quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

As cidades do futuro, na imaginação de quem vivia em 1929

Os dias finais de dezembro costumam ser férteis em previsões quanto ao que acontecerá no ano seguinte. Para bem dos supostos profetas, esses vaticínios são habitualmente esquecidos em razão da luta quotidiana que faz questão de comparecer a cada janeiro. Vejam como exemplo, leitores, o que aconteceu com o ano de 2020: se, por curiosidade, voltarem às profecias feitas no final de 2019, terão diversão garantida.
Era dezembro de 1929. A revista carioca O Malho trouxe este curioso prognóstico quanto às cidades do futuro, coisa de quarenta ou cinquenta anos adiante:
"Arranha-céus de duzentos ou trezentos andares, que ocupem áreas correspondentes a quatro ou cinco dos grandes quarteirões da atualidade, separados por vastos parques e locais para estacionamento de automóveis; aeroportos; grandes terraços com jardins; calçadas suspensas a cem ou duzentos metros do solo; paredes de vidro, que permitam a entrada da luz e do sol nos compartimentos mais interiores; garagens de tetos planos e muito elevados para a descida de máquinas aéreas tipo helicópteros; gigantescos hospitais aéreos, com paredes de cristal, suspensas sobre a cidade, a alturas fantásticas, a fim de proporcionar aos enfermos ar puro acima das nuvens.
Tudo isto é coisa infalível, que verão, desassombrados, talvez, os nossos olhos, daqui a quarenta ou cinquenta anos." (*)
Bem, leitores, a coisa seria para 1970 ou 1980, e nós, no final de 2020, vemos, felizmente, pouco disso por aí. É verdade que os estacionamentos se multiplicaram e parecem nunca ser suficientes, que aeroportos se tornaram indispensáveis e que prédios mais altos às vezes têm um heliporto, mas não se vê, em lugar algum, construções com trezentos andares. Paredes externas quase totalmente de vidro existem e são facilmente encontradas, mas não creio que as internas, com essa característica, sejam sequer desejáveis. Quanto às calçadas e hospitais aéreos... Nem parques de diversões são assim. Alguns doentes talvez morressem de desespero, só em olhar para baixo.
Mas, como disse, essa previsão parcialmente fracassada foi oferecida ao público no final de 1929. Lembrem-se, leitores, de que foi esse o ano em que eclodiu a maior crise econômica do Século XX. Multidões de desempregados, sem ter onde viver com a família, produção encalhada nas lavouras e nas fábricas por falta de compradores, grandes fortunas desfeitas em questão de horas e a sombra do totalitarismo ganhando o apoio dos crédulos e desesperados - esse era o cenário daqueles dias. Sonhar com um futuro brilhante, limpo e luminoso, com conquistas incríveis na arquitetura, nos transportes, na saúde, podia ser, ao menos, um magro consolo, diante da dura realidade, observável em quase todo lugar. 

(*) O MALHO, Ano XXVIII, nº 1422, 21 de dezembro de 1929.


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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Contra mosquitos, baratas e ratos

Compartilhar este planeta com certas espécies não tem sido exatamente uma aventura agradável para a humanidade, ainda que se reconheça o papel ecológico até de seres incômodos como são as baratas. Quem é que gosta delas? Aquelas longas antenas perscrutando o ambiente para uma investida desafiam a persistência até de maníacos por limpeza.
Guerra declarada contra baratas, portanto, mas não só contra elas. O Echo Phonographico, uma espécie de catálogo de produtos que podiam ser adquiridos pelo correio, trazia, em 1904, estes dois anúncios:
"Pó exterminador: o único infalível para extinguir pulgas, percevejos, mosquitos e outros insetos. Preço 1$000." (¹)

