quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Abusos decorrentes do escambo persistiam no Século XIX

Em outra postagem, já tratei da questão dos abusos que eram cometidos contra indígenas durante a prática do escambo no Brasil Colonial. É verdade que as trocas de objetos começaram de forma amistosa, e pode-se dizer, sem receio de erro, que foram importantes para que europeus e indígenas travassem contato com elementos culturais diferentes dos seus. Não foram, portanto, más em si mesmas - maus foram os resultados.
A dificuldade apareceu quando diferenças de mentalidade levaram a trocas extremamente desfavoráveis aos indígenas. Colonizadores tinham sede de lucro, enquanto indígenas entendiam as coisas pela sua utilidade e não estavam habituados às estratégias comerciais. Acabavam, quase sempre, prejudicados.
O que pretendo mostrar, hoje, é que as práticas abusivas no escambo não ficaram restritas aos tempos coloniais. Mercadores que percorriam os rios da Amazônia no Século XIX chegavam a aldeias indígenas longínquas e, depois de ganhar a confiança dos moradores, propunham trocas. Um relatório apresentado à Assembleia Legislativa do Pará em 1862 pelo conselheiro Brusque (¹) e citado pelo Cônego Francisco Bernardino de Sousa (²) dizia que uma forma de exploração dos indígenas chegava bem perto do trabalho escravo:
"Para logo os destina à colheita de castanha, à extração de salsa (³) e de outros produtos naturais, e quando passados três ou quatro meses de árduo trabalho, regressa [o indígena] ao grêmio da aldeia, ele [o comerciante] lhe faz a conta de modo que o mísero índio lhe fica devendo ainda (⁴)."
As trocas, propriamente, eram quase sempre injustas:
"No Gurupi um corte de calças de algodão ordinário, que custa nesta cidade 1$000 (⁵), é dado ao índio em troca de um pote de óleo de copaíba, que contém uma canada e meia a duas canadas, e que vale por conseguinte neste mercado 20$000 (⁶).
Uma arma de fogo ordinária no valor de 5$000 é dada em troca de três potes de óleo.
Um barril de pólvora que custa 17$000 é o equivalente de 8 potes (7)."
O mesmo autor assegurou que procedimento análogo era adotado em outras localidades. Assim seguia o escambo, até o momento em que, percebendo o quanto eram explorados, indígenas se revoltavam e episódios violentos chegavam a ocorrer.

(1) Francisco Carlos de Araújo Brusque.
(2) Encarregado dos trabalhos etnográficos da Comissão do Madeira.
(3) Salsaparrilha.
(4) SOUSA, Francisco Bernardino de. Pará e Amazonas. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1874, p. 133.
(5) Mil réis. 
(6) Vinte mil réis.
(7) SOUSA, Francisco Bernardino de. Op. cit. p. 133.


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terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Terminália

Qual é o último dia do ano? Para nós é 31 de dezembro, mas quem vivia nos primeiros tempos de Roma pensava diferente e celebrava o fim de cada ciclo anual em data que, em nosso calendário, corresponde ao dia 23 de fevereiro. Nessa ocasião acontecia uma festa importante em honra do deus Termo (*), cuja representação, ao contrário de outras divindades honradas com belas estátuas, consistia em simples marcos de pedra. O nome da festa, portanto, era Terminália.
A função prática, porém, desses marcos, não era insignificante. Eram eles que delimitavam propriedades, bem como assinalavam distâncias nas estradas romanas. Em decorrência, considerava-se que mudar um marco de lugar, como representação de um deus que era, consistia em terrível sacrilégio. Havia nisso, portanto, um instrumento de dissuasão para atrevidos que intentassem aumentar uma propriedade, recuando marcos dos vizinhos. Como veem, leitores, a religião dos antigos às vezes era bastante pragmática.
Grandes festejos aconteciam em 23 de fevereiro para homenagear Termo, quando os marcos ("deuses", não se esqueçam!) eram cobertos por flores, e, sobre eles, colocava-se também o sangue de animais sacrificados em sua honra, nada muito diferente do que se praticava em outras celebrações religiosas da Antiguidade.

(*) Ou Término, uma divindade menor do panteão romano.


