quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Romanos copiavam o que havia de interessante em outros povos

A simples observação do que ocorria entre muitos povos da Antiguidade é suficiente para que se conclua que, em se tratando de inimigos vencidos, a regra era, tanto quanto possível, apagar até mesmo a lembrança de sua existência. 
Querem um exemplo, leitores? Aconteceu um pouco com a ajuda das intempéries, é fato, mas, após a derrota para uma coligação de medos e caldeus, o espetacular império assírio (¹) foi varrido do mapa. A destruição foi tão completa que, antes das escavações arqueológicas do Século XIX, havia muita gente que julgava sua existência apenas imaginária, qualificando-a uma "fábula bíblica" (²). Vale o mesmo em relação aos hititas. Civilizações inteiras desapareceram ante a fúria dos vencedores, deixando, no melhor dos casos, pouquíssimos vestígios. Triunfadores tinham um orgulho insano de sua pretensa superioridade, e, portanto, julgavam ter o direito de esmagar os traços culturais dos derrotados, ainda que, em si mesmos, esses traços fossem até muito bons. 
Pragmáticos, os romanos não pensavam assim. Sem nenhum constrangimento, assumiam que, se havia algo de bom e/ou útil em outras culturas, a melhor coisa a fazer era copiar. Em um discurso no Senado, Júlio César, conforme relato de Salústio, assim se expressou:
"Nossos antepassados [...], aos quais não faltava nem discernimento e nem coragem, nem por isso, soberbamente, deixaram de adotar instituições alheias, quando pareciam dignas de imitação. Armas e armaduras vieram dos samnitas, insígnias ostentadas pelos magistrados foram copiadas dos etruscos (³); portanto, o que viam de útil, fosse entre aliados ou inimigos, adotavam [...]." (⁴)
Um modelo da paixão dos romanos por tudo o que era notável na cultura alheia pode ser visto a partir da conquista da Grécia. É verdade que os romanos derrotaram os gregos em campo de batalha. Enfeitiçados, porém, pela arquitetura, pela escultura, até pela comida dos sofisticados helenos, a gente rústica de Roma jamais seria a mesma. Nas escolas, os meninos romanos, que até então não iam muito além de aprender a ler, escrever e fazer algumas contas simples, passaram a estudar não somente seu latim materno, mas também o grego. E mais: com o idioma dos vencidos, vieram as aulas de filosofia, de retórica e de outras disciplinas nas quais os gregos tinham construído um saber modelar. À vista disso, talvez seja o caso, meus leitores, de levantar a questão: Em tal cenário, quem foi, finalmente, o autêntico vencedor?

(1) Não faltará quem diga que os assírios mereceram.

(2) Isso ocorria porque quase todas as referências aos assírios, até então conhecidas, estavam na Bíblia.
(3) Samnitas e etruscos eram povos que, assim como os romanos, habitavam a Península Itálica.
(4) SALÚSTIO, Caio. Catilinae coniuratio. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 28 de novembro de 2017

A escravização de indígenas foi geral no Brasil

                "Não, dos canhões não foi o eco estrondoso
                 Que ao índio impôs terror; nem mesmo a morte;
                 Que mortes e trovões terror não causam
                 Aos filhos dos sertões, à guerra afeitos.
                 Que livres deslizavam vida errante;
                 Foi sim o cativeiro, algemas foram,
                 Que alguns, ora colonos, de seus pulsos
                 Aos pulsos dos indígenas passaram;
                 Alguns, ora colonos, mas que outrora
                 Em Lísia réus infames se oprimiam
                 De empestadas prisões nos subterrâneos."
                                        Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios


Por causa da existência das chamadas "bandeiras de apresamento" formadas por paulistas, há quem pense que a escravização de indígenas ficou restrita à Capitania de São Vicente. Nada mais equivocado: a escravização de ameríndios foi fenômeno generalizado em praticamente todo o território colonial lusitano na América. Além disso, embora muitas expedições para captura de indígenas tenham, efetivamente, partido de São Paulo, também é fato que outras, e até bastante numerosas, foram organizadas em diferentes pontos do Brasil.
Em um documento do Século XVI atribuído a Anchieta encontramos esta observação, relativa à escravização de indígenas na Bahia (¹):
"Poucos [indígenas] escaparam que não fossem escravos, porque uns vendiam aos outros, outros se vendiam a si mesmos, introduzidos todos estes costumes pelos portugueses." (²)
De acordo com a expressão de Pero de Magalhães Gândavo em seu Tratado da Terra do Brasil, era esta a situação quanto ao cativeiro de indígenas em Pernambuco por volta de 1570:
"Esta [Capitania de Pernambuco] se acha uma das ricas terras do Brasil, tem muitos escravos índios que é [sic] a principal fazenda da terra. Daqui os levam e compram para todas as outras capitanias, porque há nela muitos, e mais baratos que em toda a costa [...]." (³)
Ainda quanto a Pernambuco, encontramos, em outro documento, também atribuído a Anchieta, cujo título é Informação da Província do Brasil Para Nosso Padre - 1585 (posterior, então, aos escritos de Gândavo):
"É Pernambuco terra rica, de muitos moradores, trata com açúcar e pau vermelho (⁴), o mais e melhor da costa, no comércio é uma nova Lusitânia, e mui frequentada.
Tem sessenta e seis engenhos de açúcar, e cada um é uma grande povoação e para serviço deles e das mais fazendas terá até dez mil escravos de Guiné e Angola e de índios da terra até dois mil." (⁵)
Nada muito diferente acontecia no Maranhão. No dizer de Ayres de Casal, em 1622 "apresentou o Senado um requerimento em nome do povo, para que [o governador] não consentisse ali os jesuítas, cujos sentimentos acerca dos indígenas não eram favoráveis aos colonistas" (⁶). O mesmo autor, em referência ao Pará, observou:
"O cativeiro dos indígenas, praticado em quase todas as outras províncias, e adotado nesta desde a sua primeira fundação, continuava. Todos os serviços eram feitos pelos braços dos índios, dos quais cada colono caprichava qual havia de possuir maior número. As riquezas calculavam-se pela quantidade destes infelizes, aos quais seus injustos possuidores davam o honesto nome de administrados." (⁷)
Sendo generalizada a escravização dos povos nativos, foram também frequentes os desentendimentos entre colonizadores e missionários jesuítas, uma vez que estes últimos pretendiam manter os índios em liberdade, ou, pelo menos, dentro daquilo que entendiam como liberdade. Não era raro que colonizadores alegassem que os jesuítas queriam ser os únicos com direito a explorar o trabalho dos índios. O confronto ia além: jesuítas precisavam combater outros clérigos, que, não tendo compromisso com a catequese, não tinham escrúpulos em escravizar aqueles a quem chamavam "gentios da terra". 

(1) Onde estava a capital do Brasil naquele tempo.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 357.
(3) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 35.
(4) Referência ao pau-brasil.
(5) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Op. cit., p. 410.
(6) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica  vol. 2. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 254.
(7) Ibid., p. 275.


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quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Touradas

Tauromaquia entre os cretenses na Antiguidade

A julgar pelas representações encontradas nas ruínas de Cnossos, a tauromaquia era uma paixão entre os antigos cretenses. Rapazes e moças foram retratados a dar saltos, parecendo dançar, até, diante de touros de aparência nada afável. Tudo isso tem recebido várias interpretações, desde atividade esportiva até prática cultual, mas a mania de tirar a paz dos touros persistiu em outras culturas - se os cretenses influenciaram outros povos, ou mesmo se compartilharam suas tradições, não sabemos ainda, ao menos de forma conclusiva.

Mural cretense com jovens e um touro (¹)
Touradas no Brasil

O Brasil não é conhecido pela prática de touradas e, já há bastante tempo, consideradas crueldade contra animais, são proibidas em todo o país. Convençam-se, porém, leitores: elas já aconteceram por aqui, e algumas cidades já tiveram lugares específicos para que homens e animais se enfrentassem. A tradição desses espetáculos sangrentos veio com os colonizadores (que também trouxeram os touros, inexistentes na América antes da chegada de europeus).

