terça-feira, 30 de março de 2021

A contratação dos serviços de um criado na capital do Império

Na segunda metade do Século XIX, as leis trabalhistas, como hoje as entendemos, estavam bem longe da existência. A escravidão ainda persistia, mas começava a parecer fora de moda, e gente que se considerava de "boa sociedade" mostrava interesse em ter trabalhadores livres, que eram chamados "criados", ao menos para algumas funções. Como regular, no entanto, as obrigações de empregador e empregado nessa situação?
A solução vinha sob a forma de um contrato de trabalho, que devia conter aproximadamente estes termos:
"Entre nós abaixo assinados [empregador] e [empregado], temos convencionado de nosso mútuo consenso e acordo o seguinte: - Eu [empregador], achando-me na mais urgente necessidade para o meu serviço de um criado que entenda e saiba cuidar do trabalho de [ocupação ou área de atuação], e concorrendo no Sr. [empregado] todas as qualidades que se exigem para um semelhante serviço, assim como por me constar que ele é de bons costumes, muito diligente e hábil, me tenho convencionado e ajustado com ele tomá-lo ao meu serviço para o sobredito fim, dando-lhe por ano a quantia de [salário combinado] em dinheiro pago aos [data do pagamento] fazendo-o conduzir para minha [residência ou outro local] à minha custa, e obrigando-me a dar-lhe o almoço, jantar e ceia, cama e quarto para dormir e roupa lavada, e para o ajudar no dito serviço os escravos que indispensavelmente forem necessários [sic]. E eu [empregado] da minha parte prometo e me obrigo a cumprir e desempenhar as obrigações sobreditas que aceito, e sob o ajuste e promessas que o Sr. [empregador] me tem feito. E para clareza e certeza se fizeram dois originais do mesmo teor, escritos por mim [aquele que escreveu] e por nós ambos assinados.
Rio de Janeiro, ___ de ______________ de 18__." (¹)
Nota-se no contrato que tanto o empregador como o empregado (ou criado) eram referidos com o título de "senhor", algo impensável em relação a um escravo. Afirmava-se, sem margem a dúvidas, que o contrato era livre entre as partes. Tal preocupação jamais aconteceria sob o regime da escravidão, porque o escravo era simplesmente obrigado a trabalhar. Não havia, é claro, nenhum contrato entre senhor e escravo. Além disso, as obrigações das partes envolvidas eram definidas com exatidão (²), para evitar surpresas desagradáveis no futuro. Finalmente, a contratação de trabalhadores livres não significava, ainda, o fim da escravidão, como se nota pela referência a escravos que trabalhariam sob a autoridade do criado ("para o ajudar no dito serviço os escravos que indispensavelmente forem necessários"). O processo de transição entre dois universos distintos de trabalho estava em andamento.

(1) Adaptado de Conselheiro Fiel do Povo ou Coleção de Fórmulas 3ª ed., vol. II. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1860, pp. 256 e 257.
(2) A escravidão, contudo, tinha raízes profundas. Ao longo do Século XIX, e mesmo posteriormente, não era incomum que trabalhadores assalariados se queixassem do tratamento que recebiam, semelhante ao dispensado a cativos.


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quinta-feira, 25 de março de 2021

Cruzados em viagem

A afinação é trabalhosa, mas as mãos que empunham a espada são também ágeis na pequena harpa. A noite é fria, uma fogueira aquece o grupo que se forma ao redor. Conservando certa distância, outra fogueira, e outra, e outras. Muitas mais. Perto das tendas, o burburinho dos que alimentam os cavalos, curam feridos, preparam comida. Fisionomias cansadas estão por toda parte. Em meio à fumaça, a multidão composta por soldados e toda a gente que os acompanha parece uma onda que se move lentamente sobre as irregularidades do terreno.
O guerreiro trovador, dedilhando a harpa, começa uma cantiga que recorda uma terra distante, uma praia inóspita, um amor perdido. Aquecendo-se junto à fogueira, os companheiros ouvem em silêncio. Mesmo acostumados à rudeza dos campos de batalha, não perderam a sensibilidade e se encantam com as memórias que a música, tão suave, consegue evocar. À sua volta, persiste o movimento dos que, pragmáticos, se ocupam do indispensável à sobrevivência. 
A cantiga termina, ouve-se o crepitar da madeira que as chamas vão consumindo. Mais um instante, e o harpista começa a tocar uma canção alegre, que todos conhecem e que, como mágica, põe fim às reflexões melancólicas. Com alguma timidez, a princípio, mas com ruído crescente, batem palmas e movem os pés. Interiormente, até são tentados a dançar. A Terra Santa, para esses cruzados, é ainda uma miragem distante. Como em uma peregrinação, aquilo que tanto buscam talvez esteja, não na chegada, mas no caminho que percorrem.


