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quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Dias de folga para os escravos

Senhores deviam, obrigatoriamente, dispensar os escravos do trabalho aos domingos e dias que, segundo a Igreja, eram considerados "santos" (¹). Ao menos nos tempos coloniais, a obrigatoriedade ficava apenas no papel. Não que houvesse muita preocupação em dar descanso aos escravos - a ideia, formalmente, é que as folgas servissem para práticas religiosas. Entretanto, colonizadores do Brasil, como regra geral, só eram muito devotos na aparênciaNo Compêndio Narrativo do Peregrino da América (²) encontramos um incidente (fictício, ao que parece, mas verossímil), que ilustra muito bem a questão de que estamos tratando:
"[...] Avistei doze escravos, entre machos e fêmeas, todos trabalhando em uma lavoura, na ocupação de cavar. Cheguei, saudei-os e lhes perguntei se era dia santo, ao que me responderam que bem sabiam que não era dia de trabalho, porém que seu senhor os mandara para aquele serviço, e lhes dizia que se comiam naqueles dias, também haviam de trabalhar; e se algum o repugnava fazer, o castigava, e porque eram cativos, não queriam experimentar maior rigor, por serem pretos, pobres, humildes e desamparados por sua grande miséria [sic]." (³)
Deixando de lado o conselho dado aos escravos pelo Peregrino da América, de que parassem de trabalhar, ainda que sob o chicote do feitor ou do senhor, porque isso lhes daria maior mérito diante de Deus (!!!), passemos da literatura para casos concretos, preservados no registro de confissões feitas durante a  Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. Por esses registros é fácil verificar que deixar de dar folga aos escravos nas ocasiões estipuladas pela Igreja era hábito corrente entre os senhores de engenho. Em 23 de janeiro de 1592, Antônio de Meira, do Recôncavo, "confessou que as negras de sua casa, cristãs Margarida e Antônia, brasílias, (⁴) alguns domingos e dias santos trabalham fiando e fazendo anastros, não lho estorvando ele" (⁵). Seria mais honesto, talvez, se admitisse que não era por vontade própria que as escravas trabalhavam, sendo, antes, obrigadas a isso.
Outro, também do Recôncavo, que apareceu diante do inquisidor para confissão, foi João Remirão, senhor de engenho, que "confessou que haverá seis anos que reside e governa [...] seu engenho, e sempre em todos os domingos e [dias] santos, moendo o engenho depois do sol posto, mandou e consente mandarem seus feitores lançar a moer o engenho e carretar carradas de lenha e canas, e fazer o mais serviço pertencente à moenda nos ditos domingos e [dias] santos, como se foram dias de semana, e também nos ditos domingos e [dias] santos, ainda pelas manhãs ante missa, manda carretar carradas de açúcar ao porto, e isto mesmo de moer e carretar nos ditos dias vê ele que usam e costumam geralmente nesta capitania todos os senhores e feitores de engenhos, sem exceção, e também muitos lavradores" (⁶).
Fica evidente, portanto, um conflito de interesses: de um lado a Igreja, através de seu representante, o inquisidor, insiste em disciplinar a vida quotidiana na Colônia, sob as mesmas normas que regem a conduta de quem vive no Reino; de outra parte, a exploração colonial, cuja lucratividade, que tanto interessa à Metrópole, não tolera suscetibilidades religiosas, que se entremetam na rotina de um engenho, no qual qualquer interrupção do trabalho resulta em redução nos ganhos. Não é difícil imaginar que, tão pronto a Inquisição virou as costas, tudo voltou a ser como sempre fora nos engenhos, ainda que, por medo ou respeito, alguma mudança, apenas temporária, tenha se efetuado, enquanto a incômoda Visitação não se punha a caminho.
Mais uma confissão, apenas para confirmar tudo o que já foi dito. Outro senhor de engenho, Nuno Fernandes, que se declarou cristão-novo, compareceu diante do visitador em 9 de fevereiro de 1592, e disse que, à semelhança de muitos outros, também mandava os escravos ao trabalho, sem qualquer interrupção nas tarefas: "manda também aos domingos e [dias] santos trabalhar aos seus a cortar embira para atar a cana e a carregar a barca, nos tempos de necessidade, porque vê que assim o costumam fazer geralmente nesta terra" (⁷). A responsabilidade era posta sobre o coletivo, enquanto o indivíduo tentava se safar.
Com o passar do tempo, os costumes, para bem ou para mal, sofreram mudanças. Sabe-se que em áreas de mineração era comum que fosse atribuída uma tarefa aos escravos que, se cumprida com antecedência, possibilitava algum tempo livre. Além disso, a mineração levou à formação de uma sociedade urbana, na qual a vida diária passava por maior vigilância. Escravos ainda eram escravos, mas podiam ter suas próprias confrarias e, em consequência, igrejas e capelas também próprias. Quanto aos que eram escravos em fazendas no Século XIX, particularmente nas Províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo, tornou-se um hábito respeitar "religiosamente" a folga semanal dos escravos aos domingos. O motivo é que nada tinha de piedoso: neste dia os escravos trabalhavam "livremente" em pequenos lotes, nos quais cultivavam gêneros alimentícios para consumo próprio e, em caso de excedente, para venda. Esses magros recursos eram, quase sempre, usados na compra de alguma peça de vestuário. Tudo muito interessante para os senhores, é claro.