Praça de touros na primeira capital do Brasil

Gabriel Soares, senhor de engenho e explorador do território ainda pouco conhecido do Brasil, escreveu, no Século XVI, ao falar da Cidade da Bahia (Salvador), a primeira capital, fundada por Tomé de Sousa em 1549:
"Está no meio desta cidade uma honesta praça, em que se correm touros quando convém [...]." (²)
E quando é que convinha? Gabriel Soares não disse, mas podemos supor, com razoável chance de acerto, que a "conveniência" devia andar associada às festas religiosas e/ou populares, tão frequentes naqueles dias.

As touradas do "tempo do rei"

"Tempo do rei" é como se chamava, durante o Império, aos anos em que a Corte portuguesa permaneceu no Rio de Janeiro (1808 - 1821). O rei, portanto, era D. João VI. Ora, de acordo com C. Schlichthorst, um militar alemão contratado para o Segundo Batalhão de Granadeiros, touradas eram realizadas no período joanino, embora não chegassem a ser um sucesso retumbante:
"No tempo do Rei, às vezes havia touradas, pouco aplaudidas, porque os touros daqui são moles [sic], sendo impossível excitá-los ao ponto de tornar esses divertimentos tão perigosos como interessantes." (³)
Questão de ponto de vista, é claro: duvido que touros considerassem (ou considerem) as touradas interessantes. Estão de acordo, leitores?

Touradas em Santos - SP

O anúncio ao lado já é dos tempos da República; apareceu no Diário de Santos, edição de 5 de julho de 1907, em primeira página:
"Se o tempo permitir terá lugar, depois de amanhã, no redondel à rua Amador Bueno, uma grande tourada na qual exibir-se-á o rival de D. Tranquedo [sic] e o espada d. Galvecito que toureará um bicho, com pernas de pau." 
A redação do comunicado é um tanto deficiente, pela falta de clareza quanto a quem seria o usuário das pernas de pau, se d. Galvecito ou se o bicho (apesar da vírgula), ou se as pernas de pau é que seriam usadas para tourear... O contexto, porém, permite alguma inferência, naturalmente. 
Pondo de lado o aspecto cômico da questão, cabe recordar que, sendo o principal porto do Brasil na época, graças às exportações de café, Santos atraía muitos imigrantes. Não surpreende que, entre eles, houvesse numerosos apreciadores de touradas. Sérias ou não.

(1) EVANS, Arthur. The Palace of Minos Vol. 3. London: Macmillan and Co., 1930, p. 213. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 118.
(3) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 130.


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terça-feira, 21 de novembro de 2017

Caminhando por florestas densas

Floresta Amazônica e rio Negro

Poucas pessoas, dentre a população urbana, já andaram pelas matas fechadas do Brasil; são, por consequência, também poucas as que têm uma ideia correta do que é transpor a densa vegetação, como o fizeram os colonizadores, nos Séculos XVI, XVII e XVIII. Em uma pequenina obra, publicada em 1754 com o aparatoso título de Relação e Notícia da Gente que Nesta Segunda Monção Chegou ao Sítio do Grão-Pará e às Terras de Mato Grosso, encontramos a seguinte descrição:
Dentro da Floresta Amazônica
"Em toda esta terra, e em todo o tempo do ano estão as árvores cheias de folhas e os matos frescos, o intrincado dos quais nos serve de mortificação, porque se não pode por eles dar livremente um passo; ao chegarmos vendo o denso e frondoso dele nos parecia que o fogo poderia fazer caminho livre, mas ao depois nos desenganou a experiência, pois ainda cortados os paus e postos no lume, dificultosamente ardem; todas as árvores são enlaçadas de cipó [...], de sorte que pelo mato se não pode dar passo sem que se leve na mão um cutelo ou faca grande, com a qual se vai cortando aquela rede de cordas com que a natureza foi prendendo as árvores umas às outras [...]." (¹)
Notem, leitores, que o fato de as florestas do Brasil permanecerem sempre verdes era uma surpresa para quem estava habituado à vegetação decídua de climas temperados, mas a dificuldade apontada era caminhar por entre a mataria, não apenas pela densidade arbórea, mas também pela existência de cipós que, conforme aponta o trecho citado, formavam uma rede ligando as árvores e impedindo a passagem. Mesmo dispondo de boas ferramentas, quem pretendia explorar o terreno considerava a tarefa penosa, daí o recurso ao fogo, de modo análogo ao utilizado por indígenas (²). Esse método, inconveniente pelo dano ambiental que dele resulta, não era, todavia, muito eficaz para abrir o terreno. A despeito disso, foi usado por bandeirantes e outros exploradores do território, e continua até hoje a ser empregado - ilegalmente - para remover a floresta, dando lugar à monocultura e pastagens.

