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quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Comércio entre reduções indígenas na América do Sul

Mesmo quem não simpatiza com a catequese de indígenas por jesuítas na América do Sul durante os tempos coloniais irá conceder que os missionários tinham, em alto grau, a virtude da perseverança. E precisaram dela, mesmo, em seus esforços para convencer grupos indígenas ao abandono de seu modo de vida tradicional por outro, em tudo diferente daquilo que até então praticavam. Não foram poucos os padres que acabaram perdendo a vida. Mas isso não é tudo.
As reduções, que foram sendo estabelecidas principalmente em terras que hoje pertencem ao Paraguai, à Argentina e ao Brasil, logo se tornaram o alvo favorito de bandeiras de apresamento que capturavam indígenas para escravização. Isso aconteceu, entre outras razões, porque os moradores das reduções eram instruídos em ofícios mecânicos pelos padres e, portanto, quando capturados, eram vendidos por preço mais elevado. A caça aos indígenas chegou a ser tão severa que, em alguns casos, os missionários se viram na contingência de, liderando seus catecúmenos, empreender viagem penosa e com muitas perdas, para ir viver em lugares mais distantes, supostamente fora do alcance dos escravizadores. Aí as reduções recomeçavam, mas a sede por indígenas para trabalho compulsório não era exclusividade de bandeirantes paulistas. Também colonizadores de origem espanhola, sempre que podiam, tentavam fazer uso da mão de obra que os jesuítas insistiam em defender e catequizar.
A despeito de tantos contratempos, as missões - ou reduções, se preferirem, leitores - prosperaram. É curioso que padres, cuja formação religiosa não contemplava, geralmente, a agricultura, a criação de gado e os ofícios manuais (¹), tenham sido capazes de liderar o estabelecimento de povoações, o ensino de técnicas de cultivo e até a edificação de construções bastante sólidas, se levarmos em conta as condições que deviam enfrentar. Como uma redução nem sempre era capaz de produzir tudo o que precisava, a troca do excedente com outras reduções foi, segundo o cônego João Pedro Gay (²), uma prática comum entre elas:
"Nem todas as reduções recolhiam os mesmos frutos [...] ou por causa da adversidade das terras, ou porque os administradores se inclinavam mais para qualquer ramo de produção. Assim umas reduções abundavam em trigo, carneiros, vacas, cavalos, mulas, etc., e outras sobressaíam em colheitas de algodão, anil, cana-de-açúcar, mel de pau, cera, etc. Eles permutavam entre si os produtos (nos povos não existia o uso de vender por dinheiro) cedendo um povo as sobras de um artigo a outro povo que dele necessitava, e recebendo valor em qualquer outro produto de que carecia. [...]." (³)
Não poderia haver, mesmo, dinheiro nas trocas, porque sabe-se muito bem da escassez de moeda na América do Sul colonial, tanto em terras da Espanha quanto de Portugal. Mas, seguindo adiante com a questão do comércio nas reduções, verifica-se que o correr dos anos fez com que a aplicação ao trabalho e a já mencionada perseverança dos religiosos da Companhia de Jesus conduzissem a um grau de desenvolvimento econômico bastante razoável. À medida que avançavam os anos do Século XVIII, as trocas não mais restritas às reduções demonstram que a produção crescera tanto, a ponto de permitir a venda do excedente para um mercado mais amplo, o dos colonizadores em geral. Voltemos às palavras de João Pedro Gay:
"[...] O que sobrava do trabalho comum era levado por embarcações pertencentes aos jesuítas pelos rios aos mercados espanhóis no Rio da Prata, ou no Brasil, e o seu produto era empregado em pagar o tributo real e na compra de artigos europeus que se não podiam fabricar nas reduções. [...]." (⁴)
Já havia, então, quem questionasse o poderio jesuíta na América do Sul. Sugeria-se, até, que se planejava o estabelecimento de uma República, escapando ao controle dos monarcas ibéricos. Os conflitos de interesses que levaram à extinção da Companhia de Jesus na Europa e as querelas por fronteiras em terras sul-americanas, decorrentes da assinatura de tratados entre Portugal e Espanha, golpearam mortalmente as reduções e deram origem a um amontoado de lendas sobre o "tesouro jesuíta" que, se é que existiu, jamais foi encontrado. Até hoje há quem o procure.  

(1) Ainda que, entre eles, houvesse exceções.
(2) Autor do Século XIX, foi cônego em São Borja - RS.
(3) GAY, João Pedro. História da República Jesuítica do Paraguay. Rio de Janeiro: Typ. de Domingos Luiz dos Santos, 1863, p. 187.
(4) Ibid., p. 225.


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quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Hortas nas reduções jesuíticas na América do Sul

Os jesuítas que estabeleceram reduções indígenas na América do Sul tinham, em cada uma delas, uma horta devidamente provida, tanto de vegetais nativos como daqueles que haviam vindo da Europa com colonizadores. Em referência a uma dessas hortas, o cônego João Pedro Gay (¹) afirmou que era "murada de pedra e barro, com ruas alinhadas e plantadas de pinheiros, laranjeiras, limoeiros, marmeleiros, macieiras, pessegueiros, nogueiras da Europa, oliveiras, parreiras e outras muitas árvores e arbustos, tanto indígenas como exóticos [...]" (²). 
Assim descrita, a horta seria, com mais justiça, chamada pomar. É pena que o cônego João Pedro Gay não tenha citado por nome os arbustos cultivados, porque entre eles poderiam estar algumas plantas aromáticas muito apreciadas. Embora não mencionadas por ele, hortaliças em geral eram também cultivadas. Disso se podem tirar pelo menos duas conclusões:
  • A existência das hortas permitiu que espécies conhecidas pelos colonizadores, mas não nativas, fossem, em alguns casos, introduzidas, e, em outros, tivessem o cultivo desenvolvido e disseminado na América do Sul, um fato que talvez os jesuítas não tenham premeditado, mas para cuja ocorrência, de qualquer modo, contribuíram;
  • As hortas dos jesuítas incluíam espécies que hoje não são muito comuns na América do Sul, o que prova que seu cultivo era possível, e que razões variadas devem ter contribuído para que o plantio não se generalizasse em outras áreas de colonização.

