terça-feira, 29 de novembro de 2011

A alimentação dos indígenas do Brasil, segundo Hans Staden

Feito prisioneiro dos índios tupinambás (veja postagem anterior), Hans Staden foi amarrado e levado até a aldeia em que moravam. A partir daí, aguardando uma execução (seguida de antropofagia) que acabou não acontecendo, foi tomando contato com os hábitos de seus captores, hábitos aos quais, por mais estranhos que lhe parecessem, precisava adaptar-se, se queria ter alguma chance de sobrevivência. Posteriormente, ao regressar à Europa, Hans Staden deixou em um livro um registro valioso (¹) sobre as práticas quotidianas dos nativos, incluindo, naturalmente, o que se referia à alimentação.
Cabe aqui, antes de dar prosseguimento ao assunto, fazer uma observação importante: o Brasil tinha e tem uma grande diversidade de povos indígenas e, por conseguinte, de acordo com a região em que se estabeleceram, há também variação de tradições. Por isso, o que se dirá refere-se especificamente aos costumes dos indígenas do litoral brasileiro, em particular os que habitavam, no século XVI, o que hoje são os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, embora alguns de seus hábitos fossem partilhados com outros povos do interior. Isto estabelecido, vejamos o que registrou o famoso prisioneiro.
Na mesma hora em que chegava pela primeira vez à aldeia, Hans Staden viu as mulheres trabalhando em uma plantação, da qual colhiam as raízes - era a mandioca, conforme os leitores já devem ter imaginado e, pelo que se infere do relato, consistia no principal artigo cultivado para alimentação. Outros alimentos provinham da caça e da pesca, razão pela qual os indígenas, ao saírem às matas, iam sempre armados de seus arcos e flechas, sendo extremamente habilidosos em seu manejo, de modo que um animal, uma vez avistado, dificilmente lhes escapava.
Pescaria indígena com arco e flecha, gravura da
obra de Hans Staden Zwei Reisen nach Brasilien
Já a pesca podia seguir dois métodos distintos, um com arco e flechas, outro com rede. No primeiro caso, pescava-se à beira-mar (o que nos informa, discretamente, sobre a quantidade de peixe ali existente na época) e, sendo um peixe asseteado, o índio mergulhava em seu encalço, até trazê-lo à superfície. A pesca com rede, no entanto, era comunitária: entravam na água, formando um círculo e fazendo movimentos de modo que os peixes acabassem dentro da rede. Vale salientar que, nesse caso, o produto da pescaria era repartido entre todos os participantes, igualmente.
Quanto ao preparo dos alimentos, Hans Staden refere que as mulheres cozinhavam carne ou peixe e temperavam com pimenta verde e, desses ingredientes, faziam mingaus (²). Registre-se aqui que esse não era o único tipo de mingau que faziam. Para conservar a mandioca ou o peixe por mais tempo, assegurando um suprimento de comida para tempos de escassez ou mesmo para viagens, como as que se faziam em tempo de guerra, era usual a preparação de farinha, além de já conhecerem uma técnica para defumar: carne e/ou peixe, fixados em varas, eram colocados sobre fogueiras, aí permanecendo para receber tanta fumaça quanto possível, até que secassem. Posteriormente, quando desejavam consumir o que fora defumado, colocava-se em água para ferver.
Eis aqui uma síntese do que Hans Staden observou em seus dias como prisioneiro. É claro que poderíamos incluir na dieta indígena os frutos que eram coletados nas matas, mas isso era algo de que se serviam apenas na estação apropriada de maturação de cada espécie.

(1) STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557.
(2) Veja, sobre isso, a postagem: "Uma receita inusitada de mingau".


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domingo, 27 de novembro de 2011

De que se alimentavam os colonizadores recém-chegados e os náufragos no Brasil

Depois de semanas ou meses no mar, os colonizadores finalmente chegavam às terras do Brasil. O que os esperava? Certamente não uma boa acolhida em uma estalagem confortável (lembre-se, era o século XVI) e, dependendo da localidade e da ocasião, não havia nem mesmo um teto sob o qual descansarem. A embarcação, para que não encalhasse, ficava a uma boa distância no mar, enquanto os novos colonos eram levados à praia em batéis. Com sorte, encontrariam água, frutos e caça. As primeiras povoações demoraram a desenvolver-se e, por isso, quem vinha ao Brasil, fosse de livre vontade ou em virtude de uma sentença de degredo, já sabia que os primeiros tempos seriam muito difíceis.
Se, em lugar de um desembarque, a chegada à costa era consequência de um naufrágio, a situação podia ser ainda pior. O colono que desembarcava podia trazer consigo alguns pertences, ferramentas e mesmo alguns suprimentos; já os náufragos, estavam longe de ter essa possibilidade, ainda que, em alguns casos, conseguissem salvar alguma coisa da embarcação perdida.
Temos, a respeito, o testemunho de Hans Staden (¹) e, como ele, muitos outros que não eram portugueses devem ter vindo parar na costa da América (²). Conta-nos que, estando em uma embarcação espanhola para a qual fora contratado como artilheiro, chegaram, segundo registro do piloto, a 28º Sul, o que nos indica estarem no litoral de Santa Catarina, tendo desembarcado em uma ilha (seria a de mesmo nome?). Ali, depois de fazerem fogo, derrubaram uma palmeira, da qual tiraram o palmito, que era uma novidade para muitos europeus e do qual, nos registros da época, encontramos descrições atribuindo-lhe os mais variados sabores.
A situação desses navegantes, entretanto, piorou, de modo que, nos cerca de dois anos e meio que ali permaneceram, foram obrigados a alimentar-se de coisas que lhes pareciam abomináveis: ratos silvestres, lagartos, mariscos, enfim, aquilo que encontravam, mesmo porque, ainda segundo o relato de Hans Staden, os índios, que inicialmente tinham "cooperado", deixaram de fazê-lo e desapareceram quando as poucas mercadorias que tinham para escambo acabaram. Melhor situação encontraram em outra ilha onde havia uma grande colônia de alcatrazes que, conta-nos, eram fáceis de capturar. Com isso, tiveram carne e ovos.
Finalmente, conseguiram sair dali, mas naufragaram próximo a São Vicente e o nosso informante acabou contratado para trabalhar na defesa da área ocupada por portugueses, fato que lhe resultaria em terríveis problemas, ao ser capturado por tupinambás. Mas é desse tempo no qual serviu na fortaleza lusitana que deixou uma informação que muito nos interessa, por dar uma ideia do que cabia aos recém-chegados colonizadores em termos de alimentação. Mencionando ter um escravo carijó que lhe trazia caça, Staden conta que, no Brasil, não havia muito mais alimento senão aquilo que se achava no mato. É fácil compreender que o confronto permanente com os nativos dificultava, senão impedia completamente, o estabelecimento de lavouras que, afinal, nem poderiam mesmo ser muito extensas, na estreita faixa de terra existente entre o Oceano Atlântico e a Serra do Mar.

