quinta-feira, 29 de julho de 2021

Augusto e os espetáculos públicos em Roma

Em Roma, os espetáculos públicos eram assunto de Estado: esperava-se que impedissem revoltas populares contra a elite político-econômica e contra os governantes, dando ocupação às multidões de homens livres que viviam na ociosidade, já que muito do trabalho era feito por escravos.
Havia espetáculos para quase todos os gostos. Gente pacífica podia se entusiasmar com corridas de bigas, os mais sanguinários dificilmente iriam se queixar das lutas de gladiadores. Houve até quem, para entretenimento, ordenasse a realização de uma batalha naval simulada. Pode-se imaginar o quanto isso tudo afetava o erário. No Império Romano, a paz interna, tanto quanto a externa, era altamente dispendiosa.
Augusto, considerado o primeiro imperador, teve cuidado em fazer realizar espetáculos notáveis, como nenhum outro fizera antes dele. Gostava das lutas, especialmente do pugilato, mas, de acordo com Suetônio (*), sempre que era possível fazer a exibição de um animal incomum, fosse pela ferocidade ou pelas dimensões, não esperava sequer as datas previamente assinaladas para grandes eventos.  Ciente de que o povo romano não apreciava o comportamento de Júlio César, seu antecessor, que chegara a ler e escrever cartas durante os jogos, tal era seu descaso pelo que acontecia, Augusto ia aos espetáculos acompanhado da família e, enquanto assistia, não se ocupava de qualquer outra tarefa. Para governar Roma, era preciso demonstrar interesse pelo que apaixonava os romanos.

(*) Cf. SUETÔNIO. De vita Caesarum Livro II.


Veja também:

terça-feira, 27 de julho de 2021

Vitória-régia

Vitória-régia (Victoria amazonica)

"A Amazônia selvagem sempre teve o dom de impressionar a civilização distante."
Euclides da Cunha, À Margem da História

À medida que avançavam pela região amazônica, exploradores dos tempos coloniais, e mesmo mais tarde, iam encontrando mais e mais razões para admiração. A natureza oferecia, ali, visões inusitadas, quer na paisagem, quer na fauna e mesmo na flora. Que vegetal era aquele que, sobre a água, impressionava pelas dimensões e beleza? Até mesmo a origem do nome que lhe deram foi motivo de controvérsia. Quem, afinal foi o primeiro a chamá-la "vitória-régia"?
Para Francisco Bernardino de Sousa (¹), "em 1845 um viajante inglês, o sr. Bridges, navegando pelas margens do rio Iocouma, um dos tributários do Mamoré, deu com um lago, no qual viu com surpresa uma quase colônia dessa planta magnífica. Em sua admiração e em seu amor britânico deu-lhe o nome de sua soberana, apelidando-a de Victoria regia" (²). Outros atribuem a Robert Schomburgk essa exótica denominação. José de Alencar, porém, tinha outras ideias. Disse ele, em Sonhos d'Ouro: "[...] a flor gigante, a grande ninfeia escarlate, a rainha dos lagos, que os ingleses chamaram vitória, em honra de sua soberana, mas eu chamarei imperatriz (³), em razão de ser uma majestade brasileira. Dir-me-ão que não sou botânico, e portanto não tenho autoridade para crismar essa espécie de loto, que os indígenas chamam milho-d'água. Não é de certo minha intenção invadir os domínios da ciência; podem os botânicos inventar quanto nome grego e latino lhes aprouver para apelidarem as plantas; podem fazer a autópsia das inocentes criaturas para reduzi-las a sistema. Mas as flores, como mimos da natureza, são do domínio da poesia."
"Milho-d'água", portanto, seria, de acordo com Alencar, a denominação indígena para a vitória-régia. O cônego Francisco Bernardino de Sousa pensava diferente: "Os índios dão a essa flor o nome de Uapé Jaçaná (forno dos jaçanãs) porque estas aves vivem pousadas sobre elas, de cujas sementes se alimentam" (⁴).


