quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Tomás Antônio Gonzaga, o ser humano escondido atrás do herói Dirceu

Primeira página da edição de 1799 de
Marília de Dirceu
Tomás Antônio Gonzaga, o famoso autor de Marília de Dirceu, é chamado, muitas vezes, de "Poeta da Inconfidência", embora jamais tenha celebrado favoravelmente o movimento de independência de que, supõe-se, tenha participado, além de não ser, entre os listados como revoltosos, o único que compunha versos. Como magistrado, já havia escrito um Tratado de Direito Natural, mas são os versos árcades de Marília de Dirceu que o tornaram conhecido.
Ora, inconfidente ou não, Gonzaga foi preso entre os rebeldes e levado à prisão no Rio de Janeiro. Lá, pelo que se sabe, continuou a compor versos, nos quais lamentava sua condição de prisioneiro:

Com pesadas cadeias manietado,
Às vozes da razão ensurdecido,
Dos céus, de mim, dos homens esquecido,
Me vi de amor nas trevas sepultado.

Ali aliviava o meu cuidado
Co' dar de quando em quando algum gemido.
Ah! tempo! Que, somente refletido,
Me fazes entre as ditas desgraçado.

Mas não era só. Tentava mostrar que não era um dos conjurados (pelos Autos da Devassa, sabemos que nem mesmo Tiradentes o considerava um!), ao atacar, sempre em versos, a rebelião antilusitana e o alferes que todos incriminavam como cabeça da sedição:

Há em Minas um homem,
Ou por seu nascimento ou seu tesouro,
Que aos outros mover possa
À força de respeito, à força d’ouro?
Os bens de quantos julgas rebelados
Podem manter na guerra,
Por um ano sequer, a cem soldados?

Ama a gente assisada
A honra, a vida, o cabedal tão pouco,
Que ponha uma ação destas
Nas mãos dum pobre, sem respeito e louco?
E quando a comissão lhe confiasse,
Não tinha pobre soma,
Que por paga ou esmola, lhe mandasse!

É notório que o "pobre, sem respeito e louco" só pode ser o Alferes Joaquim José da Silva Xavier. Mas, contrariando talvez a opinião de muitos, não considero Tomás Antônio Gonzaga um traidor da Inconfidência. Qualquer pessoa, metida em escura e imunda prisão, correria o risco de fraquejar ante a possibilidade de uma sentença de morte. Qualquer pessoa de uma certa posição social, tanto em Vila Rica como nas adjacências, podia, na época, ter entrado em contato com defensores das ideias iluministas e, nesse caso, corria o risco de ser incluída entre os acusados da conspiração, e é razoável imaginar que o próprio Gonzaga, ainda que português de nascimento, tenha ocasionalmente entretido conversas a respeito, sem considerar que, de algum modo, acabaria envolvido em um processo que mudaria radicalmente o curso de sua vida. Há que acrescentar que, pelos depoimentos, sabe-se que ele não foi o único a tentar escapar da condenação - ele é lembrado porque deixou seu próprio testemunho, nos versos de Marília de Dirceu. Talvez em breves instantes de esperança, Gonzaga imaginava-se inocentado, a ponto a de escrever:

Chegando este dia,
Os braços daremos:
Então mandaremos
De gosto e ternura
Suspiros aos céus.
Pôr-me-ão no sepulcro
A honrosa inscrição:
“Se teve delito,
Só foi a paixão,
Que a todos faz réus.”

Mas a absolvição não veio. Os inconfidentes foram, todos, sentenciados à morte, mas tiveram a pena comutada, à exceção, é claro, da atribuída a Tiradentes. E o poeta, mais uma vez, pôs em versos a angústia diante da condenação a dez anos de degredo na África, o que equivalia, quase sempre, a uma sentença de morte, pela elevada probabilidade de lá contrair uma doença fatal:

Parto, enfim, e vou sem ver-te,
Que neste fatal instante
Há de ser o teu semblante
Mui funesto aos olhos meus.
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
E crês, Dirceia, que devem
Ver meus olhos penduradas
Tristes lágrimas salgadas
Correrem dos olhos teus?
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!

Há uma terceira parte de Marília de Dirceu cuja autoria é bastante controversa. Foi publicada em 1812, portanto após a morte do poeta. Admite-se, de um modo geral, que Tomás Antônio Gonzaga passa ter ao menos rascunhado parte desses versos, dentre os quais encontram-se alguns tidos como muito provavelmente seus:

Leu-se-me enfim a sentença
Pela desgraça firmada;
Adeus, Marília adorada,
Vil desterro vou sofrer.
Ausente de ti, Marília,
Que farei? irei morrer.

Que vá para longes terras,
Intimarem-me eu ouvi;
E a pena que então senti,
Justos céus! não sei dizer.
Ausente de ti, Marília,
Que farei? irei morrer.

[...].

Da desgraça lei fatal
Pode de ti separar-me:
Mas nunca d'alma tirar-me
A glória de te querer.
Ausente de ti, Marília,
Hei de amar-te até morrer.

Ah, leitor, tenha Tomás escrito ou não esses versos, é fato que não tornou a ver Marília. Mas também não morreu de amores: já em Moçambique, conheceu Juliana de Sousa Mascarenhas, jovem de elevada posição, com quem se casou em 1793 e teve pelo menos um filho. Veja bem em que deram os versos de amor...
Tomás Antônio Gonzaga nunca tornou ao Brasil, pois continuou a viver no lugar de seu desterro mesmo após a conclusão da pena, onde morreu  provavelmente em 1810, embora o site oficial da Academia Brasileira de Letras, da qual é patrono da Cadeira 37, informe a data de fevereiro de 1807.
Quanto a Marília (Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão), ao termo dos dez anos de degredo de "Dirceu", parece ter ido ao Rio de Janeiro para cuidar de uma viagem a Lisboa, a fim de reencontrar Gonzaga, mas teria, ainda no Rio, recebido a informação de que ele se casara na África, o que a fez retornar a Vila Rica. Está sepultada na Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias em Ouro Preto, tendo falecido em fevereiro de 1853. Note-se apenas: morreu solteira.


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terça-feira, 28 de setembro de 2010

Ainda o humor nas eleições da República Velha...