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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Traidores da pátria

Tarpeia era uma jovem romana. Não se pode afirmar que não amava sua cidade, mas as joias exerciam sobre ela um fascínio irresistível.  
Corria a guerra entre romanos e sabinos, em decorrência do famoso rapto de mulheres, perpetrado à traição pelos romanos que, de outro modo, veriam sua cidade extinta pela impossibilidade da procriação. Durante um episódio da guerra, Tarpeia notou que os soldados sabinos usavam vistosos braceletes de ouro, e resolveu propor a eles um acordo: encontraria um modo de favorecer sua entrada em Roma, com a condição de receber os braceletes.
Entre o ouro e a pátria, Tarpeia preferiu o ouro. Tarde da noite, franqueou a entrada da fortaleza do Capitólio aos sabinos, e aguardou o cumprimento do acordo, que não tardou a vir. Mas, como traidores quase sempre são odiados pelos traídos e desprezados por aqueles a quem favoreceram, foi soterrada de modo horripilante pelos braceletes que os guerreiros sabinos, à medida que entravam, atiravam violentamente contra ela. Que nome se dá a esse insólito "apedrejamento"? Morreu, é claro.
Plutarco, que contou o caso (¹), dizia haver outras versões para o incidente, ainda que entendesse ser essa a mais confiável. Faço, no entanto, uma objeção: se Tarpeia era romana, filha de pais romanos, como se pode afirmar que não havia mulheres em Roma, daí a "necessidade" do rapto das sabinas? É forçoso reconhecer a existência de duas, ao menos, ela e sua mãe. Mas, para abandonar o terreno das lendas (talvez não totalmente lendárias) da antiga Roma, observe-se que existia, por lá, uma famosa localidade conhecida como Rocha Tarpeia, cujo uso, nas palavras de Plutarco, era este: "Há no próprio Capitólio uma grande pedra, que até hoje é chamada Rocha Tarpeia, da qual se usa precipitar os criminosos" (²).
Traição é coisa que pode ser relativizada? Falemos do Brasil Colonial. Os leitores já devem, por certo, ter ouvido falar sobre Domingos Fernandes Calabar. Viveu na época da ocupação holandesa de parte do Nordeste brasileiro (³) e, como muitos outros, se apresentou para a luta contra os recém-chegados. Entretanto, depois de algum tempo, passou para o lado dos holandeses (⁴), que, graças a seu conhecimento do território, obtiveram vitórias importantes contra os portugueses. Aqui será bom explicar que, portugueses, neste caso, eram, em sua maioria, gente nascida no Brasil, que ainda se considerava, sem questionamentos, portuguesa de nacionalidade, mesmo nunca tendo posto os pés no Reino.
Prossigamos. Foi assim que frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, autor setecentista, se referiu a Calabar: 
"Foi este sujeito um mulato ou mameluco (⁵) de grande astúcia e valor, ajudado de uma inclinação perversa e malévola. Era natural e nascido em o mesmo Porto Calvo, aonde a este tempo ainda tinha mãe, chamada Ângela Álvares. No princípio serviu aos nossos com esforço e ousadia, até o ano de 1632 em que temendo ser castigado por alguns crimes atrozes que havia cometido, se passou aos holandeses. [...]" (⁶).
Que crimes seriam esses? Vários autores os mencionam, sem, contudo, especificá-los. Maledicência ou fato, quem saberá?
Capturado pelos que lutavam contra os holandeses, Calabar foi executado. Não se esperaria outra coisa. Disse Jaboatão: "[...] Com a forca, os quartos pregados em quatro estacas e a cabeça em o alto de um pau, veio a pagar todos estes desconcertos, e ali mesmo, donde para escândalo dos seus havia nascido. [...]" (⁷).
