domingo, 29 de abril de 2012

Trabalhadores livres nos engenhos de açúcar do Brasil Colonial

Trata-se de um conceito popularmente difundido: o trabalho nos engenhos de açúcar do Brasil colonial era feito por escravos, o que, bem entendido, significa cativos do sexo masculino. Ora, como já se demonstrou anteriormente neste blog, muito do trabalho de um engenho era feito por escravas, tanto na lavoura de cana como nas demais instalações de fabricação do açúcar, de modo que, por nenhuma maneira, deve-se pensar que eram as mulheres cativas restritas aos trabalhos domésticos na casa-grande (¹).
Além disso, é preciso dizer que, mesmo sendo cativa a maior parte da mão de obra empregada nos engenhos, havia determinadas funções que eram, habitualmente, exercidas por trabalhadores livres, contratados por um salário fixo. Pelo menos é o que se depreende do que escreveu o Padre Antonil (²), em Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas:
"Servem ao senhor do engenho em vários ofícios, além dos escravos de enxada e de foice, que têm nas fazendas e na moenda, e fora os mulatos e mulatas, negros e negras de casa ou ocupados em outras partes, barqueiros, canoeiros, calafates, carapinas, carreiros, oleiros, vaqueiros, pastores e pescadores. Tem mais cada senhor destes necessariamente um mestre de açúcar, um banqueiro e um contrabanqueiro, um purgador, um caixeiro no engenho e outro na cidade, feitores nos partidos e roças, um feitor-mor do Engenho, e para o espiritual, um sacerdote seu capelão, e cada qual destes oficiais tem soldada." (³)
Vale explicar que a expressão "tem soldada" significa: recebe salário.
Alguns dos ofícios mencionados podiam, eventualmente, ser exercidos por um escravo, mas, para tanto, era preciso dispor de algum que fosse devidamente capacitado para a função. Vê-se, pois, o quanto era complexo, para a época, o empreendimento de um engenho açucareiro, não só pela necessidade de amplas terras cultiváveis, instalações e maquinário, como também pelo número de trabalhadores, quer escravos, quer livres, com os quais era preciso contar.

(1) Veja, sobre o trabalho feminino nos engenhos coloniais de cana-de-açúcar, a série "O trabalho das escravas nos engenhos de açúcar".
(2) Sobre André João Antonil, veja a postagem "Antonil e a vida diária em um engenho de açúcar no Brasil Colonial".
(3) ANTONIL, André João (Giovanni Antonio Andreoni). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 2.


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quinta-feira, 26 de abril de 2012

A fuga de cativos como forma de resistência à escravidão

Que fazia um escravo no Brasil ao sentir-se demasiadamente oprimido? A lista de reações possíveis era grande, e quem estiver interessado no assunto pode, com bastante proveito, consultar a série "Escravos que resistiam à escravidão",  neste blog. Entretanto, uma possibilidade era tentar a fuga.
Como se sabe, muitos escravos que conseguiam escapulir ao férreo controle de seus senhores acabavam por reunir-se em comunidades, os quilombos, em que a possibilidade de lutar contra uma captura era maior. Os quilombos foram muitos numerosos, e Palmares é apenas, dentre eles, o mais popularmente conhecido.
Acontece que há relatos de escravos que, fugindo, refugiaram-se nas matas,  sozinhos ou em pequenos grupos - três, quatro ou cinco pessoas, por vezes um casal isolado - e aí permaneceram por muito tempo, acobertados pelo gigantismo do território que, aliás, era parcamente conhecido, até mesmo dos senhores. Eu arriscaria dizer que, em se tratando do conhecimento do território do Brasil Colonial, por muito tempo os escravos souberam muito mais que os senhores, e isso se considerarmos apenas os cativos oriundos da África, já que os indígenas eram os verdadeiros mestres do saber em relação ao terreno, às florestas e, portanto, também no que tocava à sobrevivência longe das povoações de colonizadores.
O outro lado dessa história é que muitos escravos fugitivos eram capturados e reconduzidos aos seus senhores. As autoridades policiais que agiam nas matas, os capitães de mato, não hesitavam em cumprir seus deveres de ofício e os fujões eram, via de regra, submetidos aos mais desumanos castigos pela audácia que tiveram de negar-se ao trabalho, ao qual eram necessariamente reconduzidos, isso quando sobreviviam às torturas dos açoites, aprisionamento no tronco e muito mais, não desprezando o fato de que, de novo na labuta, eram obrigados a portar horrendos colares de metal que identificavam sua condição de recapturados.

Escravos usando o colar de ferro, castigo para os fugitivos, de acordo com Debret (*)

A questão é que os capitães de mato agiam fora das vilas e cidades. O que acontecia quando um escravo fugitivo era capturado em área urbana, sendo desconhecido o proprietário? Tem-se uma ideia do procedimento habitual, ao menos quando os jornais já circulavam com certa popularidade durante o Império, por este anúncio que apareceu no jornal Aurora Paulistana, em edição de 31 de julho de 1852:
"DECLARAÇÃO - Por esta repartição se faz público que foi recolhido à Casa de Correção um preto que declarou chamar-se Mateus, e ser escravo de Antônio de tal, morador na Venda Grande, do Rio de Janeiro. Quem tiver direito ao dito escravo compareça munido de documentos legais que provem o seu domínio, aliás se procederá na conformidade da lei. Secretaria da polícia de S. Paulo, 24 de julho de 1852. O amanuense, Antônio Louzada Antenes."
Portanto, a polícia encarregava-se do escravo fugitivo, recolhendo-o à prisão até que o proprietário, informado pela imprensa que sua "propriedade" fora localizada, comparecesse, em pessoa ou por representante legal, para reavê-lo. Toda a estrutura repressora de que dispunha o Estado estava, pois, inequivocamente, a serviço da manutenção da ordem escravocrata firmemente estabelecida. Chega a ser quase um prodígio que alguns conseguissem escapar aos seus tentáculos.