É certo, leitor, que eu me havia proposto a não retornar tão cedo a esse assunto das eleições da República Velha. Mas foi impossível resistir! Eu estava vasculhando antigas publicações, tão calma e pacificamente, numa tarde modorrenta da última semana, quando meus olhos deram com esta preciosidade. Tentei afastar a ideia, mas não consegui,  e aqui transcrevo meu achado:

Minha amigos!

No sesta-fêra eu te escreve minha ultimo karton. Oji eu tenho p'ra vae te conta uma kaso insterizante. Meu compadra Filip me chame esta dias p'ro vir to citade de Belotas, dondo eu te escreveu akóra. Tu non imaxinas que ella quer quanda, eu vem. Mi leva no intetencia e pede p'ra nois se inlistar, eu teve diz minho nome, meus annas e tepois a home lá me deu uma papel que chama títelo qui é uma vote no dia dos enleçons. A home é uma moço muito ponita; ella me convido tome cervexa preto, pon. Despois me pede p'ro dar a vote na Marschall Hermes.

Quanda vem as enleçons de 1ª de Marzo eu fui deu a vote na Hermes. Eu feiz isto purquê minhas companhiro diz que ella foi visita a Kaiser no Allemanha, assiste parade nossas soltadas. Tampem a nossa rei deu p'ra ella sua retrata munta krande. Tudas diz que ella é muita amigo das nois allemons. Nossas parentescos tampem foi vote na Hermes. Quasi quebra cabeça da meu visinha Peter que vote na Ruy Barbosa. As xentes allemons só quer as Hermes; mais as praseleras barece goste da Ruy. Eu non sabe estes coisas. Mais quanda xente baga cervexa e pede vote Marschall sempre deve fais isto.

Muitas peijas do

                                               FRITZ.

Belotas - Marz - 1910. (*)

Vale observar, de passagem, que essa "Carta Pomerana" revela muito sobre a imagem que se tinha do imigrante no início do século XX, um tema que, aliás, vou abordar neste blog um dia desses. Como não sou pomerana, quero, de toda forma, homenagear meus amigos que o são (pomeranos do Espírito Santo!), Lucimar e companhia...

(*) A LUA, março de 1910.


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domingo, 26 de setembro de 2010

Culpado ou inocente? A solução está no Código de Hamurabi

A legislação da maior parte das nações democráticas determina que qualquer pessoa tem o direito de ser considerada inocente quanto a alguma acusação, até que se prove que é efetivamente culpada. Esse pressuposto evita que sejam cometidas arbitrariedades, mas, às vezes, também pode gerar debates jurídicos intermináveis, quando a Justiça não consegue demonstrar, de forma conclusiva, a culpabilidade de alguém. Ora, meu leitor, os antigos legisladores da Babilônia tinham a solução perfeita para esses casos!
O mais que famoso Código de Hamurabi (*) prescrevia o seguinte procedimento, quando alguém era acusado de haver cometido um crime qualquer, mas havia dúvida quanto a isso:
"Se alguém fizer uma acusação contra um homem, o acusado deverá jogar-se no rio. Se o acusado afundar no rio, o acusador terá direito à casa que lhe pertencia. Mas se o rio provar que o acusado não é culpado e ele escapar ileso, o que fez a acusação será sentenciado à morte, enquanto que o que sobreviveu ao mergulhar no rio tomará posse da casa que pertencia ao acusador."
Espantoso? Veja, leitor, que apesar de possivelmente considerarmos essa lei ridícula (para os padrões de nossos dias), ela tem lá suas vantagens:
a) Funcionava como fator de dissuasão quanto a falsas acusações;
b) Colocava a responsabilidade do julgamento no Rio Eufrates, e não em magistrados humanos;
c) Estabelecia um critério que as pessoas daquele tempo consideravam infalível, ou seja, em última análise o caso ficava em poder dos deuses (que, afinal, sendo deuses, tinham a obrigação da onisciência), cabendo a eles, portanto, dirimir qualquer dúvida.
É claro que não estou propondo jogar acusados em rios (ainda que seja na foz do Amazonas, em plena maré alta...), mas a ideia não deixa de soar divertida, em tempos nos quais o senso de honradez, necessário para assumir os próprios erros, desapareceu quase que completamente da face da Terra.

(*) Hamurabi foi rei em Babilônia e os estudos de cronologia parecem dar como certa a sua morte em 1750 a.C., o que significa que a compilação do Código que leva seu nome tem de ser, obviamente, anterior a essa data.


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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O humor nas eleições da República Velha - Parte 2

"Toda esta semana foi empregada em comentar a eleição de domingo. É sabido que o eleitorado ficou em casa. Uma pequena minoria é que se deu ao trabalho de enfiar as calças, pegar do título e da cédula e caminhar para as urnas. Muitas seções não viram mesários, nem eleitores, outras, esperando cem, duzentos, trezentos eleitores, contentaram-se com sete, dez, até quinze. Uma delas, uma escola pública, fez melhor, tirou a urna que a autoridade lhe mandara, e pôs este letreiro na porta: A urna da 8ª seção está na padaria dos Srs. Alves Lopes & Teixeira, à rua de S. Salvador n...”. Alguns eleitores ainda foram à padaria; acharam a urna, mas não viram mesários. Melhor que isso sucedeu na eleição anterior, em que a urna da mesma escola nem chegou a ser transferida à padaria, foi simplesmente posta na rua, com o papel, tinta e penas. Como pequeno sintoma de anarquia, é valioso."
Machado de Assis, A Semana, 7 de agosto de 1892

Leitor, cumpro o que prometo: esta é, pelo menos por enquanto, a última postagem sobre questões eleitorais. E, para isso, vamos examinar mais alguns cartoons de publicações da República Velha.

1. O primeiro desenho é da revista Fon-Fon, do Rio de Janeiro, edição de 18 de junho de 1910, e trata das eleições que, conforme comentei na postagem anterior, envolveram como candidatos Ruy Barbosa (e a chamada "Campanha Civilista") e o Marechal Hermes da Fonseca, sendo este último declarado vencedor. Acontece que a apuração dos votos, de responsabilidade de deputados e senadores, começou a ficar cansativa...


No quadrinho acima, o "Senado" e a "Câmara" aparecem demonstrando preguiça e são interrogados:
"Fon-Fon - Que diabo estão vocês a fazer aí?
Senado e Câmara - Estamos trabalhando... na apuração."
Esteja ciente, meu leitor,  de que na República Velha a apuração podia levar meses. As comunicações eram precárias e o sistema de contagem de votos, absolutamente moroso, posto que inteiramente manual. Não preciso dizer que, com tantos contratempos, era fácil "acertar" algum resultado que, nas urnas, tivesse ousado sair contrário aos interesses da oligarquia dominante.