O fato de Antônio de Santa Maria Jaboatão, mais de cem anos após a execução de Calabar, persistir em considerá-lo um mero traidor, parece evidenciar que a opinião popular a seu respeito em nada mudara. Há, no entanto, que assinalar um aspecto que costuma ser pouco considerado: autores como Jaboatão, franciscano que era, não mostrariam, nesse tempo, nenhuma benevolência por um simpatizante dos holandeses protestantes, referidos, comumente, como nada mais que hereges. Coisas da época, como se sabe.
No Século XIX, em tempos de formação do conceito de nacionalidade no Brasil pós-Independência, Varnhagen, que não era padre, não mostrou qualquer tolerância em relação a Calabar. Pelo contrário, suas palavras na História Geral do Brasil foram duras, como mais não poderiam ser, depois de relatar que, antes do enforcamento, Calabar fizera confissão e recebera os sacramentos, com a devida absolvição da parte de um sacerdote católico (⁸): "[...] Desses pecados o Todo-Poderoso lhe tomaria contas, e com a sua imensa misericórdia poderá tê-los perdoado; porém dos males que causou à pátria, a história, a inflexível história lhe chamará infiel, desertor e traidor, por todos os séculos dos séculos." (⁹).
Ainda segundo Varnhagen, holandeses, tendo sabido da execução de Calabar, prestaram-lhe honras fúnebres. Contudo, estava errado ao supor que Domingos Fernandes Calabar seria, perpetuamente, tido em má conta. Não demorou para que um olhar diferente fosse lançado sobre suas ações. Quem lê a Crônica Geral do Brasil, de Alexandre de Mello Moraes, escrita ainda no Século XIX, topa com estas palavras: 
"Calabar, com esse procedimento, não traiu a sua pátria, porque ela estava subjugada ao domínio português, que considerava o filho do Brasil como de superior a inferior; e vendo que a posse do Brasil era disputada por diversas nações da Europa, julgava ser mais vantajoso passar ela ao domínio de um povo livre, como então era o povo holandês, que viver sujeito à Espanha (¹º) ou a Portugal, onde além dos mais vexames predominava o medonho e cruel Tribunal da Inquisição" (¹¹).
Há mais:
"Calabar, no começo da guerra, era tratado como vil soldado; e sendo acolhido mui bem pelos holandeses, e na esperança de libertar a sua pátria do jugo português e espanhol, tudo fazia para vê-la livre e feliz. Como disse, o tempo se encarregou de justificar Calabar na adesão ao domínio holandês, porque depois da guerra mais opressão carregava o filho do país, que não passava de agricultor, frade, soldado e mesmo na milícia não subia do posto de tenente, porque este não tinha patente. [...]" (¹²).
É certo que o tempo costuma girar a roda das ideias. As circunstâncias mudam, a opinião que se tem sobre os fatos, por consequência, muda também. A análise de Mello Moraes não seria, portanto, decorrente das profundas mudanças pelas quais passava o Brasil? Traidor, herói - Calabar tornou-se alvo de debate, como talvez jamais imaginasse vir a ser. Teria realmente passado por sua cabeça que o Brasil estaria melhor nas mãos dos holandeses que nas dos portugueses? Simpatizara ele, quem sabe, com a postura religiosa dos protestantes?
Não há resposta simples a essas questões, é claro, assim como jamais se saberá o que teria acontecido ao Brasil, ou, ao menos, ao Nordeste açucareiro, se os holandeses houvessem se firmado como senhores da região. Dá-se, a quem lê, o direito de pensar o que quiser.