(1) Foi cônego em São Borja - RS no Século XIX e estudioso das missões jesuíticas na América do Sul. 
(2) GAY, João Pedro. História da República Jesuítica do Paraguay. Rio de Janeiro: Typ. de Domingos Luiz dos Santos, 1863, pp. 237 e 238.


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quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Casamentos em reduções jesuíticas na América do Sul

Indígenas que aceitavam a condição de catecúmenos e iam viver em reduções administradas por jesuítas na América do Sul eram levados a um modo de vida muito diferente daquele que haviam aprendido de seus ancestrais. Era assim, por exemplo, em relação aos costumes quanto ao casamento e ao estabelecimento de novos vínculos familiares. De acordo com o cônego João Pedro Gay, que estudou o assunto e escreveu sobre ele no Século XIX, em quase todos os casos competia aos padres a decisão quanto a quem se casaria com quem. Em seguida, em uma única data, as uniões eram formalizadas segundo as regras da Igreja: 
"Para celebrar os matrimônios parece que os jesuítas tinham tempo determinado, que era depois da Quaresma (¹). Então se mandava vir a lista dos moços e moças, viúvos e viúvas do povo em estado de casar, e os chamavam à porta da igreja. Indagavam deles se tinham tratado casamento, e aqueles que não tinham tratado, que eram todos ou quase todos, aí mesmo se lhes fazia escolher mulher, ou os padres mesmo as indicavam, e tratando logo de cumprir os pregões, os casavam todos em um dia, que pelo costume era o domingo antes da missa paroquial, para que se fizessem com maior solenidade. [...]." (²)
A partir daí, não era grande a mudança na vida dos recém-casados:
"[...] Os recém-casados passavam à jurisdição do seu chefe competente [...]; os homens trabalhavam do seu ofício se o tinham; se não, seguiam os trabalhos da comunidade (³), e as mulheres recebiam tarefas (⁴), e se ocupavam como as outras nos serviços da comunidade." (⁵). 
Não havia, portanto, muito espaço para devaneios românticos nesses casamentos. Era característica essencial da catequese jesuítica que os neófitos abandonassem todas as práticas que parecessem contrárias àquelas que os padres idealizavam para as comunidades em formação, daí a insistência no controle de todos os aspectos da vida. O casamento era apenas um deles, mas, nem de longe, o menos importante, particularmente quando a intenção era suprimir qualquer vestígio de poligamia.

(1) No tempo em que as reduções jesuíticas existiam, a Quaresma era celebrada com todo o rigor, e, portanto, expressões festivas ligadas a casamentos não eram toleradas. 
(2) GAY, João Pedro. História da República Jesuítica do Paraguay. Rio de Janeiro: Typ. de Domingos Luiz dos Santos, 1863, pp. 211 e 212.
(3) Geralmente trabalho na agricultura.
(4) Fiar algodão, por exemplo.
(5). GAY, João Pedro. Op. cit., p. 212.


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quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Como colonizadores podiam enriquecer no Brasil

Muitos colonizadores que vieram ao Brasil nos Séculos XVI e XVII apenas pensavam em enriquecer e voltar ao Reino tão rápido quanto possível. Pelas acusações vindas de alguns autores seus contemporâneos, sabe-se que tal gente não tinha qualquer cuidado em preservar o que havia nas terras coloniais, e muito menos em construir algo sólido que pudesse, de fato, ser fundamento para as gerações futuras. 
Mas como, afinal, era possível enriquecer no Brasil desse tempo já distante?
De acordo com o autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil (¹), havia pelo menos seis ramos de atividade que favoreciam o enriquecimento, dentre os quais o mais notável era, sem dúvida, a "lavoura dos açúcares":
"{...] digo que as riquezas do Brasil consistem em seis coisas, com as quais seus povoadores se fazem ricos, que são estas: a primeira a lavoura do açúcar, a segunda a mercancia, a terceira o pau a que chamam do Brasil, a quarta os algodões e madeiras, a quinta a lavoura de mantimentos, a sexta e última a criação de gados." (²)
Embora o próprio Ambrósio Fernandes Brandão, autor presumível dos Diálogos, fosse um dos que criticavam a conduta predatória dos colonizadores - ele conhecia apenas algumas Capitanias do Norte e, por isso, não tinha muito a dizer sobre as do Sul, como a de São Vicente, por exemplo - pode-se objetar que algumas atividades econômicas por ele listadas não se prestavam a uma produção rápida para breve retorno ao Reino. Era o caso, por exemplo, daqueles que investiam capital considerável na implantação de um engenho açucareiro, que somente chegava a dar lucro depois de alguns anos em funcionamento. Não obstante, houve proprietários de engenho que acabaram deixando alguém, parente ou contratado, para cuidar do empreendimento, possibilitando-lhes, assim, a volta a Portugal, onde cuidavam em negociar o melhor que podiam a produção distante, desfrutando a riqueza dela proveniente. Não era o caso dos lavradores que se dedicavam ao cultivo de mantimentos, cuja produção, prioritariamente, atendia às necessidades locais, e nem de leve oferecia o mesmo lucro e o mesmo status social que se podia obter com a produção açucareira, ao menos em sua fase de maior rendimento. Dos mercadores falaremos outro dia. 

(1) Autoria atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão.
(2) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil, Diálogo Terceiro. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 155.