2. Nesse outro cartoon da Fon-Fon, da edição de 25 de junho de 1910, a referência às fraudes eleitorais é explícita:


Ladeando a urna eleitoral, estão os candidatos Hermes da Fonseca e Ruy Barbosa. A legenda diz: "Se começam a descontar os votos falsos, então é que a República nunca mais apanha um Presidente."

3. Finalmente, uma crítica escancarada às mazelas da vida política nacional, neste cartoon de O Malho, edição de 8 de julho de 1922:
A "Política" e o "Falsário" são retratados como "Almas Gêmeas"; diz a "Política":
"Quem é bom já nasce feito, não é, meu velho? Nós agora mandamos nessa fossa."
Não, leitor, não pode haver dúvidas quanto ao significado expresso nessa frase - era a desmoralização absoluta, diante da opinião pública, do que se fazia em nome da administração nacional. 
Essa publicação precisa ser compreendida diante de seu evidente contexto, o da Revolta do Forte de Copacabana, que ocorrera dias antes, em 5 de julho de 1922. Ainda que timidamente, pelo menos no plano ideológico, o movimento encabeçado pelos "Tenentes" falava em moralizar a vida política do País. Não sabemos se a edição da revista foi impressa antes ou depois do dia 5, mas, de qualquer modo, é notório, através dela, que a situação chegara a ser explosiva. O resto, como se diz, é, literalmente, História. Com "H" maiúsculo.


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terça-feira, 21 de setembro de 2010

O humor nas eleições da República Velha - Parte 1

"Ninguém ignora que nas batalhas como a de hoje costuma roncar o pau. Esta arma, força é dizê-lo, anda um tanto desusada, mas é tão útil, tão sugestiva, que dificilmente será abolida neste final do século e nos primeiros anos do outro. Não é épica nem mística, está longe de competir com a lança de Aquiles, ou com a espada do arcanjo. Mas a arma é como o estilo, a melhor é a que se adapta ao assunto. Que viria fazer a lança de Aquiles entre um capanga sem letras e um leitor sem convicção? Menos, muito menos que o vulgar cacete. A pena, “o bico de pena”, segundo a expressão clássica, traz vantagens relativas, não tira sangue de ninguém; não faz vítimas, faz atas, faz pleitos. O vencido perde o lugar, mas não perde as costelas. É preciso forte vocação política para preferir o contrário."
Machado de Assis, A Semana, 15 de julho de 1894


Hoje, leitor, teremos poucas palavras e, talvez, algum riso. É que vamos visitar desenhos humorísticos de publicações que, durante a República Velha, satirizavam as eleições, donde se conclui que, em relação aos pleitos do Império, a mudança de Regime não significou nenhuma grande transformação.

1. Neste cartoon da revista paulistana A Lua, de março de 1910, a personagem Zé Pagante (é possível que hoje disséssemos "Zé Contribuinte") protesta:
"Sucedem-se os quatriênios, mas o meu minguante não muda."
Entenda-se: as eleições, em última análise, eram mais do interesse dos poderosos, enquanto que, mandato após mandato, a vida dos pobres continuava a mesma.





2. Outro de A Lua, também de março de 1910:
"Coronel Piedade: - Eu não tinha avisado? Agora, quem não cavou um posto... cavasse... Fui o Moisés da Nova Cruzada. Vocês não me ouviram..."
Tem-se aqui uma referência às eleições de 1910, em que concorreram à Presidência Rui Barbosa e o Marechal Hermes da Fonseca (este último acabou vencendo). Foi, desde o início da República até aquela data, a eleição mais disputada. Deve-se observar que, no desenho, o Coronel Piedade tem as características fisionômicas de Hermes da Fonseca. Quanto à questão de "cavar um posto", sabemos bem o que é...
 
3. Finalmente, este interessante desenho que apareceu na revista carioca Fon-Fon, em 16 de julho de 1910:


A imagem é a de um comício político (que, na época, costumava atrair muito público), no qual o candidato a deputado, em um discurso inflamado, ressalta:
"- Concidadãos. Os interesses da pátria terão em mim  um defensor intransigente. Eleito deputado, honrado com a distinção do voto dos meus correligionários, o meu primeiro cuidado, cidadãos, o meu primeiro cuidado será... partir imediatamente para a Europa."
Cabem duas observações:
a) A ideia, neste caso, era alfinetar os parlamentares brasileiros que, em meio às apurações dos votos das eleições de 1910, tiraram férias e foram, muitos deles, para a Europa;
b) Não é novidade o hábito de fazer promessas de campanha - o que o cartoon ridiculariza é a expectativa de grandes promessas, frustrada pelo "partir imediatamente para a Europa". 
Na próxima postagem teremos mais alguns cartoons sobre as eleições na República Velha, quando, provavelmente, concluiremos este assunto!


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domingo, 19 de setembro de 2010

As eleições, as leis e a vida política no Brasil Imperial: Os acadêmicos de Direito protestam contra a corrupção

Se você leu minha postagem anterior, deve ter-se perguntado se, neste bendito País, não haveria leis que proibissem tantos desmandos. Sim, leitor, havia. O Código Criminal do Império estipulava claramente como crimes todas as peripécias que descrevi. Quer ver?