"Mata barata: Duas ou três latas acabam completamente com todas as baratas em sua casa. Preço da lata 1$600 réis." (²)
Que ilusão! Extinguir insetos? Talvez nem seja desejável. O mais bizarro, contudo, é este anúncio de uma espingarda de ar comprimido, que apareceu na mesma edição do Echo Phonographico:
"Sólida, atirando bolas de chumbo ou flechas, servindo para matar ratos e outros bichos. Tem boa pontaria.
Preço 15$000, com 12 flechas e 200 bolas 20$000. Frete a pagar [....]." (³)


No começo do Século XX a população rural era predominante. Seria desastroso, em um sítio ou fazenda, se ratos tivessem a péssima ideia de infestar o celeiro. Combatê-los com eficiência tinha a maior importância. A solução proposta pelo Echo Phonographico era inusitada, e isso é o mínimo que se pode dizer (⁴). Quem é que pensaria em deter uma praga de ratos com flechadas?  
Tentem imaginar, leitores, um fazendeiro furioso, ao perceber indícios da presença de ratos em seu estoque de milho; empunha, portanto, a dita espingarda, carrega uma flecha e um exército de murídeos à sua frente, como a zombar da pontaria, corre em todas as direções. Estranho desporto, esse... 

(1) ECHO PHONOGRAPHICO, Ano III, nº 22, janeiro de 1904.
(2) Ibid.
(3) Ibid.
(4) Não é improvável que esse brinquedinho pérfido fosse usado para matar pássaros.


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quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Cristãos em Roma

É fim de tarde e, apesar do movimento ainda grande na rua, Gaius começa a guardar seus apetrechos de sapateiro para fechar a oficina. Ele é conhecido em toda a cidade por fazer excelentes calçados para damas. Tem consciência e um justo orgulho de suas habilidades. Para um artesão livre como ele, isto significa respeito e uma situação econômica que, se não o faz rico, ao menos permite uma vida sem grandes dificuldades. À medida que as horas de luz se desvanecem, também nas oficinas vizinhas os trabalhadores, quer livres, quer escravos, vão encerrando a jornada. Tochas são acesas, o movimento de pedestres diminui, enquanto cresce o de carroças e carregadores que fazem chegar à cidade as mercadorias que vêm de longe.
Gaius olha, afoitamente, para um e outro lado, com a estranha sensação de estar sendo observado. Parece que alguém o segue. Um legionário, o que quererá? A cidade e o Império passam por tempos difíceis, as denúncias falsas e as extorsões não são raras. Bobagem, só uma impressão...
Não é. Gaius apressa o passo, tentando não mostrar qualquer alteração na fisionomia. Inútil. A respiração vai se tornando ofegante, as mãos suam frio. Logo ali está uma taberna. Entra, pede um pouco do cozido que fumega, paga por ele, tenta comer. O legionário entra e, olhando discretamente na direção de Gaius, também pede o cozido e pão. Aproxima-se do sapateiro, mergulha um dos dedos no caldo e, sobre a madeira, com dois movimentos, faz um tosco desenho. Gaius observa, esboça um tênue sorriso, assente com a cabeça, respira aliviado. O jantar modesto torna-se saboroso, sapateiro e soldado comem sem proferir qualquer palavra. O legionário parte o pão em bocados que fazem a alegria de alguns cães que estão por ali e que, agradecidos, abanam a cauda. 
Os dois homens saem e, logo adiante, enveredam por uma rua menos movimentada. O soldado voltara à cidade há pouco, depois de um tempo de serviço na Ásia Menor. Fora lá que um dia, na rua, ouvira um orador itinerante. Ideias novas, sim, mas persuasivas. Antes do retorno, alguém lhe dissera para, na capital do Império, procurar Gaius, o sapateiro. Estivera a observá-lo, esperando o momento de, sem ofensa à discrição, falar com ele. 
Caminhando sempre, chegam a uma área da cidade em que se veem casas habitadas por famílias de algumas posses.
- É aqui...
À porta, um escravo reconhece Gaius, mas franze a testa ao ver o legionário que, de imediato, traça no ar o mesmo sinal que, há pouco, usara para ser reconhecido pelo sapateiro. Assim identificado, é admitido. Passam por um corredor e logo estão em um pátio, de onde se vê, sob o brilho do luar, um jardinzinho bem-cuidado. Ao fundo, luzes oscilantes de candeia denunciam o lugar de reunião, e é para lá que se dirigem, já ouvindo a voz de alguém que lê.
Entram. É Urbanus, dono da casa, o leitor. Rodeiam-no a família, alguns escravos, alguns amigos. Os recém-chegados se acomodam, a leitura recomeça. De vez em quando, breve pausa para alguma explicação. São irmãos de fé.
Um quarto de hora mais tarde, finda a leitura, com olhos semicerrados, sussurram um cântico:
"...sed semet ipsum exinanivit formam servi accipiens in similitudidem hominum factus et habitu inventus et homo
humiliavit semet ipsum factus oboediens usque ad mortem mortem autem crucis
propter quod et Deus illum exaltavit et donavit illi nomem super omne nomem
ut in nomine Iesu omne genu flectat caelestium et terrestrium et infernorum
et omnis lingua confiteatur quia Dominus Iesus Christus in gloria est Dei Patris" (*)
Seria imprudência cantar mais alto, as palavras poderiam cair nos ouvidos errados. Suas vozes se perdem na noite romana. 