(*) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


terça-feira, 24 de abril de 2012

A companhia de soldados descalços de Martim de Sá

Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, conta um fato bastante interessante, relacionado aos tempos coloniais, fato esse de que alegou ser testemunha ocular. Tendo como cenário o Rio de Janeiro e como contexto a tentativa holandesa de ocupação da Bahia, faz um relato que nos permite constatar como viviam muitos colonos no Brasil da primeira metade do século XVII. Para que se compreenda bem o ocorrido, vamos primeiro à leitura do que o próprio Frei Vicente escreveu:
"A vinte e um de dezembro de 1623 partiu de Holanda uma armada de vinte e seis naus grandes, treze do Estado e treze fretadas de mercadores, da qual avisou Sua Majestade ao Governador Diogo de Mendonça que se apercebesse na Bahia e avisasse os capitães das outras Capitanias fizessem o mesmo, porque se dizia virem sobre o Brasil. O Governador avisou logo a Martim de Sá, capitão-mor do Rio de Janeiro, o qual entrincheirou toda a cidade, consertou a fortaleza da barra e fez ir os homens do recôncavo para os repartir por suas estâncias, companhias e bandeiras; e porque muitos não apareciam, por andarem descalços e não terem com que lançar librés, ordenou uma companhia de descalços, de que ele quis ser o capitão, e assim ia diante deles nos alardos descalço e com umas ceroulas de linho, e o seguiam com tanta confiança e presunção de suas pessoas, que não davam vantagem aos que nas outras companhias militavam ricamente vestidos e calçados.
Sem esta, foram muitas as preparações de guerra que fez Martim de Sá nesta ocasião. As mesmas fariam nas outras Capitanias, que a todas se deu aviso até o Rio da Prata, mas faço menção do Rio de Janeiro como testemunha de vista, porque ainda então lá estava."
Vê-se que, em se tratando de comandar na guerra, o senhor Martim de Sá sabia o que era liderar. À parte disso, podemos fazer, a partir do que lemos, algumas observações, a começar pelo fato de que, estando a Corte ciente de que uma armada desse porte vinha ao Brasil, limitou-se, inicialmente, a deixar a defesa da terra, sabidamente bem pouco guarnecida, em mãos dos que já nela estavam. É que, nesse tempo, vigorava a chamada União Ibérica (1580 - 1640), e não se pode negar que a Coroa Espanhola, que estava em pé de guerra contra as chamadas Províncias Unidas (a que hoje chamamos Holanda),  que se haviam há pouco declarado independentes, não dava ao Brasil o mesmo cuidado que dispensava aos demais domínios na América, como México e Peru, por exemplo, que já lhe rendiam muitíssimo metal precioso. As terras brasileiras, ao contrário, iam sendo lentamente povoadas, e embora as capitanias do Nordeste e do Rio de Janeiro já produzissem um volume considerável de açúcar para exportação, não era algo que se comparasse a ouro e prata.
Nota-se também que o "serviço de inteligência", a bisbilhotice e espionagem nas Cortes alheias - sim, isso existia! - não foi capaz de informar para onde exatamente a armada era dirigida, de modo que todas as Capitanias fizeram aprontos para um eventual ataque. Ora, meus leitores, se algum dos senhores fosse, na época, conselheiro da Companhia das Índias Ocidentais, para onde recomendaria que se enviassem as forças de ataque? Para a região mais rica e promissora daqueles dias, certamente... No entanto, há que se considerar que, como governante, Diogo de Mendonça foi prudente em avisar da possível chegada de "visitantes", até por uma razão que hoje não passaria pela cabeça de nenhum navegante, mas que era, antigamente, um problema bem sério: uma armada sabia perfeitamente de onde partia (supõe-se!), mas nunca se tinha uma ideia exata de onde ia chegar, isso porque, mesmo conhecendo aproximadamente o rumo que se pretendia tomar, os ventos e correntes marítimas podiam desviar uma frota de sua rota, de modo que, não raro, acontecia de embarcações destinadas à Bahia, Pernambuco ou Rio de Janeiro irem parar nas Antilhas. Assim, era admissível que a Armada holandesa acabasse por aportar em qualquer ponto da costa brasileira, o que obrigava os defensores portugueses a uma contínua vigilância.
Há quem queira atribuir aos que defendiam a terra contra tentativas de ocupação (vindas principalmente de franceses, ingleses e holandeses) algum tipo de sentimento nativista, mas a mim me parece que a questão é bem mais simples. Os líderes da defesa eram portugueses natos ou seus descendentes, que também se consideravam portugueses, de modo que a noção de "brasilidade" que já se supôs, nesses casos fica bastante enfraquecida. Lutava-se antes de mais nada pela própria vida, pelas respectivas famílias e, como não podia deixar de ser, pelo direito à terra que se estava ocupando e da qual se retirava o sustento quotidiano. O brio militar, o sentimento de honra muito em vigor na época, podiam até dar uma impressão de patriotismo, mas, em última análise, não era algo muito além da luta pela sobrevivência em um lugar distante da Metrópole, com escassos recursos defensivos e do qual, se necessário, ficava quase impossível uma retirada em massa para o Reino.
Finalmente, sobre os soldados descalços: Ser colono no Brasil, para os pobres, não era nada fácil. Andavam descalços a vida toda e, por isso, não causa espanto que não tivessem sapatos para se apresentarem às suas obrigações militares. Mas pode ser mais do que isto. Os bandeirantes de São Paulo aprenderam, com seus cativos indígenas, uma técnica incrivelmente eficaz para se caminhar descalço nas matas. Talvez os colonos do Rio de Janeiro estivessem habituados a essa mesma técnica. Talvez também houvessem aprendido com os índios. Talvez isso seja indício de um processo recíproco de aculturação. Talvez fossem alguns desses colonos descalços, eles próprios, índios ou seus descendentes. Frei Vicente do Salvador não o declara, não temos nesse texto nenhum outro indício, mas o andar da colonização, na primeira metade do século XVII, torna essa uma possibilidade bem real.


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domingo, 22 de abril de 2012

Coisas infinitas que se dizia haver no Brasil após o Descobrimento

Quase não há quem desconheça a declaração de Pero Vaz de Caminha em sua célebre Carta: "As águas são muitas, infindas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por causa das águas que tem". Que exagero! Sim, exagero até compreensível diante da exuberância natural da terra à qual a esquadra de Cabral acabava de chegar. A despeito disso, em se tratando de exageros sobre as terras coloniais portuguesas na América, Pero Vaz de Caminha está longe de ser o recordista absoluto. Em minha opinião, o troféu dessa modalidade de megalomania deve pertencer a Pero de Magalhães Gândavo, e meus leitores já verão o porquê.
Fiz uma lista dos "infinitos" que esse autor menciona, tanto em seu Tratado da Terra do Brasil como em História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. É verdade que o mesmo autor por vezes trata das inconveniências da terra - animais selvagens, doenças tropicais, ataques indígenas - mas isso parece pouco diante de seu entusiasmo. Entretanto, já é tempo de ver a lista.