DOS CRIMES CONTRA O LIVRE GOZO E EXERCÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS DOS CIDADÃOS
Art. 100. Impedir ou obstar de qualquer maneira que votem nas eleições primárias ou secundárias os cidadãos ativos e os eleitores que estiverem nas circunstâncias de poder e de dever votar.
[...].
Art. 101. Solicitar, usando de promessas de recompensas ou de ameaças de algum mal, para que as eleições para Senadores, Deputados, Eleitores, Membros dos Conselhos Gerais ou das Câmaras Municipais, Juízes de Paz e quaisquer outros empregados eletivos, recaiam ou deixem de recair em determinadas pessoas, ou para esse fim comprar ou vender votos.
[...].
Art. 102. Falsificar em qualquer eleição as listas dos votos dos cidadãos ou eleitores, lendo nomes diversos dos que nelas estiverem, ou acrescentando ou diminuindo nomes ou letras; falsificar as atas de qualquer eleição. (¹)

As penas variavam de intensidade, mas incluíam prisão, trabalhos forçados e multa. Nota-se, portanto, que não era por falta de leis que as eleições eram habitualmente fraudadas. A questão era outra, o que passo a explicar.
Nos antigos regimes absolutistas, o clientelismo funcionava como indispensável ferramenta do poder - tornava poderosa e respeitada, mediante a concessão de favores, toda uma hierarquia nobiliárquica que culminava na figura do próprio rei. Em suma, se alguém obtinha algo junto às autoridades, não era por ter direitos como cidadão, era por graça de sua majestade e da nobreza, que muito naturalmente faziam uso desse sistema altamente viciado para assegurar a dominação sobre o "povo".
Pois bem, o Brasil, enquanto nação independente, nasceu já monarquia constitucional, e não deveria, se adotarmos uma lógica simplista, apresentar tal sistema de favores. Mas a prática evidenciou outra coisa, ou seja, os séculos de colonização haviam impregnado a população do recém-nascido Império com as marcas do clientelismo, fazendo com que o conceito de cidadania fosse ainda um ideal muito distante para a maioria das pessoas, daí aceitar-se, quase sempre sem questionamento, que os poderosos, política e economicamente, impusessem sua vontade nas eleições, ou, dizendo melhor, fizessem das eleições o instrumento para legitimar sua dominação. E, assim, a despeito da severidade das leis, a quase absoluta certeza da impunidade desmoralizava, desde a base, o sistema político, gerando sequelas que nós, no século XXI, podemos, infelizmente, ainda presenciar.
Havia, é inegável, vozes de protesto, insuficientes, todavia, para mudar os (maus) costumes já bastante arraigados. Para concluir, transcrevo um pequeno trecho que serve para demonstrar que, a despeito do feroz esquema de corrupção, havia quem discordasse - neste caso específico, um grupo de jovens acadêmicos de Direito de São Paulo, no ano de 1860:
"Sim, quando o povo descrê dos seus representantes, porque neles vê um proceder tão incoerente e mesmo tão imoral; quando não há crenças, nem fé, nem patriotismo nos homens públicos, à mocidade cumpre protestar e acordar o País que dorme sobre um abismo.
Triste do país, onde a par da descrença, cresce a corrupção!...
Se alguns jovens saídos das Academias renegam as suas crenças para acompanhar a política imoral que domina o País, outros as conservarão puras e terão bastante dignidade e pundonor para preferirem viver pobres honrados, a galgarem as escadas do poder, prostituindo-se a cada passo e deixando em cada degrau uma mancha indelével de sua vergonhosa passagem; desacreditando assim aos olhos do povo o ideal do governo representativo." (²)
No passado, como hoje, era difícil que, uma vez encetada a carreira profissional, alguém pudesse preservar em sua pureza os ideais da juventude. Teriam esses rapazes de cento e cinquenta anos atrás conseguido manter a integridade política a que se propunham? Não sabemos, mas o fato de se preocuparem com os rumos do País, quanto tantos outros não se importavam, já era um indicativo da seriedade de suas intenções.

(1) CORDEIRO, Carlos A. Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. de Quirino e Irmão, 1861, pp. 58-61.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

As eleições no Brasil Imperial: Valia (quase) tudo para vencer

"Saíram para a luta eleitoral. No meio do caminho, o Romualdo teve uma reminiscência de Bonaparte, e disse ao amigo: “Fernandes, é o sol de Austerlitz!”
Pobre Romualdo, era o sol de Waterloo.
— Ladroeira! bradou o Fernandes. Houve ladroeira de votos! Eu vi o miolo de algumas cédulas.
— Mas por que não reclamaste na ocasião? disse Romualdo.
— Supus que era da nossa gente, confessou o Fernandes mudando de tom."
Machado de Assis, O Programa

Na postagem anterior expliquei como funcionava o sistema eleitoral no Brasil Império. Agora tratarei das implicações práticas de tal sistema.
Surge logo a questão: como controlar o que ocorria nas eleições em cada paróquia, em um país enorme, no qual, àquela época, os meios de comunicação e transporte eram quase inexistentes? A resposta é simples: o controle era muito difícil, de modo que, geralmente, imperava o mais forte, mais poderoso, mais astuto, donde se depreende que a lisura, em geral, passava longe das urnas. Alguns breves documentos podem iluminar a compreensão do leitor.
O jornal Aurora Paulistana, na edição de 13 de novembro de 1852, trouxe o seguinte relato:
"O Martins teve o desembaraço de mandar na véspera da eleição agarrar em um alferes M. J. levá-lo para sua casa, conduzi-lo no dia seguinte na sege, fazendo-o sentar ao pé de si na igreja, encarando com olhar ameaçador a todos que a ele se aproximavam, e finalmente só o deixou depois que o pobre homem corrido de vexame lançou na urna a cédula favorita.
O mesmo Martins sabendo na antevéspera que alguns votantes do Cubatão não vinham exercer o seu direito, lá se apresentou com o seu ajudante de campo Ignácio, e ali disseminou o terror, e ameaçou a esses pobres homens, alguns dos quais vieram votar com a oposição contra sua vontade."
Ainda na mesma edição apareceu esta outra notícia, obviamente em tom jocoso, mas que sugere com nitidez o clima reinante nas eleições:
"Somos neste momento informados que partiu ontem à tarde para a Freguesia do Ó o Sr. Dr. Pinto Júnior e que aí chegando, de combinação com o Sr. Prudêncio da Cunha Brito se puseram a induzir a quanto votante encontravam a ir para uma casinhola, onde ainda se acham como presos incomunicáveis, e alguns contra sua vontade.
Faz muito bem, ilustre Dr., desta vez é certa a entrada na chapa para a próxima deputação geral. Tais serviços não podem ser desprezados. Os Srs. Broterinho e Martim por certo não têm mais direito.
Pedimos ao governo alguma providência a respeito, pois ainda é tempo."
Pode-se argumentar que o Aurora Paulistana era jornal partidário (às voltas com a dor de cotovelo de um mau desempenho nas urnas), mas fica evidente que, em alguns casos, as eleições que espantavam a modorra das cidades e povoações podiam ser, de fato, motivo de pavor, e não o exercício legítimo de um direito.
É certo que, em alguns momentos, as autoridades intervinham, como neste caso em que o Imperador decidiu anular eleições claramente viciadas, mas há que reconhecer nisso a exceção e não a regra:
"Tendo-se conformado Sua Majestade o Imperador por Sua imediata Resolução de 27 do mês último, com o Parecer da Seção dos Negócios do Império do Conselho de Estado, exarado em Consulta de 19 do mesmo mês, sobre as irregularidades de que foram arguidas algumas das eleições a que se procedeu nas diferentes Paróquias do Município da Corte para Vereadores e Juízes de Paz no dia 7 de setembro do ano findo: Há por bem mandar declarar nulas as que foram feitas nas Paróquias de Santo Antônio dos Pobres, e de São João Batista da Lagoa pelos seguintes motivos:
Quanto à primeira das referidas Paróquias, constando das respectivas Atas, sem explicação satisfatória, que na urna foi encontrado maior número de cédulas para Vereadores do que para Juiz de Paz, e que o número das apuradas tanto para uns como para outros não coincide com os das que se declara terem sido recebidas e contadas, revela isto preterição de preceitos os mais importantes da Lei [...].
Pelo que respeita à Paróquia de São João Batista da Lagoa acha-se provado que foram introduzidas na urna cédulas em número superior ao dos Cidadãos que votaram [...]."
Ministério dos Negócios do Império em 2 de janeiro de 1857. (*)
Observe-se, no entanto, que as eleições haviam ocorrido em 7 de setembro de 1856; a anulação foi procedida somente em 2 de janeiro do ano seguinte. Portanto, a morosidade era, claramente, uma aliada poderosa da fraude. São tratados aqui incidentes ocorridos no próprio Município da Corte. Como lidar com o que podia acontecer em algum ponto extremo do País?
Pois bem, este foi um rápido, ainda que significativo olhar, sobre as falcatruas usuais nas eleições há cerca de 150 anos. Os mais jovens dentre os que leem esta postagem devem estar surpresos, diante de tanta corrupção...
Desculpem-me, meus leitores, se os decepciono, mas não creio que fique bem usar emoticons em um blog tão sério.

