Podia um escravo no Brasil vir a ser um homem livre? Sim, mesmo se desconsiderarmos as leis abolicionistas que precederam a Lei Áurea, como a Lei do Ventre Livre e a dos Sexagenários. Isso aconteceria se o escravo de algum modo obtivesse a quantia necessária para sua alforria ou se o seu senhor, de livre e espontânea vontade, o libertasse. Há casos memoráveis de escravos que juntaram ouro suficiente para a compra da liberdade, ao faiscarem em áreas de baixo rendimento em seus dias de folga - fala-se até em ex-escravos que passaram a ser senhores de outros escravos, tornando-se eles próprios mineradores, como neste exemplo citado por Hércules Florence:
"Conheci um velho preto de nação cabinda que, depois de conseguir a dinheiro sua libertação, a de sua mulher e filhos, comprara por seu turno lavras e escravos. Esse estimável negro tinha já por vezes dado a liberdade a uns vinte cativos seus e possuía ainda trinta, todos sãos, fortes e contentes." (¹)
Alguns viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil no século XIX notaram que ex-escravos, se eventualmente alcançavam certa prosperidade, procuravam adotar um estilo de vida muito semelhante ao que tinham seus antigos senhores. Uma rápida pesquisa nas gravuras de Debret é suficiente para que se constate isso.
Ocorria, às vezes, que um escravo encontrava uma grande quantidade de ouro e, em recompensa, seu senhor o alforriava, o que, afinal, servia de estímulo aos cativos para que suportassem o trabalho extenuante. Valia o mesmo na mineração de pedras preciosas. Os senhores que não o faziam eram tidos como sovinas, conforme se depreende desse relato também devido a Hércules Florence:
"Uma escrava do proprietário Domingos José de Azevedo (²), estando a lavar roupa, achou um diamante do valor de 6.000 francos, que ela foi levar ao seu senhor. Apesar do presente valer quatro vezes o preço da escrava, o ávido proprietário não lhe deu a liberdade." (³)
Podia ser, também, que um escravo fosse alforriado pelo senhor por outra razão qualquer, não sendo incomum que isso ocorresse quando o cativo era filho do proprietário. Nesse caso, quase sempre a alforria era estipulada em testamento.
Finalmente, era possível que alguma outra pessoa pagasse o valor do escravo para que este fosse liberto. Isso ocorreu mais frequentemente na segunda metade do século XIX, nas décadas que antecederam a Lei Áurea, quando sociedades abolicionistas estabeleciam fundos provenientes de doações para custear a manumissão de cativos, principalmente os mais velhos e/ou doentes (⁴).
Uma vez alforriado (durante o Império), o ex-escravo era cidadão apenas parcialmente: podia, tendo renda para isso, votar como eleitor de paróquia (o primeiro nível eleitoral no complexo sistema de voto censitário), mas não podia candidatar-se e, mesmo que viesse a ser muito rico, o que não era comum, não tinha acesso aos níveis eleitorais mais altos. Entretanto, seus filhos, se nascidos livres, eram, ao menos legalmente, perfeitamente aptos para a cidadania plena, ressalvadas as exigências do já citado sistema eleitoral baseado na renda (⁵). Livrar-se das malhas da escravidão não significava, pois, ser um "cidadão completo", já que o ex-escravo via-se, ao lado da população pobre de qualquer origem étnica, preso aos limites da discriminação econômica imposta pelo sistema censitário.
O que acima foi dito, porém, em termos de exercício da cidadania, era aplicável apenas aos libertos do sexo masculino - as mulheres, quer escravas, quer livres, estavam completamente excluídas do processo eleitoral, quer como eleitoras, quer como candidatas, condição que na época não era apanágio do Brasil. Era assim quase no mundo todo. À discriminação resultante dos preconceitos racial e econômico somava-se, no caso das ex-escravas, a que provinha do preconceito de gênero.
(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 201.
(2) Esse indivíduo terrível é o mesmo que mantinha a mulher trancada em um cubículo, conforme se menciona na postagem "A reclusão de mulheres no Brasil Colonial (Parte 2): Um caso extremo e uma exceção"
(3) FLORENCE, Hércules. Op. cit. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 148.
(4) Há mais informações sobre o caso dos libertos com a ajuda de sociedades abolicionistas na postagem "A libertação da escrava Joaquina".
(5) O sistema eleitoral vigente no Império é apresentado na postagem "Paixão à flor da pele: As eleições no Brasil durante o Período Imperial".
(6) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; imagem editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) O sistema eleitoral vigente no Império é apresentado na postagem "Paixão à flor da pele: As eleições no Brasil durante o Período Imperial".
(6) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; imagem editada para facilitar a visualização neste blog.
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otimo texto
ResponderExcluirObrigada. Que bom que você gostou!
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