(1) Cf. Vitae parallelae.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelaeO trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Essa segunda tentativa de ocupação ocorreu entre 1630 e 1654.
(4) Não foi o único a fazer isso.
(5) As duas coisas é que Calabar não podia ser. A maioria dos autores coloniais o descreve como mulato. 
(6) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil Segunda Parte. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1859, pp. 168 e 169.
(7) Ibid., p. 169.
(8) Um franciscano, como Antônio de Santa Maria Jaboatão.
(9) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 543.
(10) Lembrem-se, leitores, de que esses fatos ocorreram sob a chamada União Ibérica, que durou de 1580 a 1640.
(11) MORAES, Alexandre José de Mello. Crônica Geral do Brasil vol. 1. Rio de Janeiro: Garnier, 1886, p. 267.
(12) Ibid., p. 287.


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terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Chapéus, guarda-chuvas e barbatanas para coletes

Um comerciante estabelecido em São Paulo fez publicar este anúncio no jornal Aurora Paulistana em junho de 1852 (para não enlouquecer os leitores, vai aqui transcrito na ortografia atual):
"MARMOTANT VICTOR [...] Tem a honra de participar ao respeitável público desta cidade, como aos de fora, que ele acaba de receber um grande sortimento de chapéus de palha de Itália, de homens e de meninos, enfeitados, assim como chapéus de pelo franceses. O mesmo costuma ter sempre um grande sortimento de guarda-chuvas de seda, de 5$ até 14$000; tem também de senhora de 3#000 até 10$000; conserta com brevidade todas as qualidades de chapéus por preço muito razoável; também tem barbatana para coletes de senhora." (¹)
Chapéu, meus leitores, era acessório indispensável para homens e meninos, e, com menos discrição, também para mulheres, principalmente em ocasiões de maior cerimônia. Já os guarda-chuvas não eram só para chuva: entravam em uso sempre que o sol forte se tornava inconveniente. Pode chamar a atenção o fato de que eram feitos de seda, mas isso é facilmente explicável porque a maioria dos materiais hoje usados era ainda inexistente.
Surge, no entanto, a pergunta: para que as barbatanas? Lembrem-se, leitores, dos infames espartilhos, que, a pretexto de elegância e perfeita silhueta, torturavam as mulheres e despovoavam os mares. É que as ditas barbatanas vinham, como regra, de alguma baleia, que fora arpoada, sangrada, assassinada, carneada e desossada. A vaidade tinha sua parcela de culpa nesse péssimo negócio.

Dama usando espartilho (²)

(1) AURORA PAULISTANA, Ano I, nº 54, 22 de junho de 1852.
(2) BARRY, William. The Corset and the Crinoline. London: Ward, Lock, and Tyler, 1868, pp. 197 e 200. As imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Hernán Cortés e a conquista da capital asteca