(*) Collecção das Decisões do Governo do Império do Brasil, tomo XX. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1857, pp. 2 e 3.


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terça-feira, 14 de setembro de 2010

Paixão à flor da pele: As eleições no Brasil durante o Império

"Tudo é um; amor ou eleições, não falta matéria às discórdias humanas."
Machado de Assis, Memorial de Aires

A Constituição Imperial, outorgada em 1824, estabelecia, todos sabem, o chamado "voto censitário", ou seja, eleitores e candidatos tinham que ter uma renda mínima anual, de acordo com o posto que pleiteavam, além, é claro, de outras qualificações. O sistema era algo complexo, como se verá, organizado em uma intrincada rede de eleições indiretas.
O Capítulo VI, em seu Artigo 90 estabelecia que "as nomeações dos deputados e senadores para a Assembleia Geral, e dos Membros dos Conselhos Gerais das Províncias, serão feitas por eleições indiretas, elegendo a massa dos cidadãos ativos em Assembleias Paroquiais os eleitores de Província, e estes os representantes da Nação e Província." (*)
Simplificando, os eleitores de Paróquia escolhiam os eleitores de Província, que escolhiam os representantes para o Conselho Geral da respectiva Província, bem como os Deputados para a Câmara dos Deputados e os Senadores (para o Senado, evidentemente).
Acontece que, para ser eleitor de Paróquia (o nível mais baixo), era necessário preencher uma série de requisitos, ficando excluídos, por exemplo, os que tivessem menos de 25 anos (exceto "os casados, e oficiais militares, que forem maiores de vinte e um anos, os Bacharéis formados, e clérigos de Ordens Sacras"), os "criados de servir", os religiosos conventuais e "os que não tiverem de renda líquida anual cem mil réis por bens de raiz, indústria, comércio, ou empregos".
Já para ter a condição de eleitor de Província (um degrau acima, portanto), era preciso corresponder às mesmas condições dos eleitores de Paróquia, além de outras mais, que excluíam os que não tivessem "de renda liquida anual duzentos mil réis por bens de raiz, indústria, comércio, ou empregos", os libertos e os criminosos pronunciados.
Veja, leitor, até aqui estamos tratando apenas de eleitores, não daqueles que podiam candidatar-se a algum cargo. Mas prossigamos.
Para ser candidato a deputado era preciso cumprir as exigências de um eleitor de Província, além de ter quatrocentos mil réis de renda líquida, ser brasileiro nato e professar a "Religião do Estado". E, finalmente, para ser senador, era necessário ter idade de "quarenta anos para cima", que fosse "pessoa de saber, capacidade, e virtudes", preferencialmente os que tivessem "feito serviços à Pátria", além de apresentarem como renda mínima anual "por bens, indústria, comércio, ou empregos, a soma de oitocentos mil réis".
Ainda não acabamos. Dizia a Constituição, no Capítulo III, artigos 40 e 43:
"Artigo 40 -  0 Senado é composto de membros vitalícios, e será organizado por eleição provincial.
Artigo 43 -  As eleições serão feitas pela mesma maneira que as dos deputados, mas em listas tríplices, sobre as quais o Imperador escolherá o terço na totalidade da lista."
Portanto, em se tratando das eleições para o Senado, a última palavra pertencia ao Imperador.
Ora, leitor, se quisermos ser justos, temos de admitir: Seria estranho, em época na qual, País afora, as diversões eram escassas, que as eleições e assuntos correlatos acabassem por empolgar a população que de algum modo estivesse com elas envolvida? Seria surpreendente que acabassem por despertar paixões exacerbadas? Que surgissem às vezes (quase sempre!) graves desentendimentos? As eleições incluíam, por definição, a disputa por cargos, além de questões como interesses econômicos e posição social, dado o seu caráter censitário. Não estavam, pois, estruturadas de modo a despertar o que poderia haver de melhor e pior na natureza humana? Não podiam suscitar, lado a lado, o desejo de envolver-se com a resolução das grandes questões nacionais, bem como os mais egoístas e infames sentimentos?  Da consequência disso trataremos na próxima postagem.