Dentro de mata no Brasil Central

(1) COUTO, Isidoro de; SILVA, Caetano Paes. Relação e Notícia da Gente que Nesta Segunda Monção Chegou ao Sítio do Grão-Pará e às Terras de Mato Grosso. Lisboa: Oficina de Bernardo A. de Oliveira, 1754.
(2) Antes da chegada de colonizadores europeus, as ferramentas usadas por indígenas do Brasil eram feitas com madeira e pedra, dificultando o corte de árvores, daí o uso do fogo para desbastar florestas.


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quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Como os antigos romanos descobriram que elefantes podiam morrer

Em luta contra o exército de Pirro, rei do Épiro, que se aliara aos tarentinos, os romanos enfrentaram pela primeira vez, ao que se sabe, os tanques de guerra vivos da Antiguidade: elefantes! Aneu Floro (¹), em Epitome rerum Romanarum, escreveu:
"Para defender a semigrega cidade (²) fundada por lacedemônios, [Pirro] trouxe homens do Épiro, da Tessália e da Macedônia, elefantes, até então desconhecidos, forças de mar, terra e cavalaria." (³)
Pânico geral entre os corajosos romanos. Quem ousaria enfrentar as terríveis criaturas que, sem mostras de caridade, pisoteavam os insignificantes soldados que esboçavam alguma oposição? O pavor campeou entre as forças de Roma até que Caio Minúcio, da Quarta Legião (ainda segundo Floro), ao cortar a tromba de um elefante, demonstrou que os ditos animais podiam ser mortos... 
Cortar a tromba - que ato de bravura! Não pretendo gastar tempo discutindo se os fatos foram mesmo assim. Afinal, Floro escreveu muito tempo depois da guerra contra Pirro. Mas podemos, de sua informação, extrair algumas conclusões:
  • Na memória coletiva dos romanos, a luta contra os elefantes na Batalha de Heracleia (⁴) tinha proporções exageradas (isso não é um trocadilho - mesmo!);
  • O episódio de valentia do soldado Caio Minúcio era reputado como real e notável, ou ninguém mais se lembraria dele;
  • O próprio Floro devia ter fé na autenticidade do episódio, ou não iria adicioná-lo à sua obra, correndo o risco de ser considerado mentiroso;
  • Os conhecimentos de zoologia dos romanos do Século III a.C. eram, no melhor dos casos, sofríveis, e a falta de informação quanto à existência de elefantes comprova que, nesse tempo, o contato de povos da Península Itálica com outras regiões não era expressivo - somos forçados a considerar que, para seus dias, o ousado golpe desferido por Caio Minúcio contra a tromba de um elefante significou, para Roma, mais que um feito militar, foi um grande avanço na ciência. Podem rir, leitores.
O caso é que, depois do susto inicial, os romanos gostaram tanto dos elefantes que, assim que puderam, trataram de incluí-los entre seus recursos bélicos. Mas tiveram problemas: consta que, tendo capturado alguns elefantes dos cartaginenses durante as Guerras Púnicas, os pobres animais acabaram morrendo de fome, porque seus novos senhores não tinham a menor ideia de como deviam alimentá-los. Na guerra ou na paz, o contato com outros povos serviu para ampliar os conhecimentos dos romanos. Posteriormente, elefantes seriam parte importante dos espetáculos circenses para o entretenimento de multidões na capital do Império.