Quem vai à Amazônia não quer sair de lá sem ver a vitória-régia. Foi o que aconteceu com Jean Louis e Elizabeth Cary Agassiz, durante a Expedição Thayer, no ano de 1866. No diário da viagem foi registrado, em 18 de janeiro: "Pusemo-nos hoje em procura da vitória-régia. Fizéramos constantes esforços para ver esse famoso nenúfar florindo em suas águas natais; mas, embora nos houvessem dito que abundavam os seus exemplares nos lagos e igarapés, nunca conseguimos ver nenhum deles" (⁵). A busca continuou e foi, finalmente, recompensada: "Por mais maravilhosa que ela pareça quando admirada na bacia de um parque artificial, onde faz maior efeito pelo seu isolamento, tem, contemplada no meio que lhe é próprio, um encanto ainda maior; o da harmonia com tudo o que a rodeia, com a massa compacta da floresta, com as palmeiras e as parasitas, as aves de brilhante plumagem, os insetos de cores vivas e maravilhosas, com os próprios peixes que, escondidos nas águas, por baixo dela, têm suas cores não menos ricas e variadas do que as dos seres vivos do ar" (⁶). 
Surpresa, na Amazônia, meus leitores, seria não encontrar nela nada surpreendente.

(1) Encarregado dos trabalhos etnográficos da Comissão do Madeira.
(2) SOUSA, Francisco Bernardino de. Pará e Amazonas Segunda Parte. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875, p. 12. 
(3) Recordem-se, leitores, de que o Brasil era império quando Alencar escreveu Sonhos d'Ouro.
(4) SOUSA, Francisco Bernardino. Op. cit., p. 12.
(5) AGASSIZ, Jean Louis R. et AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 335.
(6) Ibid., p. 338.


Veja também:

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Para entender as religiões do passado

Povos do passado desenvolveram uma infinidade de crenças a que poderíamos dar o rótulo de religiões. Contudo, quem quiser entender corretamente as ideias que, a esse respeito, moravam na cabeça dos antigos, precisa pôr de lado alguns conceitos que nós, ocidentais do Século XXI, comumente associamos à divindade, independentemente das crenças que temos ou deixamos de ter. Estes são alguns aspectos importantes que devem ser considerados:

1. Deuses nem sempre eram descritos como eternos
Em algumas mitologias - mitologias para nós; para os povos do passado, eram religião -, os deuses eram imortais, mas tinham um começo ou nascimento. A mitologia grega se encaixa muito bem neste caso.

2. Nem todos os deuses eram imortais
Por mais estranho que possa parecer, havia deuses que, não somente tinham um começo, como também morriam. Tome-se, como exemplo, o caso de Osíris, do Egito Antigo, que foi morto e esquartejado por seu invejoso irmão, ou de Tamuz, cultuado na Palestina e Mesopotâmia, que morria e ressuscitava anualmente, executando um ciclo que tem sido interpretado como uma associação às estações do ano.

3. Nem todos os deuses eram oniscientes
Como não sabiam, por si mesmos, de tudo o que se passava no mundo, deuses precisavam de informantes - era o caso dos famosos corvos de Odin, na mitologia nórdica. Por outro lado, deuses às vezes tinham um porta-voz, encarregado de levar recados à humanidade, como sucedia com Mercúrio, entre os romanos.

4. Deuses nem sempre eram considerados onipotentes
A maioria dos deuses da Antiguidade era especializada em alguma tarefa, controlava apenas um aspecto da vida ou ainda um fenômeno da natureza, não tendo poder além disso. A variedade, neste ponto, é tão grande, que seria injusto citar exemplos. Basta lembrar que havia deuses da terra, deuses do mar, deuses do mundo dos mortos, deuses das tempestades, deuses que atuavam como protetores de determinadas profissões e assim por diante.

5. Deuses nem sempre eram seres muito virtuosos
Brigas familiares, inveja, ciúmes, adultério, ódio, assassinatos, tudo isso fazia parte da maioria das mitologias. Em alguns casos, como acontecia em relação à mitologia grega, as contendas levavam os deuses a dar palpites e introduzir suas divergências nos acontecimentos humanos. Quem já leu a Ilíada sabe o que isto significa.

6. A jurisdição de cada deus se restringia ao território em que era adorado
O conceito de religião universal foi desconhecido para a maioria dos povos da Antiguidade. Esperava-se que um deus ou deusa protegesse quem vivia no território a ele ou a ela correspondente. Quando os humanos iam à guerra, muitas vezes entendiam que, para além do mundo visível, seus deuses lutavam com eles e por eles. Em consequência, a vitória de um povo era sempre atribuída ao maior poder das respectivas divindades. Ao dominar outro povo, vencedores entendiam que estavam dominando, também, os deuses dos inimigos.