(*) Todas as citações da Constituição Imperial são provenientes da seguinte obra: Collecção das Leis e Decretos do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Imperial Typographia P. Plancher-Seignot, 1827, pp. 157-176.

domingo, 12 de setembro de 2010

Hotel excelente... Em 1852

Quando alguém viaja, é comum que procure um bom hotel para hospedar-se, no qual o conforto esteja, de preferência, aliado a diárias razoáveis. Pensamos assim hoje, pensavam assim os viajantes do passado - e vou provar para você, leitor, com esse interessante anúncio que apareceu no jornal Aurora Paulistana, edição de quarta-feira, 9 de junho de 1852:
"O novo proprietário do hotel Paulistano, rua de São Bento, nº 30, tem a honra de participar ao respeitável público e aos seus numerosos conhecidos, que continuando com o mesmo hotel e hospedaria, fará tudo o que for possível para satisfazer aos seus fregueses; dará de comer no seu hotel, receberá pensionistas, e mandará levar as comidas em casas particulares no domicílio de quem assim o pedir.
Na mesma casa acham-se sempre cavalos bons para alugar, e tudo por preços razoáveis."
Para quem está habituado a propagandas coloridas, com fotos que estimulam o desejo por alguns dias de lazer, talvez esse anúncio pareça bem pouco convincente. Mas, em 1852, a realidade era outra e, portanto, as expectativas da freguesia também. Basta, para isso, considerar a oferta de cavalos para alugar!


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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

De que se alimentavam os escravos no Brasil?

Se, ao acordar pela manhã, você está faminto, provavelmente irá abrir a geladeira e tirar de lá algo para "acalmar o estômago", enquanto prepara sua refeição, com o alimento que mais lhe agradar. Se, ao andar pela rua, sentir sede, talvez decida parar em uma lanchonete e tomar um suco. Mas, se você vivesse, por exemplo, no século XIX, e fosse escravo, a sua situação seria completamente diferente: a alimentação disponível para você seria apenas aquela indispensável para assegurar a sua sobrevivência em condições de trabalhar arduamente na lavoura, com propósitos meramente quantitativos, jamais levando em conta suas preferências. E, vale notar, o escravo do século XIX era, a esse respeito, um afortunado, se compararmos sua subsistência com aquela destinada aos escravos dos séculos anteriores, quando o amplo tráfico de africanos fazia com que os senhores não tivessem quase nenhuma preocupação com a longevidade dos cativos. A extinção do tráfico a partir de 1850 obrigou cada senhor de escravos a ter um mínimo de cuidado com seu "patrimônio", que já não podia ser tão facilmente reposto.
No rastro de uma frágil corrente de modernização, começaram a aparecer, ao longo do século XIX, publicações destinadas a orientar os fazendeiros do Brasil em suas práticas agrícolas. Algumas dessas publicações eram movidas por um certo idealismo político e econômico, enquanto outras podiam até ser patrocinadas por negócios relacionados à lavoura. E, dentre essas últimas, menciono aqui O Agricultor Brazileiro (no tempo em que o Brasil era Brazil), do qual provém o trecho seguinte, de um artigo cujo título era "Moléstias dos Escravos":
"O gênero de alimentação é também objeto que deve merecer muito particular solicitude dos fazendeiros, pelo muito que ela influi na conservação da saúde e da vida. Sobre este objeto não há entre nós um uso geral: a qualidade de alimentação é diversa em várias localidades, e consiste quase sempre na farinha de mandioca, ou de milho, e vegetais. Só o feijão é geralmente usado, e pode-se considerar a base da alimentação em quase todos os lugares, conquanto no Maranhão seja substituído pelo arroz. Em grande número de fazendas, os escravos somente comem carne de animais que caçam, e isto é constante nas fazendas de serra acima para onde é difícil e dispendiosa a condução da carne-seca, e a pouca quantidade de gado que existe nas fazendas só permite este gênero de alimentação em alguns dias festivos do ano. Entretanto a falta deste alimento pode ser considerada como uma circunstância que concorre para o aparecimento de algumas enfermidades." (¹)
Temos aqui pelo menos duas questões:
1) Não ocorre ao autor do artigo citado relacionar a má alimentação dos escravos ao fato de que o sistema de latifúndios voltados para a exportação praticamente eliminava o cultivo de gêneros diversificados de subsistência, e não apenas para os escravos, mas para a população em geral, o que incluía os senhores e suas famílias;
2) Menciona-se que nas fazendas há pouco gado, mas não se discute a razão disso. A verdade é que a maioria dos senhores fornecia como alimento apenas aquilo que mantivesse vivos os escravos, deixando que eles próprios, nas poucas folgas, fossem em busca de algum "suplemento", quer cultivando pequeninas hortas, ou mesmo caçando, como se explicita no texto citado. E, quando todo o foco era plantar café, café e mais café, gastar tempo, terras e dinheiro para criar gado, fosse lá com que propósito, era visto meramente como desperdício.
Havia, por suposto, quem procurasse incentivar a plantação de gêneros alimentícios diversos, mas, no melhor dos casos, esse cultivo era visto como uma atividade subsidiária, ainda que indispensável. Os cativos tinham que sobreviver - a nutrição, no entanto, não fazia parte, geralmente, do universo de preocupações de um latifundiário escravocrata. Veja-se, sobre isso, o que consta na famosa Memória Sobre a Fundação e Custeio de Uma Fazenda Na Província do Rio de Janeiro:
"As plantações de mantimentos e víveres devem ser feitas na proporção das necessidades da subsistência do pessoal e dos animais, ou na da facilidade de vantajosa permuta.
Sobre este ponto convém que o lavrador ande atento, e que além da cultura do milho, feijão, arroz, favas e outras, tenha sempre largas plantações de mandioca, cujo paiol é a terra, que a guarda por dois, três e mais anos, para acudir às necessidades do consumo, ou para qualquer emergência devida a uma má colheita de cereais." (²)
Entende-se que, na época, não havia refrigeração, e as técnicas de conservação de alimentos eram quase inteiramente restritas a salgar e defumar; todavia, ter como plano de emergência o consumo exclusivo de mandioca... Você aprovaria?
Estava, porém, o senhor de escravos amplamente respaldado em seu proceder. Lê-se em A Escravidão no Brasil - Ensaio Histórico-Jurídico-Social, edição de 1866, que "o senhor tem o direito de auferir do escravo todo o proveito possível, isto é, exigir os seus serviços gratuitamente pelo modo e maneira que mais lhe convenha. Em compensação, corre-lhe a obrigação de alimentar, vestir, curar o escravo, não se devendo jamais esquecer de que nele há um ente humano." (³)
Fica apenas a questão: como poderia um senhor lembrar-se de seu escravo como um "ente humano" se o Estado e a sociedade sancionavam, no próprio consentimento da existência da relação senhor-escravo, que deste último se arrancasse a mais óbvia característica de um ser humano, a liberdade?