(1) Como era o caso da Sexta-feira Santa e do Natal, por exemplo.
(2) Um clássico da literatura colonial, mesmo que pareça estranho haver tal coisa em um país em que quase toda a população era formada por analfabetos convictos.
(3) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 151.
(4) Neste caso, a palavra "negras" é usada como sinônimo de escravas, visto que as pessoas mencionadas são descritas como "brasílias", ou seja, indígenas.
(5) MENDONÇA, Heitor Furtado de. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. São Paulo: _____, 1922, p. 154.
(6) Ibid., p. 190.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Quem nunca deveria pôr os pés no Brasil

Aventureiros sempre existiram, mas há que se reconhecer o fato de que era difícil arranjar bons colonizadores que viessem ao Brasil. Não estamos falando das hordas de condenados a degredo que, malgrado os protestos de administradores e missionários jesuítas, eram periodicamente despejados nas povoações litorâneas que começavam a nascer, já que esse tipo de gente não vinha porque queria, ainda que não poucos, depois de cumprida a pena, decidissem que era melhor ficar. A dificuldade estava em trazer trabalhadores qualificados, artesãos de vários ofícios ou que soubessem cultivar a terra. O medo do desconhecido e os boatos fantasmagóricos espalhados na Europa eram determinantes para intimidar eventuais interessados em tentar a vida no Continente há pouco "descoberto".
Propaganda de massa, no sentido que hoje conhecemos, não existia, mas alguns autores escreveram obras cujo propósito era convencer portugueses quanto à excelência da vida no Brasil. Pero de Magalhães Gândavo, por exemplo, afirmou, logo no início de seu Tratado da Terra do Brasil (¹):
"[...] Achei que não se podia de um fraco homem esperar maior serviço (ainda que tal não pareça) que lançar mão desta informação da terra do Brasil (coisa que até agora não empreendeu pessoa alguma) (²) para que nestes reinos se divulgue sua fertilidade e provoque as muitas pessoas pobres que se vão viver a esta província, que nisso consiste a felicidade e aumento dela." (³)
Ora, leitores, o livro de Gândavo só foi publicado muito tempo depois de sua morte. Ainda assim, dificilmente seria útil para convencer alguém a vir ao Brasil, porque o autor não economizou palavras em descrever ataques indígenas e cenas de antropofagia, sem falar nos animais, grandes e pequenos, mas quase sempre perigosos, que viviam à espreita dos incautos...
Quem resolvia correr o risco precisava de conselhos - é o que devia pensar o autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, um livro que fez muito sucesso no Século XVIII, recomendando a necessidade de adaptação ao modo de vida no Brasil: "É mais razão acomodar-se ao uso da terra, que pretender e querer trazer aos mais o costume de sua pátria." (⁴) Não parece sensato?
No começo do Século XVII franceses tentaram estabelecer uma colônia no Maranhão e, para a catequese dos indígenas, trouxeram alguns religiosos capuchinhos. Um deles, o padre Yves d'Évreux, escreveu um livrinho precioso, com uma chuva de informações (nem todas confiáveis, é verdade), que não aparecem nas obras de autores portugueses. Também ele procurou mostrar aos jovens de seu país que era interessante vir ao Brasil, principalmente para aqueles que, de nobres, não tinham muito mais que o título. Insistia que, com produtos da terra, não faltava alimento. Doenças? Sim, havia, como em qualquer outro lugar: 
"Se algumas pessoas se dão mal, não é novidade, pois em toda parte está a morte: assim são as moléstias.
Destes males não estão isentos reis e príncipes em países os mais agradáveis e salubres que se possa imaginar." (⁵)
Apesar disso, o bom padre d'Évreux reconhecia que havia um tipo de gente que jamais deveria pôr os pés no Brasil:
"Enganar-se-ia, porém, quem pensasse que as árvores produzissem patinhos assados, as corças, quartos de carneiro recentemente tirados do espeto, e o ar andorinhas bem cozidas, de forma que não havia mais trabalho do que abrir a boca e comer. Com tal fantasia não lhe aconselho que lá vá, porque arrepender-se-ia [sic]." (⁶)
Vejam, leitores, que d'Évreux tinha senso de humor. Cumpre apenas assinalar que, para os franceses, essa questão de vir ou não ao Brasil teve vida curta. Os portugueses logo retomaram o controle do Maranhão e o sonho de uma colônia francesa no Brasil se desmanchou.