(1) STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557.


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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Peru de Ação de Graças, peru do Natal


Deixar o lar na Europa e ir estabelecer-se em terras desconhecidas na América do Norte era uma enorme aventura, quase uma temeridade, nos anos vinte do século XVII. Entretanto, os chamados "pais peregrinos" o fizeram, e deviam ter bons motivos para isso - entre eles, fugir da perseguição religiosa que vinham enfrentado.
Ora, leitor, o primeiro ano na América foi terrível. Ao final dele (1621), entretanto, os sobreviventes resolveram agradecer pelo que tinham, fundando a prática do Dia de Ação de Graças, celebrado anualmente nos Estados Unidos. Em círculos mais restritos, comemora-se também no Brasil e em muitos outros lugares.
Pois bem, para festejar a data, esses colonos lançaram mão do pouco que havia, produto de suas colheitas ou caça disponível, e é aí que entraram em cena os perus: perus selvagens, aves nativas da América, desde o México até o Canadá, a ponto de, infelizmente para elas, virarem símbolo da data.
Na Europa, há suficientes evidências de que, trazidas pelos primeiros exploradores, os perus já eram conhecidos desde o século XVI e, sendo domesticadas, essas aves fizeram enorme sucesso devido à carne, considerada excelente.
No Brasil os perus foram, gradualmente, incorporados às tradições das festas de dezembro, Natal e Ano Novo. E, para se ter uma ideia do valor atribuído a essas aves (pior para elas, mais um vez), há vários registros de preços praticados em São Paulo em diferentes épocas. Temos os valores de outros itens de consumo, para efeito de comparação:

Em 1685:

Dúzia de ovos......................................................10 réis
Um pato................................................................40 réis
Uma perua...........................................................160 réis

c. 1700:

Um casal de pombos........................................160 réis
Três peruas e um peru.....................................640 réis (¹)

Um outro registro, de 1886, aponta os seguintes preços (²):

Quilograma de carne bovina, em média........................... 320 réis
Dúzia de ovos........................................................................ 500 réis
Uma galinha........................................................................... 650 réis
Um peru.................................................................................. 5.000 réis

Deve-se considerar que a enorme variação de preços tem, entre outras causas, a inflação decorrente da descoberta das minas de ouro nas Gerais e, mais tarde, em Goiás e Mato Grosso, disso decorrendo uma elevação sensível na demanda por suprimentos para os que viviam e trabalhavam nas lavras.


(1) Cf. TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 108.
(2) Ibid., p. 346.


Anúncio de ovos de peru, Revista A Cigarra, edição de
1º de agosto de 1914

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terça-feira, 22 de novembro de 2011

O contrabando de pau-brasil e a expedição de Martim Afonso de Sousa

Firmado entre Portugal e Espanha, o Tratado de Tordesilhas (1494) foi, desde sempre, descumprido, como já se disse na postagem anterior, tanto pelas próprias partes acordantes como por quem não fora incluído nessa "partilha do mundo". Assim, o governo português, ainda que sumamente envolvido com as questões na navegação das Índias, precisou logo entender-se também com o problema da presença de contrabandistas, em especial do precioso pau-brasil, ao longo da costa da então chamada Terra de Santa Cruz. Não havia, para isso, muitas alternativas, desde que se pretendesse conservar para Portugal a posse de terras na América.
A chamada Expedição de Martim Afonso de Sousa, enviada a mando do rei D. João III, que percorreu o litoral brasileiro entre 1530 e 1532, não foi, muito provavelmente, a primeira no gênero, já que muito antes várias expedições, geralmente financiadas por particulares, tiveram permissão oficial para vir ao Brasil buscar madeira e outras mercadorias. Foi, entretanto, a primeira, ao que se sabe, a dar uma ideia mais completa do que era toda a extensão da costa do Brasil, extensão que, para as possibilidades de colonização de um país pequeno, como Portugal, devia parecer monstruosa.
Como existe dessa expedição o Diário da Navegação, anotado por Pero Lopes de Sousa, irmão do Capitão Martim Afonso de Sousa, sabemos que, desde logo, evidenciou-se que franceses estavam "fazendo a festa", ao estabelecerem relações comerciais com vários grupos indígenas, fato que possibilitava chegar, carregar pau-brasil e sumir, em seguida, na vastidão do oceano, rumo à Europa. As poucas embarcações francesas que eram abordadas por portugueses eram, sem sombra de dúvidas, apenas uma pequena fração da totalidade que fazia o contrabando, se quisermos assumir aqui o ponto de vista lusitano na questão.
É possível ler no  Diário da Navegação algumas informações bem interessantes do que ocorria quando uma embarcação francesa era vista a uma distância suficientemente curta para ser abordada:
"Como fomos dela um tiro de bombarda se meteu a gente toda no batel e fugiu para a terra. Mandou o capitão a Diogo Leite, capitão da caravela Princesa, que fosse com seu batel após o batel da nau; quando já chegou a terra, era já a gente metida pela terra dentro, e o batel quebrado. Fomos à nau, e nela não achamos mais que um só homem: tinha muita artilharia e pólvora, e estava toda abarrotada de brasil."
Daí por diante o Diário vai mencionando vários outros desses encontros, dos quais, vez por outra, resultava uma pequena batalha no mar. Mas os franceses iam além, não se restringindo a fazer comércio com os nativos. Ousavam atacar feitorias já estabelecidas por portugueses, como se vê neste relato:
"... e me disseram que foram ao rio de Pernambuco, e como havia dois meses que ao dito rio chegara um galeão de França, e que saqueara a feitoria e que roubara toda a fazenda que nele estava de el-Rei nosso senhor."
Um fato curioso, no entanto,  é que, neste tempo, ao menos ao longo da costa do Brasil, reinava alguma solidariedade entre portugueses e espanhóis, quando eventualmente vinham a encontrar-se, talvez porque não se soubesse, exatamente, por onde passava a tal linha de Tordesilhas... Tanto assim, que Martim Afonso mandou seu irmão e vários outros navegantes a explorarem a foz do Rio da Prata, o que nos faz crer que o propósito fosse, em última instância, bisbilhotar sobre alguma rota para as riquíssimas minas de prata que, sabidamente, estavam em território espanhol - uma evidência de que as questões de limites e de quem seria dono de que parte da América estavam muito longe de uma solução. Como se sabe, esse assunto ainda duraria séculos, persistindo mesmo após a independência das possessões coloniais na América do Sul.