7. Deuses dependiam da assistência humana para comida, bebida e tudo quanto precisavam
Adeptos de muitas ideias religiosas entendiam ser seu dever oferecer aos deuses alimentos, como carne e pão, e bebidas, como vinho ou cerveja, para mantê-los felizes e dispostos a ajudá-los. Essas práticas podiam acontecer no âmbito doméstico, como faziam os romanos no culto de seus antepassados, ou mediante verdadeiras instituições, amplamente apoiadas por monarcas - era o caso da camada social dos sacerdotes no Egito Antigo, com seus muitos privilégios, mas com o dever de cuidar de todas as necessidades materiais dos deuses, fossem eles representados por estátuas ou seres vivos, como os touros e crocodilos sagrados. Suas numerosas exigências deviam manter a elite sacerdotal bastante ocupada.


Veja também:

terça-feira, 20 de julho de 2021

Abridor de latas do começo do Século XX

A ideia que levou ao desenvolvimento, no começo do Século XIX, da técnica de conservar alimentos, primeiro em frascos de vidro e, depois, em latas, pode ser considerada uma pequena, mas fundamental revolução, nos padrões de alimentação, para uma parcela nada desprezível da humanidade (¹).
Antes disso, algumas técnicas de conservação de alimentos tornavam a comida detestável. No entanto, os processos de defumar e salgar, com aperfeiçoamentos, são usados até hoje, ainda que não se apliquem a uma grande variedade de produtos. Todo mundo sabe que alimentos frescos são superiores, mas as conservas enlatadas significaram uma melhora nas refeições oferecidas em longas viagens oceânicas, permitiram o consumo de certos vegetais fora da estação em que são cultivados, popularizaram alguns alimentos provenientes de regiões distantes e, em lugares frios, tornaram possível um suprimento variado para os meses de inverno. Vejam, leitores, que não foi pouca coisa.
Porém... 
Porém, o problema com a comida trancafiada em latas é que as embalagens devem ser abertas, e, no passado, isso resultava quase em uma operação de guerra, exigindo habilidades e ferramentas que talvez correspondessem às profissões de serralheiro ou mecânico. Foi assim, até que, em meados do Século XIX, outra invenção começou a mudar o cenário: surgiu o abridor de latas!
Em 1905, a revista paulistana Echo Phonographico trouxe este anúncio, no qual oferecia aos consumidores um novo modelo de abridor de latas, que dizia ser melhor que todos os antecedentes. Seu nome, "Relâmpago", diz muito sobre ele, mas a ênfase no longo texto era a segurança, afirmando que até mesmo uma criança poderia utilizá-lo:
"Até que enfim temos um abridor de latas que cumpre o seu dever em toda a linha. Durante anos e anos, tivemos de suportar os sistemas antigos, os quais além de funcionar mal, muitas vezes cortavam as mãos do operador. O abridor de latas Relâmpago mudou tudo isso. Agora uma criança pode abrir uma lata de qualquer tamanho, sem risco de cortar-se e com a ligeireza de uma flecha. É feito de finíssimo aço temperado e polido." (²)


Não estou certa de que abridores de latas sejam brinquedos apropriados para crianças, nem mesmo na atualidade. Todavia, esse anúncio precisa ser entendido não só pelo que afirma, como também pelo que não diz, ou seja, como deviam ser, nesse tempo, os abridores existentes na maioria das residências.

(1) A despeito dos casos esporádicos de botulismo, que teimam em não desaparecer.
(2) ECHO PHONOGRAPHICO, Ano III, nº 35, São Paulo, janeiro de 1905, p. 13.


Veja também:

quinta-feira, 15 de julho de 2021

O primeiro imperador romano a comprar a lealdade dos soldados

É sabido que muitos imperadores romanos chegaram ao cargo comprando o apoio do exército. Em consequência desse fato, já de si lamentável, não foram poucos os casos em que, achando os soldados algum outro que pagasse mais, trataram de eliminar (definitivamente) o imperador em exercício, para elevar ao poder aquele que lhes oferecia mais dinheiro. A livre Roma dos velhos tempos da República ver-se-ia, no Império, cativa do próprio exército.
Imperador Cláudio, em representação do
Século XVI (²)
Mas quem, afinal, foi o primeiro a ter a ideia de pagar pelo apoio da soldadesca? De acordo com Suetônio (¹), foi Cláudio, sucessor de Calígula e antecessor de Nero.
O mesmo Suetônio opinou que Cláudio chegou ao poder por uma casualidade. Expliquemos: Tibério Cláudio Druso (era esse o seu nome), fora um jovenzinho de saúde frágil e, portanto, considerado pelos próprios parentes como inadequado ao controle de Roma. Contudo, quando Calígula foi assassinado, Cláudio, que era seu tio, correu a esconder-se, julgando que poderia muito bem ser o próximo alvo dos assassinos. Oculto entre cortinas, assim permaneceu até que um soldado que por ali passava, vendo sob elas uns pés desconhecidos, resolveu investigar de quem eram, e deu com Cláudio, que, apavorado, imaginou ter chegado sua hora extrema. Mas não! O soldado, tão pronto o viu, prestou a ele a saudação imperial e, pouco depois, o trêmulo homem era conduzido em uma liteira à caserna dos pretorianos.
Verdade é que as coisas não corriam tão fáceis, porque havia, no Senado, um partido nada desprezível que entendia ser a ocasião de restaurar as liberdades republicanas, livrando-se da casa de César. Mais uma noite aterradora e, então, com o dia, a plebe começou a clamar por um novo imperador. A indecisão do Senado decidiu a questão: a soldadesca reunida prestou a Cláudio o juramento de lealdade usual e este, por sua vez, prometeu a cada soldado um donativo de quinze mil sestércios. Assim se comprou (explicitamente), pela primeira vez, o poder imperial em Roma.

(1) Cf. SUETÔNIO. De vita Caesarum, Livro V.
(2) CAVALIERI, Giovanni Battista. Romanorum Imperatorum effigies. Roma: Vincentium Accoltum, 1583, p. 57. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

terça-feira, 13 de julho de 2021

O que era indispensável em uma fazenda de café no Século XIX

Cafezal na região da Serra da Mantiqueira

A cafeicultura tonou-se uma atividade econômica muito importante no Brasil a partir de meados do Século XIX. Desde o estabelecimento de uma fazenda de café, até que se tornasse produtiva em quantidade e qualidade para exportação, levava por certo algum tempo. Coloca-se, pois, esta questão: qual seria a estrutura mínima para que uma propriedade agrícola pudesse funcionar nesse ramo?
Como primeira medida, era necessário assegurar a posse de terras suficientes, com clima e solo favoráveis ao cultivo de café. Vinha, então, a necessidade de construir instalações indispensáveis, que podem ser inferidas a partir desta breve descrição feita por João Severiano da Fonseca (¹):
"[...] consistem as fazendas num quadrado que lembra as reduções jesuíticas e os pequenos povoados das antigas repúblicas espanholas, fazendo-lhes uma das faces a casa do fazendeiro, outra os monjolos e o resto as senzalas dos escravos, e cercando o terreiro liso, batido e ordinariamente vermelho da argila do solo onde se seca o café, e em cujo meio quase sempre se vê erguido um cruzeiro. [...]" (²)
Portanto, sistematizando, uma fazenda de café poderia, com o tempo, ter instalações amplas e não essenciais, mas estas nunca poderiam faltar:
No Vale do Paraíba, tanto na Província do Rio de Janeiro como na de São Paulo, as fazendas, em especial nos primeiros tempos, ficavam algo isoladas, daí Fonseca ter acrescentado que, nelas, "as distrações únicas são as que a natureza pode oferecer nos passeios, na caça, etc." (³). À medida que a expansão do cultivo levou o café para o chamado "oeste paulista" (⁴), um novo estilo de vida se introduziu entre cafeicultores. A mão de obra, antes exclusivamente cativa, foi, aos poucos, substituída pelo trabalho de imigrantes europeus. Era possível a um cafeicultor ter uma ou mais fazendas, mas viver com a família em alguma cidade próxima, com maiores oportunidades em termos de sociabilidade. Campinas - SP, é ótimo exemplo disso, e teve, para os padrões das últimas décadas do Século XIX, uma vida cultural muito intensa, daí ter sido escolhida para residência de várias figuras destacadas da cafeicultura paulista que, nos arredores da cidade, viam prosperar em suas terras o "ouro verde", que, nesse tempo, ainda retribuía os cuidados com bons lucros. 