Noventa e três dias foi quanto durou o cerco a Tenochtitlán, a capital asteca, empreendido por europeus, cujo comandante era o espanhol Hernán Cortés, e por indígenas aliados, principalmente tlaxcaltecas. 
Depois de ser escorraçado de lá em 1520, quando só a duras penas sobreviveu, tendo perdido mais de oitocentos homens, Cortés se preparou como podia para voltar. Reorganizou soldados e aliados, obteve mais cavalos e armas e fez construir embarcações, treze bergantins, que poderiam apoiar o cerco pela água. Era uma providência fundamental para quem queria conquistar uma cidade que estava, literalmente, construída, em grande parte, em uma ilha lacustre.
O processo de cerco e conquista seguiu as práticas comuns em guerras antigas, e que, com adaptações circunstanciais, vigoravam ainda no Século XVI. Tenochtitlán foi cercada por tropas, o suprimento regular de água foi cortado e o de alimentos dificultado. Escaramuças contínuas tinham por objetivo ir minando a resistência dos defensores, enquanto pontes e casas em áreas conquistadas iam sendo destruídas pelo fogo e, não sendo isso possível, eram demolidas. Espionagem e captura de inimigos, dos quais se arrancavam informações, não foram negligenciadas. 
Em termos de planejamento, talvez parecesse uma conquista fácil, mas não foi. O exército à disposição de Hernán Cortés era pouco numeroso e a resistência asteca, raiando ao heroísmo, chegou a provocar nos invasores dúvidas atrozes quanto à possibilidade de vitória. Cortés dividiu a gente que o acompanhava em três grupos, que deveriam atacar a partir de pontos estratégicos. Cada grupo tinha, além de combatentes a pé, alguns cavalarianos, balestreiros e escopeteiros, bem como bergantins com a respectiva tripulação. Índios aliados, em maior número, reforçavam o contingente.
A primeira grande providência, segundo Bernal Díaz del Castillo, soldado espanhol a serviço de Cortés, foi danificar a estrutura que fornecia água à capital asteca: "[...] indo quebrar os tubos, encontramos muitos guerreiros [astecas], que nos esperavam no caminho, porque tinham entendido corretamente que aquele seria o primeiro dano que lhes poderíamos fazer [...], e lhes quebramos os tubos por onde a água ia à sua cidade, e desde então nunca mais foi ao México enquanto a guerra durou" (¹).
O conflito, porém, estava longe de acabar, porque durante a noite uma infinidade de canoas cruzava o lago, vindo de povoações adjacentes, para levar água e alimentos à cidade. Entendeu-se que os bergantins deveriam entrar na luta para impedir a ação dos canoeiros. Obtiveram sucesso limitado, porque algumas canoas sempre escapavam e, além disso, os astecas logo descobriram que, colocando estacas no fundo do lago, as embarcações dos espanhóis ficariam impossibilitadas de navegar. Sua audácia foi tanta que chegaram mesmo a capturar um dos bergantins. Os combates eram contínuos, obrigando os espanhóis, em seus acampamentos, a uma vigilância permanente, dia e noite. O próprio Cortés quase morreu, e só foi salvo pela interferência de um soldado que, na ação, acabou perdendo a vida. Soldados feridos eram obrigados a ir à luta, até porque quase não havia entre eles quem estivesse em completa saúde. Com o passar do tempo, as tripulações dos bergantins encontraram um modo de navegar, a despeito das estacas na água, e, desde então, foram de maior utilidade. 
A captura de alguns astecas ofereceu informações que Cortés não desprezou. Havia ainda uma fonte de que a cidade se servia, e medidas foram prontamente adotadas para inutilizá-la. "[...] chegamos ao lugar em que tinham a fonte", disse Bernal Díaz, "[...] a qual quebramos e desfizemos para que não se servissem dela [...]" (²). 
Várias vezes Cortés enviou mensageiros com propostas de paz, que foram rechaçadas. Havia medo entre os astecas em relação ao que poderia acontecer, principalmente quanto à escravização dos derrotados, pois já chegara à cidade a informação de que inimigos capturados eram, usualmente, não só escravizados, mas tinham essa condição marcada no rosto a ferro quente. Presentes enviados por Cortés ao imperador Cuauhtémoc não foram suficientes para convencê-lo a depor as armas. A luta, portanto, continuou. 
Gradualmente e com grandes dificuldades os espanhóis foram conquistando terreno. Ao chegar perto da praça central da cidade já havia espaço aberto em que cavalos pudessem correr e, com a miséria reinando entre a população sitiada, gente faminta começou a aparecer nos acampamentos espanhóis. A fome e a sede, neste caso, deviam ser maiores que o medo.
Agora, a captura do imperador e seu séquito, que haviam se refugiado em um ponto da cidade que somente poderia ser alcançado por água, era apenas questão de tempo. Segundo Bernal Díaz, Hernán Cortés "ordenou a Gonzalo de Sandoval que entrasse com os bergantins no sítio e rincão da cidade onde se refugiavam Guatemuz (³) e toda a flor de seus capitães e pessoas mais nobres que havia no México" (⁴). Cuauhtémoc tinha, porém, canoas prontas para a fuga, e ainda fez uma tentativa desesperada nesse sentido - inútil, porém: "[...] Garci-Holguin alcançou as canoas [...] em que ia Guatemuz (³), [...] e soube que era o grande senhor do México, e deu sinais para que o aguardassem, mas não queriam e fez como se fosse atirar com escopetas e balestras, e Guatemuz (³) teve medo daquilo, e disse: "Não atirem, que sou o rei do México e desta terra, e peço que não toquem em minha mulher e nem em meus filhos [...], mas que me tomem e me levem até Malinche"." (⁵) "Malinche" era, conforme Bernal Díaz, o modo como os astecas se referiam a Cortés. 
Assim terminaram os noventa e três dias de cerco. Bernal Díaz, algo tagarela como escritor, assinalou a data do acontecimento: "Guatemuz (3) e seus capitães foram aprisionados em 13 de agosto, à hora de vésperas, dia do senhor Santo Hipólito, ano de 1521 [...]. Choveu, trovejou e relampejou aquela noite, e até meia-noite muito mais que outras vezes" (⁶).
Entre os vencedores atribuiu-se tudo à intervenção divina e houve muita festa. Posteriormente, Hernán Cortés não teve escrúpulos em torturar o jovem imperador capturado, para que revelasse o esconderijo de tesouros. Cuauhtémoc foi executado por enforcamento em 26 de fevereiro de 1525, na suposição de que andava tramando uma revolta contra os novos senhores daquilo que fora, até bem pouco tempo, o Império Asteca.

(1) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Ibid.
(3) Cuauhtémoc.
(4) CASTILLO, Bernal Díaz del. Op. cit. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) Ibid.
(6) Ibid.


