domingo, 28 de abril de 2013

Consequências ruins da mineração no Brasil Colonial

É notável o fato de que, desde que começaram a colonizar o Brasil, tudo o que portugueses mais desejavam era encontrar jazidas de metais preciosos, de modo a dar alívio à empobrecida Coroa lusitana. O ouro, porém, demorou a aparecer (ou melhor, a ser encontrado). As "minas" trabalhadas desde fins do século XVI até meados do XVII proporcionavam magros resultados. No entanto, quando finalmente jazidas de real importância foram encontradas, as consequências que se apresentaram não foram, em sua totalidade, favoráveis aos colonos.
Uma dessas consequências foi, sem dúvida, uma elevação geral nos preços das mercadorias na Colônia, e não apenas nas regiões mineradoras. Antonil, por exemplo, refere em sua notável obra Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas:
"Mas o ter crescido tanto nestes anos o preço do cobre, ferro e pano e do mais de que necessitam os engenhos, e particularmente o valor dos escravos, que os não querem largar por menos de cem mil réis, valendo antes quarenta, e cinquenta mil réis os melhores, é a principal causa de haver subido tanto  o açúcar [...], depois de descobertas as minas de ouro, que serviram para enriquecer a poucos e para destruir a muitos [...]." (¹)
São Paulo, povoação ainda pequena, na época, sofreu muito com isso: de economia agrícola, tocada à base da mão de obra de indígenas escravizados, viu-se em penúria face à alta nos preços dos gêneros mais indispensáveis. Afinal, tudo o que se produzia destinava-se a abastecer as Minas, nas quais alimentos, vestuário, escravos, eram comprados e vendidos, literalmente, a peso de ouro. Quem iria querer comerciar a preços módicos em qualquer outra localidade? (²)
As migrações em massa constituíram-se em outra pesada consequência: esfomeados por ouro arriscavam tudo, das posses à vida, na esperança de ficarem ricos. Vinha gente do Reino, vinham estrangeiros (ainda que fosse proibido), vinha gente de outros lugares do Brasil. Consequentemente, despovoavam-se as vilas, escasseavam os braços para a lavoura, diminuía a produção agrícola. Mais um elemento, portanto, para elevar os preços dos gêneros de subsistência.
"E para que não fique este Estado do Brasil sem algum exemplo dos muitos em que a soberba e as riquezas têm feito estragos, reparai e notai com atenção. Ide a Pernambuco, passai ao Rio de Janeiro, subi a São Paulo, entrai nesta Cidade (³), correi estas vilas e seus recôncavos: vereis a quantos tem a soberba e os interesses feito notáveis destroços. A uns, arrimar bastões, a outros, largar ginetes, a muitos, encostar bengalas, a alguns, deixar alabardas, e fugirem muitos soldados, despejar engenhos, desamparar fazendas. E se perguntardes a essas ruínas quem lhes causou tão lastimosos estragos, vos responderão em ecos essas arruinadas paredes e medonhas fornalhas dos engenhos que tudo lhes procedeu da soberba e demasiada ambição." (⁴)
Medidas adotadas com o fito de deter os deslocamentos populacionais fracassaram completamente. Como mais tarde escreveria Varnhagen: "Não há diques que valham contra estas ondas de gente, que vão com passaportes ou sem eles, onde o seu melhor-estar os chama." (⁵)
 
(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 95.
(3) Refere-se a Salvador, então chamada Cidade da Bahia.
(4) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 18.
(5) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 894.


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quarta-feira, 24 de abril de 2013

Formigas, mosquitos, piolhos e outros bichos

Já tratei neste blog do medo que tinham os colonizadores tanto de grandes felinos quanto das serpentes que encontravam no Brasil. Ocorre que, quase tão temidos quando e, talvez até mais odiados, havia insetos que tornavam difícil a vida dos europeus que se aventuravam em busca da sobrevivência na Colônia.
É só uma formiguinha...
Ainda no século XVI, Pero de Magalhães Gândavo observou:
"Toda esta terra do Brasil é coberta de formigas pequenas e grandes, estas fazem algum dano às parreiras dos moradores, e às laranjeiras que têm nos quintais; e se não foram estas formigas houvera porventura muitas vinhas no Brasil ainda que lá são pouco necessárias porque deste Reino vai tanto vinho que sempre a terra dele está provida. Também há muita infinidade de mosquitos, principalmente ao longo de algum rio entre umas árvores que se chamam mangues, não pode nenhuma pessoa esperá-los; e pelo mato quando não há viração são muito sobejos e perseguem muito a gente." (¹)
Deixando de lado essa história da quantidade de vinho que vinha ao Brasil (!), deve-se notar que, em alguns casos, os insetos, além das incômodas picadas, eram transmissores de doenças que, pouco conhecidas dos europeus, causavam estragos entre a população, mesmo porque as práticas médicas da época não eram muito eficazes.
Vale recordar: Gândavo dizia escrever para estimular a vinda de colonos ao Brasil...
Duzentos e tantos anos depois, o Padre Ayres de Casal, louvando as virtudes da cidade de Belém (Pará), observou: "Há poucos dos insetos que se introduzem no corpo humano." (²)
Para os leitores que já sentem coçar até o cérebro, só resta dizer que havemos de prosseguir. Sim, piolhos, foi deles que falou Saint-Hilaire em sua Segunda Viagem a São Paulo, datada de época próxima à da Independência. O trecho refere-se ao Vale do Paraíba:
"Paramos no sítio de um agricultor que nos permitiu, muito delicadamente, pousássemos em sua casa. Está coberta de telhas, é a melhor que vimos depois de Jacareí. Entretanto, veste-se seu dono, tal qual os demais roceiros: camisa e calção de algodão. Não parece mais inteligente e ativo do que o resto de seus compatriotas, e enquanto conversava comigo catava piolhos à cabeça e matava-os sem cerimônia.
Em nenhuma outra parte do Brasil tal sevandija é tão frequente quanto aqui. As crianças e mulheres têm a cabeça cheia. Veem-se umas e outras a matarem reciprocamente os piolhos, tranquilamente sentadas à soleira das portas e não pensando em interromper tal ocupação quando os transeuntes as encaram." (³)
Saint-Hilaire não percorreu todo o Brasil, portanto essa observação de que havia ali mais piolhos que em outros lugares somente poderia valer para as regiões que visitou. Mas vamos logo terminar, que o que se tem até aqui já é de provocar calafrios.
Outro viajante, Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff (1825 - 1829), anotou em seu diário, como parte do relatório sobre o encontro com índios apiacás, na região do rio Juruena:
"Como nós, tinha aquela pobre gente o rosto, as mãos e os pés, não só pintados de picadas de piuns (inseto alado também chamado mosquito-pólvora, porque em tamanho não excede o de um grão de pólvora), senão também cobertos de feridas provenientes dessas ferroadas. Mais fazem sofrer outros insetos também alados, mas de maior tamanho, os borrachudos, porque a parte do corpo tocada inflama-se logo, sobrevindo tal prurido que é de coçar-se até verter sangue. Vieram-nos martirizando desde o rio Preto.
Por toda a parte víamo-nos cercados de nuvens desses malfazejos bichinhos, entrando-nos pelos olhos, nariz, orelhas e boca, nas horas de refeição. Malgrado o excessivo calor, cobríamo-nos todos, e ainda assim era preciso estar agitando o dia inteiro um pano ou um espanador de penas para afugentá-los. Com a noite desaparecem, mas voltam, mal raia a madrugada, para recomeçarem a diabólica tarefa.
Por vezes causaram-nos essa praga e a febre acessos de raiva e recriminações inconvenientes." (⁴)
Nem era preciso dizer, não é mesmo? Imprecações, neste caso, eram compreensíveis e mais que perdoáveis. E depois ainda há quem imagine tais expedições como aventuras românticas!

(1) GÂNDAVO, Pero de. Magalhães Tratado da Terra do Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 72.
(2) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 2. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 299.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 96.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, pp. 225 e 226.


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domingo, 21 de abril de 2013

Escravos, ainda que cristãos, não tinham direito à imunidade da Igreja

O Segundo Livro das Ordenações do Reino, no Título V, determinava em que condições vigoraria a chamada "Imunidade da Igreja", ou seja, quando um templo católico poderia ser refúgio para alguém acusado de um crime. Assim, exemplificando, alguém que violentasse uma virgem teria direito à tal imunidade (salientando a lei que isso era determinado pelo Direito Canônico), mas não aquele que, por força, roubasse a mulher de um outro e em seguida a violentasse (veja-se o § 4, do Livro e Título citados); judeus e mouros não tinham qualquer direito à imunidade, a não ser que se "convertessem" enquanto estavam na igreja (conforme o § 1º).
E qual era a situação dos escravos que porventura fugissem de seus senhores e buscassem refúgio em uma igreja? O § 6 esclarecia:
"Item, se o escravo (ainda que seja cristão) fugir a seu senhor para a Igreja, acoutando-se a ela, por se livrar do cativeiro em que está, não será por ela defendido, mas será por força tirado dela. E defendendo-se ele, se de sua tirada se lhe seguir a morte, não haverá seu senhor, ou quem o assim tirar (sendo seu criado, ou fazendo-o por seu mandado), pena alguma." (¹)
Vale lembrar que as Ordenações não eram restritas ao território europeu de Portugal, mas vigoravam igualmente nas colônias, o que significa, portanto, que, por séculos, valeram para o Brasil. Já se vê, desse modo, qual era o tratamento que os escravos podiam esperar, mesmo no espaço considerado sagrado, conforme ressalta a legislação, ainda que fossem cristãos. Neste caso, o ser cristão não podia ser um pretexto para abalar a férrea ordem social e econômica vigente. Cai por terra o argumento muito utilizado nos tempos coloniais de que a escravidão era tolerada para levar os cativos ao "conhecimento do Evangelho". Ora, se já eram cristãos, por que, então, deveriam permanecer escravos?
Judeus e mouros, terrivelmente estigmatizados e até proscritos, em certas épocas, podiam, mediante uma conversão talvez forçada, ter acesso à Imunidade da Igreja  (²). Até mesmo estupradores, em certos casos, a tinham. Escravos fugitivos? Nunca.

(1) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Essas conversões forçadas, no entanto, estavam longe de eliminar o estigma social. Que se veja o significado que o termo "cristão-novo" teve durante séculos, até que a distinção entre cristãos "velhos" e "novos" fosse formalmente abolida no período pombalino.


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quarta-feira, 17 de abril de 2013

Uniformes militares do passado e da atualidade

A tendência atual nos uniformes militares é de que sejam feitos de modo a tornar quase invisíveis, ou melhor, imperceptíveis, aqueles que têm de usá-los. Aprendeu-se a sábia lição da natureza: seres vivos, muitas vezes frágeis em sua constituição, são capazes de disfarçar-se, pelas cores e/ou formato, para que não caiam facilmente em poder de seus predadores. É o chamado mimetismo. O lepidóptero da foto abaixo ilustra bem a questão.


A humanidade, no entanto, demorou a aceitar essa ideia. Quem é que nunca viu, ao menos em livros, antigos uniformes militares com cores vistosas e até berrantes, como vermelho ou azul intenso? A Inglaterra muito se orgulhou dos homens que, em Waterloo, formaram a chamada "linha vermelha", não por acaso assim denominada: jaquetas vermelhas eram parte do uniforme. As calças eram azuis.
Na época, essas cores tinham alguma vantagem: permitiam que os homens se reagrupassem com maior facilidade para formações de tiro que haviam sido treinadas. Entretanto, fazia de cada soldado um alvo fácil para o inimigo, de modo que, gradualmente, as cores vistosas foram perdendo terreno para algum tipo de uniforme mais discreto, que podia ser cinza algumas vezes, depois cáqui ou verde, conforme o terreno no qual se deveria combater.
Soldado do Segundo
Regimento do
Rio de Janeiro,

1786 (²)
No Brasil, as coisas foram mais ou menos pelo mesmo caminho. Apenas como ilustração, há um trechinho de Varnhagen no qual se descreve o uniforme usado na chamada "Guerra dos Mascates", ocorrida no início do século XVIII. Diz ele:
"Do traje dos nossos fuzileiros de então teremos perfeita ideia, dizendo que era com pouca diferença o dos mosqueteiros: calções e meias com sapato e fivela, sendo as fardas umas sobrecasacas agaloadas de mangas largas, e os chapéus de três bicos, dos quais um ficava para diante." (¹)
Desnecessário é dizer que, daí por diante, os uniformes no Brasil seguiram, aproximadamente, o que era usual em outros  países ocidentais. Entretanto, por vezes, isso se mostrava inadequado ao combate em certos terrenos, como se evidenciou, em fins do século XIX, no conflito de Canudos. Euclides da Cunha, que acompanhou parte da Guerra no próprio local, observou que os soldados "do governo", estavam sempre em desvantagem, e que muito mais adequado era o vestuário de couro dos sertanejos, face às adversidades da caatinga. Menciona, primeiro, em Os Sertões, o problema decorrente do uniforme que então se usava no Exército:
"Soldados vestidos de pano, rompendo aqueles acervos de espinheirais e bromélias, mal arriscavam alguns passos, deixando por ali, esgarçados, os fardamentos em tiras."
Soldado de Cavalaria, 1841 (³)
Passa, depois, a explicar por que, em seu modo de ver, dever-se-ia copiar a indumentária dos vaqueiros sertanejos:
"O hábito dos vaqueiros era um ensinamento. O flanqueador devia meter-se pela caatinga, envolto na armadura de couro do sertanejo - garantido pelas alpercatas fortes, pelos guarda-pés e perneiras, em que roçariam inofensivos os estiletes dos xiquexiques pelos gibões e guarda-peitos, protegendo-lhe o tórax, e pelos chapéus de couro, firmemente apresilhados ao queixo, habilitando-o a arremessar-se, imune, por ali adentro."
E, como que adivinhando as objeções, acrescenta:
"Não seria, isso, excessiva originalidade. Mais extravagantes são os dólmãs europeus de listas vivas e botões fulgentes, entre os gravetos da caatinga decídua."
Desnecessário é dizer que a lição, no Brasil e no mundo, foi devidamente aprendida. Uniformes reluzentes, hoje? Só mesmo em museus e em desfiles militares.
 
(1) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 830.
(2) O original, obra de José Corrêa Rangel, pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) O original, obra de Joaquim Lopes de Barros, pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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domingo, 14 de abril de 2013

Simonia

"Que haja certas mercancias
não de coisas temporais
mas de outras espirituais,
que se chamam simonias:
que haja quem todos os dias
com modo tão peregrino
seja ladrão ao divino
com tão falsa narratória!
Boa história."

Gregório de Matos, A Musa Praguejadora


Em uma definição bem simples, simonia é o comércio de bens espirituais. Tal assunto já motivou querelas terríveis, há alguns séculos, e ultimamente tem andado na moda, outra vez. Aos que são cristãos, parece um absurdo que alguém, com dinheiro, imagine poder comprar coisas como  um lugar no céu, um tempo menos longo no purgatório, ou mesmo o consolo de um sacramento na hora da morte. No entanto, para lástima da humanidade, tem havido muita gente supostamente querendo vender os "bens espirituais", como há, quase sempre, quem esteja disposto a efetuar tal compra.
Saint-Hilaire encontrou dois desses "comerciantes" quando andou, no século XIX, pelo Rio Grande do Sul e território do atual Uruguai, e não economizou palavras para recriminá-los.
Em um tempo no qual simplesmente não havia hotéis pelo Brasil, Saint-Hilaire dependia, ao longo de suas viagens com o fim de estudar principalmente a flora do Brasil, de encontrar hospedagem em casas de particulares. É aí que entra a história do Padre Alexandre, que peremptoriamente recusou abrigo ao viajante:
"Convém salientar que os dois únicos homens que me recusaram hospitalidade durante minhas longas viagens foram um materialista e um padre, mas com a diferença de que fui bem recebido pelo materialista, quando este soube quem eu era, enquanto o padre se manteve irredutível. A reprovação que acabo de fazer não deve causar surpresa; um mau sacerdote é o pior de todos os ímpios, pois faz do sacrilégio um hábito cotidiano. Seria talvez injusto julgar o Padre Alexandre por apenas um ato, mas eu já sabia, pelo alferes, que esse homem fazia o tráfico dos sacramentos e que, tendo a permissão de batizar em sua fazenda, não o fazia por menos de oito mil-réis; entretanto foi cura de São Borja por muito tempo [...]." (¹)
Com isso, lá se foi o muito religioso Saint-Hilaire, amargando seu desgosto com o padre, ainda mais uma légua adiante, até uma estância onde, dessa vez, foi muito bem recebido.
Ainda na mesma viagem, encontraria outro caso de simonia, dessa vez absolutamente explícito:
"A Capela de Santa Maria depende, como disse, da Paróquia de Cachoeira, cujo vigário recebe de cada fiel meia pataca em confissão pascal. Os habitantes de Santa Maria se cotizam, estabelecendo um donativo ao seu capelão. Este recebeu do cura para ouvir confissões e seus penitentes lhe pagam meia pataca que ele envia ao cura. Seria de toda justiça que, em relação ao dinheiro, o cura pagasse ao capelão, como se faz em Minas; mas para ele, essa parte da paróquia é uma espécie de sinecura que ele recebe sem encargos, e seu tratamento com o capelão se reduz a isto: "Eu lhe permito exercer as funções de cura no Distrito de Santa Maria e de receber salários de meus paroquianos, mas com a condição de reservar o produto da venda das confissões pascais." Acho que é impossível levar mais longe a simonia." (²)
 
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Tenho já abordado neste blog, algumas vezes, o fato de que, pela extensão territorial do Brasil e pelas dificuldades de comunicações, era muito difícil assegurar o cumprimento das leis e a administração da justiça. Esses casos de simonia, relacionados mais à Igreja que à autoridade civil (embora, nesse tempo, não existisse no Brasil nada que se pudesse chamar de "Estado laico"), inscrevem-se no mesmo contexto. Era quase impraticável às autoridades eclesiásticas o exercício de uma fiscalização eficiente do que ocorria em paróquias muito distantes umas das outras, isso quando havia párocos para atender à população (embora todo mundo, para que houvesse assistência religiosa, pagasse os dízimos ao governo português), sendo perfeitamente possível que a alguns colonizadores transcorresse a vida toda sem que, nas localidades remotas em que se estabeleciam, vissem aparecer um único clérigo. Por outro lado, quase não têm conta os relatos de padres que gastavam seus dias caçando índios no sertão ou de monges que abandonavam suas Ordens para ir procurar ouro nas minas.
Tem-se, pois, que tais fatos são um bom termômetro do modo muitas vezes desordenado pelo qual se deu a colonização. Meus leitores sabem perfeitamente quais foram (e são...) as consequências disso.

(1) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, pp. 319 e 320.
(2) Ibid., p. 405.


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quarta-feira, 10 de abril de 2013

Superstições no Brasil - Parte 3

Superstições na literatura brasileira: do ouro que virava carvão à sexta-feira, dia 13


Na literatura brasileira do século XIX há uma variedade de exemplos de superstições que eram, então, populares. Vão aqui apenas alguns casos.

1. Em As Minas de Prata, José de Alencar refere que, nos tempos coloniais, havia uma exótica crendice relacionada a dinheiro que alguém, para escondê-lo, havia enterrado:
"Ainda hoje há pelo interior quem acredite que o dinheiro enterrado por pessoa finada se transforma em carvão, à vontade de quem o possuiu, e sobretudo quando o acha outro, que não o escolhido herdeiro da alma penada.
Encontrando a botija, os salteadores sem dúvida acreditariam que o ouro de que estava cheia se trocara em carvão; e deixariam em paz a casa de D. Dulce. Então, quando se retirassem já aterrorizados com a superstição, esbarrariam nos quadrilheiros (¹) postados ali perto, e iriam chorar os seus pecados na cadeia até o dia do castigo."
Como veem, senhores leitores, é quase de se lamentar que tal superstição tenha perdido completamente sua força!

2. Outra de Alencar, desta vez em Til, versando sobre as explicações supersticiosas que se atribuíram à origem de uma menininho abandonado que certo dia apareceu, sobre um cavalo, no terreiro de uma fazenda:
"Como de costume, apareceram várias conjecturas e invenções, cada qual mais engenhosa. Uma velha, muito versada no Novo Testamento, afirmou que esse menino era o anticristo e o sendeiro a própria besta do Apocalipse, descrita por S. João. Outra jurava ser o caçula do diabo cocho que se metera na pele do bugrezinho, e andava fazendo estripulias pelo mundo."
Tem-se, por este exemplo, uma noção das ideias malucas que povoavam a cabeça das pessoas quando se tratava de crianças abandonadas e/ou de origem desconhecida. Era a culminação da infelicidade, vir ao mundo como um ser frágil e já em péssima situação, e ser ainda alvo de superstições cabeludas. E olhem que este não é o único caso na literatura brasileira em que há referência aos supostos maus agouros associados a pequenos que ninguém sabia exatamente de onde vinham.
Agora, Machado - para recordar duas das mais universais superstições, a do número 13 e a da sexta-feira. Vamos a elas.

3. Trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas:
"Referiu-lhe que o decreto trazia a data de 13, e que esse número significava para ele uma recordação fúnebre. O pai morreu num dia 13, treze dias depois de um jantar em que havia treze pessoas. A casa em que morrera a mãe tinha o número 13. Et coetera. Era um algarismo fatídico. Não podia alegar semelhante coisa ao ministro; dir-lhe-ia que tinha razões particulares para não aceitar."
Neste caso, Machado de Assis toca, de passagem, em um aspecto curioso das superstições. É que, sendo elas amplamente aceitas e mais amplamente ainda execradas, ninguém que se julgue pessoa instruída quer assumir que as acolhe. Mas é raro encontrar quem não tenha lá, sob esse aspecto, suas manias.

4. Por último, uma citação de Dom Casmurro:
"Um dia, - era uma sexta-feira, - não pude mais. Certa ideia, que negrejava em mim, abriu as asas e entrou a batê-las de um lado para outro, como fazem as ideias que querem sair. O ser sexta-feira creio que foi acaso, mas também pode ter sido de propósito; fui educado no terror daquele dia; ouvi cantar baladas em casa, vindas da roça e da antiga metrópole, nas quais a sexta-feira era o dia de agouro. Entretanto, não havendo almanaques no cérebro, é provável que a ideia não batesse as asas senão pela necessidade que sentia de vir ao ar e à vida. A vida é tão bela que a mesma ideia da morte precisa de vir primeiro a ela, antes de se ver cumprida."
Pois bem, deixando Bento (ou Dom Casmurro, como queiram) de lado, juntamente com suas neuróticas suspeitas (²), tratemos de encerrar esta postagem que, aliás, não sai nem em dia 13, muito menos em sexta-feira. Tenham, pois, um ótimo dia, senhores leitores!

(1) Assim eram chamados, segundo as Ordenações do Reino, os indivíduos com funções policiais que, à noite, vigiavam a cidade (Veja-se o Livro Primeiro, Título 73 das Ordenações).
(2) Ou nem tanto...


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domingo, 7 de abril de 2013

Superstições no Brasil - Parte 2

Cobra que mamava, cirurgião que benzia os doentes


Há coisas em que muita gente acredita - mesmo sabendo racionalmente que não passam de tolices - e que acabam passando de uma geração a outra (¹). São as chamadas superstições, a respeito das quais uma investigação do passado do Brasil pode revelar coisas interessantes e curiosas, quer através dos documentos históricos clássicos, quer através de passagens da literatura, sempre úteis neste caso.
Reuni aqui uma pequena coleção dessas crendices, para quem quiser ter uma ideia de quão longe podia ir a fantasia popular. Vejamos: 

1. Frei Vicente do Salvador, cujo manuscrito de sua História do Brasil data de c. de 1627, relatou vários absurdos a respeito das cobras que podiam ser encontradas na colônia portuguesa na América, dentre os quais o que segue adiante:
"Também me contou uma mulher de crédito na mesma Capitania de Pernambuco, que estando parida lhe viera algumas noites uma cobra mamar nos peitos, o que fazia com tanta brandura, que ela cuidava ser a criança, e depois que conheceu o engano o disse ao marido, o qual a espreitou na noite seguinte e a matou." (!!!)
Primeiro, chama a atenção que alguém instruído como era Frei Vicente do Salvador acreditasse em semelhante lorota; depois, não é difícil imaginar que, em tempos de poucas luzes intelectuais entre a gente comum, uma história dessas, repetida com muita convicção, acabasse passando ao acervo de lendas tidas e aceitas como estrita realidade, a despeito do absurdo que hoje só pode nos fazer rir. 

2. Dando um salto no tempo, vamos ao caso 2, desta vez relatado por Saint-Hilaire. Aqui o naturalista francês mostra-se indignado ao observar um cirurgião que, ao fazer seu trabalho médico, acrescentava a ele o hábito de benzer ferimentos:
"Entre eles um cirurgião que se apressou em me dar a conhecer os seus títulos tomando ares de importância que pareciam dizer "Senhores, respeitem-me". Cada qual se apressou em consultá-lo e entre outros um moço que o comandante de Rio Preto pediu-me que levasse a Barbacena e sofre de não sei que doença de pele. O honrado cirurgião disse-lhe que lhe ia dar um remédio. No dia seguinte estaria são. Misturou efetivamente pólvora ao sumo do algodão; com semelhante droga esfregou as partes enfermas a que benzeu depois mandando o paciente deitar-se, a assegurar-lhe o êxito de sua medicação.
Já tive diversos ensejos de falar, no meu diário, da confiança que os brasileiros dispensam aos amuletos e remédios de simpatia. Um dos meios de cura que empregam, também muito frequentemente, é o benzimento de seus males. O charlatão terapeuta deve ao mesmo tempo repetir uma fórmula devocional. Uma multidão de indivíduos encarrega-se assim de benzer as pessoas e isto na maior boa-fé; mas não posso conceber que um homem que se intitula cirurgião e por conseguinte deve ter sido diplomado, sancione com o exemplo as práticas supersticiosas." (²) 
Deixando de lado o remédio empregado (!!!!!!), como não sabemos quem era o cirurgião, até porque Saint-Hilaire não lhe menciona o nome, não temos ideia quanto a ser ele de fato diplomado ou não. O que Saint-Hilaire talvez não tenha considerado é que, no Brasil daqueles tempos (primeira metade do século XIX) havia pouquíssimos médicos com a devida formação e o povo, em geral, chamava "cirurgião", a qualquer indivíduo que se apresentasse dizendo ser capaz de aplicar medicamentos ou realizar procedimentos como tratar feridas, extrair dentes ou efetuar as famosas "sangrias" (que por si sós, já dariam uma postagem). Era, inclusive, nada incomum que barbeiros exercessem essas funções. Não é, pois, espantoso, que pessoas sem qualquer instrução formal em medicina fizessem seus "tratamentos", misturando crendices populares a supostos fármacos. A propósito, há sobre isso uma interessantíssima imagem de Debret (veja abaixo), na qual é retratada a loja de um barbeiro, cuja placa indica também serviços de "dentista" e "sangrador" (³).

Loja de barbeiro, segundo Debret (³), na qual também se ofereciam serviços
de "dentista" e "sangrador"

(1) Veja a postagem Superstições no Brasil - Parte 1: Casa mal-assombrada
(2) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, pp. 31 e 32.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 3 de abril de 2013

Superstições no Brasil - Parte 1

Casa mal-assombrada


Foi há quinze ou vinte dias. Três femininas gerações caminhavam ao redor de um desses casarões de fazenda, dos tempos áureos do café, agora completamente em ruínas. A menorzinha, uns sete ou oito anos, perguntou:
- Mamãe, é verdade que essa casa é mal-assombrada?
A vovó aparteou:
- Claro que não, meu bem. Não existe casa mal-assombrada.
A pirralhinha, porém, insistiu:
- Existe sim, vó, e todo mundo na escola diz que essa casa é mal-assombrada!
Por suposto, meus leitores, eu não podia tapar os ouvidos para não ouvir a conversa. Não, não sou xereta, não. É que tudo isso me fez pensar em um monte de coisas.
Primeiro, lembrei-me de que quando tinha a idade da netinha, me perguntava se, dizendo as pessoas que tal ou qual lugar era mal-assombrado, existiria também casa bem-assombrada... Podem rir. O que seria, afinal, uma casa bem-assombrada?
Outra coisa - a observação quanto ao casarão em ruínas não vinha do nada. A foto abaixo, de uma das suas janelas que ainda insiste em sobreviver, fala por si mesma, não é? Nem é preciso muita imaginação para supor coisas terríveis à noite em um lugar desses, se durante o dia já é assim.

Urubus na janela do casarão em ruínas de que trata esta postagem
Finalmente, não deixa de ser intrigante como as superstições se propagam e conseguem sobreviver. No caso dessa família, fica evidente que nem a mãe e nem a avó ensinaram tolices à menininha que, no entanto, foi enfática em afirmar que na escola todo mundo diz que a casa é mal-assombrada.
Ora, sejamos otimistas e admitamos que nenhum professor ou professora ensina uma bobagem dessas aos alunos. Ainda assim, a convivência junto a colegas portadores dessas "informações" levou a criança a acreditar na superstição, de preferência a dar crédito ao que diziam mãe e avó. E isso por si só já dá o que pensar, sobre a tal propensão que têm as mentes humanas em voar junto a mil fantasias, nem todas elas tão inofensivas quanto a crença em assombrações. Talvez muitos dos medos da infância consigam, disfarçadamente, sobreviver na mente de gente adulta, que assume que não há mula sem cabeça ou lobo mau, mas que não passa sob uma escada de jeito nenhum. "Yo no creo en brujas, pero..."


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