(1) Escrito por volta de 1570.
(2) Não é verdade que ninguém ainda havia escrito sobre o Brasil. Anchieta, entre outros, já o fizera, ainda que seu objetivo não fosse o mesmo de Gândavo.
(3) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, pp. 27 e 28.
(4) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 6.
(5) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 185.
(6) Ibid., p. 185.


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segunda-feira, 7 de julho de 2014

Conselhos para quem vinha colonizar o Brasil

A gente que vinha ao Brasil, durante o processo a que chamamos colonização, vinha pelas mais diversas razões. Vinha quem queria enriquecer o mais rápido possível, pensando em retornar logo a Portugal; vinha quem devia cumprir funções administrativas em algum cargo para o qual recebera nomeação; vinham os jesuítas, com propósitos relacionados à catequese dos povos indígenas; vinham os condenados ao degredo no Brasil, em razão de crimes cometidos no Reino; vinham, finalmente, os que buscavam aventuras, cuja personalidade os movia a buscar o desconhecido e investigar o mundo.
Mas, fossem quem fossem esses colonizadores, a vida, no Brasil, não lhes seria nada fácil. Assim, Nuno Marques Pereira, autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, obra que fez muito sucesso no Brasil do Século XVIII, tinha lá seus conselhos para os que vinham à colônia portuguesa na América do Sul. E, o primeiro deles, era que a jornada não deveria ser apenas com a meta de enriquecimento fácil - devia ser o que poderíamos chamar de "jornada espiritual". Quanto idealismo...
Escreveu ele:
"Porém há de ser com tenção de não mudar só de lugar, senão também de costumes, porque é certo que quem peregrina acompanhado de seus vícios, mais valera não haver saído, pois tornará mais perdido que aproveitado, porque as enfermidades da alma não se curam com a mudança do lugar." (¹)
No entanto, não parou aí o aconselhamento. Era preciso, também, vir com a disposição de adaptar-se à nova vida. Uma orientação sábia, certamente:
"O peregrino vai por onde há de achar cada dia novos costumes, e os deve seguir e aprovar, e não repreendê-los; pois é mais razão acomodar-se ao uso da terra que pretender e querer trazer os mais ao costume de sua pátria. Há de considerar que vai obedecer às leis que achar estabelecidas, e não a dar regra aos mais, e que vai aprender, e não ensinar." (²)
E conclui, a título de estímulo ao peregrino/colonizador neófito:
"E peregrinando assim, se qualificará em um perfeito herói." (³)

(1) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 6.
(2) Ibid., pp. 6 e 7.
(3) Ibid., p. 7.


