"Ele que não brinque com o Manecão; é homem de cabelinho na venta e se lhe bota a mão em cima, esfarela-lhe os ossos, como se fora veadinho do campo enroscado por sucuri..."Alfredo d'Escragnole Taunay, Inocência
Faz alguns dias, uma sucuri - de cerca de seis metros de comprimento - resolveu passear por ruas de Manaus e causou sensação. Tente imaginar, no entanto, a cara de espanto dos colonizadores que, há séculos atrás, tinham a fantástica oportunidade de deparar-se com uma cobra semelhante, em meio ao território desconhecido que procuravam devassar. Todo mundo sabe que animais do Brasil já aterrorizaram muita gente, e nesta postagem e nas próximas trataremos deste assunto.
Não é preciso ser arqueólogo de cinema para odiar cobras e, além disso, a humanidade parece ter boas razões para não nutrir grande simpatia por elas, embora sempre possa haver um ou outro admirador. Ainda no século XVI, Gândavo escreveu:
Jararaca (⁴) |
Outras há muito maiores e mais peçonhentas, de outra casta diferente, são tão grandes, em tanto extremo, que apenas dezesseis índios podiam levar uma que mataram junto da costa entre os portugueses; a esta cobra chamam surucucu.
Outra geração há delas que lhe chamam boiteninga, tem na ponta do rabo uma coisa que soa propriamente como cascavel, e por onde esta cobra vai, sempre anda rugindo, [sic!] é uma das feras bichas que há na terra.
Outras há na terra que lhe chamam hebijaras, têm duas bocas, uma na cabeça, outra no rabo, mordem com ambas: esta cobra é branca e muito curta, o mais do tempo está debaixo da terra, é peçonhentíssima sobre todas: quem desta for mordido não terá vida muitas horas, e assim qualquer destas outras que morder alguma pessoa, o mais que dura são vinte e quatro horas.
(...) Também afirmam alguns homens que viram serpentes nesta terra com asas muito grandes e espantosas, mas acham-se raramente." (¹)
Cascavel (⁵) |
De um pouco mais tarde, da primeira metade do século XVII, vem-nos o registro de Frei Vicente do Salvador, infelizmente não isento de sua quota de lorota:
"Há também muitas cobras, e algumas tão grandes, que engolem um veado inteiro, e dizem os índios naturais da terra que, depois de fartas, arrebentam, e corrupta a carne se gera outra do espinhaço (...), e algumas se viram já de sessenta palmos de comprido; em Pernambuco se enrolou uma destas em um homem que ia caminhando, de tal sorte que, se não levara um cão consigo, que mordendo-a muitas vezes a fez largar, sem falta o matava: e ainda assim o deixou tal, que nunca mais tornou às suas cores e forças passadas." (²)
E, se seguirmos a bibliografia disponível, séculos afora, iremos encontrando outros relatos, mais ou menos semelhantes, mostrando que petas podem perfeitamente passar de uma geração a outra, como se fossem a mais cândida verdade, simplesmente porque continuam a ser repetidas, sempre em companhia de informações verídicas, para dar um toque, digamos, mais autêntico.
Estudos sérios, mesmo, sobre os ofídios do Brasil, inclusive no que se refere a tratamento adequado em caso de "acidentes" com picadas, só viriam bem mais tarde. Enquanto isso não acontecia, só restava aos colonos ter muito cuidado por onde andavam, torcendo para não ter nenhum encontro indesejável com algum exemplar das temidas cobras do Brasil. (³)
(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil.
(2) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil.
(3) Estudos envolvendo a classificação de ofídios foram desenvolvidos a partir do século XIX. O Instituto Butantan data do comecinho do século XX. Mesmo isso podia ser motivo para humor - veja a página da Revista A Cigarra, edição de 15 de junho de 1914, reproduzida mais abaixo.
(4) WIED-NEUWIED, Maximilian v. Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens.
(4) WIED-NEUWIED, Maximilian v. Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens.
(5) Ibid.; esta cobra é conhecida popularmente como cascavel, boicininga, boiteninga, boiquira, além de outros nomes.
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