Cobra que mamava, cirurgião que benzia os doentes
Há coisas em que muita gente acredita - mesmo sabendo racionalmente que não passam de tolices - e que acabam passando de uma geração a outra (¹). São as chamadas superstições, a respeito das quais uma investigação do passado do Brasil pode revelar coisas interessantes e curiosas, quer através dos documentos históricos clássicos, quer através de passagens da literatura, sempre úteis neste caso.
Reuni aqui uma pequena coleção dessas crendices, para quem quiser ter uma ideia de quão longe podia ir a fantasia popular. Vejamos:
1. Frei Vicente do Salvador, cujo manuscrito de sua História do Brasil data de c. de 1627, relatou vários absurdos a respeito das cobras que podiam ser encontradas na colônia portuguesa na América, dentre os quais o que segue adiante:
"Também me contou uma mulher de crédito na mesma Capitania de Pernambuco, que estando parida lhe viera algumas noites uma cobra mamar nos peitos, o que fazia com tanta brandura, que ela cuidava ser a criança, e depois que conheceu o engano o disse ao marido, o qual a espreitou na noite seguinte e a matou." (!!!)
Primeiro, chama a atenção que alguém instruído como era Frei Vicente do Salvador acreditasse em semelhante lorota; depois, não é difícil imaginar que, em tempos de poucas luzes intelectuais entre a gente comum, uma história dessas, repetida com muita convicção, acabasse passando ao acervo de lendas tidas e aceitas como estrita realidade, a despeito do absurdo que hoje só pode nos fazer rir.
2. Dando um salto no tempo, vamos ao caso 2, desta vez relatado por Saint-Hilaire. Aqui o naturalista francês mostra-se indignado ao observar um cirurgião que, ao fazer seu trabalho médico, acrescentava a ele o hábito de benzer ferimentos:
"Entre eles um cirurgião que se apressou em me dar a conhecer os seus títulos tomando ares de importância que pareciam dizer "Senhores, respeitem-me". Cada qual se apressou em consultá-lo e entre outros um moço que o comandante de Rio Preto pediu-me que levasse a Barbacena e sofre de não sei que doença de pele. O honrado cirurgião disse-lhe que lhe ia dar um remédio. No dia seguinte estaria são. Misturou efetivamente pólvora ao sumo do algodão; com semelhante droga esfregou as partes enfermas a que benzeu depois mandando o paciente deitar-se, a assegurar-lhe o êxito de sua medicação.
Já tive diversos ensejos de falar, no meu diário, da confiança que os brasileiros dispensam aos amuletos e remédios de simpatia. Um dos meios de cura que empregam, também muito frequentemente, é o benzimento de seus males. O charlatão terapeuta deve ao mesmo tempo repetir uma fórmula devocional. Uma multidão de indivíduos encarrega-se assim de benzer as pessoas e isto na maior boa-fé; mas não posso conceber que um homem que se intitula cirurgião e por conseguinte deve ter sido diplomado, sancione com o exemplo as práticas supersticiosas." (²)
Deixando de lado o remédio empregado (!!!!!!), como não sabemos quem era o cirurgião, até porque Saint-Hilaire não lhe menciona o nome, não temos ideia quanto a ser ele de fato diplomado ou não. O que Saint-Hilaire talvez não tenha considerado é que, no Brasil daqueles tempos (primeira metade do século XIX) havia pouquíssimos médicos com a devida formação e o povo, em geral, chamava "cirurgião", a qualquer indivíduo que se apresentasse dizendo ser capaz de aplicar medicamentos ou realizar procedimentos como tratar feridas, extrair dentes ou efetuar as famosas "sangrias" (que por si sós, já dariam uma postagem). Era, inclusive, nada incomum que barbeiros exercessem essas funções. Não é, pois, espantoso, que pessoas sem qualquer instrução formal em medicina fizessem seus "tratamentos", misturando crendices populares a supostos fármacos. A propósito, há sobre isso uma interessantíssima imagem de Debret (veja abaixo), na qual é retratada a loja de um barbeiro, cuja placa indica também serviços de "dentista" e "sangrador" (³).
(1) Veja a postagem Superstições no Brasil - Parte 1: Casa mal-assombrada
Loja de barbeiro, segundo Debret (³), na qual também se ofereciam serviços de "dentista" e "sangrador" |
(2) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, pp. 31 e 32.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
Veja também:
Nem precisa recuar no tempo... aqui, no Ceará, ainda encontra-se rezadeiras que, com um ramo de "mastruz", diz tirar o "quebranto" ou sarar a "espinhela caída" de criança e de adulto.
ResponderExcluirAcredite, quem quiser!
Gosto, das matérias aqui expostas.
Rsrsrs, não é só no Ceará... É claro que todo mundo tem o direito de acreditar naquilo que quiser, devendo ser respeitado nisso, mas não deixa de ser curioso que em nosso tempo, em que tanto valorizamos o saber científico, essas crenças ditas "populares" ainda tenham tamanha aceitação, não é mesmo?
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