãos de prussiato de potássio em um pouco de água quente, e misture ao líquido ainda no fogo; retire do fogo e passe por um tecido fino. Nenhuma outra tinta resistirá ao teste de ácido oxálico, e é tão indelével que o ácido oxálico não conseguirá removê-la do papel." (⁴)
Com as modificações prováveis devido ao material disponível, o processo, em outros lugares, não devia ser muito diferente. Pau-brasil, por exemplo, era empregado em lugar de campeche, quando se queria obter tinta vermelha, e não preta.

(1) Como cantiga de roda folclórica que é, essa música tem uma variedade de letras. A que aparece aqui foi cantarolada pela senhora idosa a que me referi.
(2) Madeira originária da América Central e muito usada em tinturaria.
(3) Cerca de 3,8 litros.
(4) MARQUART, John. Six Hundred Receipts. Philadelphia: John E. Potter and Company, 1867, p. 74. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 9 de novembro de 2021

Quilombola

Escravo, esboço de
Thomas Ender (*)
Havia fugido do engenho. Quando menino, sempre ouvira a mãe dizer: "Ele é teu pai; quando ele morrer, serás livre". O senhor fora enterrado há meses e nada de alforria. A esperança se convertera em ressentimento.
Uma tarde fora mandado, com vários outros, a tirar lenha na mata próxima, e escapulira. Aos poucos, se afastara do grupo, e quando o feitor deu por sua ausência, já estava longe. Bem que ouvira os gritos dos que o procuravam, assim como o latido dos cães, mas nunca pensaria em voltar. Protegido pela noite, caminhara sem descanso e, vindo o sol, tomara o rumo da serrania distante. Quatro dias depois, mais morto que vivo, chegara ao pequeno quilombo, de cuja existência nunca suspeitara.
Afinal, foi admitido, embora com desconfiança. Agora, terá de provar que pode ser útil, que não irá trair a comunidade. Mas é bom caçador, e sabe disso. A capivara gorducha que assam com faminta expectativa não é mau começo. Vivendo entre outros fugitivos, o respeito e a liberdade serão construídos na luta de cada dia.

(*) O original pertence ao acervo da BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.

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quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Uma proposta do Século XVIII para imunização de indígenas contra a varíola

O título longo da obra, Diário da Viagem que em Visita e Correição das Povoações da Capitania de São José do Rio Negro Fez o Ouvidor e Intendente-Geral da Mesma, seguia uma prática em moda no tempo em que foi escrita, a segunda metade do Século XVIII. Seu autor, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, assim que assumiu o cargo para o qual fora nomeado, decidiu embarcar em canoas, acompanhado pela família, por alguns funcionários públicos e por remadores indígenas, para conhecer de perto as localidades habitadas na Capitania de São José do Rio Negro. 
Entendam, leitores: isso significava percorrer a Amazônia no Século XVIII. Não era tarefa fácil, e chega a ser uma surpresa que alguém se aventurasse a tanto, quando muitos outros haviam preferido a comodidade da permanência na sede de governo. As anotações que fez, em forma de diário da viagem essencialmente fluvial, ocorrida entre 1774 e 1775, foram mais tarde publicadas sob a forma de um pequeno livro. Poucos tinham, então, a oportunidade de viajar para terras distantes, e um registro assim podia despertar interesse. Em certa localidade, notou que a população indígena sofria bastante com a varíola, também chamada de "bexigas", conforme o dizer popular da época, e escreveu: 
"Grassavam [...] funestamente as bexigas, ainda que já estavam terminando. Além dos índios que morreram, tinham desertado muitos, principalmente da nação Purus, com medo delas [...], porque as bexigas em índios são mal mortal, e de que raros escapam.  Atribui-se a causa à dificuldade de erupção das bexigas, considerando-se que a cútis dos índios é menos porosa [...]. Seria coisa felicíssima que se introduzisse nas povoações dos índios o fácil e proveitoso método de inocular ou enxertar as bexigas. Que milhares de vidas se não poupariam!" (¹)
Hoje parece cômico que alguém explicasse a tragédia da varíola entre indígenas pela suposta diferença na porosidade da pele - como todos sabem, a questão é outra. Porém, muito interessante, é que esse autor, administrador público e viajante sugerisse o emprego da inoculação, um método rústico (e um tanto perigoso) de imunização, que, se devidamente aplicado, poderia salvar vidas entre a população nativa. É pouco provável que se referisse à imunização com a vacina proveniente da varíola bovina, que já se experimentava com sucesso na Europa, e que, mais tarde, Edward Jenner formalizaria (²). Contudo, esse trecho do diário, escrito em 12 de outubro de 1774 por Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio demonstra, sem margem a dúvida, que mesmo na Amazônia, tão distante dos grandes centros de pesquisas médicas do Século XVIII, se cogitava a utilização de um método que reduzisse o impacto da varíola em indígenas, talvez por já ser usado em parte da população colonial de origem europeia. 
A vacinação, propriamente dita, pelo método de Jenner, não demorou muito a ser introduzida no Brasil. Portanto, contrariando uma ideia corrente, deve-se entender que desconhecimento não é uma justificativa plausível para a famosa Revolta da Vacina, na capital do Brasil, ocorrida cento e trinta anos depois que Ribeiro Sampaio escreveu o seu Diário de Viagem