(1) Médico veterano da Guerra do Paraguai. Seu propósito, neste trecho em que descreveu fazendas de café, era contrastá-las, em sua sobriedade, com o ambiente festivo que dizia reinar nos engenhos de açúcar do Nordeste.
(2) FONSECA, João Severiano da. Viagem ao Redor do Brasil 1875 - 1878 Volume 1. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro e C., 1880, p. 348.
(3) Ibid.
(4) Que não correspondia ao Oeste geográfico de São Paulo, mas que ficava mais ou menos a oeste das antigas áreas de cultivo no Vale do Paraíba.


Veja também:

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Hernán Cortés e o começo da criação de porcos em Honduras

Para bem e/ou para mal, Hernán Cortés, o espanhol que liderou um bando de aventureiros na conquista do Império Asteca, é figura à qual se atribuem muitas façanhas e aventuras, algumas notáveis, outras prosaicas. Trataremos de uma delas, e fica a critério de quem lê dizer se pode ser classificada de um ou outro modo.
Embora Bernal Díaz del Castillo, que relata o acontecimento, não tenha designado a ele uma data precisa, pode-se presumir que tenha ocorrido por volta de 1525, quando, após a conquista do México, Cortés empreendeu uma marcha para combater opositores (¹). Ia com muitos soldados, alguns a cavalo, outros a pé, indígenas carregadores e combatentes. Após essa comitiva, seguia, literalmente caminhando para a morte, certo número de porcos, para garantir que o aventureiro não tivesse falta de comida. Segundo Bernal Díaz, a outros não se reservava tal acepipe, de modo que, de boa ou má vontade, era a população indígena que acabava fornecendo alimento para tanta gente.
Voltemos a falar dos porcos. Chegando a Honduras, Hernán Cortés encontrou uma povoação de espanhóis chamada Trujillo (²), na qual os colonizadores viviam em condições precárias. Ora, restavam ainda alguns sobreviventes da manada que acompanhara Cortés, e foi assim que ocorreu a ele a ideia de deixá-los ali, segundo informação de Bernal Díaz, "para que gerassem descendência, por ter-lhe dito um espanhol que aquela era uma boa terra para multiplicá-los, deixando-os soltos nas ilhotas e sem que fosse preciso guardá-los, e aconteceu como se disse, pois em dois anos havia muitos porcos e iam caçá-los. [...]" (³).
Portanto, meus leitores, admitindo ser fidedigno o relato de Bernal Díaz del Castillo, cabe a Hernán Cortés o título de introdutor da criação de porcos em Honduras. É pouco provável, contudo, que ele próprio desejasse ser lembrado por esse feito. 
 
Porcos, em imagem do Século XVI (⁴)

(1) Principalmente Cristóbal de Olí.
(2) Colonizadores muitas vezes fundavam povoações dando a elas o nome de alguma cidade europeia. Foi o que aconteceu neste caso.
(3) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) GESNER, Conrad. Icones Animalium Quadrupedum Viviparorum et Oviparorum. Zürich: Christof Froshover, 1560, p. 24. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

terça-feira, 6 de julho de 2021

Alimentação e fardamento dos soldados na Província de Mato Grosso na segunda metade do Século XIX