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terça-feira, 23 de março de 2021

Coivara

A queima de um terreno antes do cultivo e a possível degradação do solo


Em poucas palavras, a coivara pode ser descrita como a queima de um terreno com sua vegetação, para facilitar a limpeza antes de um cultivo qualquer. Sem o domínio da metalurgia, grupos nômades ou seminômades que praticavam algum tipo de agricultura temporária - era o caso de vários povos indígenas do Brasil - usavam o fogo como auxílio para limpar uma área que pretendiam cultivar, porque fazê-lo apenas com ferramentas rudimentares, de pedra ou madeira, seria muito difícil, talvez até impossível.
Dos indígenas, tal prática passou aos colonizadores europeus e seus descendentes. Não tinham esses o pretexto da falta de ferramentas, mas continuavam a queimar o terreno que pretendiam cultivar porque, afinal, era mais fácil suprimir um trecho de floresta com o fogo, ainda que daí resultasse, em certo prazo, o empobrecimento do solo, do que usar machados para derrubar árvores e enxadas para remover o mato.
Antonil, que viu a lavoura canavieira e o cultivo do tabaco  no começo do Século XVIII, notou que, reservada a melhor terra possível para a cana-de-açúcar, vinha, a seguir, a prática de atear fogo à vegetação:
"Feita a escolha da melhor terra para a cana, roça-se, queima-se e limpa-se, tirando-lhe tudo o que podia servir de embaraço [...]." (¹)
Não era muito diferente o procedimento quanto ao preparo para cultivo da Nicotiana tabacum:
"[...] Semeia-se esta em canteiros bem-estercados, ou em queimadas feitas no mato, onde há terra conveniente para isso, e aparelhadas no mesmo ano em que se há de semear." (²)
Saint-Hilaire, viajando pelo interior do Brasil pouco antes da Independência, constatou que essa prática ainda prevalecia, em se tratando da produção de tabaco:
"[...] A área que comporta um alqueire de milho pode conter 20.000 pés de fumo. Semeia-se esta planta em agosto, setembro e outubro, em malhadas preparadas e estercadas e transplantam-se as mudas em dezembro e janeiro numa terra antes coberta de mato que se queimou e onde se teve o cuidado de não deixar subsistir ramagem alguma. [...]" (³)
A coivara, ou queima do terreno a ser plantado, incluía-se, portanto, em um conjunto de técnicas agrícolas rudimentares. No passado, depois de alguns anos de cultivo, comunidades nômades ou seminômades abandonavam uma área, que ficava em repouso, possibilitando certo grau de recuperação do solo, Assim, esse método era menos danoso. Não é o que ocorre na atualidade, e é surpreendente que ainda seja empregado, algumas vezes em larga escala.

Queimada de floresta virgem (⁴)

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 38.
(2) Ibid., p. 109.
(3) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 74.
(4) BIARD, François. Deux Années au Brésil. Paris: Hachette, 1862, p. 205. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 18 de março de 2021