(1) SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. Diário da Viagem que em Visita e Correição das Povoações da Capitania de São José do Rio Negro Fez o Ouvidor e Intendente-Geral da Mesma. Lisboa: Typografia da Academia, 1825, p. 24.
(2) Em 1796.


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terça-feira, 2 de novembro de 2021

Como espartanos sepultavam os mortos

Esparta foi, na Antiguidade, uma cidade-Estado em que havia regras estritas para quase todos os aspectos da vida. Consequentemente, a morte e os rituais que a cercavam estavam, também, submetidos às leis atribuídas a Licurgo
Além da mortalidade corriqueira entre os antigos - muitas crianças morriam com pouco tempo de vida, a mortalidade materna era igualmente alta, eram desconhecidas as causas da maioria das doenças e não havia tratamentos eficazes para elas - espartanos, treinados para a guerra e tendo nela a razão de ser da existência, deviam saber que, em um combate, a possibilidade de defrontar a morte era significativamente maior do que ficando em casa e cuidando calmamente da lavoura. Para esparciatas, contudo, essa não era uma opção. As regras relativas aos mortos deviam, pois, em tudo combinar com o estilo de vida dos vivos.

1. Em Esparta era permitido sepultar os mortos dentro da cidade


De acordo com Plutarco (¹), "afugentando as superstições, Licurgo permitiu que aqueles que desejassem poderiam sepultar os mortos dentro da cidade, sendo também admitida a construção de túmulos e monumentos junto aos templos [dos deuses]" (²). Essa disposição atendia a um propósito triplo:
    • A proximidade dos túmulos serviria para lembrar aos jovens as virtudes dos antepassados que deveriam ser imitadas;
    • Seria afastado o temor de alguma contaminação por tocar os mortos, tão prejudicial na guerra;
    • Os jovens perderiam o medo da própria morte, igualmente prejudicial durante os combates que deveriam enfrentar.


2. Era proibido enterrar os mortos com quaisquer objetos


Em muitos lugares da Grécia era tradição colocar uma moeda na boca ou entre os dedos de um morto, para que tivesse com que pagar o transporte até o submundo, ou mundo dos mortos. Segundo Plutarco, ao proibir essa prática entre os espartanos, Licurgo "pretendia afastar a superstição de colocar joias e outros objetos valiosos com os mortos, aos quais não fariam bem algum, mas apenas dano aos vivos" (³).

3. Era permitido colocar uma coroa de folhas de oliveira no corpo a ser sepultado


O ritual praticado em um sepultamento era muito simples: "Os corpos deviam ser envolvidos em um tecido de cor púrpura e coroados com folhas de oliveira. Em seguida, eram enterrados sem outras cerimônias. Não era permitido que se escrevesse sequer o nome do morto na sepultura, a não ser no caso de homens e mulheres [...] que houvessem morrido na guerra" (⁴). Havia, portanto, certo estímulo à morte em combate, visto que era desse modo que alguém se faria lembrado de forma mais nítida por seus concidadãos.