"Não sei o que irá pelas outras Províncias quanto à sorte do soldado, mas nesta é ela miseranda" (¹) - foi o que disse João Severiano da Fonseca, médico veterano da Guerra do Paraguai. A Província de que falava era a de Mato Grosso, ao descrever a ração oferecida aos soldados em Vila Bela da Santíssima Trindade, "a qual", afirmou, "tanto para o são como para o doente, consiste em farinha, rapadura e sal, algumas vezes carne-seca e bacalhau, feijão e arroz, raríssimas vezes carne verde, sendo um verdadeiro acontecimento para toda a cidade o abatimento de uma rês [...]" (²).
Se essa fala revela alguma coisa dos hábitos alimentares na Província de Mato Grosso na época, mostra, também, que a situação dos soldados era precária quanto à alimentação. Nada mais razoável supor que os gêneros alimentícios para a tropa fossem obtidos nas redondezas, porque, estando a Província de Mato Grosso longe dos principais centros urbanos da época, não se poderia esperar que deles viessem os alimentos. Pela distância e condições de transporte, seriam caríssimos e chegariam imprestáveis. É, contudo, quase uma obrigação perguntar: o que iria bacalhau fazer tão longe do oceano, lá no coração da América do Sul? Talvez parecesse mais fácil ter peixe seco e carne-seca na alimentação dos soldados do que incentivar a produção de alimentos frescos na área, uma medida que seria útil não só para a tropa, mas para toda a população local. Será que ninguém pensou nisso? Seria querer demais?
Mas não era só na alimentação que penavam os soldados. Nada muito diferente acontecia quanto ao fardamento. Cada um recebia uma ajuda de custo, paga de raro em raro, e estava na obrigação, por conseguinte, de providenciar o uniforme correspondente: "O fardamento com dificuldade e a longos espaços recebe; e entretanto é obrigado a apresentar-se vestido, calçado e coberto, com uma blusa ou sobrecasaca, sapatos ou botinas, boné ou mesmo chapéu, objetos que compra fiados para pagar quando lhe chegarem os soldos (³)." 
Tentem visualizar, leitores, o que acontecia então na ocorrência de uma parada militar. O relato de João Severiano da Fonseca pode ajudar: "Com este sistema de fardamento era apreciável, pela extravagância, a vista que apresentava a tropa em parada, cada soldado fantasiado, não como o permitiam as suas forças, nunca consultadas para isso, mas levadas por outras circunstâncias especiais (⁴)."
Não será demasiado recordar que, sendo essa uma região de fronteira; havia necessidade premente de ocupá-la com eficiência. A Guerra do Paraguai já era coisa do passado, e, pelas dificuldades logísticas que evidenciara, deveria ter ensinado alguma coisa. Mas, terminado o conflito, pouco ou nada mudara. Por dedicados que fossem os soldados, não se poderia esperar muito deles, devido às condições em que viviam. O próprio João Severiano da Fonseca admitiu que, para melhorar a alimentação, os homens deixavam suas ocupações militares de rotina, com o "velho e inservível material de guerra" (⁵) no quartel, para obter, na caça e na pesca, um complemento às magras refeições que lhes eram proporcionadas. Ao menos exercitavam a pontaria.

(1) FONSECA, João Severiano da. Viagem ao Redor do Brasil 1875 - 1878 Volume 2. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro e C., 1881, p. 113.
(2) Ibid., pp. 113 e 114. 
(3) Ibid., p. 114.
(4) Ibid. 
(5) Ibid., p. 111.


Veja também:

quinta-feira, 1 de julho de 2021

O mito de Tamuz e Ishtar

A história, em si, é simples, mas os séculos de repetições foram acrescentando detalhes variados, conforme aquele dito popular segundo o qual "quem conta um conto acrescenta um ponto". Com tantos pontos, o conto chega a parecer que tem sarampo... Tamuz, o deus Tamuz, morre e vai para o escuro e frio mundo dos mortos. Ishtar, sua mulher, aventura-se, com enorme risco, para tirá-lo de lá. É admitida, mas, ao passar por sete portões, vai tendo de deixar as belas joias orientais que carrega. A deusa do submundo então ordena, como vingança por essa invasão, que Ishtar seja atacada por terríveis feridas em todo o corpo. Os deuses interferem e Ishtar é libertada. Com a efusão da água que restaura a vida, recobra a saúde e, ainda com a mesma água, traz o marido, Tamuz, de volta à vida.
Esse mito podia ser encontrado na Antiguidade entre os moradores da Mesopotâmia, Palestina, entre os fenícios e mesmo entre os gregos, É comparável, também, ao mito de Osíris e Ísis, dos egípcios. O casal de deuses podia receber nomes diferentes, mas o mito, em si, era essencialmente o mesmo, ressalvado o direito à cor local. Isso parece apontar para uma origem comum, enquanto as variações podem refletir mudanças introduzidas em cada lugar, com o correr do tempo.
Várias interpretações têm sido propostas para o mito de Tamuz e Ishtar. Dentre elas tem larga aceitação aquela que sugere que o mito remetia ao ciclo anual das estações, fosse por caracterizar o período de morte de Tamuz como o inverno (em algumas regiões), ou de sol escaldante, impróprio para a agricultura (em outras áreas). O reviver de Tamuz seria a fase do ano em que a vegetação renasce, pela influência benfazeja das chuvas (a água que restaura a vida).
No contexto das práticas religiosas da Antiguidade, uma festa anual era realizada para lembrar a morte de Tamuz e a ida de Ishtar ao mundo dos mortos. Praticava-se um curioso ritual de luto, com muito choro e comidas especiais - afinal, toda festa que se preza tem as suas. Depois, Tamuz "ressuscitava" e o ciclo ia se repetindo, até que, com o correr de milênios, acabou sendo posto de lado. Ou não?


Veja também: