terça-feira, 20 de março de 2012

O mito da fênix

Que tipo de ser era a fênix? Pode-se defini-la, segundo a mitologia, como uma ave que tinha a capacidade de autocombustão para, depois, renascer das próprias cinzas. Era, claro, um símbolo da renovação da vida, talvez de crença em algum tipo de ressurreição, quem sabe ligada ao ciclo interminável de repetição das estações do ano, e não um ser vivo real, daqueles que se pode ver em um zoológico.
Acontece que, no século XVI, quando o movimento renascentista espalhou em inúmeras mentes instruídas um desejo quase incontrolável de classificar o que se apresentava na natureza, apareceu publicado em Paris um alentado volume (¹) cujo título era Portraits D'Oyseaux, Animaux, Serpens, Herbes, Arbres, Hommes et Femmes, d'Arabie & Egypte (sim, é isso mesmo, podem acreditar!), cujo autor era Pierre Belon, a quem, segundo o hábito típico do Renascimento, dava-se frequentemente o nome latino, ou seja, Petrus Bellonius Cenomanus. Como já disse, esse livro tinha o objetivo de, mediante excelentes ilustrações, classificar seres vivos e, curiosamente, nele estava listada a fênix, na seção de aves de rapina.

A fênix existente no livro de Pierre Belon, que afirmava
retratá-la de acordo com o costume
O autor assumia nunca ter visto uma, mas dizia que Aristóteles a tinha mencionado, assim como Plínio, e que ambos, possivelmente sem nunca ter com os próprios olhos testemunhado a existência de tal criatura, baseavam-se, no entanto, no relato de Heródoto. Sim, é aqui que a coisa fica interessante, pois de fato Heródoto refere-se a ela, nos seguintes termos, ao tratar do que presenciara no Egito:
"Outra ave sagrada há ali que vi apenas em pintura, e cujo nome é fênix. São raras, pois, as ocasiões em que pode ser vista, e em tão largos intervalos, que dizem os de Heliópolis que somente a cada quinhentos anos aparece no Egito, ao morrer seu pai. De acordo com as descrições, seu aspecto e tamanho são semelhantes aos de uma águia, tendo as penas parcialmente douradas e vermelhas.
Contam-se dela coisas fabulosas, que me parecem pouco dignas de crédito, mas ainda assim não deixarei de relatá-las. Para fazer transportar o cadáver de seu pai da Arábia até o templo do Sol, faz assim: confecciona primeiro um ovo sólido de mirra, do maior tamanho que possa carregar, testando o peso para verificar se pode com ele e, depois, o esvazia para criar nele um nicho capaz de conter o cadáver e, depois de ali colocá-lo, preenche os vazios com mirra, de tal modo que, com o cadáver dentro, o ovo tenha o mesmo peso que apresentava quando era apenas de mirra. Fechado o ovo, é carregado pela ave até o templo do Sol no Egito. É isso o que conta-se dessa ave."
Em conclusão,  vê-se que ninguém a viu, o próprio Heródoto não acreditava em sua existência, mas todos a descrevem. É certo que, no contexto da mitologia do Antigo Egito, a fênix fazia sentido, mas daí a continuar a aparecer em uma classificação de seres vivos no século XVI vai uma distância enorme. (²)
Apesar de toda a revolução no pensamento ocidental que o Renascimento representa, romper com a tradição de sábios da Antiguidade como Heródoto, Aristóteles e Plínio podia ser pesado demais. Sabemos bem como é isso, pois se já não invocamos Aristóteles cada vez que precisamos reforçar uma ideia, muitos de nós ainda têm grandes dificuldades em arrancar as amarras ideológicas que nos prendem ao passado, mesmo quando reconhecemos o quanto são inúteis e absurdas.

(1) 1557.
(2) Nada disso chega a ser em extremo surpreendente - Pierre Belon, em uma obra erudita chamada De Aquatilibus (1553), menciona um peixe-monge, que aparece devidamente ilustrado, conforme pode-se ver na postagem já publicada neste blog com o título "Peixe-monge, peixe-bispo - exóticas 'celebridades' do Renascimento".


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