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terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Como os vinhos eram pagos em São Paulo no Século XVII

Pela frequência com que a questão do preço do vinho era discutida pelos oficiais da Câmara de São Paulo nos Séculos XVI e XVII pode-se presumir que essa bebida tinha muita importância para os moradores da vila. Fazia parte de seus hábitos alimentares, é certo, mas também era usada no preparo de remédios e até para tratar ferimentos. Não se pode esquecer, ainda, seu uso nas celebrações religiosas. Havia quem cultivasse vinhas nos arredores de São Paulo, mas, a despeito dos exageros que aparecem na Nobiliarchia Paulistana (¹) de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, é provável que a produção que daí decorria fosse suficiente apenas para consumo próprio, não sendo, nem de leve, capaz de suprir a demanda por parte do restante da população. 
Em consequência, quase todo o vinho consumido em São Paulo vinha do Reino, chegava ao porto de Santos e, então, era levado pelo terrível Caminho do Mar até o planalto paulista, onde, vendido por mercadores santistas, encontrava ávidos compradores, que, não obstante, eram incapazes de achar graça nos preços praticados, daí as queixas tão frequentes feitas à administração paulistana. Para além dos preços elevados, havia outra dificuldade: a carência de dinheiro amoedado, não só em São Paulo, mas praticamente em todo o Brasil Colonial. Entrava em ação a Câmara, portanto, para dar cabo do problema, como se vê por essa ata de 4 de abril de 1620: 
"Acordaram mais os [...] oficiais que era necessário fazer-se postura sobre os vinhos que trazem a vender a esta vila e que, porquanto há falta de dinheiro, acordaram que quem o trouxesse o vendesse a troco da fazenda da terra, a saber, couros, carnes, cera, farinhas de trigo, pano de algodão, e quem o não quiser dar pelas coisas acima ditas o não venda, com pena de seis mil réis [..]." (²)
Daí, leitores, podem ser extraídas estas conclusões:
  • O dinheiro amoedado era mesmo muito escasso e quem tinha algum tratava de retê-lo tanto quanto possível, não se dispondo a cedê-lo nem mesmo a troco de vinho;
  • "Couros, carnes, cera, farinhas de trigo, pano de algodão" deviam ser os produtos da vila de São Paulo na época, dos quais havia quantidade suficiente não só para consumo local como, sendo necessário, para troca. Notem que já não são mencionadas as marmeladas, tão famosas no século precedente.
Longe dos grandes centros açucareiros, a vida colonial corria, pois, com muita simplicidade. Quer-se maior evidência que esta oferecida pela decisão da Câmara de São Paulo?

(1) De acordo com a Nobiliarchia Paulistana, "João de Godoy Moreira foi um cidadão que em São Paulo, sua pátria, teve sempre o primeiro voto no político e civil governo da república, como pessoa de grande autoridade, respeito e veneração. Viveu abundantíssimo em cabedais, e com uma fazenda de culturas, onde as vinhas lhe davam o vinho com muita fartura. Faleceu com testamento a 20 de março de 1665" (trecho transcrito na ortografia atual e com a adição da pontuação indispensável à compreensão).
(2) Também neste trecho de ata a transcrição foi feita na ortografia atual, com adição da pontuação necessária.


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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Por que elefantes eram admirados em Roma (e fora dela)

Banho, diversão ou ritual de purificação?

Desde que, lutando contra o exército de Pirro, haviam visto os primeiros elefantes, os romanos ficaram fascinados por eles. A princípio tiveram medo, mas depois, com alguma convivência, passaram a admirar esses animais, de modo que ter alguns em um triunfo tornou-se uma grande atração. O primeiro a ter essa honra, de acordo com Plínio (¹), o Velho, foi Lúcio Metelo, que capturara os animais em guerra contra os cartagineses - para um general romano deve ter sido o auge do glamour. Outro que teve elefantes no triunfo foi Pompeu (²), todavia com um incidente infeliz: os animais puxavam seu carro triunfal, mas por causa do tamanho foram incapazes de passar pela porta da cidade (³).
É fato comprovado que elefantes são muito inteligentes, capazes de demonstrar afeto e, em alguns lugares, ajudam no trabalho como autênticos guindastes vivos. Ao que parece, a notícia dessas habilidades já era do conhecimento de Plínio que, com enorme exagero, escreveu: "O maior animal terrestre é o elefante, que muito se aproxima do homem em sensibilidade e inteligência, entende a linguagem de sua terra de origem, obedece ordens, lembra-se de tarefas realizadas, tem senso de afeição e honra, e até virtudes raras em humanos, como probidade, prudência, equidade, reverência pelas estrelas e veneração pelo Sol e a Lua." (⁴)
Acham pouco, leitores? Há mais: ainda de acordo com Plínio, houve um elefante que chegou a ser capaz de escrever em grego (⁵). Devia usar a tromba, suponho...
Era tão grande admiração que romanos tinham pelos proboscídeos, que chegavam a crer que, livres na natureza, elefantes africanos faziam, a cada lua nova, uma espécie de peregrinação a um rio para nada menos que um ritual de purificação. Sim! Vamos novamente à Naturalis historia de Plínio: "Alguns autores afirmam que na Mauritânia, quando começa a lua nova, vão até um rio chamado Amilo, onde, aspergindo água sobre si mesmos, solenemente se purificam e saúdam a Lua [...]" (⁶). 
Todo mundo sabe que elefantes gostam de brincar com água e lama, com salutares resultados práticos para sua pele. Daí a rotular tal coisa como religião, vai uma distância enorme (⁷). Mesmo para elefantes.