(1) "Moléstias dos Escravos" in O Agricultor Brazileiro, vol. 1, nº 4. Rio de Janeiro: Fevereiro de 1854, p. 12.
(2) WERNECK, L. P. de L. Memória Sobre a Fundação e Custeio de Uma Fazenda Na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, p. 18.
(3) MALHEIRO, Agostinho M. P. A Escravidão no Brasil - Ensaio Histórico-Jurídico-Social 1ª Parte. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866, p. 67.


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domingo, 5 de setembro de 2010

A Independência do Brasil 3 - Quando a distância e os meios de comunicação fazem muita diferença

Assuntos debatidos nas Cortes de Lisboa no dia 7 de Setembro de 1822 não estavam relacionados à Independência do Brasil


Concluí a postagem anterior desta pequena série indicando o tempo que levava para uma carta deixar o Brasil e chegar a Portugal, viajando, literalmente, sobre as ondas do Oceano Atlântico. Apenas para recordar, citei uma carta de D. Pedro a D. João VI, escrita no Rio de Janeiro a 14 de março de 1822, que só foi publicada em Portugal em junho do mesmo ano. A questão aqui é que a distância e as dificuldades de comunicação desempenharam um papel crucial no desenrolar dos acontecimentos relacionados à independência do Brasil, ainda que fatores como a independência recente de outras nações da América e a conjuntura política e ideológica gerada pela Revolução Francesa possam ser legitimamente citados como muito influentes. E, para demonstrar, nada melhor do que recorrer à documentação histórica comprobatória.
O dia 7 de setembro de 1822 é apontado como marco da independência do Brasil, em razão do episódio da proclamação. Pois bem, há meses a ruptura vinha sendo preparada, à medida que D. Pedro, tendo decidido permanecer no Brasil, manda que retornem a Portugal as tropas enviadas para assegurar a dominação lusa e, de comum acordo com as lideranças nacionais, chega a convocar uma assembleia constituinte - não seria esse o verdadeiro marco da independência?
Mas a distância fazia com que os deputados presentes às Cortes de Lisboa só viessem a tomar conhecimento dessas coisas meses depois. Assim é que, na manhã do dia 7 de setembro, a Assembleia das Cortes reúne-se normalmente, e a pauta inclui nomeações, decisões sobre vencimentos de determinados funcionários, menções honrosas, um longo debate sobre o sustento que devia ser assegurado aos religiosos e, o mais curioso, a mediação em um caso de casamento: o noivo solicitava autorização para casar-se com uma jovem de quinze anos, cujo pai negava permissão para o matrimônio. Depois de concluir pela justeza do pedido do noivo, as Cortes acabam por resolver que não têm como autorizar o casamento, pois a questão não é de sua alçada. A sessão é encerrada por volta das 13 horas. Na tarde desse mesmo dia D. Pedro declararia formalmente a ruptura do Brasil com Portugal, mas os deputados não tinham como saber.
Dias depois, na 462ª sessão, 11 de setembro de 1822, as Cortes resolvem:
"1. Que o Decreto de 3 de junho próximo passado, que convoca no Brasil Cortes Constituintes, é nulo.
2. Que os Secretários de Estado do Rio de Janeiro são altamente responsáveis pela ilegalidade de uma tão despótica determinação, e devem ser processados.
3. Que o Governo do Rio de Janeiro, desobedecendo às Cortes e constituindo-se independente, contra a vontade dos povos do Brasil, representados neste Congresso, é Governo de fato, e não Governo de Direito, e a obediência voluntária de qualquer autoridade será criminosa, menos quando for obrigada pela força.
4. Que a delegação do Príncipe cesse imediatamente e que El-Rei nomeie logo a Regência que há de exercer esta delegação, na forma já sancionada.
5. Que o Príncipe Real deve recolher-se a Portugal, no prazo de quatro meses, contados do dia em que lhe for intimado o presente Decreto, e no caso, não esperado, que ele não obedeça a esta determinação, se proverá como a Constituição determina.
6. Que será tido como traidor aquele Comandante de força de mar ou terra, que obedecer ao Governo do Rio de Janeiro, não sendo a isso obrigado pela força.
7. Que o Governo, por todos os meios que estiverem à sua disposição, fará executar todas estas determinações.
Paço das Cortes, 11 de setembro de 1822. Manuel Borges Carneiro, Bento Pereira do Carmo, José António Faria de Carvalho, José Joaquim Ferreira de Moura." (*)
Vejam, meus leitores, os deputados esbravejavam em Portugal, no mês de setembro, sobre matéria relacionada a ocorrências do mês de junho no Brasil. Não pode, assim, restar dúvidas de que muitos acontecimentos só foram possíveis pelas condições da época.
Tentem imaginar como seria hoje: Um conjunto de políticos reúne-se, é convocada uma coletiva com a imprensa, em segundos o mundo todo fica sabendo da decisão pela independência - e em horas, se for o caso, tropas de ambas as partes, já mobilizadas, entram em combate e uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU é realizada. Ou, mais civilizadamente, as partes envolvidas reúnem-se em uma conferência de cúpula, para que um acordo pacífico seja elaborado. A mecânica da história é completamente diferente. Em nossos dias, a História seria outra.

(*) Correio Braziliense. Londres: Greenlow, 1822, p. 445.