4. A demonstração pública de tristeza por um morto não podia ir além de onze dias


Em conformidade com o que Plutarco escreveu na biografia de Licurgo, "apenas onze dias de choro e lamentação [por um morto] eram permitidos; no duodécimo dia se faziam sacrifícios em honra de Deméter, e desde então, deviam cessar todas as demonstrações públicas de tristeza [...]" (⁵).

Por séculos as leis atribuídas a Licurgo foram estritamente obedecidas em Esparta e, ao que parece, os esparciatas tinham delas muito orgulho. Seriam felizes com elas? Bem, é difícil dizer, mas é fato que, finalmente, foram abandonadas. Talvez isso signifique alguma coisa.

(1) c. 45 - 125 d.C.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelae. Os trechos dessa obra aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Ibid.
(4) Ibid. 
(5) Ibid.


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quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Como atenienses homenageavam concidadãos mortos em combate

Entre os antigos gregos, sepultar os mortos tinha grande importância. Faziam-no por reconhecerem o significado higiênico dessa prática, e também por respeito com parentes e amigos falecidos. Mas, além disso, entendiam que deixar corpos sem sepultura podia trazer sérios problemas para os vivos: os mortos não sepultados deixariam de ir para o reino de Hades, ficariam vagando pelos lugares que haviam frequentado em vida e incomodariam a quem encontrassem. Como ninguém queria uma coisa dessas, em caso de guerra, após cada batalha, uma trégua era combinada entre os beligerantes para que não faltasse oportunidade de resgatar os corpos dos que haviam tombado em combate.
Tucídides, autor de História da Guerra
do Peloponeso
(¹) 
Em Atenas, de acordo com o que disse Tucídides na História da Guerra do Peloponeso, os guerreiros mortos recebiam homenagens significativas de seus concidadãos. Os ossos eram expostos à visitação pública por três dias, sendo facultada aos parentes e amigos a realização das oferendas tradicionais. Depois disso, os ossos eram colocados em caixões feitos de madeira de cipreste, correspondentes à tribo de cada morto, sem faltar um que, não tendo identificação, ficava vazio, como memória daqueles soldados cujo corpo não fora encontrado. A seguir, em uma procissão fúnebre, da qual participavam homens e mulheres, os caixões eram conduzidos ao mausoléu da cidade, destino final daqueles cuja memória Atenas honrava pela bravura.. Os atenienses encerravam a cerimônia com um discurso proferido por orador notável, com a finalidade óbvia de rasgar elogios aos valentes que haviam morrido. Não é difícil estabelecer uma comparação com costumes que até hoje são seguidos na maioria dos países ocidentais.
As exéquias dos heróis atenienses eram pagas com dinheiro público. Ainda conforme Tucídides, apenas os que morreram na batalha de Maratona (²), em virtude de seus feitos notáveis, foram sepultados no próprio local em que se travara a luta. O decurso da Guerra do Peloponeso (³), contudo, trouxe para Atenas um desgosto adicional. Os sobreviventes da monumental força enviada a lutar na Sicília (⁴), derrotados pelos siracusanos e seus aliados em uma angustiante tentativa de retirada, que também fracassou completamente, deixaram para trás os feridos, os doentes e os mortos que, longe de sua cidade-Estado, não foram recolhidos, não foram sepultados e não receberam as homenagens costumeiras. Talvez tenham tido mais sorte do que os soldados vivos. A esses, depois da captura e de meses de sofrimentos, impôs-se a escravidão. 

(1) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 17. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) 490 a.C.
(3) 431 - 404 a.C.
(4) 415 - 413 a.C.


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terça-feira, 26 de outubro de 2021

Caldeira para produção de vapor fabricada no começo do Século XX

O que temos aqui é prova de que até mesmo os pequenos museus podem preservar coisas muito interessantes no acervo. Vejam, meus leitores, esta caldeira para produção de vapor, pertencente ao simpático Museu Histórico e Geográfico de Monte Sião - MG:




De fabricação inglesa e datada de 1910, a caldeira fez uma longa viagem, primeiro de navio, e, após o desembarque no Rio de Janeiro, por terra, até chegar ao sul de Minas Gerais, onde foi empregada para, gerando vapor, colocar em movimento uma beneficiadora de café. Detalhe curiosíssimo: para o transporte terrestre precisou ser puxada por nada menos que vinte juntas de bois. 


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