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terça-feira, 10 de agosto de 2021

Náufragos


As ondas arremessam homens contra a areia. Desde que uma tempestade resultara em grandes avarias, o navio estava condenado. O piloto, mestre experiente nas armadilhas do mar, tratara de conduzir a embarcação para perto de terra. O risco, no entanto, era enorme. A traição de um rochedo submerso se encarregara da sentença final. 
As vagas são ferozes e mesmo bons nadadores têm consciência do perigo. Nadar, boiar, voltar a nadar, ainda quando as forças se esgotam. Sobreviver não é para os fracos.
Que lugar será esse? Ilha, talvez? Terra firme? Estirados na praia, ressentem-se da confusão mental resultante de tanto esforço. Entreolham-se. Contam-se. São onze, ao todo. Onde estarão os outros? 
Um estrondo, olham na direção do mar e veem, à distância, o que restara do casco tomar o rumo das profundezas. A quase alegria que a sensação de chegar à areia trouxera é substituída, em um átimo, pelo mais profundo desânimo. O olhar se perde no horizonte.
Mais tarde, o calor do sol, que seca as roupas, aliado à sede e à fome, os traz de volta à realidade. Alguns, sentados na areia, se entreolham, em uma interrogação que se expressa no silêncio. Três caminham perto da arrebentação, deixando pegadas que as ondas logo se encarregam de cobrir. 
A escassez de palavras é quebrada por dois veteranos de outro naufrágio, que tratam de tomar a liderança. É preciso que se dividam em grupos: um, que permanecerá na praia, tentando recuperar objetos do navio arrastados pelas águas e que possam ser úteis, e outro, que irá à procura de água potável e comida. Ao primeiro ficará a tarefa de providenciar alguma sinalização. Se tiverem sorte, ao passar por ali outro navio, os marujos notarão uma cruz rústica contrastando com a areia tão alva, ou a bandeira improvisada com uma camisa que, para isso, se rasgou. Talvez, então, sejam resgatados.  
Além da linha da praia, em meio à vegetação exuberante, alguns pares de olhos negros observam todos os movimentos dos recém-chegados.


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terça-feira, 16 de março de 2021

Catequese no Brasil Colonial: quem foram os primeiros?

1. Ao contrário do que muita gente imagina, foram franciscanos, e não jesuítas, os primeiros religiosos que vieram ao Brasil na tentativa de dar início à catequese. O próprio frei Henrique de Coimbra, que celebrou aquela que é considerada a primeira missa no Brasil, com a assistência dos homens que compunham a esquadra de Cabral, além da presença de indígenas (¹), era franciscano. Os primeiros jesuítas vieram em 1549, acompanhando o primeiro governador-geral Tomé de Sousa.

2. De acordo com o padre Simão de Vasconcelos (²), o primeiro jesuíta a ser capaz de pregar e ouvir confissões na língua dos nativos da Bahia foi João Aspilcueta Navarro.

3. Ainda segundo o padre Simão de Vasconcelos, quando começavam a catequese de um determinado grupo de indígenas, a primeira coisa que jesuítas procuravam fazer era obter o consentimento dos nativos para a construção de uma capela ou igreja em sua aldeia.

4. A primeira igreja edificada por jesuítas junto ao Colégio de São Paulo (fundado em 1554) foi feita de taipa de mão e coberta de palha, como eram, nesse tempo, as demais construções da povoação nascente.

5. O primeiro missionário jesuíta a empreender a catequese na Capitania de São Vicente não foi Manuel da Nóbrega e nem José de Anchieta, e sim o padre Leonardo Nunes.

(1) De acordo com a Carta escrita por Pero Vaz de Caminha.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865.


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quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Machadinhas de cobre em troca de contas coloridas

Escambo, todo mundo sabe, é o nome tradicionalmente dado às trocas de mercadorias entre europeus e indígenas da América, ocorridas no princípio da Colonização. À procura de madeiras nobres, especiarias e metais preciosos, comerciantes ofereciam aos indígenas tesouras, facas e outras ferramentas, contas coloridas, ou seja, coisas de baixo custo, ainda que o valor de um objeto não esteja relacionado apenas ao preço, mas à raridade e estima que lhe são dadas. Economicamente, os europeus levavam grande vantagem, mas seria tolice negar que nativos do Continente Americano logo tenham desenvolvido interesse por esse tipo de comércio. Em alguns casos, contudo, as trocas resultaram em situações engraçadas. Vou falar de uma delas.
Corria o ano de 1518. Um grupo de soldados e aventureiros espanhóis, desesperados por encontrar ouro, navegava nas proximidades do México, quando entrou em contato com alguns indígenas e começou a resgatar com eles. "Resgatar" significava fazer trocas ou escambo, e "resgates" eram as mercadorias de pouco valor que ofereciam aos ameríndios. Conta Bernal Díaz del Castillo, soldado espanhol que era parte do grupo:
"[...] todos os índios daquela província tinham por costume trazer umas machadinhas de cobre polido, à semelhança de armas, que tinham cabos de madeira muito pintados, e nós acreditamos que eram ouro baixo, e começamos a resgatar com eles; digo que em três dias conseguimos mais de seiscentas delas, e estávamos muito contentes, crendo que eram de ouro baixo, e os índios muito mais com suas contas. Tudo, porém, em vão, porque as machadinhas eram de cobre (¹), e as contas, quase nada. Um marinheiro havia resgatado às escondidas sete machadinhas e estava muito alegre por elas, e parece que outro marinheiro foi dizê-lo ao capitão, que lhe ordenou entregá-las, mas nós pedimos por ele, e ficou com as machadinhas, crendo que eram de ouro." (²)
Quem poderia calcular o entusiasmo dos espanhóis, diante de um "achado" que, supunham, iria torná-los ricos de um dia para outro? Que sorte, a deles...
Navegaram de volta a Santiago de Cuba, onde estava o governador Diego Velazquez, a quem deviam prestar contas de suas viagens, descobertas e façanhas. Como leais súditos do rei da Espanha, apresentaram as machadinhas brilhantes para que o ouro fosse quintado (³). Foi aí que fizeram uma importante - e triste - descoberta. É ainda Bernal Díaz quem relata:
"[...] trouxeram as seiscentas machadinhas (⁴) que pareciam de ouro, e quando as trouxeram para quintar estavam tão mofadas, como cobre que eram, e ali houve muito que rir e dizer da burla e do resgate." (⁵)
Para quem queria ouro, era mesmo muito pouco.

(1) Ou, pelo menos, Bernal Díaz supunha que fossem desse material.
(2) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. Os trechos dessa obra citados aqui foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Vejam, leitores, que a cobrança dos Reais Quintos não era exigência apenas dos monarcas portugueses.
(4) Não é impossível haver exagero no número de machadinhas que trouxeram.
(5) CASTILLO, Bernal Díaz del. Op. cit.


quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Senhora de engenho

Engenhos coloniais eram comandados por homens, seus proprietários, conhecidos como senhores de engenho. Os Séculos XVI e XVII, com predominância deste último, foram tempo em que tais personagens mandavam e desmandavam, retendo, em suas mãos, o poder decisório que jorrava da força econômica. É inegável que, neste cenário, as mulheres tinham pouca oportunidade para protagonismo: viviam, como regra, trancafiadas em casa, saíam às ruas cobertas por mantilha e apenas para poucas atividades (como ir às igrejas, por exemplo), isso quando não eram mandadas pelos pais para algum convento ou retiro (¹). Distinções sociais também significavam distinções no modo de vida das mulheres, embora nunca significassem ampla liberdade e igualdade de direitos em relação aos homens.
Mas havia exceções. Uma delas, apenas para citar um exemplo, foi Leonor Soares, senhora de engenho na Bahia, de quem Gabriel Soares de Sousa escreveu: "À mão direita deste engenho de Sua Majestade está outro de dona Leonor Soares, mulher que foi de Simão da Gama de Andrade, o qual mói com uma ribeira de água (²) com grande aferida [...]." (³) 
Notem, leitores, que desse documento se infere que Leonor Soares somente se tornara senhora de engenho em razão do falecimento do marido. O fato de que agora fosse a proprietária talvez indique que não tinha filhos do sexo masculino em idade suficiente para o comando dos negócios da família. É pouco provável, porém, que no dia a dia, a vida dessa senhora fosse muito diferente da que tinham as mulheres de sua idade e condição social.

(1) Chegou a haver uma lei que proibia o envio de moças brasileiras para conventos em Portugal, porque se entendia que a terra tinha poucos colonizadores e era preciso que as jovens se casassem e tivessem filhos no Brasil, para aumentar a população. 
(2) Gabriel Soares foi senhor de engenho na Bahia por dezessete anos. Portanto, sabia reconhecer um bom engenho, como parece ser o caso desse, um engenho real, já que moía com a força da água.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 132.


quinta-feira, 6 de junho de 2019

Nos primeiros tempos da Capitania de Ilhéus

Era comum, no princípio da colonização, atribuir à intervenção sobrenatural qualquer coisa que os novos povoadores julgavam ser a eles favorável. Em consequência das ideias religiosas populares que então circulavam, não havia muito espaço para questionamentos de caráter ético e/ou moral em relação à conduta dos colonizadores. Um episódio relativo ao princípio da capitania de Ilhéus, contado por frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, ilustra muito bem este assunto. À semelhança daquilo que ocorria em outras capitanias, o contato algo amistoso entre portugueses e indígenas logo foi transformado em confronto aberto:
"Mas sobrevindo [...] a praga dos selvagens aimorés, causaram em tudo grande destruição, e tornou muito atrás esta capitania, assim em fazendas como em moradores. Costumavam estes fazer suas entradas ao sertão contra os aimorés, e em uma destas lhes armaram eles uma tal cilada, que de todos os que entraram, só dizem escaparam quatro, para trazerem as novas (¹) à Vila da morte dos companheiros. [...]." (²)
Assim escaldados, nem por isso desistiram os colonizadores, tampouco registrou-se que tenham eles considerado que suas entradas ao sertão, recobertas de más intenções, é que poderiam ter engendrado a reação dos aimorés, que, por suposto, já tinham ouvido sobre a escravização de indígenas e não queriam ser as próximas vítimas. Sua vitória, contudo, teve vida curta, porque os colonizadores sobreviventes não tardaram em preparar a revanche. Continua Jaboatão:
"Para os vingar ajuntaram amigos e parentes dos mortos uma boa esquadra, com que repetindo as entradas, em uma deixaram sem vida a muitos, e trouxeram presos e cativos uma grande multidão daqueles bárbaros." (³)
Era a lógica da colonização em movimento. Curioso, mas não surpreendente, é que os colonizadores, derrotando e escravizando indígenas, atribuíssem o sucesso a uma intervenção sobrenatural:
"Foi atribuída esta desejada vitória ao socorro e patrocínio da Senhora das Neves, titular e venerada em uma capelinha, sita na mesma Vila dos Ilhéus ao pé do monte que nela se vê no fim da rua que chamam de S. Bento. [...]." (⁴)
As ações dos que viveram no passado não podem ser julgadas apenas pela lógica de hoje. Parte do estudo da História envolve a compreensão da mecânica das relações sociais, dos valores e dos processos mentais daqueles que viveram em tempos diferentes dos nossos. Mas fica evidente que, por volta do primeiro centênio da colonização, as ideias e crenças religiosas não só balizaram comportamentos como foram ferramentas muito úteis para justificar os métodos empregados e - por que não? - para eventualmente acalmar consciências incomodadas com a carnificina que se perpetrava de parte a parte.

(1) Uma referência implícita ao livro de Jó: "...et effugi ego solus uti nuntiarem tibi" (I, 19)
(2) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil  Volume 1. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, pp. 88 e 89.
(3) Ibid., p. 89.
(4) Ibid.