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domingo, 20 de novembro de 2011

Mercadorias que eram contrabandeadas do norte da África no Século XVI

Quem acha que o Tratado de Tordesilhas resolveu todas as questões sobre a posse de terras descobertas por navegadores a serviço de Espanha e Portugal está certamente enganado. Nem sequer havia certeza sobre o ponto de onde deveriam ser contadas as terras de um e outro reino e, em consequência disso, o comércio e mais atividades que se empreendiam por via marítima no século XVI eram, em grande parte, regidos pela lei daquele que, em dada circunstância, estivesse em maior número e com melhores armas.
Na edição de Marburg de
Zwei Reisen nach Brasilien 
esta gravura
ilustra o episódio da captura do

navio contrabandista no norte da África
Há um episódio relatado por Hans Staden (*) que ilustra bem este ponto. Conta que, tendo iniciado sua primeira viagem a partir de Lisboa, foram, ele e os demais de seu navio, inicialmente ao arquipélago da Madeira e, depois, à costa da África. Cabe aqui explicar que o alemão havia se alistado como artilheiro em uma embarcação portuguesa que devia reprimir o comércio de não-portugueses com os mouros do norte da África, além do contrabando, principalmente de pau-brasil, por parte de navios franceses que vinham à América.
Pois bem, foi no norte da África que encontraram um navio a fazer comércio com os chamados mouros e, tendo-o abordado, puseram em fuga os tripulantes, assim como os mouros que, de terra, queriam defender seus parceiros de negócios. Constatou-se então que os proprietários da embarcação "contrabandista" eram, ao menos em parte, de origem espanhola. O que mais nos interessa, porém, é a lista apresentada por Hans Staden das mercadorias que levavam, o que serve para nos dar uma excelente ideia quanto a que coisas eram consideradas valiosas o bastante nesse tempo para que se corresse o risco de um confronto que poria tudo a perder, como aliás, ocorreu neste caso.
Menciona ele que o navio capturado transportava tâmaras, amêndoas, goma arábica, couros de cabra e açúcar, carga que foi deixada na Ilha da Madeira enquanto o navio português, no qual Hans Staden era artilheiro, seguia viagem rumo ao Brasil, não porque se quisesse, mas porque, como ele próprio diz, um vento muito forte, que soprou à noite pela véspera de Todos os Santos (que é 1º de novembro), os empurrou, levando-os rumo a Pernambuco. Terrível a situação desses navegadores do século XVI, quando apenas se sabia aonde se queria ir, sem nunca ter certeza de onde de fato se ia chegar.

(*) STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557.


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quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Animais que aterrorizavam a imaginação dos colonizadores do Brasil (Parte 3): Piranhas!

"E rio abaixo, lá ia o fervedouro sanguinolento denunciando o martírio do animal, lançado, como tributo da boiada, aos cardumes vorazes das piranhas.
Os vaqueiros olhavam as águas trágicas onde os peixes borborinhavam e um tangerino moço, condoído do velho boi, suspirou:
- Coitado!"
                                                                                      Coelho Neto, Boi de Piranha in Vesperal

Elas nadam gentilmente quando não estão a atacar alguma presa e, para os incautos, a água dos rios e áreas alagadas em que habitam parecem "normais". No entanto, se são poucas, já representam algum perigo. Mas se forem muitas... É melhor nem pensar. São piranhas, peixes de dimensões aparentemente desprezíveis, mas os cardumes existentes em muitos cursos d'água Brasil afora impõem terror hoje, tanto quanto no passado. Muitos autores referiram-se a elas como criaturas assassinas, capazes de consumir um boi ou outro mamífero em pouquíssimo tempo, desde que reunidas em grandes cardumes. Infelizmente para os colonizadores do Brasil, cardumes eram a regra, não a exceção.
Alguns dos melhores relatos vêm, no entanto, de dias posteriores aos da colonização portuguesa. Há, por exemplo, a breve descrição do Padre Ayres de Casal (1817):
"[...] piranhas, que são curtas e largas, com dentes agudíssimos, e fatais a todo o vivente que podem alcançar." (¹)