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quarta-feira, 22 de maio de 2013

Fraudes e corrupção nos tempos coloniais - Parte 4

Pouca (ou nenhuma) honestidade nos pesos e medidas


Hoje voltamos ao Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira, para mais alguns relatos de fraudes correntes no Brasil Colonial. Era nas "vendas", os armazéns da época, que muitos enganos se praticavam, sendo os mais comuns relacionados à pouca honestidade nos pesos e medidas (ainda que as Ordenações do Reino fossem severas a esse respeito) e, muito usualmente, no misturar água a bebidas, como se vê neste trecho do autor e obra citados:
"Ouvi então perguntar o vendeiro a um seu escravo, quanto tinha feito aquele dia em dinheiro. Respondeu-lhe o escravo que quatro mil réis. Pouco fizestes a respeito dos mais dias, lhe disse o vendeiro. E assim mais lhe perguntou quanta água deitara no vinho e nas mais bebidas. Disse-lhe o escravo que no vinho deitara duas canadas de água, e no vinagre, três, e que também caldeara a aguardente do Reino com a da terra. E logo lhe perguntou mais o vendeiro se calcara com os dedos o fundo da medida de folha de flandres em que se media o azeite, porque fazendo cova pela parte de fora no meio da medida, com o peso do liquor se derrama, e parece ao que compra que está cheia. E finalmente lhe perguntou se lançara o vinho de alto na medida, para se derramar, e parecer que estava cheia. Tudo fiz, senhor, como vossa mercê me tem ensinado, lhe disse o escravo. Pois assim hás de fazer, lhe disse o vendeiro, porque nestas casas quem dá o seu a seu dono, fica sem coisa alguma." (¹)
Depois desse autêntico manual de fraude nos negócios, vale lembrar que era atribuição dos vereadores de uma localidade, segundo as Ordenações, a fiscalização dos preços e fornecimento de alimentos na área sob sua jurisdição. (²) Para ilustrar o funcionamento dessa disposição, diga-se que em São Paulo, nos anos de 1623 e 1627, precisou a Câmara interferir para garantir que o pão vendido ao povo tivesse um peso razoável, e como medida extrema, em 1631, recorreu à fintação do trigo (³) para assegurar o abastecimento, segundo conta Affonso de E. Taunay:
"...Precisou a Câmara de 1631 recorrer ao expediente violento da "fintação de seiscentos alqueires de trigo, para sustento do povo, entre os principais lavradores"." (⁴)
É quase desnecessário afirmar que, quanto ao vinho (tão prezado pelos colonizadores, já saudosos do Reino) e demais mercadorias, as coisas corriam mais ou menos da mesma maneira. Para cada infração às leis devidamente notada e punida, havia uma infinidade de outras, que escapavam ao alcance das autoridades ou para as quais simplesmente se faziam "vistas grossas", no dizer popular.

(1) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, pp. 266 e 267.
(2) Ver, por exemplo, o Livro Primeiro, Título LXVI, § 8.
(3) Estabelecia-se uma quantidade e os produtores eram obrigados a contribuir com sua parte, a título de imposto.
(4) TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 104.


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domingo, 19 de maio de 2013

Fraudes e corrupção nos tempos coloniais - Parte 3

Estupendas usuras nos mercados...


Gregório de Matos invectivou em seus versos, no século XVII, a condição em que via a cidade do Salvador, capital da Bahia, e também, durante bom tempo, do Brasil. Escreveu, por exemplo:

"Qual homem pode haver tão paciente,
Que vendo o triste estado da Bahia,
Não chore, não suspire, e não lamente?"

Ou então:

"...que ande pois a fidalguia
vendida assim por dinheiro,
só porque há nisso vanglória!
Boa história."

São mais famosos, talvez, os versos abaixo, e os que, por hora, mais nos interessam:

"Estupendas usuras nos mercados,
Todos, os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia."

Falemos, pois, da usura.
Frei Vicente do Salvador (¹), na primeira metade do século XVII, explicava que os traficantes de escravos que vinham à Bahia oferecer sua "mercadoria" aos senhores, principalmente aos que tinham engenhos, jamais aceitavam fazer negócios à vista, Estranho? Não, facílimo de explicar: é que os juros pelas compras a prazo, eram de... 100% ao ano:
"... se vale um escravo vinte mil réis pago logo, o dão fiado por um ano por quarenta, e o que mais é que por isso o não querem já vender a dinheiro de contado, senão fiado, e não há quem por isto olhe."
Outro que observou a malfadada prática da usura que se fazia na Bahia, escrevendo um século mais tarde, foi Nuno Marques Pereira, o autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, livro famoso nos tempos setecentistas. Em sua narrativa, coloca estas palavras na boca de um vendeiro, que parece estar arrependido de suas más práticas, pelos bons conselhos do "Peregrino":
"Na verdade, senhor, me disse o vendeiro, que não sei com que palavras vos signifique o quanto vos estou obrigado. Agora conheço que estou no inferno pelos grandes pecados que neste particular tenho cometido. Porque não só roubei a este povo com a venda, mas também pelo negócio de usuras no dinheiro que dei a alguns homens, que mo pediram por empréstimo, com a condição de vinte e de trinta por cento, ficando-me penhores em meu poder." (²)
Desnecessário é dizer que essa história termina com o "Peregrino" recomendando ao vendeiro que, tal qual Zaqueu, o publicano, mencionado no Evangelho Segundo S. Lucas, trate de colocar a vida em ordem, pela devolução do que seria produto de fraude. Há que se observar, no entanto, que o tal vendeiro até era modesto nos juros exigidos, se comparados aos que se extorquiam  no infame negócio dos seres humanos escravizados.
Ora, alguém dirá, a Bahia dos tempos coloniais era mesmo um mar de corrupção!
A Bahia? Meus leitores devem lembrar-se de que Salvador era a cidade mais importante no Brasil da época, e era nela que vivia a maioria das pessoas em condições de escrever e analisar a vida ao seu redor, daí termos testemunhos em maior número sobre as falcatruas que aí se praticavam do que sobre as de outros lugares. É só isso. A verdade é que em quase toda a Colônia as práticas escusas nos negócios eram, no mínimo, muito frequentes. Na próxima postagem trataremos mais disto.

Vista da Cidade de Salvador nos tempos coloniais (³)

(1) História do Brasil c. 1627.
(2) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 276.
(3) DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837.


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quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Cadeirinhas de arruar - Parte 2

A primeira "cadeira de telhadilho" em São Paulo


Nos tempos coloniais, fazer-se transportar em uma rede já era um luxo, coisa que se concedia às autoridades, às mulheres, aos doentes, porque pressupunha, evidentemente, dispor de ao menos dois carregadores, geralmente escravos. Se a distância a ser percorrida era grande, impunha-se a exigência de ter não apenas dois, mas quatro carregadores, porque era necessário fazer um revezamento. Que folga, pensarão alguns leitores...
Um exemplo, extraído do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, ilustrará essa questão do transporte em rede:
"E logo à minha vista contou o dinheiro e lho deu, entregando-lhe também a escrava; e a fez meter em uma rede aos ombros de dois escravos, e ir para a casa de uma parenta dela mesma." (*)
Ora, se nem todo mundo podia ter uma rede e escravos para passear mundo afora, imagine-se então a agitação que deve ter tomado conta da pequenina São Paulo do Século XVII, quando a mulher de Fernão Paes de Barros ousou ser a primeira a fazer-se transportar em uma "cadeira de telhadilho", conforme conta Pedro Taques de Almeida Paes Leme na Nobiliarchia Paulistana:
"Foi casado na cidade do Rio de Janeiro com D. Maria de Mendonça, que, conduzida para esta cidade de São Paulo, teve o tratamento que merecia, como esposa de tão nobre cavalheiro, e fazendo-se conduzir em cadeira de telhadilho, a primeira que até aquele tempo apareceu em São Paulo."
 
(*) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 196.


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terça-feira, 6 de novembro de 2012

Deslizes de alguns membros do clero colonial - Parte 2

 O voto de celibato nem sempre era respeitado


"Para o Cônego observante
todo o dia e toda a hora,
cuja carne é pecadora
das completas por diante"
(Gregório de Matos)


Tendo assumido um compromisso de celibato, muitos clérigos do Brasil Colonial passavam longe de suas obrigações; referindo-se à Cidade da Bahia (Salvador), pelos inícios do século XVIII, Varnhagen escreveu que "reinava na cidade certa libertinagem entre os próprios eclesiásticos." (¹)
Pois bem, há, a esse respeito, um relato no mínimo curioso que aparece no Compêndio Narrativo do Peregrino da América (obra de muito sucesso no século XVIII), que é útil, não só para exemplificar a questão, como também para dar uma ideia de como o descumprimento dos votos, por parte de religiosos, era visto na época. Teria ocorrido em Olinda:
"Nunca sucederia aquele tão lastimoso caso a certo eclesiástico desta América, há bem pouco tempo, se este fosse advertido de seus confessores e prelados. [...] Segundo uma carta, que ouvi ler, feita no ano de 1715, foi o caso na forma seguinte. Um sacerdote desta América estava publicamente concubinado com uma mulher, havia muitos anos, com grande escândalo de um povo inteiro, mas todos lhe dissimulavam esse pecado, ainda aqueles que o podiam emendar e repreender. Sucedeu, pois, que em uma noite, estando ele com a concubina em uma sacada das casas em que morava, para ver certo festejo que na rua se fazia, pegou o fogo em uns barris de pólvora, que estavam nas lojas das mesmas casas, e fez o incêndio voar o edifício, e do ar veio uma trave, que caiu sobre ambos, e os matou, ficando todos os mais, que junto deles estavam, livres do perigo. Notável caso [...] para exemplo de todos, e mui especialmente para os eclesiásticos, que sabendo o quanto devem ser espelhos da virtude, estão dando escândalo com o seu mau viver aos seculares." (²)
Em razão de casos como este é que o mesmo autor de O Peregrino da América, Nuno Marques Pereira, aconselhava às mulheres que viviam na Colônia:
"Fujam, quanto puderem, de ter trato ou familiaridade com pessoas eclesiásticas, porque suposto sejam comparadas com os anjos, tem sucedido muitas vezes, pelo caminho da virtude entrarem na estrada da maldade; e basta ter-lhes muito respeito de longe, porque também da terra se tem devoção com os anjos e santos do céu. Contentem-se com ouvi-los e vê-los nos altares, nos púlpitos e nos confessionários, que são os lugares em que os sacerdotes representam a Cristo. Vejam, que o demônio é como o ladrão: este furta nas estradas, aquele na ocasião." (³)

(1) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 867.
(2) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, pp. 112 e 113.
(3) Ibid., p. 327.


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terça-feira, 23 de outubro de 2012

Uma ornamentação bem brasileira em altares dos tempos coloniais

É bastante conhecido o fato de que as cores das penas das aves do Brasil encantaram os portugueses desde a chegada da esquadra de Cabral a Porto Seguro. Na carta destinada ao monarca Dom Manuel, Pero Vaz de Caminha relatou que haviam feito a troca, com os indígenas que encontraram, de alguns guizos  por aves coloridas e objetos confeccionados com penas de aves, que seriam todos enviados ao Reino, como amostra das coisas da terra à qual haviam chegado. "Resgataram", diz ele, "por cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes e um pano de penas de muitas cores, espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse."
Nem todo mundo sabe, porém, que as belas penas de aves do Brasil iriam acabar por constituir-se em exótico adorno para altares de igrejas! Ao menos, é o que se depreende do que escreveu Nuno Marques Pereira, no seu célebre Compêndio Narrativo do Peregrino da América, obra extremamente popular no Brasil do Século XVIII. Ao narrar a viagem da Bahia em direção às Minas, o peregrino chega a uma pequena igreja campestre, na qual entra para ouvir missa, não sem antes entabular com o sacerdote mais um de seus extensos diálogos, aliás, uma característica da obra. É na sacristia que observa os adornos para os altares que ora nos interessam:
"Entrei na sacristia, onde achei o sacristão preparando os ornamentos e o mais necessário para se dizer missa. E reparando, vi o grande asseio e alinho com que estava a sacristia tão bem adornada, assim pela limpeza do lavatório, como pela perfeição de um armário, em que estavam cálices e pedras de ara, e mui perfeitos ramalhetes, uns de penas de várias cores e outros de papel, que todos serviam para se porem nos altares nos dias festivos." (*)
É difícil determinar, meus leitores, o quanto o uso de penas e outros artigos próprios do artesanato dos povos indígenas era frequente nos tempos coloniais. Mas, de qualquer modo, a simples menção de seu uso no Peregrino da América nos dá uma pista de que, se é verdade que os missionários cristãos procuraram catequizar os nativos, também é fato que os indígenas, a seu modo, também exerceram uma "catequese", à medida que belas expressões de sua arte acabaram indo decorar nada menos que os altares de uma igreja, quer isoladamente, quer em conjunto com expressões mais convencionais, próprias da religiosidade europeia.

(*) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, pp. 404 e 405.


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domingo, 10 de junho de 2012

Colonos, funcionários públicos coloniais, baiacus

Que juízo fazia Nuno Marques Pereira, autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América (¹), a respeito de colonos que, vindo ao Brasil, alcançavam alguma posição, principalmente por ocupar cargo público?
Resposta simples: comparava-os a baiacus. O quê? Sim, a mesma irritação que demonstrava com padres que pouco caso faziam do sacerdócio (veja a postagem anterior) era também direcionada a tais colonos, embora dessa vez expressa com algum humor. Que, levado a sério, não tinha graça nenhuma.
O padre Nuno Marques Pereira começa por uma descrição dos baiacus, feita à moda da época e, por isso mesmo, com as limitações dos conhecimentos científicos que lhe eram disponíveis. Vejamos:
"São estes tais como uma casta de peixes que há neste Brasil, e lhes chamam baiacus, entre os quais há uns que têm espinhos. São estes peixes peçonhentíssimos, por terem no fel o mais refinado veneno que há no mundo, e que ainda que algumas pessoas os comem, é com muita cautela. Mas vamos à comparação. Costumam estes peixes, assim como os pescam e tiram da água, começarem a inchar, e fazem-se como bolas. Os de espinhos, não há quem pegue neles, pelo risco das agudas pontas. Incham de sorte que assim morrem às vezes dando um grande estouro. Ocupam-se estes peixes em mariscar pelas margens dos rios e mangais, e só quando se veem em terra é que incham."
Ora, dirão os leitores, e que é que isso tem a ver com os senhores colonos e funcionários públicos? A explicação não tarda:
"Assim são os baiacus humanos, ou desumanos: tanto que se veem nas praias e terra do Brasil, logo começam a inchar, e se lhes dão algum ofício ou posto, fazem-se baiacus de espinhos, não há quem se chegue junto deles. E se dizem a um destes: "Basta, Baiacu, porque podes rebentar", ou se lhes tocam, cada vez incha mais."
E o padre-escritor conclui:
"Bem sei que este exemplo ou moralidade é mui humilde, porém como é tão vulgar, cada qual o tome no sentido mais acomodativo." (²)
Em linguagem de hoje, talvez escrevesse: Que vista a carapuça aquele que a achar de bom tamanho.

O Autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América comparou colonos e
funcionários coloniais a baiacus... (³)

(1) Essa obra teve, ao longo do século XVIII, várias edições, sendo das mais lidas e admiradas no Brasil da época, conforme se explica na postagem "Compêndio Narrativo do Peregrino da América, um best-seller do Brasil Colonial".
(2) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, pp. 20 e 21.
(3) Os baiacus desta postagem pertencem ao Museu do Mar, no Aquário Marinho de Ubatuba, SP. Se passar pelo Litoral Norte, não deixe de visitar.


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quinta-feira, 7 de junho de 2012

Compêndio Narrativo do Peregrino da América, um best-seller do Brasil Colonial

Dá para imaginar um best-seller no Brasil de população quase toda analfabeta do século XVIII? Pois houve, desde que respeitadas as proporções. O título era Compêndio Narrativo do Peregrino da América; seu autor, o padre Nuno Marques Pereira. Sobre esse padre-escritor, pouco se sabe. Pairam dúvidas até sobre sua origem, se de Portugal, se do Brasil. Já quanto ao conteúdo do livro, propunha-se, ao narrar o trajeto de um peregrino desde a Bahia até as minas de ouro, ir apresentando lições de caráter moral e religioso, na intenção de corrigir os péssimos costumes que, segundo o autor, eram amplamente seguidos no Brasil.
Para que os leitores deste blog possam fazer uma ideia da natureza do livro, selecionei alguns trechos (*) sobre três tópicos, que podem ser lidos logo abaixo.

Árvores frutíferas da América

"Comecei a seguir minha jornada por entre amenos campos e copados arvoredos, que com o brando terral faziam agitação às flores, que exalando fragrantes aromas me suavizavam o sentido do olfato; e para recreação da vista me lisonjeavam o sentido do ver tantas árvores floridas, sem mais cultura que a fábrica da natureza que as havia aperfeiçoado, e muitas com vistosos pomos, de que participei [...]."

Castigo de um avarento

"Sabei que o mísero não só nega a seu próximo o que lhe pede, mas também a si mesmo o de que necessita, porque em lhe faltando o que tem, não há quem dele se compadeça. Digo isto pelo que vi acontecer a um homem, que navegava em um seu barco das Vilas do Sul para a Cidade da Bahia. Costumava este entrar primeiro pela barra de Jaguaripe, quando levava na sua embarcação farinhas para vender na cidade, e por mais que lhe pedissem os moradores pobres daquele rio que lhes vendesse algumas para seu sustento, representando-lhe suas necessidades, nunca lhas queria vender. Sucedeu que vindo em certa ocasião entrando pela mesma barra, como esta é arriscada e de perigo, pelos bancos de areia que tem, deu o barco em cima de uma coroa. E como se visse naquele perigo, começou a bradar, e ainda que os que estavam em terra o ouviram, lhe não quiseram acudir, por saberem que era a embarcação daquele miserável, e ali se desfez e perdeu toda a carga que trazia."

Sobre o relaxamento na espiritualidade por parte do clero no Brasil

"Porque está hoje o mundo (e principalmente este Estado do Brasil) em tais termos, que mais parecem alguns sacerdotes mercadores-negociantes que Ministros de Deus e Curas de almas. E se não, vede o que está sucedendo nos tempos presentes. Propõe-se um clérigo a qualquer igreja, e a primeira coisa que procura é saber o quanto rende cada ano e o que tem de benesses, se são ricos os fregueses e se dão boas ofertas. Sendo que só deviam procurar se havia bons paramentos na igreja e se eram devotos e zelosos os fregueses de obrar bem no culto divino, e quando muito, saber se era sítio sadio e se havia bom passadio do sustento corporal."

É obra, vê-se, de religiosidade intensa mas algo ingênua; na linguagem, resvala com frequência nos exageros típicos do Barroco; o estilo é, muitas vezes, prolixo. Que haveria, pois, nesse livro, para alcançar sucessivas edições? Diante do número reduzido de leitores potenciais entre a população alfabetizada, presume-se que fosse lido em voz alta, para entretenimento também dos que ouviam, em muitas casas, à luz de velas ou de candeias a óleo de baleia, nas longas noites coloniais. Que fazia sua popularidade?
À parte o fato de que, por sua temática, devia eventualmente ser recomendado tanto do púlpito quanto do confessionário, tenho um palpite de que interessava aos leitores e ouvintes porque tratava de coisas do Brasil, não da Europa. Era a descrição da natureza exuberante, que conheciam muito bem, as questões políticas e sociais que pontuavam o quotidiano na Colônia, o relacionamento entre as várias camadas sociais, as questões ligadas aos direitos e obrigações de senhores e escravos, a vida na cidade da Bahia, com seus usos, costumes, (i)moralidade, burocracia, criminalidade, ao lado de vistosas festas religiosas, não exatamente favoráveis à introspecção que nosso padre-escritor propunha, mas que caíam facilmente no gosto da população, a exaltação à coragem e virtude de quem deixava Portugal para vir colonizar o Brasil. Contraditório? Talvez, mas quanto mais de contraditório não houve nos tempos da colonização?

(*) Seguiu-se a edição de 1731. Conforme é pratica neste blog, os trechos citados foram transcritos na ortografia atual.


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