quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Leis de Rômulo sobre o casamento e o divórcio

Viagem maluca, leitores: venham comigo em um trem (imaginário, felizmente), capaz de transitar no tempo e no espaço. O detalhe é que ele apenas se move para trás, e assim passamos pela Guerra do Vietnã, pelas duas Guerras Mundiais, pela Guerra de Secessão, pela Revolução Francesa, pelas Grandes Navegações, pelas Cruzadas, invasões bárbaras no Império Romano, assassinato de Júlio César... Nosso meio de transporte, que partiu frenético, vai ficando mais e mais lento, à medida que recua no tempo. Roma, agora, é ainda uma pequena povoação, e Rômulo, seu lendário fundador, ainda vive e governa.
Chegamos, hora do desembarque. Afinal, viemos para conhecer a legislação que rege o casamento entre a gente romana desse tempo. Bem... Vamos ver o que disse Plutarco (¹), que era grego, e não romano: 
"[...] A nenhuma mulher era permitido divorciar-se do marido, embora ao marido fosse facultado o divórcio se ocorresse pelo menos uma dentre duas razões, sendo a primeira se fosse verificado que a mulher praticara algum dano contra os filhos, e a segunda, que cometera adultério, sendo isso desconhecido do marido [sic]. Entretanto, se algum marido, exceto por esses motivos, abandonasse a mulher, seria multado em dois terços dos bens que tivesse, sendo um terço destinado à mulher abandonada e um terço para a deusa Ceres (²). Além disso, o marido divorciado tinha a obrigação de oferecer sacrifícios para os deuses do submundo. [...]" (³)
De acordo com Plutarco, os romanos consideravam essas leis demasiadamente severas. Se, de fato elas foram praticadas nos primórdios de Roma, são anteriores à Lei das Doze Tábuas. No entanto, leitores, embora não tenhamos certeza absoluta de que as leis sobre casamento eram essas durante a infância de Roma, não há dúvida de que eram coerentes com os costumes da época e com legislações contemporâneas, que tendiam a dar amplos direitos aos homens e poucos às mulheres, isso quando elas tinham algum. No caso de Roma, porém, pode haver uma explicação pela insistência em reter as mulheres no casamento, se levarmos em conta o episódio (talvez) lendário do rapto das sabinas. Tenha ou não acontecido, esse incidente mostra que havia falta de mulheres na cidade, e permitir que elas tivessem o direito de pedir o divórcio talvez não parecesse uma boa ideia, ao menos para os rústicos romanos desses tempos. 
A questão que surge é: se não podemos ter certeza de que essas leis foram, em algum tempo, efetivamente aplicadas, qual o sentido de tomar conhecimento delas? É muito simples, meus amigos: o fato de Plutarco ter-se referido a elas revela muita coisa sobre a época em que esse famoso autor viveu. É que em seus dias a sociedade romana passava por transformações significativas, e o casamento, com suas leis e costumes, era parte desse processo. Havia quem se casasse sob leis antigas (principalmente entre a elite senatorial), mas, para muita gente, as tradições já não faziam tanto sentido. Conservadores, irados com as novidades, invocavam a religião (em que poucos acreditavam) para justificar a manutenção de costumes caducos, argumento que servia, de fato, para encobrir os interesses econômicos e ideológicos envolvidos. Entre o povo, para o qual o direito de propriedade e herança não significava grande coisa, as imposições do quotidiano falavam mais alto. Portanto, deve-se inferir que, ao tratar da legislação lendária que regia o casamento entre romanos de tempos remotos, Plutarco, estava, implicitamente, estabelecendo uma comparação que seus contemporâneos entendiam muito bem. O Império estava em mudança, como, de resto, todo o mundo que o rodeava. 

(1) c. 45 d.C. - c. 120 d.C.
(2) Ceres era uma deusa menor do panteão romano. O problema, neste caso, é que, até onde se sabe, seu culto não era ainda praticado em Roma na época em que se supõe que Rômulo possa ter vivido.
(3) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 27 de outubro de 2020

Como eram as escolas na Província de São Paulo em meados do Século XIX

Como deve ser uma escola? Quais são suas ideias sobre isto, leitores? 
No Século XIX, a comissão que elaborou o Código de Instrução Pública da Província de São Paulo de 1857 definiu a matéria deste modo, nos Artigos 148 e 149:
"Art. 148. O Governo fornecerá em um dos lugares mais silenciosos, e ao mesmo tempo mais centrais da cidade, vila ou freguesia, uma casa suficientemente espaçosa e salubre, onde se deem todas as aulas e escolas públicas de cada sexo nas horas que pelo Diretor Geral forem marcadas [...]. 
Art. 149. Onde não houver edifício público ou convento o Governo alugará para esse fim uma casa particular. Neste caso o Inspetor [...] promoverá em todo o Município uma subscrição para ser aplicada à construção de um edifício próprio para esse mister, a qual será auxiliada pelo Cofre Provincial, com a quantia que anualmente for votada na lei do orçamento. Enquanto, porém, o Governo não fornecer um edifício especial para as escolas e aulas públicas, continuarão elas como na atualidade." (¹)
Parece-me indispensável explicar que, pelo Código de 1857, era obrigatório enviar os filhos à escola, desde que se residisse não muito longe dela. Como, na prática, a maior parte da população era rural, não havia muita novidade, e a criançada, em sua maioria, continuava tão sábia nos assuntos do alfabeto quanto era ao vir ao mundo, assim seguindo pela vida afora. Mas, sejamos justos: era um começo de mudança. 
Em que deram tão boas intenções?
Há, por suposto, relatórios da época feitos por inspetores e outros funcionários, com as formalidades exigidas pelos respectivos cargos. Menos formal, ainda que talvez com observação mais isenta, há o relato de viagem feito por Augusto-Emílio Zaluar, sob o título de Peregrinação Pela Província de São Paulo 1860 - 1861, no qual o autor informa a condição da instrução pública na maioria das localidades por onde passou, dentre as quais:

Bananal
"A instrução é representada aqui apenas por duas escolas particulares do sexo masculino e uma pública de meninas, frequentadas as primeiras por uns vinte alunos, e a segunda por uma ou duas educandas!" (²)

São José do Barreiro
"[...] A instrução pública estaria aqui também em completa decadência se não fosse o povo manter à sua custa, há mais de vinte anos, uma escola de ensino primário, e há cerca de oito anos, um colégio de meninas [...]." (³)

Areias
"Areias tem duas escolas públicas de instrução primária, uma do sexo masculino, outra do sexo feminino; a primeira frequentada por sessenta e um, e a segunda por vinte e seis alunos [...]." (⁴)

Lorena
"[...] A instrução pública está representada nesta cidade por quatro escolas, divididas do modo seguinte: uma régia de instrução primária do sexo masculino, frequentada por cinquenta e um alunos, e outra do sexo feminino, que conta umas trinta educandas; uma aula de latim e francês, também pública, concorrida por uns seis alunos, e uma outra particular de instrução primária por uns trinta e tantos. Os professores são aqui, como em quase toda a Província, mesquinhamente recompensados." (⁵) 

Guaratinguetá
"A instrução pública [...] dá este resultado:
Duas escolas de ensino primário, frequentadas por alunos..... 115
Duas particulares, por .............................................................. 48
Uma do sexo feminino, por ...................................................... 30
Cadeira de latim e francês, por ................................................ 16
Colégio particular de meninas, por ...........................................16
No termo há muitas outras escolas, e o que é singular é que o número de alunos que frequentam estas aulas seja muito inferior ao dos que se matriculam todos os anos!" (⁶)

Pindamonhangaba
"Aqui há uma escola pública de instrução primária para meninos, frequentada por vinte alunos, e outra do sexo feminino, por sessenta educandas. Além destas, há uma cadeira de latim e francês, frequentada por doze alunos.
Existem mais quatro aulas de ensino privado, cursadas por quarenta e sete discípulos, outra por trinta e seis, outra por oito, e outra por seis." (⁷)
Havia, no entanto, mais estudantes dessa cidade frequentando escolas, mas não no próprio lugar: 
"[...] é preciso observar que a maior parte dos filhos das famílias mais distintas e abastadas não cursam as aulas do lugar, mas vão educar-se em São Paulo, onde o ensino público tem mais recursos, e onde ao mesmo tempo se habilitam para os estudos superiores e para entrarem na faculdade de Direito." (⁸) 

Campinas
"A instrução pública tem tido em Campinas um desenvolvimento não menos satisfatório que a lavoura. Existem aqui duas escolas públicas de primeiras letras, uma secundária, e cinco particulares de instrução primária, sendo uma de meninas, dois colégios de instrução secundária, sendo um de cada sexo; representando o número total dos alunos de todas estas aulas, do sexo masculino duzentos e quarenta, e do feminino cento e vinte educandas. Além destas casas de ensino, a maior parte dos fazendeiros paga mestres para educar seus filhos, e um bom número de jovens campineiros frequenta atualmente em São Paulo as aulas da faculdade de Direito. [...]" (⁹)

Piracicaba
"A instrução pública é representada aqui por duas escolas de ensino primário do sexo masculino, uma frequentada por cento e quatorze, outra por sessenta e dois alunos; além destas, há uma particular, com quatorze alunos,
A escola pública primária do sexo feminino é frequentada por quarenta e duas educandas, e uma particular do mesmo sexo por dezoito meninas." (¹º)
No entanto, uma das escolas para meninos tinha localização algo bizarra: 
"[...] em uma mesma casa [...] em frente da Matriz, reúne a Câmara Municipal as suas sessões, funciona o Júri, dão as devidas autoridades suas audiências e trabalha a escola pública de primeiras letras do sexo masculino! Note-se, porém, que isto é no pavimento superior, pois o térreo se distribui em uma prisão para homens, outra para mulheres e uma espécie de saguão com tarimba para a guarda. [...]" (¹¹). 
O resultado prático dessa estranha situação é que as aulas eram suspensas cada vez que funcionava o Tribunal do Júri. 

Sorocaba
"Há nesta cidade cinco escolas de primeiras letras, três do sexo masculino e duas do feminino; três públicas e duas particulares; frequentadas as do sexo masculino por cento e noventa e dois alunos, e as do feminino por cento e treze. Além destas, há uma aula de latim e francês com vinte e sete alunos, que aprendem simultaneamente as duas línguas." (¹²)

Em relação às cidades do Vale do Paraíba e adjacências, deve-se recordar que tiveram, durante algumas décadas do Século XIX, uma grande importância econômica devido à produção de café para exportação. Como se sabe, muitas dessas localidades seriam, no futuro, qualificadas como "cidades mortas", no dizer de Monteiro Lobato, uma vez que o esgotamento do solo, fruto de técnicas inadequadas de cultivo, tornou o efêmero progresso proporcionado pelo café apenas em memória saudosa do passado. Algumas delas, porém, adotando outros rumos, são hoje cidades importantes. 
No geral, é fácil perceber o vínculo entre desenvolvimento econômico de uma localidade e maiores oportunidades educacionais para as crianças e jovens, ainda que sempre haja exceções. Finalmente, os números mostram uma diferença gritante nas matrículas de meninos e meninas nas escolas (¹³), mesmo se considerarmos que nem todos os matriculados efetivamente frequentavam as aulas, a despeito da multa que podia ser imposta aos pais dos que se ausentavam sem justificativa. Não se esqueçam, leitores: as informações oferecidas por Zaluar cobrem um pequeno número de localidades. Quanto às demais, no entanto, é improvável que houvesse grandes diferenças. 

(1) _________ Código de Instrução Pública da Província de São Paulo. S. Paulo: Typographia Dous de Dezembro, 1857, pp. 24 e 25.
(2) ZALUAR, Augusto-Emílio. Peregrinação Pela Província de São Paulo 1860 - 1861. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1862, p. 51.
(3) Ibid., pp. 69 e 70.
(4) Ibid., pp. 77 e 78.
(5) Ibid. p. 108.
(6) Ibid. p. 116. 
(7) Ibid. pp. 140 e 141.
(8) Ibid. p. 142.
(9) Ibid. pp. 226 e 227.
(10) Ibid., p. 254.
(11) Ibid., p. 246.
(12) Ibid., p. 271.
(13) A explicação desse fenômeno pode ser assunto interessante para outra postagem. 


quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Um exército indígena para ajudar Cortés

Furioso com a ida de Hernán Cortés ao México, ocorrida sem sua aprovação, o governador espanhol Diego Velásquez enviara, desde Cuba, uma expedição sob o comando de Pánfilo de Narváez, com a finalidade de prender Cortés e pôr fim a seus sonhos de conquista. Isto prova que os ambiciosos conquistadores espanhóis contendiam entre si, buscando, a qualquer preço, o prêmio de honras, glória e, principalmente, riquezas incalculáveis.
Numericamente, a vantagem estava do lado de Narváez. Estima-se que dispunha de três homens para cada um do bando de seu oponente. Apesar disso, Cortés acabou vencendo, por adotar uma estratégia mais eficiente. É verdade, também, que pedira ajuda a chefes locais, e, por relato de Bernal Díaz del Castillo, sabemos que um grupo de mil e quinhentos lanceiros, ao qual denominou "índios de Chinanta" (¹), chegou a Cempoal com a intenção de participar do combate contra Narváez. Um aspecto muito interessante desse fato é que, através dele, pode-se ter uma visão da capacidade bélica dos povos nativos da região que viria a ser conhecida como Nova Espanha: "[...] vinham por capitães os caciques [...] e um de nossos soldados [...], e entraram em Cempoal com perfeita ordem, de dois em dois; e traziam lanças muito longas e encorpadas, e têm nelas [...] lâminas de pedra (²), que cortam como navalhas, [...] e cada índio trazia um escudo redondo, e com suas bandeiras estendidas e com muitas plumagens, tambores e trombetas, e entre cada dois lanceiros um flecheiro [...], e entraram tão corajosos, que era coisa de se notar, e sendo mil e quinhentos, pela maneira e ordem como vinham, pareciam três mil [...]." (³)
Impressiona, de fato, a ordem e disciplina reinantes na tropa indígena, facilmente perceptíveis nessa verdadeira fotografia em palavras feita por Bernal Díaz, cru e autêntico, como sempre. Mas por que razão, afinal, indígenas apoiavam Cortés? Esse astuto conquistador já tivera tempo suficiente para perceber que, entre os povos submetidos ao Império Asteca, reinava o maior descontentamento. Tratou, por conseguinte, de obter seu apoio, sempre que possível com promessas e presentes, mas com uso da intimidação, quando não cooperavam de boa vontade. De um modo geral, portanto, apoiavam Cortés, não só por temor aos espanhóis, mas porque odiavam a dominação asteca. 
Contudo, nesse dia da batalha de Cortés contra Narváez, a versão ameríndia da falange macedônica chegou tarde. À altura de sua entrada em Cempoal, Cortés e seu bando já eram vitoriosos e senhores da situação, Não obstante, no dizer de Bernal Díaz del Castillo, "Cortés falou aos capitães indígenas com muita gentileza, agradecendo sua vinda, deu a eles contas de Castela e mandou que voltassem a suas povoações [...]" (⁴). Sem perder de vista as riquezas do Império Asteca, era prudente angariar o maior apoio possível entre povos descontentes, para aquilo que ainda estava por vir.

(1) Chinantla.
(2) Provavelmente obsidiana.
(3) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Ibid.


terça-feira, 20 de outubro de 2020

O que os príncipes Dom João e Dona Carlota Joaquina vestiam quando desembarcaram no Rio de Janeiro em 1808

A chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro provocou um rebuliço. No dia do desembarque, 8 de março de 1808, a população, em massa, postou-se nas ruas por onde o cortejo deveria passar. Quem é que deixaria, por vontade própria, de presenciar tal espetáculo? Por outro lado, era conveniente que os recém-chegados tratassem de fazer boa figura diante dos leais súditos, que, eufóricos, quase não se continham de tanto entusiasmo. Talvez em poucos dias mudassem de parecer, mas isso já é outra história.
D. Carlota Joaquina,
retratada por Debret (²)
Nessa ocasião D. João ainda não era rei. Governava na condição de príncipe regente, porque D. Maria I, a rainha, fora considerada incapaz, por questão de saúde, para o exercício do cargo. De qualquer modo, cumpridas certas formalidades ainda no navio, D. João pôde, afinal, pôr os pés em terra (¹), certamente com uma sensação de alívio. De acordo com José Vieira Fazenda em Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro, "[...] trajava casaca comprida, de gola muito alta, colete branco bordado, calções de cetim, botas curtas, dragonas, e levava à cabeça enorme chapéu armado, ornado de arminho, e grande espadagão pendente de cordões de fios de ouro, com as competentes borlas". Não era grande coisa, em comparação ao que se via nas cortes europeias anteriores à Revolução Francesa. Mas, para o povo do Rio de Janeiro, não acostumado a tanto brilho, ostentava uma aparência quase mágica.
Por outro lado, sua nobre consorte não parecia nada satisfeita. Que surpresa! Nas palavras de Vieira Fazenda, Carlota Joaquina estava "vivamente contrariada". Prossegue o mesmo autor: "Contou-nos testemunha ocular, que a viu passar na Rua do Rosário, que ia ela vestida simplesmente de preto, cabelos cortados e não empoados (³), sem joia alguma e sem mais ornato"
D. Maria I, que, afinal de contas, ainda era a rainha, somente desembarcou, ou melhor, foi desembarcada, no dia seguinte, com muita discrição.

(1) D. João já estivera na Bahia, depois de viagem atribulada para cruzar o Atlântico.
(2) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Contrariando, portanto, a moda da época. Pensem, leitores no trajar das ilustres damas que, entre 1814 e 1815, lotavam os salões de baile durante o Congresso de Viena.


quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Praga de gafanhotos em São Paulo no ano de 1918

Ano de 1918: enquanto a pandemia de influenza, conhecida como gripe espanhola,  fazia vítimas e espalhava o medo entre a população, os agricultores em várias regiões rurais do Estado de São Paulo lutavam contra uma praga de gafanhotos que causava dano considerável às plantações. Vê-se nisso uma estranha e mesmo desconcertante coincidência. Embora a região da América do Sul atingida por nuvens de gafanhotos em 2020 não seja o Estado de São Paulo, a pandemia de Covid-19 deixa marcas em quase todo lugar. Com maior ou menor grau de ceticismo, somos tentados a perguntar: Por quê? 
Na edição de 1º de novembro de 1918 do jornal Correio Paulistano, quase toda dedicada aos acontecimentos relacionados à gripe espanhola em São Paulo, apareceu esta nota, na página 4:
"É enorme a invasão de gafanhotos ora verificada no Estado, tendo sido assoladas pelo mal todas as zonas, com maior ou menor intensidade, excetuando-se a servida pela Estrada de Ferro Central do Brasil e litoral.
A Diretoria de Agricultura tem empenhado os seus esforços no sentido de debelar o mal. Para esse fim distribuiu pelas zonas limítrofes do Paraná todo o material de que dispunha, destacando, antes mesmo do começo da invasão, inspetores para ministrar instruções [...]. 
Continuando a invasão a progredir com rapidez vertiginosa, a Secretaria da Agricultura aumentou o pessoal encarregado de dar instruções para o combate ao flagelo. Neste mister, embora difícil, continuam a ser individualmente atendidos os 30.000 lavradores do Estado de São Paulo, distribuindo-se instruções impressas às municipalidades, a fim de fazer chegar a cada fazenda o conhecimento do modo de agir contra tão devastador inimigo." (*)
Infelizmente o jornal não informava que procedimentos estavam sendo adotados no combate à praga, mas sabe-se que era usual que trabalhadores e residentes nas propriedades rurais se reunissem e, portando objetos de metal e madeira, fizessem tanto barulho quanto possível, para afugentar os insetos. Essa prática não tinha, por suposto, a capacidade de eliminar os gafanhotos, apenas sugeria a eles que mudassem de endereço e fossem causar danos em outro lugar. 