O melhor informe que conheço, todavia, é de Hércules Florence. Transcrevo-o quase na íntegra, para que meus leitores, que porventura sejam seres urbanos e, por isso, inexperientes nessas questões silvestres, aprendam úteis lições. Diz ele, referindo-se à ocasião em que a Expedição Langsdorff percorria o Brasil Central, em área da bacia do rio Paraguai:
"Começamos a pescar piranhas, peixe abundante no Paraguai e seus tributários. Nos rios que vão ter ao Amazonas os há também, assim como nos de Minas Gerais, mas pululam nos lagos e campos inundados do Paraguai. Não têm mais de oito polegadas de comprido e seis de largo, entretanto é o mais temível de todos os peixes desses rios pela voracidade com que acomete todo e qualquer animal que caia dentro d'água. Têm dentes agudíssimos, na disposição e dimensões [...]." (²)
Adverte em seguida:
"Ai do imprudente que entrar nu em lugar infestado por aqueles vorazes habitantes; está perdido, sobretudo se tiver no corpo alguma ferida ou sarna. Eles se precipitarão sobre as chagas; farão verter sangue e em poucos instantes o infeliz perderá a vida." (³)
Assustador? Há mais:
"Quando a gente se banha em lugar de poucas piranhas, o perigo é diminuto, mas assim mesmo é preciso ter o cuidado de cobrir com as mãos as partes pudendas, porque por aí é que elas atacam de preferência. [...]." (⁴)
Então, deixando evidente que não estava discorrendo sobre uma fábula, Florence conta dois casos que presenciou e, sendo esse autor bastante confiável, não me parece haver razão para duvidar dele:
"Para dar ideia da multidão e voracidade desses animais, bastar-me-á contar o seguinte caso. Havendo um dos nossos camaradas caçado um macaco e querendo moqueá-lo, pôs-se a limpá-lo e em seguida o mergulhou no rio. Sacou-o porém depressa, com cinco piranhas atracadas à carne e que foram cair na proa da canoa. De cada vez que repetia a imersão, tirava d'água quatro ou cinco peixes, de modo que num instante contamos sessenta, pescados por modo que muito nos divertiu.
Jogou-se ao rio um corpo esfolado de capivara. Foi um espetáculo curioso. As piranhas, num formigar e torvelinho que faziam borbulhar e espadanar as águas, o espicaçaram, ora atirando-o para o ar, ora puxando-o para o fundo.
À medida que o sangue se espalhava, acudiam outras aos milhares, e em breve nada restou daquela presa." (⁵)


(1) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica, 1ª ed., vol. 2, 1817, p. 187.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, pp. 86 e 87.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) Ibid.


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terça-feira, 15 de novembro de 2011

Animais que aterrorizavam a imaginação dos colonizadores do Brasil (Parte 2): Jacarés

"Era a hora em que a sombra das montanhas sobe às encostas, e em que o jacaré deitado sobre a areia se aquece aos raios do sol."
                                                                                                                         José de Alencar, Guarani

Diferentemente das cobras (que foram assunto de nossa postagem anterior), os jacarés sempre dividiram as opiniões dos colonizadores. Explico: se, por um lado, seu aspecto pareceu amedrontador, com toda aquela possante dentição à mostra, por outro, não demorou que sua caça logo interessasse a muitos que o tiveram na conta de fina iguaria, coisa que não aconteceu com cobra nenhuma. Os trechos de documentos que veremos a seguir demonstram bem essa dupla impressão.
Tendo percorrido o interior do Brasil entre 1825 e 1829 (¹), na condição de desenhista da Expedição Langsdorff, Hércules Florence deixou em seu diário uma interessante descrição de um lago em uma fazenda visitada, cujas águas pareciam bem convidativas, mas cujos habitantes inviabilizavam um banho, ainda que rápido, tudo narrado em vívida linguagem, que bem faz o leitor imaginar facilmente a situação:
"Se por si sós podem esses peixes (²) tirar o desejo de tomar um banho no lago, a presença de enormes jacarés em número superior a tudo quanto até então eu vira, basta para que até em tal nem se pense. Ouve-se-os roncar: veem-se-os no meio dos aguapés das margens, por toda a parte. O lago semelha uma caldeira de azeite a ferver, por tal modo agitam esses anfíbios [sic] a água, nadando rentes à superfície." (³)


Ora, para infelicidade dos jacarés, nem toda a carinha de maldade que têm impediu que os colonizadores se dispusessem a abatê-los, fosse porque, às vezes, os alimentos escasseavam, fosse porque alguns eram mesmo apreciadores de sua carne, sem falar nos usos que em pouco tempo seriam dados ao couro. Isso nos contam monçoeiros que, desde Porto Feliz, partiam via Rio Tietê até longínquas terras no interior do Brasil, como foi o caso, por exemplo, do governador português Dom Rodrigo César de Meneses. De sua ida a Cuiabá em 1726 há um relato feito pelo secretário Gervásio Leite Rebelo, no qual se lê:
"Em 27 e 28 do dito (⁴) se continuou a viagem com bom sucesso, houve bastante caça por ser este rio abundante de aves e de peixe, principalmente capivaras, piranhas e jacarés." (⁵)
Uma pausa aqui é quase obrigatória, para assinalar que, se o trecho mostra claramente que jacarés eram tidos como caça, mostra também que, ou o senhor secretário do governador não revisou o que escreveu, ou não tinha os mais elementares conhecimentos científicos, mesmo para seu tempo: como pode dizer que o rio era pródigo em aves e peixe e exemplificar isto com capivaras, piranhas e jacarés?!