(*) Ad Philippenses II, 7 - 11
Este poema do Primeiro Século foi composto originalmente em grego e provavelmente era cantado. Sendo esta postagem ambientada em Roma, decidi inclui-lo aqui em latim. Os leitores que assim o quiserem poderão vê-lo em português, na tradução mais a seu gosto, no capítulo II da Epístola de São Paulo aos Filipenses.


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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Era preciso dormir em rede nas longas viagens pelos rios da Amazônia

Antes de 1853, quando a navegação a vapor foi implantada, viajar por rios da Bacia Amazônica era não só uma aventura, como um desafio gigantesco à paciência. Nas palavras de Francisco Bernardino de Sousa, "até essa época todo o tráfico dos gêneros de comércio era morosamente feito em canoas, que raras vezes realizavam uma viagem redonda de Belém a Manaus em menos de cinco meses, viagem que hoje (¹) se efetua em treze a quinze dias, quando muito, compreendidos os cinco dias de demora em Manaus e nos dez pontos intermédios" (²).
Esse cônego Francisco Bernardino de Sousa, que, encarregado dos trabalhos etnográficos participou da Comissão do Madeira, devia ser afeiçoado às viagens longas e às conversas que lhe permitiam descobrir como viviam os habitantes de regiões longínquas do Brasil - digo longínquas, é claro, em relação ao Rio de Janeiro que, em seu tempo, era a capital do Império. Notou que nas viagens por essas vastidões de água e selva competia a cada viajante providenciar acomodação para dormir na embarcação. Uma rede, portanto, era indispensável na bagagem: 
"As redes são o leito de que geralmente se servem os habitantes das províncias do Pará e do Amazonas, e muitas vezes constituem a única mobília da gente mais pobre. No princípio custei a habituar-me a esse gênero especial de dormida; no Pará não tive necessidade de acostumar-me a ele, por me ter sido dada uma excelente cama; mas depois, obrigando-me a necessidade a aceitar a rede, porque mui raras vezes encontrava outra cama, cheguei por fim não só a acostumar-me a ela, como até a achei bem cômoda e bem apropriada para a terra.
Os vapores das diferentes companhias que navegam nos rios das duas províncias são dispostos a poderem os passageiros armar as redes na tolda. Somente as pessoas doentes e uma ou outra senhora aproveitam-se das camas dos beliches." (³)
Dormir em rede era hábito indígena, muito útil para quem era nômade ou seminômade. Da necessidade e conveniência veio o costume que, curiosamente, persiste até hoje (⁴): observem, leitores, as fotos seguintes, que fiz no porto de Manaus.