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quinta-feira, 21 de março de 2019

O que calçavam os moradores de São Paulo em 1583

Graças a uma querela entre moradores da vila de São Paulo e sapateiros que aí trabalhavam, podemos saber alguma coisa sobre os calçados em uso por colonizadores e seus descendentes no Século XVI. Mas vamos devagar, para bom entendimento do que é que acontecia.
Em reunião da Câmara ocorrida no dia 1º de julho de 1583, o procurador da vila requereu aos oficiais "que suas mercês fizessem um juiz do ofício de sapateiro, porquanto os sapateiros não tinham regimento de seu ofício, nem muitos deles não eram examinados e levavam mais pelo calçado do que era razão levar", conforme registrou o escrivão na ata (¹) correspondente. Ora, na época, para controle do exercício das várias profissões, prevalecia, em algum grau, o sistema de corporações (²), e é nesse sentido que deve ser entendida a queixa do procurador, mostrando que os sapateiros, não tendo juiz e regimento do ofício, cobravam por seu trabalho quanto lhes desse na telha, para grande prejuízo dos moradores da vila. 
A Câmara, assim solicitada a agir, não se fez de rogada, e nomeou juiz para o ofício, além de estipular preços máximos para os vários tipos de calçados que podiam ser encontrados na vila - é justamente o que mais nos interessa, porque assim é que podemos saber com o que é que os paulistas do Século XVI protegiam e/ou adornavam os pés. Simplificando, e com menção dos principais itens, a coisa ficava assim:

Botas
"botas novas de [couro de] veado, sendo engraxadas": 430 réis;
"não sendo engraxadas": 1 cruzado;
"sendo de porco": 1 cruzado;
"de vaca, sendo [...] engraxadas": 1 cruzado.

Sapatos masculinos
"sapatos singelos de uma sola, de qualquer couro que seja, como não seja de cordovão": 1 tostão;
"sapatos [...] de duas solas": 150 réis.

Sapatos femininos
"sapatas de mulher, quer de porco, quer de veado [...], as quais serão de um palmo de talão para cima": 150 réis.

Chinelos
"chinelas de homem, sendo de sola [...], quer de vaca, quer de porco, quer de veado": 150 réis;
"chinelas de cortiça, dando o sapateiro a cortiça": 3 tostões;
"não dando a cortiça": 250 réis;
"chinelas de mulheres, de três pontos e seis pontos": 100 réis.

Sapatos abertos
"sapatos abertos até meia perna, de duas solas": 300 réis.

Talvez os leitores se interroguem quanto ao que aconteceria se algum sapateiro, num arroubo de criatividade, fizesse algum sapato que não estivesse descrito na postura da Câmara. Vejam, então, que os vereadores de São Paulo, habituados à rotina da vila, foram precavidos. Dizia ainda a ata: "[...] toda a mais obra que fizerem e que não está posta nesta postura, a trarão a mostrar à Câmara ou ao juiz, para que com o juiz de ofício lhe ponha o preço que hão de levar."
Com a exceção de algum raríssimo calçado vindo do Reino, eram esses os sapatos disponíveis para a gente de São Paulo no Século XVI. Quanto aos preços estipulados, não passavam de formalidade e eram indicados apenas para efeito de equivalência: dinheiro amoedado quase não circulava na vilazinha de São Paulo, razão pela qual os pagamentos eram, habitualmente, feitos em espécie

(1) Para não enlouquecer os leitores, os trechos da ata aqui citados foram transcritos em ortografia atual, sendo acrescentadas as vírgulas indispensáveis.
(2) As corporações de ofício foram completamente extintas no Brasil pela Constituição de 1824.


terça-feira, 17 de outubro de 2017

Quem nunca deveria pôr os pés no Brasil

Aventureiros sempre existiram, mas há que se reconhecer o fato de que era difícil arranjar bons colonizadores que viessem ao Brasil. Não estamos falando das hordas de condenados a degredo que, malgrado os protestos de administradores e missionários jesuítas, eram periodicamente despejados nas povoações litorâneas que começavam a nascer, já que esse tipo de gente não vinha porque queria, ainda que não poucos, depois de cumprida a pena, decidissem que era melhor ficar. A dificuldade estava em trazer trabalhadores qualificados, artesãos de vários ofícios ou que soubessem cultivar a terra. O medo do desconhecido e os boatos fantasmagóricos espalhados na Europa eram determinantes para intimidar eventuais interessados em tentar a vida no Continente há pouco "descoberto".
Propaganda de massa, no sentido que hoje conhecemos, não existia, mas alguns autores escreveram obras cujo propósito era convencer portugueses quanto à excelência da vida no Brasil. Pero de Magalhães Gândavo, por exemplo, afirmou, logo no início de seu Tratado da Terra do Brasil (¹):
"[...] Achei que não se podia de um fraco homem esperar maior serviço (ainda que tal não pareça) que lançar mão desta informação da terra do Brasil (coisa que até agora não empreendeu pessoa alguma) (²) para que nestes reinos se divulgue sua fertilidade e provoque as muitas pessoas pobres que se vão viver a esta província, que nisso consiste a felicidade e aumento dela." (³)
Ora, leitores, o livro de Gândavo só foi publicado muito tempo depois de sua morte. Ainda assim, dificilmente seria útil para convencer alguém a vir ao Brasil, porque o autor não economizou palavras em descrever ataques indígenas e cenas de antropofagia, sem falar nos animais, grandes e pequenos, mas quase sempre perigosos, que viviam à espreita dos incautos...
Quem resolvia correr o risco precisava de conselhos - é o que devia pensar o autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, um livro que fez muito sucesso no Século XVIII, recomendando a necessidade de adaptação ao modo de vida no Brasil: "É mais razão acomodar-se ao uso da terra, que pretender e querer trazer aos mais o costume de sua pátria." (⁴) Não parece sensato?
No começo do Século XVII franceses tentaram estabelecer uma colônia no Maranhão e, para a catequese dos indígenas, trouxeram alguns religiosos capuchinhos. Um deles, o padre Yves d'Évreux, escreveu um livrinho precioso, com uma chuva de informações (nem todas confiáveis, é verdade), que não aparecem nas obras de autores portugueses. Também ele procurou mostrar aos jovens de seu país que era interessante vir ao Brasil, principalmente para aqueles que, de nobres, não tinham muito mais que o título. Insistia que, com produtos da terra, não faltava alimento. Doenças? Sim, havia, como em qualquer outro lugar: 
"Se algumas pessoas se dão mal, não é novidade, pois em toda parte está a morte: assim são as moléstias.
Destes males não estão isentos reis e príncipes em países os mais agradáveis e salubres que se possa imaginar." (⁵)
Apesar disso, o bom padre d'Évreux reconhecia que havia um tipo de gente que jamais deveria pôr os pés no Brasil:
"Enganar-se-ia, porém, quem pensasse que as árvores produzissem patinhos assados, as corças, quartos de carneiro recentemente tirados do espeto, e o ar andorinhas bem cozidas, de forma que não havia mais trabalho do que abrir a boca e comer. Com tal fantasia não lhe aconselho que lá vá, porque arrepender-se-ia [sic]." (⁶)
Vejam, leitores, que d'Évreux tinha senso de humor. Cumpre apenas assinalar que, para os franceses, essa questão de vir ou não ao Brasil teve vida curta. Os portugueses logo retomaram o controle do Maranhão e o sonho de uma colônia francesa no Brasil se desmanchou.

(1) Escrito por volta de 1570.
(2) Não é verdade que ninguém ainda havia escrito sobre o Brasil. Anchieta, entre outros, já o fizera, ainda que seu objetivo não fosse o mesmo de Gândavo.
(3) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, pp. 27 e 28.
(4) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 6.
(5) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 185.
(6) Ibid., p. 185.


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quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Tijolos de adobe

O tempo necessário para o estabelecimento de uma nova povoação por colonizadores no Brasil podia variar bastante, mas é certo que entre as primeiras ocupações constavam a derrubada de matas, a construção de algum tipo de abrigo e o início de práticas agrícolas, com o propósito de assegurar a sobrevivência naqueles tempos difíceis. 
Casas deviam ser construídas com o que se achava à mão, de modo que madeira, pedras, folhas de palmeira e argila eram recursos comumente empregados. Não estando disponíveis os tijolos cozidos em fornos, fazia-se uso, em alguns lugares, dos tijolos de adobe. 
O padre Ayres de Casal, referindo-se a certa povoação dos tempos coloniais, escreveu:
"Todas as casas são de taipa ou de adobe, alveadas com tabatinga ou cal de pedra." (¹) 
E, em uma nota explicativa, acrescentou:
"Adobe é um tijolo mui grande, cozido ao sol." (²)
Para dar consistência à argila de que se faziam os tijolos de adobe era comum que a ela fossem adicionados outros materiais, como folhas secas ou palha de milho. O resultado era um material de resistência até surpreendente. 
Já as dimensões dos tijolos de adobe eram muito variadas, e o "mui grande" a que se refere Ayres de Casal dependia da qualidade de massa que era possível obter para o preparo e do tamanho das formas bastante rústicas então empregadas, não desconsiderando, por certo, a habilidade dos humanos envolvidos no trabalho.

Muro do Século XVIII em pedra e adobe, parcialmente reconstruído (Pirenópolis - GO)

(1) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica  vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 300.
(1) Ibid.


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quarta-feira, 24 de junho de 2015

Doação de sesmarias

Índios recebiam sesmarias... Em terras que já eram suas


Nas Ordenações do Reino (¹), Livro 4º, Título XLIII, as sesmarias eram assim definidas:
"Sesmarias são propriamente as dadas de terras, casais ou pardieiros (²) que foram ou são de alguns senhorios, e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora o não são." (³)
Antes que uma terra ou propriedade fosse doada em sesmaria, no entanto, era indispensável que o sesmeiro ou doador verificasse quem antigamente a ocupara, dando-lhe um ano de prazo para habitá-la e/ou torná-la produtiva. Somente após esse período é que a legislação permitia que se fizesse nova doação, para assegurar que a terra fosse bem aproveitada e não se deixassem as construções em ruínas. Usualmente, quem recebia uma sesmaria tinha pelo menos cinco anos de prazo para fazê-la produzir. Se, findo esse tempo, tal não ocorresse, a sesmaria podia ser transferida a outra pessoa. 
Determinava-se ainda nas Ordenações que não se desse a uma pessoa mais terra do que seria capaz de bem aproveitar:
"E serão avisados os sesmeiros que não deem maiores terras a uma pessoa de sesmaria que as que razoadamente parecer que no dito tempo poderão aproveitar." (⁴)
A intenção era, lemos ainda nas Ordenações, que as terras fossem sempre cultivadas, para que não houvesse falta de gêneros alimentícios: "porque proveito comum e geral é de todos haver na terra abastança de pão e dos outros frutos". (⁵)
Martim Afonso de Sousa, que veio com expedição ao Brasil em 1530, recebeu do rei D. João III de Portugal uma autorização para doar sesmarias, escrita nestes termos:
"Dom João, a quantos esta minha carta virem, faço saber para que as terras que Martim Afonso de Sousa, do meu conselho, descobrir na terra do Brasil onde o envio por meu capitão-mor se possam aproveitar, eu por esta minha carta lhe dou poder para que ele, dito Martim Afonso, possa dar às pessoas que consigo levar, que na dita terra quiserem viver e povoar aquela parte das terras que assim achar e descobrir, que lhe bem parecer e segundo o merecerem as ditas pessoas por seus serviços e qualidades, para as aproveitarem, e as terras que assim der serão somente nas vidas daqueles a quem as der e mais não, [...] e das que assim der às ditas pessoas lhes passará suas cartas declarando nelas como lhas dá em suas vidas somente, e que dentro de seis anos do dia da dita data cada um aproveitar a sua, e se no dito tempo assim o não fizerem, as poderá tornar a dar com as mesmas condições a outras pessoas que as aproveitem [...]." (⁶)
Apesar do estilo arrevesado da linguagem jurídica do documento, fica claro que a intenção, ao ser concedida uma sesmaria, era que a terra se tornasse produtiva. Produtiva, sim, segundo a ótica dos colonizadores, que supunha que as terras do Brasil estavam desocupadas, e tanto isso é verdade que, posteriormente, seriam feitas doações de sesmarias... aos índios!
Frei Gaspar da Madre de Deus, escrevendo no Século XVIII, registrou, quanto à doação de uma sesmaria aos guaianases:
"Os guaianases oriundos de Piratininga, e mais índios ali moradores, vendo que iam concorrendo portugueses e ocupando suas terras, desampararam São Paulo e foram situar-se em duas aldeias, que novamente edificaram, uma com o título de N. S. dos Pinheiros, e outra com a invocação de S. Miguel. Depois de alguns anos Jerônimo Leitão, locotenente de Lopo de Sousa, Donatário de São Vicente, concedeu-lhes terras por uma só sesmaria lavrada aos 12 de outubro de 1580, na qual consignou aos índios dos Pinheiros seis léguas em quadro na paragem chamada Carapicuíba, e outras tantas aos de S. Miguel em Uraraí. Hoje quase nada possuem os miseráveis índios descendentes dos naturais da terra, porque injustamente os desapossaram da maior parte das suas datas, não obstante serem concedidas as sesmarias posteriores dos brancos com a expressa condição de não prejudicarem aos índios, nem serem deles as terras que se davam." (⁷)
Consta, também, que se doaram terras, a título de sesmaria, ao chefe indígena Arariboia, que lutou com sua tribo ao lado dos portugueses na guerra de expulsão dos franceses do Rio de Janeiro. Os exemplos são muitos, mas esses dois citados são já suficientes para mostrar que nem mesmo os povos indígenas escapavam do sistema de ocupação da terra estabelecido a partir do início do processo de colonização.