(1) Cf. Naturalis historia Livro VII.
(2) Ibid., Livro VIII.
(3) Lembrem-se, leitores, de que Roma, como outras grandes cidades da Antiguidade, era cercada por muralhas.
(4) PLÍNIO. Naturalis historia Livro VIII.
(5) Ibid.
(6) Ibid.
(7) É difícil saber quanto Plínio acreditava nessas coisas. Foi um dos grandes gênios da Antiguidade, mas era também um homem de seu tempo, coisa de que ninguém consegue escapar. Às vezes, em Naturalis historia, é capaz de contrariar crenças populares da época (viveu entre 23 e 79 d.C.), mas também admite muita tolice como se fora fato real. Apesar disso, devia ser admirado pelos leitores contemporâneos e, até hoje, é muito interessante, mas por razões algo diferentes das que fizeram dele um escritor respeitado na Antiguidade.


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terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Botas impermeáveis para D. José I

Quem se lembra de D. José I? Nascido em 1714, foi rei de Portugal de 1750 até sua morte em 1777. Ocupava o trono, portanto, quando, em 1755, aconteceu o terrível terremoto que fez tremer as terras lusitanas (¹). Contudo, D. José talvez seja mais famoso por ter colocado Portugal no círculo do despotismo esclarecido, ao nomear Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, como seu primeiro-ministro. O Iluminismo estava a fazer adeptos, ainda que com variadas nuances, nos meios políticos e intelectuais europeus.
Enquanto isso, no Brasil uma árvore começava a chamar a atenção dos aventureiros que, explorando o sertão à procura de metais preciosos, acabavam encontrando prodígios vegetais que, no futuro, seriam reputados tão interessantes quanto ouro ou prata. Era o caso, por exemplo, da Hevea brasiliensis, que produzia uma goma elástica que os índios já conheciam e utilizavam: a borracha. É verdade que os dias da febril extração da borracha na Amazônia ainda estavam distantes, mas objetos desse material se destacavam porque eram leves, flexíveis e, principalmente, impermeáveis. 
Não demorou e alguém teve a ideia de impermeabilizar calçados usando borracha. Deu certo, a notícia da existência de um material com essas características atravessou o Atlântico e, de acordo com Francisco Bernardino de Sousa (²), D. José I julgou que seria uma grande ideia se suas botas fossem revestidas com borracha: "Conhecido no Pará o uso desse calçado, tornou-se geral e não tardou a passar a Portugal, onde em 1755 já estava tão generalizado que o rei D. José também quis ter botas cobertas de goma elástica e para esse fim remeteu o governo uns poucos de pares para a cidade do Pará (³), a fim de serem convenientemente preparados." (⁴) 
A borracha, porém, servia para muito mais que impermeabilizar calçados. A partir do Século XIX seu uso ganhou proporções revolucionárias e fez a riqueza de alguns nomes ligados à grande indústria internacional. No Brasil, como se sabe, a prosperidade que gerou na região amazônica durou pouco. Dela ficaram apenas lembranças e algumas construções que atestam a existência desse brevíssimo tempo de glória.

(1) Não só elas: o terremoto foi sentido em uma área bem maior.
(2) O cônego Francisco Bernardino de Sousa foi encarregado dos trabalhos etnográficos da Comissão do Madeira.
(3) Belém do Pará.
(4) SOUSA, Francisco Bernardino de. Pará e Amazonas, Segunda Parte. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875, p. 22.


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