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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A Independência do Brasil 2 - O filho escreve ao pai (para todo mundo ler)

Como o príncipe D. Pedro contou a D. João VI que havia forçado o retorno da Divisão Auxiliadora a Lisboa


(Esta postagem é continuação de  A Independência do Brasil 1 - Carta de filho para pai)

Em 14 de março de 1822 D. Pedro volta a escrever a seu pai, dando conta de que a questão da permanência de tropas portuguesas no Brasil (obstada por ele próprio, como Príncipe Regente), fora resolvida de modo a garantir que não houvesse ruptura com Lisboa. O caso é que as tropas haviam sido mandadas à América por ordem das Cortes, justamente pela percepção de que o momento era favorável a uma tentativa de independência. E, se compararmos o tom da carta de 9 de janeiro com o desta, datada 14 de março, verificaremos na última indícios de irritação, distintamente da postura conciliatória que é vista na primeira. Diz o próprio D. Pedro:
"Meu Pai, e Meu Senhor. Desde que a Divisão Auxiliadora saiu, tudo ficou tranquilo, seguro, e perfeitamente aderente a Portugal; mas sempre conservando em si um grande rancor a essas Cortes, que tanto têm, segundo parece, buscado aterrar o Brasil, arrasar Portugal, e entregar a Nação à Providência.
[...] Se desembarcasse a tropa, imediatamente o Brasil se desunia de Portugal, e a independência me faria aparecer bem contra a minha vontade por ver a separação; mas sem embargo disso, contente por salvar aquela parte da Nação a mim confiada, e que está com todas as mais forças trabalhando em utilidade da Nação, honra e glória de quem a libertou pela elevação do Brasil a reino, donde nunca descerá.
A obediência dos comandantes fez com que os laços que uniam o Brasil a Portugal, que eram de fio de retrós podre, se reforçassem com amor cordial à Mãe-Pátria, que tão ingrata tem sido a um filho de quem ela tem tirado as riquezas que possuiu."
E, acrescenta, deixando claro estar ciente de que toda a sua correspondência era devidamente vasculhada pelos deputados das Cortes, sem perder a oportunidade de expressar seu desagrado diante das "mudanças" que ocorriam em relação à monarquia reinante:
"Sempre direi nesta o seguinte, porque conto que o original será apresentado ao Soberano Congresso, que honrem as Cortes ao Rei se quiserem ser honradas, e estimadas pela Nação, que lhes deu o Poder Legislativo somente."
D. Pedro tinha toda razão, tanto assim que encontramos esta correspondência publicada, no exato sentido do termo, ou seja, à disposição de quem quisesse lê-la, no jornal Correio do Porto. O detalhe saboroso fica por conta da data da publicação: escrita, como já mencionei, em 14 de março, foi publicada na terça-feira, 11 de junho de 1822, ou seja, cerca de três meses depois, o que nos dá uma boa ideia da velocidade de propagação das notícias naquela época.


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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A Independência do Brasil 1 - Carta de filho para pai

D. João VI e o príncipe D. Pedro (depois D. Pedro I), de acordo com Debret (¹)


"Diga ao povo que fico!"


Se você, leitor, é brasileiro, ou vive no Brasil há tempos, já sabe bastante sobre os meandros do processo de independência do Brasil, e até já deve ter lido algo sobre os mitos que cercam o episódio da proclamação. Portanto, não trataremos disso. Minha proposta é observar um pouco dos aspectos mais sutis que envolveram o jogo político entre Portugal e Brasil no ano de 1822.
Pois bem, intimado pelas Cortes de Lisboa, D. João VI havia retornado a Portugal, deixando o príncipe herdeiro, D. Pedro de Alcântara, como regente no Rio de Janeiro. O que D. João não sabia, ainda, ao deixar o Brasil, é que, de fato, já não tinha mais quase nenhuma autoridade, e é possível imaginar a confusão mental que devia tomar conta de  alguém que saía do absolutismo para a condição de fantoche real. Encurtando a conversa, as Cortes decidiram pela nulidade da nomeação de D. Pedro como regente e mandaram que o príncipe voltasse imediatamente para a Europa.
É em dezembro de 1821 que D. Pedro recebe a ordem de regresso. No entanto, um mês depois ainda está no Rio de Janeiro, quando ocorre o episódio conhecido como "Dia do Fico". Para contar essa história deixo falar o próprio D. Pedro, que assim descreveu os fatos em carta destinada a seu pai, o Rei D. João VI:
"Meu Pai, e Meu Senhor - Dou parte a Vossa Majestade, que no dia de hoje, às dez horas da manhã, recebi uma participação do Senado da Câmara pelo seu procurador, que as Câmaras nova e velha se achavam reunidas e me pediam uma audiência: respondi que ao meio dia podia vir o Senado, que eu o receberia; veio o Senado, que me fez uma fala mui respeitosa, de que remeto cópia (junto com o Auto da Câmara) a Vossa Majestade, e em suma era, que logo que desamparasse o Brasil, ele se tornaria independente; e ficando eu, ele persistiria unido a Portugal. Eu respondi o seguinte - Como é para bem de todos, e felicidade geral da Nação, estou pronto: diga ao povo que fico." (²)
A simples leitura já faz sorrir quem conhece um pouco desse assunto. D. Pedro, seguramente sabendo que a carta ao pai seria lida em assembleia das Cortes, mostra que sua decisão de ficar é tomada no interesse de Portugal, para evitar a independência...
De qualquer modo, se alguém em Portugal acreditou nisso, os acontecimentos posteriores acabariam com qualquer ilusão a respeito. E, bem mais tarde, em 1853, um historiador português, Joaquim L. Carreiras de Mello, narrando os mesmos acontecimentos, diria (obviamente de um ponto de vista lusitano):
"A 9 de dezembro recebe o príncipe real o decreto das Cortes, que o manda recolher ao Reino, e a 10 escreve o mesmo príncipe a El-Rei dizendo que ia já cumprir as ordens do soberano congresso, entregando o governo, para partir para Lisboa.
[...].
No Rio de Janeiro estava tudo numa grande efervescência pela retirada do príncipe. O senhor D. Pedro declara (9 de janeiro) que ficaria naquele Reino. Esta resolução foi uma resistência às ordens emanadas da mãe-pátria, e o primeiro passo para a total independência do Brasil." (³)
Resta dizer que o próprio Carreiras de Mello, considerando o desenrolar dos acontecimentos que envolveram D. João VI desde a instalação das Cortes de Lisboa, entende que, não fosse o monarca uma personalidade tranquila e amante da paz, bem poderia ter sido o caso de Portugal ver-se em um confronto como o da Revolução Inglesa de 1640. Mas, naquele momento, a Revolução que intimidava os monarcas era outra, muito mais recente: a de 1789, na França.

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) __________ Cartas e Mais Peças Oficiais Dirigidas a Sua Majestade o Senhor D. João VI Pelo Príncipe Real o Senhor D. Pedro de Alcântara. Lisboa: Imprensa Nacional, 1822, p. 3.
(3) MELLO, Joaquim L. C. de. Compêndio da História de Portugal. Lisboa: Typ. de Castro e Irmão, 1853, p. 193.



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