(1) A compilação das Ordenações foi publicada no princípio do Século XVII, mas constitui-se, em grande parte, de leis que existiam há muito tempo.
(2) Um "casal" é, neste caso, uma pequena povoação ou vilazinha; já "pardieiro" refere-se a uma antiga habitação em mau estado de conservação.
(3) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(4) Ibid.
(5) Ibid. 
(6) De acordo com o Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa.
(7) MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memórias para a História da Capitania de São Vicente, Hoje Chamada de São Paulo, do Estado do Brasil. Lisboa: Typografia da Academia, 1797, pp. 112 e 113.


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domingo, 2 de março de 2014

A criatividade dos jesuítas para preservar valores religiosos no Brasil Colonial

É proverbial o relaxamento dos costumes, no que tange à religião (¹), que andava em vigor no Brasil Colonial. Para combater essa situação, os padres enviados para a catequese de nativos e para assistência espiritual aos que vinham da Europa precisavam exercitar, como veremos, uma certa criatividade.
Em carta escrita em Piratininga e datada de 1554, Anchieta explicava o método de que se fazia uso na Capitania do Espírito Santo para evitar que fossem proferidos juramentos irrefletidos ou que se pronunciasse o nome de Deus sem o devido cuidado:
"Para que os homens se dissuadissem dos juramentos, estabeleceu-se uma como confraria de caridade; os que a ela se filiarem, se quando jurarem, a si mesmos se acusarem, pagam uma determinada quantia de dinheiro para o casamento de alguma órfã (²); acusados, porém, por outros, pagam o dobro; assim, raramente se pronuncia o nome de Deus com irreverência [...]." (³)
Ideia interessante, essa...
Singular ideia, no entanto, foi a que teve o Padre Manuel da Nóbrega, já cansado de repreender um padre que não levava a sério seu voto de castidade - é ainda Anchieta quem relata, ao traçar a biografia do Padre Nóbrega:
"Tendo avisado por vezes a um clérigo escandaloso, como se não emendasse, sabendo o Padre estar com a ocasião do seu pecado (⁴), se foi à porta da casa, gritando a grandes vozes que acudisse gente, que estavam ali crucificando a Cristo. Acudiu gente e ficaram tão espantados os dois pecadores que se apartaram e cessou o escândalo." (⁵)
Ora, senhores leitores, tentem imaginar a situação! Chega a ser espantoso que, como diz Anchieta, cessasse o escândalo?

(1) E não somente à religião.
(2) Ou seja, para que se constituísse um dote que permitisse a uma órfã casar-se, já que naqueles tempos, e muito além, nenhuma mulher que não dispusesse de um dote razoável conseguia contrair matrimônio.
(3) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 37.
(4) Interessante eufemismo.
(5) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Op. cit., p. 471.


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domingo, 22 de dezembro de 2013

O padre Anchieta fazia alpargatas

Os europeus que, no século XVI, iniciaram a colonização do Brasil, tiveram, não necessariamente por opção, mas por razões de sobrevivência, de aprender com os povos indígenas novos hábitos e costumes. Isso significava o uso, como alimento, de coisas que até então desconheciam, dormir em redes (como os índios) e até mesmo novos modos de preparar o vestuário e construir habitações. Afinal de contas, que poderiam fazer quando roupas e calçados, trazidos do Reino, após muito uso devessem ser substituídos?
Como parte ativa no processo de colonização, os jesuítas trataram, em suas tentativas de aproximar-se dos nativos para doutriná-los, de viver tanto quanto possível segundo os hábitos e recursos locais, enquanto se esforçavam para aprender a língua da terra, instrumento indispensável à catequese.
Nas areias de Iperoig em Ubatuba (SP),
encontra-se este monumento em
homenagem 
ao Padre José de Anchieta
 que,
no Século XVI,
foi missionário no Brasil.
É possível, hoje, conhecer algo das dificuldades e soluções encontradas pelos religiosos europeus se lermos as cartas que enviavam e nas quais, com uma periodicidade quase sempre anual, davam conta a seus superiores das atividades, dos progressos e mesmo dos fracassos em relação ao que empreendiam na América. Assim, em 1554, em carta mandada a Coimbra, José de Anchieta escreveu:
"Agora estou aqui em São Vicente, que vim com nosso padre Manuel da Nóbrega para despachar estas cartas. Demais disso tenho aprendido um ofício que me ensinou a necessidade, que é fazer alpergatas (¹), e sou já bom mestre e tenho feitas muitas aos irmãos, porque se não pode andar por cá com sapatos de couro pelos montes." (²)
E em outra carta, desta vez tendo por destinatário o Geral da Companhia de Jesus, datada de julho de 1860, o mesmo Anchieta relatou:
"... fazemos vestidos, sapatos, principalmente alpercatas de um fio como cânhamo, que nós outros tiramos de uns cardos lançados n'água e curtidos, cujas alpercatas são mui necessárias pela aspereza das selvas e das grandes enchentes d'água." (³)
Esse costume de usarem os padres as alpargatas não era, no entanto, devido apenas às condições do terreno em que andavam. Devia-se, também, à falta de calçados como os que estavam disponíveis no Reino. Isso registrou o mesmo Anchieta, muito mais tarde (⁴), ao falar do Padre Diogo Jacome:
"Era isto mui comum naqueles tempo trabalharem os Irmãos de saberem alguns ofícios proveitosos para a comunidade. E assim o dito Padre (⁵) e outros Irmãos aprenderam a fazer alpargatas, porque então não havia sapato nem meia." (⁶)
Ora, em terras do Brasil, no Século XVI, já era bastante, para quem se aventurava pelos sertões, dispor de umas alpargatas para os pés. Afinal, não será demais lembrar que a maioria dos índios dispensava qualquer calçado. Sendo muito hábeis em andar descalços, ensinaram aos portugueses o modo como o faziam, e que, posteriormente, foi adotado pelas levas de bandeirantes que cruzaram o interior da Colônia.