1. Infinito pau-brasil, referindo-se à Capitania do Rio de Janeiro:
"Há nela muito infinito pau do Brasil, de que os moradores da terra fazem muito proveito." (¹)

2. Infinita caça, desta vez junto ao rio Camamu, Bahia de Todos os Santos:
"Nesse mesmo rio há muito peixe em extremo, e junto dele muita infinita caça de porcos e veados". (²)

3. Infinito algodão, ainda na Bahia:
"Esta capitania tem uma baía muito grande e formosa, há três léguas de largura, e navega-se quinze por ela dentro, tem muitas ilhas de terras muito viçosas que dão infinito algodão [...]." (³)
Reafirma isto em História da Província de Santa Cruz:
"... e na Bahia de Salvador quase outros tantos, donde se tira cada ano grande quantidade de açúcares e se dá infinito algodão [...]." (⁴)

4. Infinito peixe no rio "de Paraíba", Capitania do Espírito Santo:
"Avante desta capitania em altura de vinte e um graus está o rio de Paraíba, este é mui grande e formoso e tem infinito peixe." (⁵)

5. Fontes infinitas, justificando a existência de tantos rios no Brasil:
"As fontes que há na terra são infinitas, cujas águas fazem crescer a muitos e mui grandes rios que por esta costa, assim da banda do Norte, como do Oriente, entram no mar Oceano." (⁶)

6. E, concluindo a História da Província de Santa Cruz, obra publicada em 1576, conclui também que a terra descoberta é dotada de infinita riqueza, graças a suas pedras preciosas (que, aliás, ninguém ainda havia efetivamente descoberto):
"Do preço delas não trato aqui, porque ao presente o não pude saber, mas sei que assim destas como doutras há nesta província muitas e mui finas, e muitos metais, donde se pode conseguir infinita riqueza." (⁷)
Paremos por aqui, meus leitores, antes que esta postagem venha a ter infinitas notas de rodapé... 

(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p.48.
(2) Ibid., p. 39.
(3) Ibid., pp. 38 e 39.
(4) Idem. História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil, edição de 1576.
(5)Idem. Tratado da Terra do Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 46.
(6) Idem. História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil, edição de 1576.
(7) Ibid.

Estariam Caminha e Pero de Magalhães Gândavo realmente exagerando?

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quinta-feira, 19 de abril de 2012

A repressão à Inconfidência Mineira no contexto político do Século XVIII

Joaquim José da Silva Xavier,
o Tiradentes, de acordo com um selo
dos Correios do Brasil
A Inconfidência Mineira é tida, ainda, como um movimento precursor da independência do Brasil, a despeito do que alguns têm escrito e debatido contrariamente. Contribui para isso o fato de que foi duramente reprimida, inclusive com a execução por enforcamento de um de seus integrantes. Ora, dirão alguns, por que é que gente que nunca chegou a pegar em armas por uma suposta independência, que, ao que se sabe, não andou publicando manifestos, que apenas discutiu eventualmente o mau futuro que, segundo todas as aparências, parecia aguardar as Minas, a manter-se o governo tal qual andava, por que é que gente até bastante importante foi ostensivamente presa, conduzida em ferros ao Rio de Janeiro, mantida em prisão por bastante tempo para, finalmente, receber pesadas sentenças? Sim, porque embora apenas Joaquim José da Silva Xavier tenha sido executado, vale lembrar que, na época, uma sentença de degredo na África, ainda que temporário, era encarada como uma condenação à morte, ainda que não imediata, já que era comum que degredados morressem em razão de doenças tropicais. Cabem, pois, nesse caso, algumas considerações importantes.
As vilas e cidades do Brasil Colonial respiravam frequentes sedições, revoltas, rebeliões, motins, insurreições, protestos, levantes, conspirações, revoluções - e São Paulo talvez tenha sido o mais acabado exemplo disso tudo. A falta de uma presença efetiva de representantes do governo português pela enorme distância entre Reino e Colônia, a frouxa autoridade de alguns governadores, a audácia dos governados, tudo contribuía para que as ordens reais fossem respeitadas quando se queria, sendo cabalmente ignoradas quando se discordava delas. Que se considere, sobre isso, a questão da escravidão de índios em São Paulo e no Rio de Janeiro. Embora, de acordo com as leis, o enforcamento de rebeldes devesse ser coisa usual (vejam-se as famosas Ordenações, livro V), tendo efetivamente ocorrido em alguns casos, sabe-se de rebeliões, até de alguma importância, que não tiveram as consequências da Inconfidência Mineira. Essa, no entanto, foi duramente reprimida. Por quê?

a) Primeiro, porque aconteceu na área que, naquele momento, era tida como a mais preciosa da Colônia, do ponto de vista de Portugal, ou seja, a região mineradora de ouro, em tempos nos quais o Reino precisava desesperadamente das riquezas vindas do Brasil;

b) Além disso, ocorreu quando a independência das colônias inglesas na América do Norte já era um fato, de modo que a Metrópole lusitana tinha boas razões para crer na possibilidade de que, mais cedo ou mais tarde, a fome por liberdade política acabaria por alastrar-se pelo Continente Americano;

c) As casas reinantes na Europa tremiam diante do fato de que o ideário iluminista andava a espalhar-se como um verdadeiro incêndio que cativava as mentes mais esclarecidas e fazia supor que, também nesse caso, num tempo não muito distante, as velhas tradições ligadas ao absolutismo monárquico seriam varridas do mundo ocidental;

d) Finalmente, resta dizer que, enquanto na Europa acontecia a Revolução Francesa, no Rio de Janeiro era tirada a Devassa da Inconfidência. Era, pois, um tempo de pânico para as monarquias absolutas, daí a severidade da repressão e enorme encenação pública no ato da execução de Joaquim José.