Vamos adiante. Por meio de um outro relato monçoeiro, datado de 1751, desta vez feito por outro governador, Dom Antônio Rolim, o Conde de Azambuja, temos uma descrição de jacarés até detalhada. Compare-a, leitor, portanto, com as fotos desta postagem e veja se esse nobre português andou bem em suas palavras:
"Neste dia se matou o primeiro jacaré, a três ou quatro passos de distância da canoa, que tão pouco espantadiços são. Este, com ser pequeno, pelo que disseram, tinha seis palmos de comprido, quatro pés como lagarto, mais grosso no corpo que um homem pela coxa, rabo comprido à proporção do mais corpo. A pele, pela parte de cima, feita em cintas como armas brancas, é tão dura, que, dando-lhe à mão-tente com uma faca de ponta, apenas lhe entrou grossura de duas moedas de dez réis. A cabeça é comprida, os dentes de cão e sem língua." (⁶)

(1) Já fora, portanto, do tempo colonial.
(2) Os peixes eram piranhas, que serão assunto da próxima postagem.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 187.
(4) Outubro de 1726.
(5) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas 3ª ed., vol 3. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 121.
(6) Ibid., p. 203.


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domingo, 13 de novembro de 2011

Animais que aterrorizavam a imaginação dos colonizadores do Brasil (Parte 1): Cobras

"Ele que não brinque com o Manecão; é homem de cabelinho na venta e se lhe bota a mão em cima, esfarela-lhe os ossos, como se fora veadinho do campo enroscado por sucuri..."
                                                                                         Alfredo d'Escragnole Taunay, Inocência

Faz alguns dias, uma sucuri  - de cerca de seis metros de comprimento - resolveu passear por ruas de Manaus e causou sensação. Tente imaginar, no entanto, a cara de espanto dos colonizadores que, há séculos atrás, tinham a fantástica oportunidade de deparar-se com uma cobra semelhante, em meio ao território desconhecido que procuravam devassar. Todo mundo sabe que animais do Brasil já aterrorizaram muita gente, e nesta postagem e nas próximas trataremos deste assunto.
Não é preciso ser arqueólogo de cinema para odiar cobras e, além disso, a humanidade parece ter boas razões para não nutrir grande simpatia por elas, embora sempre possa haver um ou outro admirador. Ainda no século XVI, Gândavo escreveu:
Jararaca (⁴)
"Há nestas partes muitos bichos feros e peçonhentos, principalmente cobras de muitas castas e de nomes diversos. Umas há tão grandes e disformes que engolem um veado todo inteiro, e afirmam que tem esta cobra tal qualidade que, depois de ter comido, arrebenta pela barriga e apodrece com a cabeça e a ponta do rabo sãs; e tanto que desta maneira fica, torna pouco a pouco a criar carne nova até que se cobre outra vez da mesma carne tão perfeitamente como dantes: isto viram e experimentaram muitos índios e moradores da terra, a estas chamam pela língua dos índios de jiboiaçu.
Outras há muito maiores e mais peçonhentas, de outra casta diferente, são tão grandes, em tanto extremo, que apenas dezesseis índios podiam levar uma que mataram junto da costa entre os portugueses; a esta cobra chamam surucucu.
Outra geração há delas que lhe chamam boiteninga, tem na ponta do rabo uma coisa que soa propriamente como cascavel, e por onde esta cobra vai, sempre anda rugindo, [sic!] é uma das feras bichas que há na terra.
Outras há na terra que lhe chamam hebijaras, têm duas bocas, uma na cabeça, outra no rabo, mordem com ambas: esta cobra é branca e muito curta, o mais do tempo está debaixo da terra, é peçonhentíssima sobre todas: quem desta for mordido não terá vida muitas horas, e assim qualquer destas outras que morder alguma pessoa, o mais que dura são vinte e quatro horas.
(...) Também afirmam alguns homens que viram serpentes nesta terra com asas muito grandes e espantosas, mas acham-se raramente." (¹)
Cascavel (⁵)
Bem, meus leitores, o problema, aqui, é que Pero de Magalhães Gândavo pretendia, com seu Tratado da Terra do Brasil, incentivar portugueses a virem viver no Brasil para colonizá-lo, mas, ao menos pelas regras atuais da propaganda, ele teria dificuldades em alcançar sucesso, com esse relatório intimidador. Além disso, falar em serpentes voadoras? Ora, haja imaginação!
De um pouco mais tarde, da primeira metade do século XVII, vem-nos o registro de Frei Vicente do Salvador, infelizmente não isento de sua quota de lorota:
"Há também muitas cobras, e algumas tão grandes, que engolem um veado inteiro, e dizem os índios naturais da terra que, depois de fartas, arrebentam, e corrupta a carne se gera outra do espinhaço (...), e algumas se viram já de sessenta palmos de comprido; em Pernambuco se enrolou uma destas em um homem que ia caminhando, de tal sorte que, se não levara um cão consigo, que mordendo-a muitas vezes a fez largar, sem falta o matava: e ainda assim o deixou tal, que nunca mais tornou às suas cores e forças passadas." (²)
E, se seguirmos a bibliografia disponível, séculos afora, iremos encontrando outros relatos, mais ou menos semelhantes, mostrando que petas podem perfeitamente passar de uma geração a outra, como se fossem a mais cândida verdade, simplesmente porque continuam a ser repetidas, sempre em companhia de informações verídicas, para dar um toque, digamos, mais autêntico.
Estudos sérios, mesmo, sobre os ofídios do Brasil, inclusive no que se refere a tratamento adequado em caso de "acidentes" com picadas, só viriam bem mais tarde. Enquanto isso não acontecia, só restava aos colonos ter muito cuidado por onde andavam, torcendo para não ter nenhum encontro indesejável com algum exemplar das temidas cobras do Brasil. (³) 

(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil.
(2) SALVADOR, Frei Vicente do.  História do Brasil.
(3) Estudos envolvendo a classificação de ofídios foram desenvolvidos a partir do século XIX. O Instituto Butantan data do comecinho do século XX. Mesmo isso podia ser motivo para humor - veja a página da Revista A Cigarra, edição de 15 de junho de 1914, reproduzida mais abaixo.
(4) WIED-NEUWIED, Maximilian v. Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens. 
(5) Ibid.; esta cobra é conhecida popularmente como cascavel, boicininga, boiteninga, boiquira, além de outros nomes.