(1) O termo "alpargata", de mesmo significado, é mais usual atualmente no português falado no Brasil.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 63.
(3) Ibid., p. 151.
(4) A data exata é desconhecida, mas as circunstâncias do texto apontam para a segunda metade da década de 1580.
(5) Refere-se a Diogo Jacome.
(6) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Op. cit.,  pp. 482 e 483.


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domingo, 14 de abril de 2013

Simonia

"Que haja certas mercancias
não de coisas temporais
mas de outras espirituais,
que se chamam simonias:
que haja quem todos os dias
com modo tão peregrino
seja ladrão ao divino
com tão falsa narratória!
Boa história."

Gregório de Matos, A Musa Praguejadora


Em uma definição bem simples, simonia é o comércio de bens espirituais. Tal assunto já motivou querelas terríveis, há alguns séculos, e ultimamente tem andado na moda, outra vez. Aos que são cristãos, parece um absurdo que alguém, com dinheiro, imagine poder comprar coisas como  um lugar no céu, um tempo menos longo no purgatório, ou mesmo o consolo de um sacramento na hora da morte. No entanto, para lástima da humanidade, tem havido muita gente supostamente querendo vender os "bens espirituais", como há, quase sempre, quem esteja disposto a efetuar tal compra.
Saint-Hilaire encontrou dois desses "comerciantes" quando andou, no século XIX, pelo Rio Grande do Sul e território do atual Uruguai, e não economizou palavras para recriminá-los.
Em um tempo no qual simplesmente não havia hotéis pelo Brasil, Saint-Hilaire dependia, ao longo de suas viagens com o fim de estudar principalmente a flora do Brasil, de encontrar hospedagem em casas de particulares. É aí que entra a história do Padre Alexandre, que peremptoriamente recusou abrigo ao viajante:
"Convém salientar que os dois únicos homens que me recusaram hospitalidade durante minhas longas viagens foram um materialista e um padre, mas com a diferença de que fui bem recebido pelo materialista, quando este soube quem eu era, enquanto o padre se manteve irredutível. A reprovação que acabo de fazer não deve causar surpresa; um mau sacerdote é o pior de todos os ímpios, pois faz do sacrilégio um hábito cotidiano. Seria talvez injusto julgar o Padre Alexandre por apenas um ato, mas eu já sabia, pelo alferes, que esse homem fazia o tráfico dos sacramentos e que, tendo a permissão de batizar em sua fazenda, não o fazia por menos de oito mil-réis; entretanto foi cura de São Borja por muito tempo [...]." (¹)
Com isso, lá se foi o muito religioso Saint-Hilaire, amargando seu desgosto com o padre, ainda mais uma légua adiante, até uma estância onde, dessa vez, foi muito bem recebido.
Ainda na mesma viagem, encontraria outro caso de simonia, dessa vez absolutamente explícito:
"A Capela de Santa Maria depende, como disse, da Paróquia de Cachoeira, cujo vigário recebe de cada fiel meia pataca em confissão pascal. Os habitantes de Santa Maria se cotizam, estabelecendo um donativo ao seu capelão. Este recebeu do cura para ouvir confissões e seus penitentes lhe pagam meia pataca que ele envia ao cura. Seria de toda justiça que, em relação ao dinheiro, o cura pagasse ao capelão, como se faz em Minas; mas para ele, essa parte da paróquia é uma espécie de sinecura que ele recebe sem encargos, e seu tratamento com o capelão se reduz a isto: "Eu lhe permito exercer as funções de cura no Distrito de Santa Maria e de receber salários de meus paroquianos, mas com a condição de reservar o produto da venda das confissões pascais." Acho que é impossível levar mais longe a simonia." (²)
 
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Tenho já abordado neste blog, algumas vezes, o fato de que, pela extensão territorial do Brasil e pelas dificuldades de comunicações, era muito difícil assegurar o cumprimento das leis e a administração da justiça. Esses casos de simonia, relacionados mais à Igreja que à autoridade civil (embora, nesse tempo, não existisse no Brasil nada que se pudesse chamar de "Estado laico"), inscrevem-se no mesmo contexto. Era quase impraticável às autoridades eclesiásticas o exercício de uma fiscalização eficiente do que ocorria em paróquias muito distantes umas das outras, isso quando havia párocos para atender à população (embora todo mundo, para que houvesse assistência religiosa, pagasse os dízimos ao governo português), sendo perfeitamente possível que a alguns colonizadores transcorresse a vida toda sem que, nas localidades remotas em que se estabeleciam, vissem aparecer um único clérigo. Por outro lado, quase não têm conta os relatos de padres que gastavam seus dias caçando índios no sertão ou de monges que abandonavam suas Ordens para ir procurar ouro nas minas.
Tem-se, pois, que tais fatos são um bom termômetro do modo muitas vezes desordenado pelo qual se deu a colonização. Meus leitores sabem perfeitamente quais foram (e são...) as consequências disso.

(1) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, pp. 319 e 320.
(2) Ibid., p. 405.


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