Embarcações no porto de Manaus - AM: na embarcação em primeiro plano podem
ser vistas redes usadas por passageiros 

Em detalhe, redes dispostas em uma embarcação

(1) "Hoje" é referência à ocasião, no Século XIX, em que o cônego Francisco Bernardino de Sousa escreveu Pará e Amazonas.
(2) SOUSA, Francisco Bernardino de. Pará e Amazonas. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1874, p. 43.
(3) Ibid., p. 50.
(4) Neste caso, leitor, "hoje" é hoje mesmo, quando você está lendo este texto.


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quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Beijos romanos

Os antigos romanos, quando encontravam alguém a quem eram particularmente afeiçoados, usavam como cumprimento um beijo na testa. 
Circulavam na Antiguidade muitos relatos - lendas, talvez - afirmando que as origens de Roma estariam ligadas a um grupo de pessoas que escapulira do incêndio de Troia, no final da famosa guerra contra os gregos. Tantas e tão numerosas eram as lendas nesse sentido que é quase impossível não haver, ainda que remotamente, algo de verdade nelas. O que é que isso tem a ver com beijos? É o que já veremos.
A história é um tanto bizarra. Segundo Plutarco (¹), depois de muito navegar, fugitivos de Troia chegaram à Península Itálica. Tinham, ao que parece, a intenção de continuar a viagem em busca de um novo lar. Ao menos era assim em relação aos homens. As mulheres, porém, estavam já cansadas dos longos dias no mar e, assim que puseram os pés em terra para algum descanso, decidiram, sem conhecimento dos maridos, incendiar as embarcações. Fugiam de um incêndio e começavam outro!
Descobrindo o que ocorrera, os homens tiveram um acesso de fúria. Foram, porém, acalmados por beijos e carícias das mulheres, chamando-os à razão. A terra parecia boa e, de qualquer modo, agora somente restava aos cansados troianos uma possibilidade: ficar. Teriam, portanto, segundo essa versão, iniciado o povoamento que, mais tarde, daria origem a Roma.
Agora, fala Plutarco:
"[...] Desde essa época vigora em Roma o costume, depois espalhado por toda a Itália, de que aqueles que têm entre si muita amizade, tanto homens como mulheres, se beijem na fronte quando se encontram, como demonstração de amor e paz." (²)
A explicação está dada. Uma tradição, mais uma entre muitas, das que havia entre os antigos romanos.

(1) c. 45 - 125 d.C.
(2) Vitae Parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 15 de dezembro de 2020

A lenda do ouro que mudava de lugar

Uma explicação supersticiosa para o esgotamento rápido das jazidas auríferas no interior do Brasil


O declínio rápido da mineração no interior do Brasil desde fins do Século XVIII é fenômeno complexo. Os métodos de extração empregados na época e as ferramentas primitivas funcionavam enquanto o mineral era abundante na superfície, mas falhavam quando era preciso realizar exploração profunda. Muito metal precioso era desperdiçado e, literalmente, ia por água abaixo. Por consequência, quando o ouro de fácil extração se esgotava, a população de mineradores procurava outro lugar para viver e explorar. Era assim que povoações, nascidas de um dia para outro, em pouco tempo se convertiam em ruínas. Além disso, essas povoações, a maioria de caráter provisório, eram assoladas por doenças e, sem que houvesse qualquer recurso médico para deter a marcha da morte, decresciam os braços disponíveis para o trabalho que, é bom que se diga, era quase sempre feito por escravos. O custo dos gêneros alimentícios e outros artigos indispensáveis à sobrevivência, sendo elevadíssimo nas regiões auríferas, torna difícil afirmar que os ganhos dos mineradores justificavam os gastos que estavam obrigados a fazer.
A promessa de enriquecimento rápido e fácil, que seduzia tanta gente, provava-se, em largo número de casos, uma trágica fantasia. Superstição corrente entre o povo asseverava que as minas se esgotavam porque o ouro mudava de lugar. 
Como assim?
Vou explicar. Bartolomeo Bossi, genovês que empreendeu uma expedição em Mato Grosso em 1862 (¹), ouviu uma senhora muito idosa contar, sob a alegação de ter presenciado o fenômeno:
"Procurei tomar alguns antecedentes daquela anciã [...]. Disse-me que quando seu falecido esposo resolveu habitar este deserto (²), foi por ter encontrado nele um indivíduo que extraía muito ouro, porém depois o ouro se havia retirado, conforme eles mesmos haviam presenciado. Pedi-lhe mais explicações sobre essa fábula, filha da superstição e da ignorância, e disse-me que nas noites escuras haviam visto levantar-se da terra, junto ao arroio, uma chama viva que corria em direção ao oeste, e que seguindo por esse rumo o metal seria encontrado. [...]." (³)
Na prática, não era o ouro, é claro, quem mudava de lugar. Eram os mineradores que iam atrás dele. Poucos tinham a sorte de poder afirmar que essa rude peregrinação era compensadora.