O nome dado ao movimento, "Inconfidência", significa deslealdade, traição, um verdadeiro crime de lesa-majestade. Desde a independência do Brasil, ao longo dos anos do Império, houve uma atitude algo ambígua em relação ao movimento e à figura de Tiradentes, que mais tarde seria guindado à condição de herói da República. Todavia, o nome "Inconfidência Mineira" ficou, embora alguns prefiram chamá-la "Conjuração Mineira". De qualquer modo, temos um exemplo claro de como uma expressão pejorativa e condenatória em suas origens, acabou por ganhar outro sentido, à medida que o correr das décadas levou a uma reviravolta na avaliação que se fez e faz do movimento ocorrido nas Gerais em fins da penúltima década do século XVIII.


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terça-feira, 17 de abril de 2012

Quer um cafezinho, senhor? O princípio da agricultura cafeeira no Brasil

Cafezal na região de Serra Negra - SP
Na segunda metade do século XIX o café tornou-se o principal artigo de exportação do Império do Brasil, um fato que acarretaria consequências relevantes por muitas décadas, como resultado da dependência quase exclusiva desse produto como sustentáculo da economia do País.
Entretanto, o cultivo de café começou modesto e, embora poucos saibam, foi inicialmente mais importante na pauta de produção das capitanias/províncias do Nordeste que no Sudeste, como as estatísticas da época bem assinalam. No Rio de Janeiro era plantado em chácaras e quintais, quase sempre para consumo local, até que o crescimento da demanda internacional, com consequente elevação nos preços, tornou seu cultivo em larga escala mais interessante. Daí por diante, latifúndios cafeeiros, com mão de obra escrava, seguiram um caminho bem conhecido, espalhando-se pelo Vale do Paraíba em território do Rio de Janeiro, daí para o Vale do Paraíba na Província de São Paulo e então, no auge de sua importância, alcançou o chamado "Oeste Paulista", o que não exclui o fato de também ser cultivado no sul de Minas Gerais e, mais tarde, no Paraná.
O café era, inicialmente, plantado em meio às matas, embora isso possa nos parecer estranho, tão habituados estamos à ideia dos vastos cafezais, até onde a vista alcança, semelhantes a exércitos vegetais, com terreno dedicado exclusivamente à sua cultura. Há um trechinho anotado por Saint-Hilaire (no ano de 1822) que menciona esse fato:
"Rancho de Matias Ramos, 30 de abril, 4 léguas e três quartos - Sempre montanhas cobertas de matas virgens no meio das quais não é raro haver cafezais. Passamos por muitas fazendas importantes." (¹)
Há também um belo registro iconográfico, obra de Rugendas (²), no qual se vê a colheita do café. A paisagem facilmente denuncia o local: Bem próximo à cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. E, claro, no meio da mata.

Colheita de café no Rio de Janeiro, segundo M. Rugendas (²)

(1) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 124.
(2) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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domingo, 15 de abril de 2012

A visão da costa do Brasil, por viajantes de antigamente

"Neste dia", escreveu Pero Vaz de Caminha, referindo-se à data de 22 de abril do ano de 1500, "a horas de véspera, houvemos vista de terra. Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo, e doutras serras mais baixas ao sul dele, e de terra chã, com grandes arvoredos. Ao monte alto o capitão pôs nome o Monte Pascoal, e à Terra, a Terra de Vera Cruz". Embora seja perfeitamente possível que Cabral e seus companheiros de expedição não tenham sido os primeiros europeus, talvez sequer os primeiros portugueses que puseram os pés em terras brasileiras, é esse, no entanto, o primeiro relato formal que temos, ao que até agora se conhece, descrevendo o avistar do litoral brasileiro.
Da segunda metade do século XVII temos o registro feito pelo missionário Padre Simão de Vasconcelos, segundo o qual a impressão de navegadores e cosmógrafos a respeito do aspecto da costa do Brasil era esta:
"Quanto à vista exterior aos que vêm de mar em fora, depuseram aqueles capitães e cosmógrafos que não viram coisa igual no universo todo à perspectiva desta nova terra, porque ao longo parece uma glória o avultar dos montes e serranias, com tal compostura e altura que representam formar muito para ver, e sobem, parece, à região segunda do ar, levando consigo os olhos e os corações ao céu. À meia vista começa a aparecer o alegre dos bosques, campos e arvoredos, verdes sempre, e sempre aprazíveis. Mais ao perto, alvejam as praias formosas, e vão logo aparecendo nelas uma imensidade de portos, barras, enseadas, rios e ribeiras despenhadas, e com tão grande variedade, que é um espanto da natureza. De tudo disseram alguma coisa, que tudo não lhes era possível." (¹)
Infelizmente, há pouquíssimas imagens dos primeiros tempos coloniais, e o pouco que existe é grandemente devido aos artistas holandeses que andaram pelo Brasil à época do governo de Nassau. Somente no século XIX, quando a paisagem, ao menos na faixa litorânea, já havia sofrido importantes modificações, é que houve maior preocupação em fixar, através de desenhos, aquarelas ou gravuras, por exemplo, o que se via em terras do Brasil. Embora tardias, essas imagens são significativas por nos permitirem um estudo, por comparação, de transformações posteriores resultantes do processo de ocupação do território. Nas últimas décadas do século XIX os meios informativos tornaram-se mais abundantes, à medida que a fotografia passou a integrar o arsenal de  recursos disponíveis  para o registro de acontecimentos e lugares. Assim justapostos, desenhos, aquarelas e fotografias nos permitem analisar as graduais alterações na paisagem brasileira, principalmente em áreas de grande urbanização.
Para que se tenha ideia do que isso significa, estão a seguir três imagens, todas da primeira metade do século XIX (editadas para melhor visualização), conforme o registro por três diferentes artistas.

Vista do litoral da Bahia, por Rugendas (²)

Vista do alto do Corcovado, Rio de Janeiro, por Thomas Ender (³)

Vista da entrada da baía do Rio de Janeiro, por Debret (⁴)

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, pp. 28 e 29.
(2) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. 
O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 12 de abril de 2012

Tragédias antigas e recentes provocadas por chuvas e deslizamentos de terra no Brasil

Reuni para esta postagem uma pequena coleção de relatos de tragédias decorrentes de chuvas muito intensas, seguidas por vezes de deslizamentos de terra, em vários pontos do Brasil - isso, em diferentes épocas, como se verá. Meus leitores, por suposto muito inteligentes, logo perceberão o que há em comum em todos esses episódios que, para facilitar a análise, vão listados em ordem cronológica.

a) Salvador, Bahia, 3 de maio de 1747:
"Em 3 de maio de 1747 desabou sobre o bairro do Pilar uma porção do morro a cavaleiro, e grande número de vítimas ficaram aí sepultadas." (¹)

b) Rio de Janeiro, 1756, durante o governo de Gomes Freire de Andrade, o Conde de Bobadela:
"Também lhe coube reparar ainda alguns estragos ocasionados pela inundação que, em virtude da muita chuva tivera lugar na cidade em três dias (4, 5 e 6) de abril de 1756, e que fora tal que, não só na rua do Ouvidor entrava a água pelas casas, como permitia atravessar uma canoa, com sete pessoas, desde Valongo até a igreja do Rosário." (²)

c) Novamente Salvador, na Bahia, em 1797:
"Na capital desabara o morro em 1797, calamidade que se repetia a miúdo, segundo temos visto, e que pedia providências radicais de parte do governo." (³)

d) Mais uma vez Salvador, no ano de 1813:
"Consta que em 1813, depois de grandes desabamentos da montanha sobre a cidade baixa (14 de junho), dos quais resultaram enormes perdas de edifícios e muitas mortes, o governador, conde dos Arcos, propôs a transferência da alfândega para Itapagipe. Se isso se tem então realizado, toda a cidade estaria já para esse lado, e se teriam prevenido grandes construções, que depois se fizeram, e avultadas despesas para as preservar, sustentando o morro - despesas que deviam ser feitas pelos particulares imediatamente interessados, e nunca pela província toda, à qual por essa forma pode chegar a um dia em que toda renda seja pouca para os paredões dos morros da sua cidade presidencial." (⁴)

e) São Paulo, 1º de janeiro de 1850:
"A 1º de janeiro de 1850 desabou sobre a cidade enorme tromba d'água motivando o arrombamento dos açudes e a inundação do vale do Anhangabaú. Verdadeiro dilúvio, durou seis horas, carregando a Ponte do Açu, e arrasou diversas casas causando algumas vítimas." (⁵)

f) Vila da Estrela, Província do Rio de Janeiro, em 20 de novembro de 1868:
"Caiu na Vila da Estrela (Província do Rio de Janeiro), um tufão de vento tão forte, acompanhado de copiosa chuva de pedras, que inundou quase todas as casas, descobriu telhados, derrubou morros e arvoredos e fez outros estragos, que pôs em susto os moradores do lugar. As trovoadas deste dia, as chuvas dos seguintes, fizeram grandes estragos nas linhas telegráficas que faziam comunicação com Santos, Ubatuba e São Sebastião, fortaleza de Villegaignon, Praia Vermelha e Quinta Imperial." (⁶)

g) Cidade de São Paulo, 1919 (⁷):


Agora, uma simples reflexão: ao contrário do que muita gente pensa, o estudo de tudo o que já passou não é mero desporto mental para quem tem tempo sobrando. Deveria pelo menos nos conduzir a observações sobre como tudo isso afeta a sociedade contemporânea. Vimos apenas alguns poucos exemplos de catástrofes naturais, certos de que muitíssimos outros casos poderiam aqui ser enumerados. Sim, é verdade que nem sempre podemos muita coisa contra a fúria da natureza. Mas a questão é que, muitas vezes, as catástrofes naturais são seguidas de catástrofes sociais, essas sim perfeitamente evitáveis ou, senão, passíveis de redução. Não por acaso, dos sete casos relacionados acima, seis ocorreram em algumas das maiores áreas povoadas na época. A ocupação do solo foi feita, ao longo dos séculos, de maneira nem sempre apropriada, tanto no que se refere à justa distribuição como ao tipo de uso admissível, de acordo com a topografia. Em consequência, hoje faltam moradias em quantidade e qualidade suficientes, mas faltam também políticas públicas que sejam eficazes no controle da ocupação do solo e do desmatamento das encostas (quando há, ainda algum vestígio das matas!), mesmo quando se fizer necessária uma medida impopular como é a proibição e remoção de residências em áreas de risco. Faz-se necessário reconhecer que, embora eventualmente sejam atingidas áreas de habitações de alto padrão, quase sempre quem mais sofre é quem vive em conglomerados de moradias de construção bastante precária.

Moradias edificadas em uma encosta da Serra do Mar, Litoral Norte do Estado de S. Paulo

Este é um país enorme. Não vejo, pois, razão, dentro de uma lógica de autêntica justiça social, para que seres humanos tenham de morar sob constante risco de suas vidas. Em anos recentes, aconteceram calamidades no Rio de Janeiro, em Angra dos Reis, em Petrópolis, em Nova Friburgo, e esses são apenas os lugares que, de imediato, me vêm à memória. Agora, há poucos dias, foi a vez de Teresópolis. A cada nova catástrofe, novas promessas. Fica a pergunta: Até quando?

(1) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 888.
(2) Ibid., p. 922.
(3) Ibid., p. 1078.
(4) Ibid., p. 1091.
(5) TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 281.
(6) Folhinha de Modinhas Para o Anno Bissexto de 1868. Rio de Janeiro: Antônio Gonçalves Guimarães & Cia., pp. 165 e 166.
(7) A CIGARRA,  15 de fevereiro de 1919, p. 19.


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terça-feira, 10 de abril de 2012