A legenda diz: "Um forasteiro reproduz no seu caderno os desenhos feitos pelos movimentos
de uma jararaca e, ao concluir o epigrama com que o mimoseou o réptil, aplica-lhe
fortes bengaladas".
Revista A Cigarra, edição de 15 de junho de 1914.

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quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Prejuízos possíveis em um engenho colonial de cana-de-açúcar

Pelo muito que se valorizava social, política e economicamente a figura de um senhor de engenho no Brasil Colonial, poderá alguém ter uma ideia equivocada do que realmente significava ser proprietário de um engenho de açúcar, como se tal condição colocasse um homem e sua família ao abrigo de quaisquer dificuldades. Mas não era assim, e não era porque, conforme aprendemos com o jesuíta Antonil (*), que vivenciou de perto a realidade do Brasil açucareiro, um senhor de engenho podia ter, em sua propriedade, um número considerável de razões para prejuízo, que o conduziriam, em última análise, à bancarrota, se não devidamente administradas.
A primeira dessas razões (e é significativo que nosso famoso informante a tenha listado em primeiro lugar) era a fuga ou a morte de escravos. Sabe-se hoje que um africano, arrancado de seu Continente de origem e obrigado a trabalhar no Brasil, não tinha, em um engenho, uma expectativa de vida das mais favoráveis, tal a dureza do trabalho e das condições de vida que se lhe impunham, o que, segundo o próprio Antonil, obrigava cada senhor a, anualmente, adquirir novas "peças". Diante da vastidão despovoada do Brasil, muitos escravos reuniam toda a coragem que podiam e empreendiam fuga, indo reunir-se a outros, sob igual sorte, em povoações a que se deu o nome de quilombos. Sabe-se também que, longe de serem ocorrências excepcionais, os quilombos eram, sim, até comuns, fornecendo, para os escravos fugitivos, um abrigo, ainda que temporário.
Na lista de Antonil, a perda de cavalos e bois aparece em segundo lugar (outro fato curioso). Esses animais realizavam uma parte considerável do trabalho do engenho e, no caso dos bois, eram geralmente empregados para puxar os carros que transportavam a cana até a moenda e o açúcar até o porto de embarque, sucedendo por vezes que, devido às péssimas condições das estradas, em especial durante as temporadas de chuva, os bois chegavam a morrer de exaustão pelo trabalho que lhes era imposto.
Vem em seguida a menção às secas, fenômeno que, no Nordeste brasileiro, revestia-se de particular importância, uma vez que podia pôr a perder toda uma safra, embora os senhores apreciassem alguma estiagem, já que proporcionava à cana um maior potencial açucareiro.
Finalmente, lista Antonil os desastres ou imprevistos que anualmente podiam acometer um engenho e, embora não haja menção específica do que deviam ser eles, pode-se imaginar, por exemplo, eventuais incêndios, pragas na lavoura, excesso de chuva, e assim por diante.
Diante disso, leitor, fica evidente que, se a posição dos senhores era realmente elevada, os riscos que corriam também eram grandes, em um cenário no qual, apesar dos altos rendimentos que podiam vir a obter, não eram também, na cadeia que envolvia a produção, refino, exportação e comercialização do açúcar, com toda certeza, dos que mais lucravam.


(*) ANTONIL, André João (Giovanni Antonio Andreoni). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: 1711, p. 4.


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terça-feira, 8 de novembro de 2011

Por que as pessoas tinham tão pouca instrução no Brasil Colonial?

Saint-Hilaire, o naturalista francês que andou pelo Brasil no século XIX, espantou-se com a geral falta de instrução da população brasileira, e não foi certamente o único a dar-se conta do problema. Embora existissem brasileiros notáveis pelo saber e cultura, a maioria das pessoas era extremamente ignorante. Por quê?
A lista de razões poderia ser enorme. Veremos aqui apenas algumas delas:

1. Na mentalidade popular, apenas umas poucas pessoas - padres, por exemplo - precisavam de instrução.
2. O papel, onde se deveriam escrever as lições, era muito caro, e os livros, por sua vez, eram raríssimos. Sabe-se que algumas regiões chegavam a ter falta absoluta de meio circulante, de modo que as transações comerciais eram feitas em espécie. Nesse cenário, comprar o que vinha de longe, de Portugal, era quase impossível para coisas consideradas essenciais (vinho, bacalhau, azeite...), quanto mais para aquilo que se tinha como supérfluo.
3. O empreendimento de colonização era árduo e demandava todos os braços disponíveis, fossem eles livres ou cativos, de modo que os meninos que tinham o privilégio de frequentar a escola lá permaneciam por pouco tempo, sendo logo ocupados com outras atividades.
4. Havia poucos professores disponíveis, sendo a quase totalidade deles, padres jesuítas. Como os jesuítas não tinham colégios em todas as povoações, quem residia longe teria sérios problemas em encontrar um lugar adequado para morar enquanto se dedicava aos estudos - Antonil chegou a sugerir aos senhores de engenho (que viviam no campo, onde geralmente não havia escolas), que deixassem seus filhos em casa de parentes moradores de áreas urbanas para que pudessem receber alguma educação.
5. A vida simples dos colonos não exigia, grosso modo, grandes conhecimentos acadêmicos. Era perfeitamente possível que alguém passasse a vida toda sem nenhum constrangimento por sua pouca instrução, desde que  tivesse uma leitura sofrível e fosse capaz de fazer algumas contas.
6. Embora alegassem o contrário, as próprias autoridades não faziam, via de regra, grande esforço para melhorar a instrução popular, porque havia um temor de que o estudo e a leitura de certos autores, em particular no contexto do espalhar-se de ideias iluministas, viesse a incentivar rebeliões.
7. Tudo isso considerado, imagine-se agora o que aconteceria a um rapaz que, vencendo tantos obstáculos, chegasse a superar o nível básico de instrução. Teria, para prosseguir em seus estudos, de ir à Europa, já que, até a vinda da família real lusitana  (1808), não se cuidou do estabelecimento de qualquer instituição de ensino superior no Brasil. Assim, as possibilidades de uma formação acadêmica completa eram restritas aos poucos que dispunham de recursos para manter-se em alguma universidade europeia, caso em que a preferência recaia, como não poderia deixar de ser, em Coimbra.