Uma visão humorística do exército de Pirro (⁵)

(1) Este autor romano viveu entre os Séculos I e II d.C.; foi contemporâneo do imperador Adriano.
(2) Tarento.
(3) O trecho citado de Epitome rerum Romanarum é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) 280 a.C.
(5) BECKETT, Gilbert Abbott à et LEECH, John. The Comic History of Rome. London: Bradbury, Evans and Co., 1851, p. 138. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 14 de novembro de 2017

A preferência por indígenas das missões para captura e escravização

Exceto em casos de "guerra justa" (¹), a escravidão de indígenas era ilegal no Brasil. Isto não quer dizer que não acontecesse. Exatamente ao contrário, foi amplamente utilizada e, em algumas áreas, predominante.
Para muitos colonizadores, os índios "favoritos" eram aqueles que, tendo vivido em missões, acabavam capturados por bandeiras de apresamento. A questão que consequentemente aparece é: por que essa preferência?
Antes de qualquer outra coisa, era comum que, vivendo em aldeamentos organizados por missionários (quase sempre jesuítas), os indígenas andassem desarmados e sem treino contínuo para o combate. Nesse sentido, estavam em desvantagem em relação àqueles que, habitando aldeias próprias, ao estilo típico dos ameríndios, apresentavam maior prontidão para a defesa. É verdade que os missionários insistiam com as autoridades coloniais (particularmente aquelas em áreas subordinadas ao governo espanhol), para que fosse admitido o uso de armas de fogo como defesa para os índios das missões, mas a permissão era negada sob o pretexto de que, uma vez armados, os índios poderiam ser uma ameaça para as povoações de colonizadores.
Outra razão para a preferência pela escravização de indígenas catequizados é que estes estavam já habituados ao convívio com colonizadores de origem europeia, tendo aprendido técnicas agrícolas com os missionários. Não seria preciso, portanto, gastar tempo ensinando a eles o trabalho que se esperava que fizessem. Sabemos, por relato do padre Antonio Ruiz de Montoya, jesuíta que trabalhou nas missões do Guayrá, que a principal atividade dos nativos catequizados era a agricultura: "[...] Os próprios padres lhes haviam ensinado a preparar a terra com arado [...]" (²). E mais: "Todos são lavradores e cada um tem seu próprio terreno de cultivo; atingindo os onze anos, os rapazes já trabalham em seu terreno, ajudando-se uns aos outros [...]." (³) Convenhamos, leitores, que esses indígenas em muito se avantajavam, até mesmo em relação aos colonizadores, já que, no Brasil, ainda no Século XIX havia resistência entre latifundiários quanto à introdução do uso do arado nas lavouras; a rusticidade era tal, que fazia recair a preferência no uso apenas de enxadas, manipuladas por escravos de origem africana.
Um terceiro aspecto deve ser tido como sumamente relevante, em se tratando do apresamento de indígenas catequizados: além do conhecimento de técnicas agrícolas, muitos deles eram qualificados no exercício de várias profissões. Montoya, o jesuíta já mencionado, afirmou: "São muito habilidosos nos ofícios mecânicos; há entre eles ótimos carpinteiros, ferreiros, alfaiates, tecelões e sapateiros, e ainda que antes nada disso soubessem, a atividade dos padres tornou-os mestres, e não pouco no cultivo facilitado da terra pelo uso do arado [...]." (⁴)
Longe de desconhecer esse fato, os sertanistas apresadores de indígenas viam nele um estímulo a mais, em particular quando queriam "peças" (⁵), não apenas para trabalho nas lavouras, mas também para venda.

(1) Um recurso hipócrita, mas conveniente, para acalmar consciências e legalizar o apresamento e escravização de ameríndios. Outro meio de dar um aspecto de legalidade à existência de indígenas escravizados era afirmar que haviam sido comprados em aldeias nas quais eram prisioneiros reservados à prática da antropofagia.
(2) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.
(3) Ibid. 
(4) Ibid.
(5) Modo como usualmente eram chamados os indígenas escravizados.


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quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Insetos na alimentação

Anda na moda incluir insetos nas refeições. Há quem veja neles a solução dos problemas alimentares da humanidade. De minha parte, passo longe: todo esse exército de criaturas com seis patas, um ou dois pares de asas e duas antenas me parece muito mais tolerável andando, voando ou saltando do que assado, frito, ensopado, grelhado ou mergulhado em algum molho.
Entretanto, a presença de insetos como parte da alimentação humana não é exatamente uma novidade. Em diversas culturas foi e é uma prática habitual. Indígenas do Brasil, por exemplo, foram descritos por Anchieta (¹) como grandes apreciadores de formigas tanajuras - assadas, é claro. Antes, porém, de entrar na questão do preparo dos insetos, o missionário jesuíta teve o cuidado de, a seu modo, explicar como eram esses acepipes em potencial:
"Das formigas só parecem dignas de comemoração as que destroem as árvores; estas são chamadas içás: são um tanto ruivas, trituradas cheiram a limão; cavam para si grandes casas debaixo da terra. Na primavera, isto é, em setembro, e daí em diante, fazem sair o enxame dos filhos, quase sempre no dia seguinte ao de chuva e trovoada, se o sol estiver ardente [...]." (²)
Agora, captura e modo de preparo:
"Para ver quando elas saem de suas cavernas [sic] [...] ajuntam-se os índios, que ansiosamente esperam este tempo, tanto homens, como mulheres; deixam as suas casas, apressam-se, correm com grande alegria e saltos de prazer para colher os frutos novos, aproximam-se das entradas dos formigueiros e enchem de água os pequenos buracos que elas fazem [...], e enchem os seus vasos, isto é, certas cabaças grandes, voltam para casa, assam-nas em vasilhas de barro e comem-nas; assim torradas, conservam-se por muitos dias, sem se corromperem." (³)
Para mostrar que entendia mesmo do assunto, Anchieta fez uma revelação:
"Quão deleitável é esta comida e como é saudável, sabemo-lo nós, que a provamos." (⁴)
Satisfeitos, leitores? Vem mais. Vamos à Antiguidade, à Mesopotâmia, à Assíria. Observem este interessante relevo (⁵), descoberto como resultado de escavações arqueológicas do Século XIX, no que se revelou um complexo de construções destinadas à habitação real e administração dos negócios públicos:


Trata-se de uma equipe de serviçais, conduzindo ingredientes para o que seria, com enorme probabilidade, a preparação de um régio banquete. De um grupo maior, destacamos quatro. A semelhança dos trajes faz supor que usavam uma espécie de uniforme. Da esquerda para a direita, o primeiro leva romãs (muito apreciadas por povos da Mesopotâmia na Antiguidade), o terceiro carrega aves e o quarto, coelhos. E quanto ao segundo? Vejam, leitores, no detalhe:


Sim, vocês estão certos! São... Gafanhotos! Enormes, aliás, se o artista que representou essa procissão gastronômica foi fiel às proporções. Ao monarca assírio, só restaria dizer: Bom apetite, majestade!

(1) Em uma carta escrita em São Vicente no ano de 1560, cujo destinatário era o Geral da Companhia de Jesus, padre Diego Laynez.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 122.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) LAYARD, Austen Henry. A Second Series of the Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853.


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terça-feira, 7 de novembro de 2017

Donatários de Capitanias Hereditárias tinham autoridade para condenar à morte

Os donatários de capitanias hereditárias tinham direitos e poderes enormes - exagerados, até. Dentre os direitos, cabia a cada capitão-donatário transferir a capitania como herança ao filho mais velho, ficar com a décima parte dos quintos reais arrecadados do ouro e pedras preciosas descobertos, criar vilas e nomear os funcionários encarregados da administração dos assuntos públicos, doar sesmarias, impor trabalho compulsório a indígenas (com algumas restrições) e reter para si a décima parte dos dízimos arrecadados. Não era pouco.
Havia, ainda, vários outros direitos, dentre os quais examinaremos um, assim expresso na Carta de Doação e Foral de concessão da Capitania de São Vicente a Martim Afonso de Sousa:
"Nos casos-crimes hei por bem (*) que o dito capitão e governador e seu ouvidor tenham jurisdição e alçada de morte natural em escravos e gentios, e assim mesmo em peões cristãos e homens livres, em todos os casos, para absolver como para condenar, sem haver apelação nem agravo." 
Como não vigorava o conceito de igualdade diante da lei, o capitão-donatário concentrava em si um enorme poder, restrito, porém, aos escravos e gente livre de posição social inferior, uma vez que para "pessoas de maior qualidade" as punições seriam mais brandas:
"Nas pessoas de maior qualidade terá alçada [o donatário] de dez anos de degredo, e até cem cruzados de pena, sem apelação nem agravo."
Havia, no entanto, quatro casos, considerados gravíssimos pelo monarca português, para os quais o donatário poderia atribuir até pena de morte, ainda que o acusado fosse um fidalgo:
"Nos quatro casos seguintes - heresia, quando o herético lhe for entregue pelo eclesiástico, traição, sodomia e moeda falsa - terão alçada em toda a pessoa de qualquer qualidade que seja para condenar os culpados à morte, e dar suas sentenças à execução sem apelação nem agravo [...]."
Mesmo com tantos direitos para os donatários e seus sucessores, o sistema de capitanias hereditárias teve resultados excessivamente modestos, e a criação do Governo-Geral em 1548 levou à supressão de vários dos antigos poderes. Os donatários até esboçaram um protesto - inútil - contra a decisão de D. João III, já que a Coroa, consciente de que, ou assumia o controle ou perdia as terras na América, buscava chamar a si as responsabilidades do governo. A distância e consequentes dificuldades de comunicação seriam, porém, um entrave severo à boa governança colonial.

(*) É o rei quem fala.


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quinta-feira, 2 de novembro de 2017

O Código de Hamurabi e os barqueiros desastrados da Mesopotâmia

Mesopotâmia, como se sabe, é palavra de origem grega, cujo significado é "região entre rios". Nela, os rios Tigre e Eufrates foram muito utilizados, desde tempos distantes, na provisão de água para a agricultura. A navegação fluvial tinha destaque, já que o transporte terrestre era difícil, especialmente para grandes cargas. Alguns estudos apontam a possibilidade de que mesopotâmios, fazendo também navegação marítima, tenham saído pelo Golfo Pérsico, contornado a Península Arábica e, através do Mar Vermelho, mesmo em remota Antiguidade, alcançado o Egito, para estabelecer uma nova rota de comércio. Os conhecimentos geográficos foram ampliados pela perspectiva de lucro.
Nesse contexto, a profissão de barqueiro era importante. Era preciso saber conduzir muito bem uma embarcação, além de zelar pelas mercadorias transportadas. Senão...
Senão, de acordo com o Código de Hamurabi, um barqueiro desastrado poderia ter problemas sérios:
"Se um homem contrata um barqueiro para seu barco, e coloca no barco cereais, lã, azeite, tâmaras ou qualquer outra coisa, se o barqueiro for descuidado, de modo que se percam o barco e a carga, ele será responsável por indenizar o proprietário quanto ao valor do barco e tudo o que nele havia."
Notaram, leitores, a lista de mercadorias que, de acordo com o Código, eram comumente embarcadas? Ela dá uma ideia da produção usual na Mesopotâmia do Século XVIII a.C.; todos os itens deviam ser muito frequentes, já que, ao que parece, foram os primeiros lembrados pelo legislador, ao determinar o que sucederia quando um barqueiro inábil pusesse a perder aquilo que lhe fora confiado. Levando em conta o restante do Código, até que o tal homem tinha sorte por não haver nenhuma prescrição ordenando que lhe cortassem a cabeça pela falta de competência no ofício.


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