Como um escravo podia tornar-se livre antes da Abolição

Podia um escravo no Brasil vir a ser um homem livre? Sim, mesmo se desconsiderarmos as leis abolicionistas que precederam a Lei Áurea, como a Lei do Ventre Livre e a dos Sexagenários. Isso aconteceria se o escravo de algum modo obtivesse a quantia necessária para sua alforria ou se o seu senhor, de livre e espontânea vontade, o libertasse. Há casos memoráveis de escravos que juntaram ouro suficiente para a compra da liberdade, ao faiscarem em áreas de baixo rendimento em seus dias de folga - fala-se até em ex-escravos que passaram a ser senhores de outros escravos, tornando-se eles próprios mineradores, como neste exemplo citado por Hércules Florence:
"Conheci um velho preto de nação cabinda que, depois de conseguir a dinheiro sua libertação, a de sua mulher e filhos, comprara por seu turno lavras e escravos. Esse estimável negro tinha já por vezes dado a liberdade a uns vinte cativos seus e possuía ainda trinta, todos sãos, fortes e contentes." (¹)
Alguns viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil no século XIX notaram que ex-escravos, se eventualmente alcançavam certa prosperidade, procuravam adotar um estilo de vida muito semelhante ao que tinham seus antigos senhores. Uma  rápida pesquisa nas gravuras de Debret é suficiente para que se constate isso.
Ocorria, às vezes, que um escravo encontrava uma grande quantidade de ouro e, em recompensa, seu senhor o alforriava, o que, afinal, servia de estímulo aos cativos para que suportassem o trabalho extenuante. Valia o mesmo na mineração de pedras preciosas. Os senhores que não o faziam eram tidos como sovinas, conforme se depreende desse relato também devido a Hércules Florence:
"Uma escrava do proprietário Domingos José de Azevedo (²), estando a lavar roupa, achou um diamante do valor de 6.000 francos, que ela foi levar ao seu senhor. Apesar do presente valer quatro vezes o preço da escrava, o ávido proprietário não lhe deu a liberdade." (³)
Podia ser, também, que um escravo fosse alforriado pelo senhor por outra razão qualquer, não sendo incomum que isso ocorresse quando o cativo era filho do proprietário. Nesse caso, quase sempre a alforria era estipulada em testamento.
Finalmente, era possível que alguma outra pessoa pagasse o valor do escravo para que este fosse liberto. Isso ocorreu mais frequentemente na segunda metade do século XIX, nas décadas que antecederam a Lei Áurea, quando sociedades abolicionistas estabeleciam fundos provenientes de doações para custear a manumissão de cativos, principalmente os mais velhos e/ou doentes (⁴).
Uma vez alforriado (durante o Império), o ex-escravo era cidadão apenas parcialmente: podia, tendo renda para isso, votar como eleitor de paróquia (o primeiro nível eleitoral no complexo sistema de voto censitário), mas não podia candidatar-se e, mesmo que viesse a ser muito rico, o que não era comum, não tinha acesso aos níveis eleitorais mais altos. Entretanto, seus filhos, se nascidos livres, eram, ao menos legalmente, perfeitamente aptos para a cidadania plena, ressalvadas as exigências do já citado sistema eleitoral baseado na renda (⁵). Livrar-se das malhas da escravidão não significava, pois, ser um "cidadão completo", já que o ex-escravo via-se, ao lado da população pobre de qualquer origem étnica, preso aos limites da discriminação econômica imposta pelo sistema censitário.
O que acima foi dito, porém, em termos de exercício da cidadania, era aplicável apenas aos libertos do sexo masculino - as mulheres, quer escravas, quer livres, estavam completamente excluídas do processo eleitoral, quer como eleitoras, quer como candidatas, condição que na época não era apanágio do Brasil. Era assim quase no mundo todo. À discriminação resultante dos preconceitos racial e econômico somava-se, no caso das ex-escravas, a que provinha do preconceito de gênero.

"Negras livres vivendo de seu trabalho", de acordo com Debret (⁶)

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 201.
(2) Esse indivíduo terrível é o mesmo que mantinha a mulher trancada em um cubículo, conforme se menciona na postagem "A reclusão de mulheres no Brasil Colonial (Parte 2): Um caso extremo e uma exceção"
(3) FLORENCE, Hércules. Op. cit. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 148.
(4) Há mais informações sobre o caso dos libertos com a ajuda de sociedades abolicionistas na postagem "A libertação da escrava Joaquina".
(5) O sistema eleitoral vigente no Império é apresentado na postagem "Paixão à flor da pele: As eleições no Brasil durante o Período Imperial".
(6) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. 
Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; imagem editada para facilitar a visualização neste blog.


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domingo, 8 de abril de 2012

A catequese no Período Colonial e a participação dos indígenas nos rituais da Semana Santa

Muito se tem discutido sobre a legitimidade da catequese dos povos indígenas do Brasil Colônia, já que esse processo significou, por vezes, a supressão da maior parte da cultura original, mas, para efeitos desta postagem adotarei, simplesmente, a premissa de que ela ocorreu, o que é fato que não pode ser mudado. Então, nesse quadro, é inegável que, do ponto de vista dos missionários das várias ordens religiosas que empreenderam a catequese, o trabalho era penoso e seus resultados muitas vezes frustrantes, diante do enorme distanciamento entre as culturas que se encontravam (e/ou se chocavam).
Frei Vicente do Salvador, que escreveu na primeira metade do século XVII, relatou um episódio que é, a esse respeito, bastante esclarecedor, que mostra também como ele, um religioso,  interpretava o comportamento dos índios face aos ensinos e às cerimônias da Igreja:
"Só acodem todos com muita vontade nas festas em que há alguma cerimônia, porque são mui amigos de novidades, como dia de São João Batista, por causa das fogueiras e capelas, dia da Comemoração Geral dos defuntos, para ofertarem por eles, dia de Cinza e de Ramos e principalmente pelas Endoenças (¹), para se disciplinarem, porque o têm por valentia, e tanto é isto assim que um principal chamado Iniaoba, e depois de cristão Jorge de Albuquerque, estando ausente na Semana Santa, chegando à aldeia nas Oitavas da Páscoa (²), e dizendo-lhe os outros que se haviam disciplinado grandes e pequenos, se foi ter comigo, que então ali presidia, dizendo "como se havia de haver no mundo que se disciplinassem até os meninos e ele, sendo tão grande valente, como de feito era, ficasse com o seu sangue no corpo sem o derramar", respondi-lhe eu que todas as coisas tinham seu tempo e que nas Endoenças se haviam disciplinado em memória dos açoites que Cristo Senhor Nosso por nós havia padecido, mas que já agora se festejava sua gloriosa ressurreição com alegria, e nem com isto se aquietou, antes me pôs tantas instâncias, dizendo que ficaria desonrado e tido por fraco, que foi necessário dizer-lhe fizesse o que quisesse, com o que logo se foi açoitar rijamente por toda a aldeia, derramando tanto sangue das suas costas quanto os outros estavam, por festa, metendo de vinho nas ilhargas." (³)
Temos aqui, como se vê, um exemplo acabado do que é que resultava desse choque de duas culturas, a cristã-católica dos portugueses e a dos nativos do Brasil. Consideremos mais detalhadamente:
- Os indígenas tinham seu próprio modo de contar o tempo, muito diverso de empregado pelos catequistas europeus e, embora se possa afirmar que, nos dois casos havia um ciclo anual de festividades, para os nativos era estranha a noção de uma data previamente fixada, já que seu cômputo dependia de acontecimentos naturais, como era o amadurecimento de determinados frutos, que não tinha hora marcada para acontecer, ainda que se pudesse esperar para uma determinada época;
- Para os europeus a autoflagelação da liturgia da quinta-feira santa tinha pelo menos dois aspectos, o rememorativo (lembrando a flagelação de Jesus por soldados romanos) e o penitencial; já para os índios, suportar essa tortura autoimposta era prova conclusiva de valentia, de modo que mesmo os meninos queriam disso participar, evidenciando o quanto lhes era estranha a ideia que os padres a custo pretendiam inculcar-lhes;
- Finalmente, resta dizer que o interesse pelas festividades advinha, em parte, de ser essa uma expressão cujo caráter se podia entender, um ponto de contato, se assim se pode chamar, fosse de alegria, luto, solenidade. Malgrado os brilhantes esforços de muitos religiosos no sentido de compreender e estudar os idiomas indígenas, a língua era por certo uma barreira poderosa na comunicação - expressar em outra língua uma realidade desconhecida aos falantes nativos é tarefa das mais árduas, quando chega a ser passível de realização.

(1) Liturgia de Quinta-Feira Santa, quando se relembra a flagelação de Jesus antes da crucifixão.
(2) Domingo seguinte ao domingo de Páscoa.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

A flor da Paixão

Já tenho tratado, em outras postagens, da sensação de espanto que a exuberância natural da América propiciava aos exploradores que se atreviam a enfrentar as matas cerradas nos primeiros tempos da colonização. Aparentemente prosaica, se avaliada apenas por suas folhas, uma planta veio a ganhar, aos olhos dos religiosos que empreendiam a catequese dos nativos, um status quase sagrado, não por seus frutos (aliás, excelentes), mas por suas flores: o maracujá.
Flor de Maracujá (³)
"O maracujá", escreveu Frei Vicente do Salvador , "é outra planta que trepa pelos matos, e também a cultivam e põem em latadas nos pátios e quintais, dá fruto de quatro ou cinco sortes, uns maiores, outros menores, uns amarelos, outros roxos, todos mui cheirosos e gostosos, e o que mais se pode notar é a flor, porque além de ser formosa e de várias cores, é misteriosa, começa no mais alto em três folhinhas, que se rematam em um globo, que representa as três divinas pessoas em uma Divindade ou, como outros querem, os três cravos com que Cristo foi encravado, e logo tem abaixo do globo (que é o fruto), outras cinco folhas, que se rematam em uma roxa coroa, representando as cinco chagas e coroa de espinhos de Cristo Nosso Redentor." (¹)
Outro que se impressionou com a flor do maracujá foi o jesuíta Pe. Simão de Vasconcelos, daí escrever com inegável entusiasmo:

Flor de Maracujá (³)

"A flor  é o mistério único das flores. Tem o tamanho de uma grande rosa, e neste breve campo formou a natureza um como teatro dos mistérios da redenção do mundo. Lançou por fundamento cinco folhas mais grossas, no exterior verdes, no interior sobrosadas; sobre estas, postas em cruz outras cinco purpúreas, todas de uma e outra parte. E logo deste como trono sanguíneo, vai armando um quase pavilhão de uns semelhantes a fios de roco, com mistura de branco. Outros lhe chamarão coroa, outros molho de açoites aberto, e tudo vem a ser. No meio deste pavilhão ou coroa, ou molho, se vê levantada uma coluna branca, como de mármore, redonda, quase feita ao torno, e rematada para mais graciosa com uma maçã ou bola, que tira a ovada. Do remate desta coluna nascem cinco quase expressas chagas, distintas todas, e penduradas cada qual de seu fio, tão perfeitas que parece as não poderia pintar noutra forma o mais destro pintor, senão que em lugar de sangue tem por cima um como pó sutil, ao qual, se aplicais o dedo, fica nele pintada a mesma chaga, formada do pó, como em tinta se poderia formar. Sobre a bola ovada do remate, se veem três cravos perfeitíssimos, as pontas na bola, os corpos e cabeças no ar; mas cuidáreis que foram ali pregados de indústria, se a experiência vos não mostrara o contrário. A esta flor por isso chamam flor da Paixão, porque mostra aos homens os principais instrumentos dela, quais são coroa, coluna, açoites, cravos, chagas." (²)
Os meus leitores hão de concordar que, ao menos, não se pode atribuir falta de imaginação aos teólogos capazes de semelhantes ideias!
Temos aqui, na verdade, um exemplo acabado do que se pode chamar de "espírito de época": vivendo em dias nos quais o pensamento místico-religioso permeava toda a sociedade europeia, os religiosos que tomavam contato com a diversidade natural da América logo viam, em tudo e a cada passo, uma ilustração de suas convicções religiosas. Buscavam, além disso, modos de tornar compreensíveis aos indígenas certos conceitos que, integrando essencialmente a lógica dos missionários, estavam muito distantes do universo cultural dos povos americanos. E foi assim que a espalhafatosa flor do maracujá se tornou a Flor da Paixão, em referência à Paixão de Cristo, que se pretendia ver nela representada, a ponto de, em alguns lugares, serem usados ainda hoje frutos do maracujá na decoração preparada para os rituais da Semana Santa.

(1) SALVADOR, Frei Vicente do.  História do Brasil. c. 1627.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, pp. 254 e 255.
(3) Os originais pertencem à Biblioteca Nacional; as imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.


terça-feira, 3 de abril de 2012

A Semana Santa - das memórias de Machado de Assis à visita do coelhinho da Páscoa

Aqui os coelhos da Páscoa ocupam um carro de passageiros da
antiga Ferrovia Mogiana em Monte Alegre do Sul - SP