Tudo o que se disse até aqui refere-se à instrução para meninos. Quanto às meninas, a situação era ainda pior, porque na maior parte do Brasil, durante o Período Colonial, as mulheres viviam reclusas ou semirreclusas, o que quer dizer, sem meias-palavras, que passavam a vida toda trancadas dentro de casa, longe de quaisquer olhos estranhos, apenas saindo, sempre com companhia masculina da família, para alguma rara cerimônia religiosa ou visita a algum parente. Diante disso, estava fora de questão que as meninas fossem enviadas a alguma escola de desasnar (*). Entendia-se que tudo o que precisavam saber, referindo-se sempre aos cuidados de uma casa, aprenderiam em casa mesmo, com a mãe ou outras mulheres mais velhas.
Demais disto, era habitual que pais ricos e poderosos, como os senhores de engenho, negociassem casamento para as filhas tão logo estas atingissem a adolescência. Casava-se pois uma menina com aquele que o pai escolhesse, mais com vistas a firmar uma aliança política e/ou econômica vantajosa do que a atender às preferências da noiva, que, com frequência, nem era consultada e, se era, esperava-se que cumprisse seu dever filial de assentir sem discussões. Por isso, entre famílias de grandes senhores rurais, não era incomum que uma jovenzinha fosse obrigada a casar-se com um homem muito mais velho (já viúvo algumas vezes, em tempos nos quais a morte de mulheres durante um parto era coisa corriqueira), que talvez nunca antes tivesse visto. Chega a ser quase um portento que, a despeito de tudo isso, houvesse uma ou outra mulher que alegasse saber ler e escrever, quando interrogada a respeito.

(*) Assim eram popularmente chamadas as Escolas de Primeiras Letras.


domingo, 6 de novembro de 2011

Álvares de Azevedo - poesia, amor, saudade e morte aos vinte anos

Notícia publicada no jornal
Aurora Paulistana, 1º de maio de 1852
Nascido em São Paulo no dia 12 de setembro de 1831, o poeta Álvares de Azevedo faleceu no Rio de Janeiro em 25 de abril de 1852. Era jovem, muito jovem, e já fazia grande sucesso com suas produções literárias, aliás de caráter bastante diversificado, refletindo um espírito em busca de seus rumos, típico de um (quase) adolescente. Ao contrário do que muitos pensam, o tal senso de "ser adulto" tem variado muito de idade - já notou, leitor, por exemplo, como mudou ao longo dos tempos a época da vida que se considerava apropriada para o casamento? De todo modo, basta folhear o que se publicou da pena de Álvares de Azevedo para que se constate a veracidade do que estou dizendo.
É, porém, inegável que a temática da morte, até por influência de autores do romantismo europeu, está muito presente em seus versos, assim como nos escritos de outros poetas contemporâneos - vê-se logo que, ao menos em termos literários, os jovens escritores demonstravam uma identificação absolutamente passional com o famoso suicida de colete amarelo e casaca azul (*), a ponto de alguns, seguindo-lhe o exemplo, chegarem a pôr termo à vida "por amor".
Vale aqui, entretanto, uma observação. Se é verdade que havia interesse pelas obras um tanto mórbidas dos grandes românticos, esse interesse encontrava âncora na realidade quotidiana. Do que estou falando? Quem quer que caminhe pelas quadras de cemitérios nos quais estão sepultados os mortos do século XIX dar-se-á logo conta de um fato estarrecedor, o da existência de uma quantidade absurda de túmulos de gente que morreu com dezoito, vinte anos, ou pouco mais que isto. Vê-se, leitor, que morrer "na flor da idade" era coisa relativamente comum, consequência de doenças (como a tuberculose) para as quais não havia tratamento,  não uma fantasia de adolescentes mentalmente doentios, metidos a ler e escrever poesia quando deviam tratar de fazer qualquer outra coisa.
Ora, o estudante de Direito Álvares de Azevedo faleceu, como já disse, em 25 de abril de 1852, mas a notícia de sua morte apareceu no jornal Aurora Paulistana somente em 1º de maio (do mesmo ano, claro). Isso nos dá alguma ideia da velocidade de publicação das notícias naqueles dias, já que uma edição do mesmo jornal circulou em 28 de abril, sem tocar no assunto. Compare-se com o que ocorre atualmente, quando um fato, ocorrido em quase qualquer ponto, não do Brasil, mas do mundo, ganha os sites de notícias e repercute nas redes sociais em poucos minutos, para se verificar o quanto o fenômeno da rápida circulação de informações alterou não só nossa visão de mundo mas, até em consequência disso, nosso modo de vida e, por que não dizê-lo, nossa percepção da morte. Chora-se pela celebridade falecida em um ponto qualquer do planeta, ignorando-se por vezes a dor e o sofrimento dos que estão perto, ou mesmo a desgraça de milhares trucidados por catástrofes naturais e/ou provocadas por nossa própria espécie. Somos mesmo muito estranhos.

(*) Refiro-me, naturalmente, à personagem Werther, da obra Die Leiden des jungen Werthers, de Goethe: "Er lag gegen das Fenster, entkräftet, auf dem Rücken, war in völliger Kleidung, gestiefelt, im blauen Frack mit gelber Weste."