A rotina de catequese e trabalho em reduções jesuíticas na América do Sul

Indígenas que viviam em reduções jesuíticas na América do Sul eram submetidos a um controle estrito por parte dos padres, com imposição de uma rotina completamente estranha ao modo de vida praticado antes do contato com europeus. Isso se comprova pelas palavras do padre Antonio Ruiz de Montoya, ele próprio um missionário dedicado e defensor dos direitos dos povos nativos. Logo pela manhã, a primeira obrigação era ouvir missa, vindo depois as horas de trabalho: "Ao raiar do dia, em todo o ano, ouvem missa, e saindo da igreja vão ao trabalho, que é muito produtivo com tal preparação religiosa [...]" (¹).
Apenas bebês e aqueles que corriam risco de morte eram batizados prontamente; quanto aos demais, eram aos poucos instruídos no catolicismo, e somente depois de um longo preparo, admitidos à comunhão: "[...] embora o sacramento da confissão seja logo praticado, esperam alguns anos pela comunhão, alguns mais e outros menos [...]" (²), e "os que estão aptos comungam quatro vezes por ano [...], com preparação de sermões e exemplos, jejuns, disciplinas (³) e outras penitências [...]" (⁴).
Quanto ao trabalho diário, indígenas das reduções aprendiam técnicas agrícolas e ofícios mecânicos. No primeiro caso, o treinamento começava, de acordo com Montoya, por volta dos onze anos de idade: "São todos lavradores e cada um tem sua própria roça, e passando de onze anos os meninos têm já seu cultivo, em que se ajudam mutuamente com muita solidariedade; não fazem compra e venda, porque com liberalidade e sem interesse se socorrem em suas necessidades [...], vivem em paz e sem litígios" (⁵). Já nos ofícios mecânicos, em geral completamente novos para os ameríndios, a instrução dos jesuítas era vital: "São muito hábeis em trabalhos mecânicos, e há carpinteiros, ferreiros, alfaiates, tecelões e sapateiros muito bons entre eles, e se bem que nada disso soubessem, o ensino dos padres tornou-os mestres, e não pouco, no cultivo fácil da terra com arado [...]" (⁶).
Sabe-se que os missionários que conduziam as reduções faziam os maiores sacrifícios e estavam dispostos, se preciso, a morrer pelos indígenas sob sua supervisão. Não obstante, algumas críticas têm sido feitas, sob os seguintes argumentos, que deixo a quem lê o direito de avaliar como quiser:
  • Embora indígenas fossem escolhidos para funções de liderança dentro das reduções, a autoridade máxima competia aos padres, não aos caciques, limitando, portanto, a liberdade mesmo em questões civis;
  • Indígenas aprendiam com os padres habilidades que não eram, como regra, parte de sua cultura de origem. Disso resultou um problema inesperado, porque aprisionadores de indígenas para escravização passaram a rondar e a atacar as reduções com intenção de capturar índios instruídos em ofícios, porquanto uma vez escravizados, eram considerados mais úteis pelo conhecimento que tinham e/ou mais valiosos para venda.
  • Chegou-se mesmo a dizer, sem comprovação efetiva, que jesuítas tinham a intenção de estabelecer um Estado independente na América do Sul, tal o controle que exerciam e o grau de isolamento em que mantinham a população indígena sob sua autoridade. Essa ideia, no entanto, deve ser creditada, ao menos em parte, à argumentação usada para justificar a expulsão dos jesuítas e posterior supressão da Companhia de Jesus.

(1) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639. Este e todos os demais trechos citados nesta postagem foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Ibid.
(3) A prática da autoflagelação era comum em ocasiões como a Semana Santa.
(4) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Op. cit.
(5) Ibid.
(6) Ibid.


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terça-feira, 16 de março de 2021

Catequese no Brasil Colonial: quem foram os primeiros?

1. Ao contrário do que muita gente imagina, foram franciscanos, e não jesuítas, os primeiros religiosos que vieram ao Brasil na tentativa de dar início à catequese. O próprio frei Henrique de Coimbra, que celebrou aquela que é considerada a primeira missa no Brasil, com a assistência dos homens que compunham a esquadra de Cabral, além da presença de indígenas (¹), era franciscano. Os primeiros jesuítas vieram em 1549, acompanhando o primeiro governador-geral Tomé de Sousa.

2. De acordo com o padre Simão de Vasconcelos (²), o primeiro jesuíta a ser capaz de pregar e ouvir confissões na língua dos nativos da Bahia foi João Aspilcueta Navarro.

3. Ainda segundo o padre Simão de Vasconcelos, quando começavam a catequese de um determinado grupo de indígenas, a primeira coisa que jesuítas procuravam fazer era obter o consentimento dos nativos para a construção de uma capela ou igreja em sua aldeia.

4. A primeira igreja edificada por jesuítas junto ao Colégio de São Paulo (fundado em 1554) foi feita de taipa de mão e coberta de palha, como eram, nesse tempo, as demais construções da povoação nascente.

5. O primeiro missionário jesuíta a empreender a catequese na Capitania de São Vicente não foi Manuel da Nóbrega e nem José de Anchieta, e sim o padre Leonardo Nunes.

(1) De acordo com a Carta escrita por Pero Vaz de Caminha.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865.