(1) Sua ideia era encontrar áreas propícias à extração de ouro e diamantes. Chegou a consultar antigos mapas e referências à lendária região dos Martírios. A expedição por ele encabeçada não teve grande sucesso econômico, mas contribuiu para ampliar o conhecimento sobre o Brasil Central, ainda escasso na época.
(2) Lugar quase despovoado em Mato Grosso, não uma região árida.
(3) BOSSI, Bartolomé. Viage Pintoresco por los Ríos Paraná, Paraguay, San Lorenzo, Cuyabá. Paris: Libreria Parisiense - Dupray de la Mahérie, 1863, p. 85. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Armas dos espanhóis nas mãos de guerreiros astecas

Retirada é uma ação estratégica organizada, quando o confronto aberto parece indesejável ou impossível. Hernán Cortés bem que tentou, mas a saída de seu bando de invasores de Tenochtitlán, após a morte do imperador Montezuma, não foi mais que uma fuga, com um só lema: salve-se quem puder.
Sob o ataque da população local em fúria, espanhóis e indígenas aliados (¹) tentaram escapulir, carregando parte do enorme tesouro que haviam encontrado. Tanto peso, porém, era demais para quem precisava fugir para salvar a vida. Sob chuva, neblina e em terreno difícil, as perdas em homens, cavalos e armas foram terríveis. Para os sobreviventes, essa foi a "noite triste".
Era 1520. Nos meses seguintes, Cortés tratou de reorganizar seu grupo, atraindo mais soldados e obtendo armamento. Os astecas, contudo, não descansavam. Não davam tréguas, enviando grupos de combatentes que não permitiam que europeus e seus aliados pudessem sequer dormir em paz. Além do encontro eventual em templos astecas dos ossos de companheiros que haviam perdido, os invasores logo descobriram que as espadas deixadas em Tenochtitlán não eram desperdiçadas, quando, em algum combate, viam seus oponentes usando "lanças muito longas para matar os cavalos, nelas engastadas as espadas que nos tomaram na noite do desbarate" (²), segundo informou Bernal Díaz del Castillo, um dos soldados que acompanhavam Cortés.   
Pode-se imaginar qual terá sido a reação dos espanhóis quando viram nas lanças astecas um brilho de lâminas de Toledo!... Mas não foi só. Ainda de acordo com Bernal Díaz, os valorosos astecas logo aprenderam a empunhar as espadas com maestria: "Os capitães mexicanos [...] traziam espadas das nossas, fazendo com elas muitas demonstrações de valentia, e diziam que com nossas armas nos haviam de matar [...]" (³).

(1) Principalmente tlaxcaltecas.
(2) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Ibid. 