***

Sob uma epígrafe de Byron, Álvares de Azevedo, em 12 de setembro de 1851, dia de seu vigésimo e último aniversário, escreveu:

Eu sonhei tanto amor, tantas venturas,
Tantas noites de febre e d'esperança!
Mas hoje o coração desbota, esfria,
E do peito no túmulo descansa!

Pálida sombra dos amores santos,
Passa, quando eu morrer, no meu jazigo:
Ajoelha-te ao luar e canta um pouco,
E lá na morte eu sonharei contigo!
(Saudades in Lira dos Vinte Anos)



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quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O Dia de Finados como evento social

"- Talvez fosse ao cemitério. Muitas sepulturas bonitas?
- Bastantes; entre elas a do marido de Fidélia. As coroas e flores que ela encomendou há dias lá estavam [...] e faziam grande efeito; parece que o desembargador mandou também o seu ramo; estava escrito numa fita."
                                                                                              Machado de Assis, Memorial de Aires

Anúncio na revista
A Cigarra, 24 de agosto
de 1915
Por seu caráter de celebração lutuosa (*), o Dia de Finados, 2 de novembro, deveria ser, para quem o tem em alguma conta, data de recolhimento e, em algumas tradições religiosas, tempo para preces, pelos mortos e pelos vivos. Deveria.
Acontece que, à medida que cemitérios públicos se estabeleciam, ter um túmulo bem conservado, de certa pompa, como uma espécie de monumento de família, tornou-se um fator de distinção social (veja postagem anterior). Por isso, era preciso, com a devida antecedência, prover a manutenção do jazigo e, na data apropriada, cercá-lo de flores que, acompanhadas do ostensivo comparecimento da gens ao cemitério, atestasse diante da sociedade o respeito e consideração em que se tinham os mortos, acarretando, naturalmente, uma boa reputação aos vivos... Acrescente-se ainda que os devotos que piedosamente rezavam diante dos túmulos deviam estar dignamente trajados e bem visíveis ao público, e ter-se-á algo da dimensão que uma data como Finados podia assumir, quer em centros maiores, com seus vastos cemitérios, quer em pequenas comunidades, nas quais, talvez com muito maior intensidade, os hábitos e costumes da população fossem bem vigiados, pelos informais mas não menos eficientes olhos da chamada opinião pública. Não estou dizendo que não houvesse ou que não há verdadeiro sentimento de luto e perda por parte dos que iam ou vão visitar os túmulos de seus familiares nos cemitérios - apenas aponto o fato de que essa não é e nem nunca foi a única dimensão. Lembremo-nos, por exemplo, do culto aos lares em Roma!

(*) É assim no Brasil. Há lugares nos quais o Dia dos Mortos é uma data festiva, na qual as pessoas celebram a vida, enquanto a têm.

Fotos do Dia de Finados na revista paulistana A Cigarra, edição de
9 de novembro de 1916

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terça-feira, 1 de novembro de 2011

Cemitérios e seus túmulos: igualdade, nem na morte

"Algumas sepulturas como se olhavam com afeto e se queriam aproximar; em outras, transparecia repugnância por estarem perto. Havia ali, naquele laboratório de decomposições, solicitações incompreensíveis, repulsões, simpatias e antipatias; havia túmulos arrogantes, vaidosos, orgulhosos, humildes, alegres e tristes; e de muito, ressumava o esforço, um esforço extraordinário, para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas."
                                                              Lima Barreto, O Triste Fim de Policarpo Quaresma

Dizem que na morte somos todos iguais. Abaixo do nível do solo, pode até ser, mas acima dele, nem sempre.
Aqueles cujos corpos eram, no Período Colonial, e mesmo mais tarde, inumados em igrejas, muitas vezes ali permaneciam anônimos, ou apenas com uma discreta identificação. A ideia era estar, mesmo na morte, perto de parentes e amigos, sob os cuidados da comunidade de fé de quem se esperava a intercessão, através de missas contínuas. Poucos, muito poucos, quase sempre figuras importantes da vida civil ou religiosos de destaque, recebiam nas igrejas uma menção notável quanto ao local de seu sepultamento. Esse quadro, no entanto, iria mudar rapidamente, à medida que sepultar mortos em cemitérios e não mais em igrejas tornou-se a regra.
Quem quer que caminhe por um desses cemitérios cujos primeiros "habitantes" iniciaram a ocupação do terreno em meados do século XIX logo verificará que reina ali grande desigualdade. Túmulos da nobreza imperial, edificados com materiais de alta qualidade e, por isso, dispendiosos, destacam-se em meio à vastidão de modestas sepulturas. Alguns ocupam apenas pequenos nichos nas paredes, outros ainda, sepultados anonimamente em jazigos coletivos, recebem nos registros o rótulo de "indigentes". Tanto quanto na vida as cidades, os cemitérios tornaram-se, na morte, um reflexo da sociedade.
Tudo o que foi dito contribui para explicar um fato notável em regiões do Brasil nas quais a imigração tornou-se um fenômeno marcante a partir da segunda metade do século XIX. É que famílias de imigrantes, ao adquirirem um certo bem-estar econômico, apressavam-se a construir, para seus falecidos, túmulos imponentes, dando lugar ao desenvolvimento da chamada arte tumular - não se tratava apenas da escolha de material adequado, a questão podia envolver até projeto arquitetônico e escultura. Nesse caso, um túmulo podia expressar consideração e respeito pela pessoa falecida, mas podia ser também um fator de afirmação social por parte daqueles que, tendo vindo ao Brasil para trabalhar, consideravam-se vencedores na luta pela vida. Era, em última análise, uma proclamação silenciosa, ainda que não menos pública, do sucesso alcançado, tanto pelo morto como por sua família. Mais uma vez, os cemitérios espelhavam a sociedade e as mudanças que nela andavam a ocorrer.


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