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quinta-feira, 11 de março de 2021

O mito de Narciso


Afirma-se que é narcisista a pessoa que nutre uma admiração desmedida por si mesma, muito além de uma correta autoestima. Ora, dirão os leitores, que é que isso tem a ver com as belas amarilidáceas, também chamadas narcisos, que vemos em vasos e jardins? 
Para responder, vamos à mitologia da Grécia Antiga. Quando Narciso nasceu, um oráculo profetizou que o menino teria vida longa, sob a condição de jamais ver o próprio rosto. Se fosse hoje, diríamos que poderia contar nos dedos os dias de vida que lhe estavam destinados, mas na Antiguidade não era impossível que alguém passasse longo tempo sem se ver, porque os espelhos, feitos geralmente de metal polido, não eram lá muito eficientes.
Ao crescer, Narciso se tornou um jovem belíssimo, mas algo arrogante. A ninfa Eco, que por ele se apaixonou, foi tratada com desdém. Um dia, indo à caça, Narciso teve sede e, ouvindo o som característico de água em movimento, descobriu entre a relva e os arbustos uma fonte pura e límpida, capaz de refletir qualquer coisa com a perfeição de um espelho, à medida que, espraiando, formava um pequeno lago. 
Aproximando-se, Narciso viu-se refletido na água e ficou encantado. Tentou tocar a imagem, porém quanto mais a admirava, tanto mais parecia impossível alcançá-la. Para encurtar a história, basta dizer que tanto olhou e olhou que, perdidamente apaixonado por si mesmo, mergulhou na água e desapareceu para sempre. Os gregos, quando viam algum narciso - a flor, é claro - medrando junto à água corrente, supunham que era o jovem, belo e infeliz Narciso que estava se manifestando. Em apoio dessa ideia poética observavam que narcisos pareciam sempre estar voltados para baixo.


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terça-feira, 9 de março de 2021

Aferição de pesos e medidas no Brasil Colonial

Se vocês, leitores, quiserem algum instrumento de medida - uma régua para uso escolar ou para escritório, digamos - irão à loja mais próxima que venda o dito objeto e lá comprarão um, não é verdade? Supõe-se, a partir daí, que terão confiança nessa régua, crendo que, quando necessário, fornecerá a medida com exatidão. Vale o mesmo para medidas usadas na cozinha, ou talvez em uma oficina. As balanças e outros instrumentos empregados no comércio são regularmente aferidos, como se sabe, pelo órgão público competente.
Imaginem, agora, a situação de quem usava instrumentos de medida no Brasil Colonial. Como ter certeza de que ofereciam o resultado correto? Como saber que, afinal, medidas de capacidade, usadas nas vendas por pequenos comerciantes, não eram, em última análise, um instrumento de fraude?
A resposta é esta: medidas consideradas padrão ficavam em poder da Câmara Municipal de cada localidade, e era ela que, periodicamente, devia providenciar a aferição dos pesos e medidas empregados no comércio, indicando, para isso, uma pessoa qualificada. A Câmara de São Paulo, por exemplo, decidiu, em julho de 1584:
"Aos dois dias do mês de julho, era de mil e quinhentos e oitenta e quatro anos, foi mandado [...] apregoar as posturas neste livro contidas [...] e que quem tivesse medidas ou varas de medir ou pesos os trouxesse para aferir, com pena de dois tostões [...]."
A multa estipulada era pequenina em termos absolutos, mas quase não havia dinheiro amoedado circulando na vila. Curioso, mesmo, era o modo como se avisava a população quanto à obrigatoriedade de apresentar pesos e medidas para aferição, conforme se vê em outra ata, datada de 14 de setembro de 1585:
"[...] o almotacel Jerônimo Maciel mandou deitar pregão pelo porteiro [...] e assim mandou que todas as pessoas que tivessem pesos e medidas as trouxessem perante ele [...] tudo para ser visto e examinado se estavam certas e boas [sic], e o dito porteiro deitou o dito pregão em altas vozes, que ouviu a gente do povo a que o quis ouvir, e que as tais medidas, pesos e meios alqueires (¹) trouxessem dentro em três dias perante ele para o dito efeito, sob pena de duzentos réis [...]." (²)
A reunião dos oficiais da Câmara acontecia habitualmente aos sábados. Havendo alguma coisa a ser comunicada ao povo, o porteiro, concluída a missa no domingo imediato, punha-se do lado de fora da igreja, a fim de ler a proclamação, porque nesse dia estavam presentes não só aqueles que residiam dentro dos muros da vila, como quem morava em fazendas nos arredores. Pode-se bem imaginar quanto essa prática contribuía para preservar os sentimentos religiosos entre a população...

(1) Um alqueire, como medida de volume, equivalia, nesse tempo, a pouco mais de treze litros.
(2) As atas aqui citadas foram transcritas na ortografia atual, com adição da pontuação indispensável.


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quinta-feira, 4 de março de 2021

Por que Augusto pensou em extinguir as distribuições de trigo em Roma

As distribuições gratuitas ou vendas a preço muito baixo de trigo eram, em Roma, uma prática a que governantes recorriam para evitar revoltas entre a população livre desocupada. Se quiserem, leitores, era parte da famosa política conhecida como "pão e circo", em que, ao lado do alimento, também eram oferecidos espetáculos públicos, quase sempre sangrentos, para que a fúria do populacho se voltasse contra animais e gladiadores, e não contra os que detinham o mando na poderosa Roma. 
Contudo, essas práticas consumiam preciosos recursos do Estado. O crescimento da população da Península Itálica tornou a produção de grãos insuficiente para atender a todos. Por consequência, veio a ser indispensável a importação de alimentos. Vinha muito trigo do Egito, por exemplo, mas isso tinha um preço, que não era apenas monetário. Havia também a dependência. E se as colheitas no Egito não fossem boas? E se navios que traziam cereais se perdessem no Mediterrâneo? E se... Era uma situação delicada, e a possibilidade de escassez não era mera fantasia. Acontecia mesmo.
De acordo com Suetônio (¹), em certa ocasião em que houve falta de alimentos em Roma, Augusto tomou medidas drásticas, que incluíram até uma ordem para que estrangeiros (com exceção dos professores e dos médicos), os escravos disponíveis para venda e aqueles que viviam em escolas de gladiadores saíssem da cidade. A ideia era ter menos bocas para alimentar. Onde foram viver e de quê? Suetônio não explicou.
Mais tarde, quando as colheitas voltaram à normalidade, Augusto, no dizer de Suetônio, "considerou suprimir definitivamente as distribuições de trigo para a plebe às expensas do Estado, porque a população, já esperando por elas, abandonava o cultivo do solo" (²). Ao refletir, todavia, no custo político desse plano, acabou por abandoná-lo.

(1) 69 - 141 d.C.
(2) SUETÔNIO. De vita Caesarum, Livro II. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 2 de março de 2021

A pesca do pirarucu no Século XIX

Ele é chamado "bacalhau da Amazônia": morto e salgado, parece bacalhau, mas só assim... É o pirarucu (Arapaima gigas), de água doce, doces como são as águas da Amazônia. "Este peixe salgado", explicou o cônego Francisco Bernardino de Sousa (¹), "é um dos gêneros que mais concorrem a facilitar a alimentação pública em geral e quase que constitui a base do sustento de uma boa parte da população (²). A língua do pirarucu, duríssima como ferro, serve para ralar e é com ela que costumam os indígenas ralar o guaraná" (³).
Para a realidade das águas doces, um pirarucu adulto é um peixe enorme, frequentemente com mais de dois metros de comprimento. Seu ciclo reprodutivo, porém, dificulta um pouco a propagação da espécie. Seria necessário, portanto, algum cuidado no que se refere à pesca. Não era o que acontecia no Século XIX, pelo que se vê com facilidade nas palavras de Francisco Bernardino de Sousa:
"A pesca [...] do pirarucu é dos seguintes modos: servem-se algumas vezes do anzol ou flecha, outras do arpão [...]; do camuri, que é uma boia com isca para chamá-lo à superfície da água, e então arpoá-lo; ou tapando a boca dos lagos, ou finalmente empregando o cacuri, que é uma espécie de cercado.
[...]
Não há ainda medida nem regra, que eu saiba, nesta violenta caçada. Tanto o grande como o pequeno peixe morrem à fisga, ao anzol e ao arpão, e não será para admirar que este importantíssimo recurso da pobreza venha a escassear em um futuro que talvez não esteja muito longe, porque acresce ao estrago feito pela mão do homem a diminuição considerável da espécie, ocasionada em alguns anos pela vazante extraordinária dos lagos. Em alguns pontos em que até então abundavam, já hoje se têm tornado raros e escassos (³)."
Já era assim há cento e tantos anos! Surpreendente é a visão desse autor, preocupado com uma questão ecológica que só muito tempo depois viria a ser de interesse geral. 
Atualmente a pesca do pirarucu está submetida a regulamentos que têm por objetivo a preservação da espécie pelo manejo sustentável. As chamadas "fazendas aquáticas" são um modo de realizar a criação desses peixes. A foto abaixo foi feita em uma delas, não muito longe de Manaus, a capital do Estado do Amazonas.

Pirarucu sob a água

(1) Encarregado dos trabalhos etnográficos da Comissão do Madeira.
(2) Entenda-se que Francisco Bernardino de Sousa fez essa afirmação no Século XIX.
(3) SOUSA, Francisco Bernardino de. Pará e Amazonas, Primeira Parte. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1874, p. 116.
(4) Ibid.


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