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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

A presença de automóveis levou à introdução de novas regras no trânsito

Enquanto o movimento nas ruas se restringia a pedestres e veículos com tração animal, não era muito grande a necessidade de sinalização para disciplinar o trânsito. A entrada em cena dos veículos automotores provocou alterações significativas no que, até então, e com algumas horripilantes exceções, fora um cenário quase bucólico. Guardas de trânsito munidos de apito, placas e, mais tarde, sinalização automática (que deixa de funcionar e até hoje leva os centros urbanos ao caos quando há algum problema na rede elétrica), vieram anexar seus préstimos para diminuir a confusão. Se vocês, leitores, já viram algum filme mostrando as ruas de uma grande cidade por volta da década de vinte do século passado, sabem do que estou falando. 
Para a geração que crescera antes da aparição dos automóveis talvez parecesse difícil a ideia de ter de parar nas esquinas, esperando autorização para atravessar uma rua ou avenida. A obediência às regras, agora, não era só para condutores de veículos. Pedestres, de boa ou má vontade, também tiveram que adotar novos hábitos, em proveito da própria segurança. O cartoon abaixo, que apareceu na revista carioca O Malho no ano de 1926, oferece, com humor, uma ideia do desagrado dos que estavam aprendendo a esperar a vez, quando queriam atravessar uma rua:


Diz a legenda:
"- Ora viva, "seu" Praxedes! Há quanto tempo!
- Estive preso.
- Preso?!
- É verdade. Ali na esquina, esperando que o guarda abrisse o sinal." (*)

(*) O MALHO, Ano XXV, nº 1266, 18 de dezembro de 1926, p. 22. O original pertence à BNDigital. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

A lenda da aparição de Teseu na batalha de Maratona

Teseu foi um herói lendário, supostamente introdutor do conceito de democracia em Atenas, e teria vivido nos primórdios da cidade. Nada impede que haja existido alguém real com esse nome, a quem o tempo e as sucessivas narrações dos feitos se encarregaram de quase deificar. Em sua homenagem eram realizadas cerimônias em Atenas, que Plutarco, justificando em Vitae parallelae, relacionou a uma suposta aparição durante a batalha de Maratona em 490 a.C., durante a Primeira Guerra Médica: "Naquela terrível batalha que travaram em Maratona contra os medos (¹), afirma-se que muitos dos combatentes que nela estiveram viram nitidamente a figura de Teseu que marchava diante deles portando armas e, de espada em punho, fazia muitas vítimas entre os inimigos" (²).
Lendas bélicas não são exclusividade de povo algum. Os romanos também tinham como certa a aparição de Castor e Pólux, os gêmeos celestes, em momentos decisivos de suas guerras. Uma dessas ocasiões teria sido em um combate contra os latinos, no contexto do fim da realeza, com a deposição do rei Tarquínio, o Soberbo, e o estabelecimento da República em Roma. São palavras de Aneu Floro, em Rerum Romanarum: "Tanto foi a ferocidade da batalha que correu a notícia de que estavam os deuses Castor e Pólux como espectadores, montados em cavalos brancos, e não houve quem duvidasse" (³).
Se essa ideia de que deuses e heróis mortos tinham a capacidade de aparecer para ajudar os vivos fosse coisa só da Antiguidade, eu poderia desejar um bom dia a vocês, leitores, e encerrar o assunto por aqui. Mas não! Vamos às tradições vinculadas à luta de portugueses contra tamoios e franceses no Rio de Janeiro, no Século XVI. Deixo o caso por conta do padre Simão de Vasconcelos, jesuíta famoso por seus escritos publicados no Século XVII, em que relata o incidente da aparição de São Sebastião para ajudar as forças lusas contra os guerreiros nativos da América: "[...] os tamoios todos na mesma conformidade perguntavam depois aos nossos com grande espanto, quem era aquele soldado gentil-homem, que andava armado no tempo do conflito, e saltava intrépido em nossas canoas? "Porque a vista dele", diziam, "nos meteu terror. E foi a causa de fugirmos, igualmente à do incêndio". Foi tido o caso por milagroso. Eu nisto não determino nada; acho porém que fazem força as palavras de José [de Anchieta], que escrevendo dele diz assim: "A mão de Deus andou ali, e mostrou nesta ocasião sua misericórdia e providência: foi medo que Deus nosso Senhor pôs aos índios à vista daquele incêndio; e particular favor do glorioso mártir São Sebastião, que ali foi visto dos tamoios, que perguntavam depois, quem era um soldado que andava armado, muito gentil-homem, saltando de canoa em canoa, e os espantara, e fizera fugir?"." (⁴)
Sem querer assumir a ocorrência de um milagre, Simão de Vasconcelos contou o incidente, mas é razoável supor que, como homem de seu tempo, acreditasse nele. De qualquer modo, e já entrando no lado efetivamente histórico da questão, o governador-geral Mem de Sá, chegando com alguns navios ao Rio de Janeiro no começo de 1567, para desfechar um ataque decisivo contra franceses e indígenas, decidiu que o combate seria travado no dia 20 de janeiro, não por acaso a data em que o calendário católico celebra o soldado romano e mártir São Sebastião. Saíram-se bem os portugueses, ainda que com algumas perdas: "Depois de vários sucessos, encontros e recontros [...] foi entrada e vencida [a fortificação inimiga] com estrago lastimoso, porque dos tamoios não ficou um com vida. Dos franceses morreram dois no conflito, e cinco que houveram às mãos os portugueses, foram pendurados em um pau, para escarmento de outros: à vista de tão triste espetáculo, ficaram tremendo as demais aldeias" (⁵).Coisas da colonização, leitores!