Quem é que nunca teve a sensação de que "o tempo não passa", quando mais se deseja apressar algum evento, ou de que "passa rápido demais", quando se gostaria de prolongar alguma coisa pela eternidade? Pois há um trechinho de Machado de Assis que é fantástico no referir-se à percepção humana do tempo, percepção essa que pouco ou quase nada tem a ver com o tempo dos relógios, por mais precisos que sejam. E, como esse excerto trata justamente da Semana Santa, vem em boa hora (sem trocadilho):
"As semanas santas de outro tempo eram, antes de tudo, muito mais compridas. O Domingo de Ramos valia por três. As palmas que traziam das igrejas eram muito mais verdes que as de hoje, mais e melhor. Verdadeiramente já não há verde. O verde de hoje é um amarelo escuro. A segunda-feira e a terça-feira eram lentas, não longas; não sei se percebem a diferença. Quero dizer que eram tediosas, por serem vazias. Raiava, porém, a quarta-feira de trevas; era princípio de uma série de cerimônias, e de ofícios, de procissões, sermões de lágrimas, até o Sábado de Aleluia, em que a alegria reaparecia, e finalmente o Domingo de Páscoa que era a chave de ouro." (*)
Machado escreveu em 1894 e falava, então, das "semanas santas de outro tempo"... Cabe, antes de mais nada, considerar que a Semana Santa das memórias de Machado de Assis era uma celebração essencialmente religiosa, não se podendo dizer o mesmo das de nosso século. Meus leitores de mais idade talvez tenham suas histórias para contar, como muitas que já ouvi, da busca por ovos de Páscoa coloridos (sim, ovos de galinha!), nos gramados das casas, fossem elas nas cidades ou pequenas propriedades rurais onde residiam. Chocolate, por sua vez, já foi muito mais caro do que é hoje, de modo que ovos de Páscoa eram, com certeza, ansiosamente esperados. Não sei se me engano, mas quer-me parecer que já anda a humanidade um tanto enfastiada dos ovos de chocolate, ou porque são vendidos precocemente (mesmo antes do Carnaval estão disponíveis nos supermercados), ou se, devido ao barateamento do chocolate e maior variedade do produto (não discuto aqui a qualidade, isso é outra história), já não provocam o entusiasmo de outrora. Seja como for, continuam um símbolo da data, embora o menino ou menina que receber ovos de Páscoa dos pais, tios, avós, venha a ter chocolate à vontade por algumas semanas, sendo possível que comemore antes a existência de um ou dois dias sem aulas do que essa profusão meio enjoativa de doces. Entretanto, não se deixa de ouvir a criançada cantando "Coelhinho da Páscoa, que trazes pra mim"...
Agora, para que não digam que esta postagem está demasiado rabugenta: Tenho visto em muitas cidades os preparativos para representações da Paixão de Cristo e, independente de questões de caráter religioso, é interessante ver um bom número de jovens, amadores do teatro, nos últimos ensaios para as representações. Isso, no mínimo, torna a celebração mais participativa, mais democrática, o que já é bastante positivo. Concordam?

Cenário para a "Última Ceia", usado na representação da Paixão de Cristo em Jaguariúna - SP, na Páscoa de 2012

(*) ASSIS, J. M. Machado de. A Semana, 25 de março de 1894.


domingo, 1 de abril de 2012

O bacalhau da Quaresma

Tratei, na postagem anterior, dos chamados "dias de peixe", nos quais, durante a Quaresma, já houve tempo em que a maioria das pessoas se abstinha de consumir carne, pelo menos em alguns países nos quais essa tradição religiosa era predominante. Então, meus leitores, servindo-nos ainda do livro  Arte do Cozinheiro e do Copeiro (¹), editado em Lisboa na primeira metade do século XIX e cujo autor se intitula "um amigo dos progressos da civilização", trataremos agora da verdadeira estrela da culinária da Quaresma, o bacalhau, isso para Portugal ou para países, como o Brasil, em que a influência da cozinha portuguesa foi e é marcante.
Comecemos com o óbvio, uma receita do tradicionalíssimo bolinho de bacalhau. Diz a Arte do Cozinheiro e do Copeiro:

Bolinho de Bacalhau
"Depois de bem remolhado [o bacalhau] cozei-o com muita água; tirai-o depois de ter dado duas fervuras, abafai-o e desfazei-o em escamas, tirando-lhe cuidadosamente todas as espinhas.
Deitai o bacalhau desfeito num gral de pedra e desfazei-o bem, ajuntando-lhe uma pouca de água da cozedura, até formar uma massa que passe no passador. Passai-o e ajuntai-lhe uma pouca de farinha, gemas de ovos batidas, salsa e cebola picada, tudo em justa proporção, de modo que façais uma massa grossa que possais tirar com a colher de ferro. Ponde uma sertã (²) ao lume com azeite, e quando este fumar e estiver bem quente, ide-lhe deitando meia colher de massa para cada bolinho, até encher a sertã. Virai-os, fritai-os e ponde-os a escorrer.
Servem-se com molho de vinagre diluído com uma gota de água e raminhos de salsa: quanto mais repassados estiverem deste molho, mais gostosos serão."

Então, senhores leitores, já podem sentir o aroma dos bolinhos que acabamos de fritar? O curioso é que nosso autor não para nas receitas (bacalhau ao forno, bacalhau guisado, bacalhau grelhado...). Passa a considerar que, apesar de muito saboroso, o bacalhau não é conveniente a todos, por se tratar, segundo ele, de um peixe de "fibra mui dura", apesar de ser "no interior do reino" (refere-se a Portugal, claro), "o peixe que há na quaresma e nos dias de jejum". Expõe, então, sua ideia mais exótica: o bacalhau traz uma despesa considerável, devendo ser substituído por gado bovino. Mas demos a palavra a ele mesmo, para que esclareça livremente seu raciocínio:
"Seria para desejar que, em vez de comprarmos todos os anos 3:500,000 cruzados de bacalhau, que vem a ser 291.666 moedas de ouro, equivalentes a 29.166 bois gordos e belos, reputados a dez moedas cada um, nós criássemos estes bois em nossas terras desertas, e que os comêssemos, bem entendido, depois de impetrar uma bula para isto."
A coisa chega a ser engraçada, até pela perspectiva de acabar envolvendo o papa na questão (para emitir a bula que viria a autorizar o consumo dos bois em lugar do bacalhau na quaresma). Hoje o consumo do bacalhau preocupa os ambientalistas - não haverá, em pouco tempo, peixe suficiente para sustentar o crescente consumo mundial - enquanto que os bois, além de precisarem de uma enorme e antiecológica quantidade de água, acabam sendo sacrificados para um consumo de carne que não é nada saudável. Diante disso, meus leitores, parece  que estamos a um passo de voltar à tal "sopa para dias de peixe" da postagem anterior!

(1) Obra já citada na postagem "Dias de peixe".
(2) Frigideira.


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