(1) Os gregos se referiam genericamente ao Império Persa, que agregava diversos povos, como sendo dos medos, e, por essa razão, as guerras entre gregos e persas são conhecidas como Guerras Médicas.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelaeO trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) FLORO, Aneu. Epitome Rerum RomanarumO trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, pp. 53 e 54.
(5) Ibid., p. 55.


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terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Luminárias para festejar a chegada da família real

Antes que houvesse luz elétrica, e mesmo antes da existência de iluminação de rua a óleo ou a gás, era costume, em ocasiões em que se pretendia dar demonstração pública de alegria, que fossem colocadas luminárias - candeias, velas ou tochas - diante das residências. Assim, tão logo anoitecia, em lugar da escuridão habitual, havia pequenos pontos de luz bruxuleante por toda parte. Em conjunto, o resultado devia ser até bonito.
Era comum que as autoridades locais ordenassem a colocação de luminárias em datas festivas, mas quase sempre a ordem era apenas formalidade, porque a população gostava da ideia e muitas famílias aproveitavam a ocasião para sair de casa e ir ver as luzes, ainda que, maldosamente, a intenção fosse comparar a glória da própria residência com o que se podia ver nas redondezas. 
Havia circunstâncias, porém, em que as demonstrações públicas de regozijo, não sendo do agrado popular, eram acolhidas com má vontade. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando a população do Rio de Janeiro foi intimada a colocar luminárias na noite seguinte à execução de Tiradentes. A obediência, para muitos, deve ter vindo apenas pela conclusão de que um enforcado já era suficiente.
Caso oposto correu na noite de 8 de março de 1808, para marcar o desembarque da família real portuguesa no Rio de Janeiro. A população, nesse momento, deu mostras espontâneas de felicidade, e as velas se multiplicaram por toda parte. Nas palavras de José Vieira Fazenda em Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro, "as casas ricas e edifícios públicos apresentavam velas de cera, e as pobres de carnaúba e sebo; bem certo é o ditado: cada um enterra seu pai como pode. Foi um rega-bofe completo, que durou por nove dias sucessivos". Talvez seja legítimo inquirir se, um ou dois meses mais tarde, a população ainda estaria tão disposta a festas para o príncipe regente e sua corte como estivera na hora da chegada.


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