(*) CORREIO PAULISTANO, nº 19.873, 1º de novembro de 1918, p. 4.


terça-feira, 13 de outubro de 2020

Dois bondes levavam doentes aos hospitais em São Paulo durante a pandemia de gripe espanhola

Últimos meses de 1918. A Primeira Guerra Mundial chegava ao fim, mas um de seus legados, a chamada gripe espanhola, fazia vítimas e mais vítimas mundo afora. Não era diferente no Brasil. Através da edição de 1º de novembro de 1918 do jornal Correio Paulistano pode-se ter uma ideia quanto à forma como a cidade de São Paulo enfrentou a pandemia, levando-nos a inevitáveis comparações com o que vem acontecendo ao longo deste ano de 2020, quando a pandemia é outra mas alguns problemas se repetem, como a exaustão dos profissionais de saúde pelo excesso de trabalho e a insuficiência dos serviços públicos diante da quantidade enorme de doentes. Vejam, leitores, esta notícia:
"Da Diretoria do Serviço Sanitário recebemos a seguinte comunicação:
Esta Diretoria insiste ainda hoje para que o público procure de preferência a hospitalização, onde encontrará todos os recursos, em médicos e remédios, o que se não dará em suas residências, pois já é grande o número de médicos enfermos, e os que ainda podem prestar socorro se acham exaustos, devido ao excessivo trabalho que vêm tendo nestes últimos dias.
Para que sejam satisfeitas as remoções pedidas pelos interessados, estes poderão pedi-las aos telefones [...], a fim de que as possa providenciar o mais rápido possível." (¹)
Havia, no entanto, muita gente que não tinha meios próprios para se fazer transportar ao hospital mais próximo. A solução adotada, que talvez pareça um tanto estranha, fazia sentido na época:
"Para os indigentes, a Light & Power cedeu dois bondes, que fará trafegar por toda a cidade, a fim de recolher os que não possam se dirigir a pé para os hospitais. Estes bondes percorrerão todos os pontos de onde forem pedidas remoções e depois conduzirão os enfermos para os hospitais respectivos, auxiliando, assim, da maneira a mais eficaz, o serviço de remoção a cargo do Desinfetório Central, que já vai se ressentindo da falta de pessoal e material destinado a esse serviço. [...]" (²)
Cento e dois anos depois, já não há bondes recolhendo os doentes, mas nossa geração que, graças aos desenvolvimento científico e tecnológico, se acreditava invencível, já sabe, agora, e por experiência, o que é uma pandemia. Como os que enfrentaram a gripe espanhola em 1918 e 1919, usamos máscaras, lidamos com incertezas e esperamos por dias melhores. Não somos, afinal, tão diferentes assim.

(1) CORREIO PAULISTANO, nº 19.873, 1º de novembro de 1918, p. 2.
(2) Ibid.


quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Por que Augusto escolheu Tibério como sucessor

Imperador Tibério (³)
César Augusto, considerado formalmente o primeiro imperador de Roma, foi, ao longo da vida, manobrando o jogo político para fazer um sucessor. No entanto, a morte precoce de várias figuras a ele relacionadas, como seus netos, por exemplo, tornou a situação mais melindrosa do que, por si mesma, já era. Suetônio (¹), no Livro II de De vita Caesarum, indica que Augusto teria pensado até em restaurar a República, tal como era antes dos triunviratos, mas considerações, inclusive de segurança pessoal, fizeram-no desistir da ideia. 
O escolhido, afinal, foi Tibério.
Por quê?
Tácito (²), no livro I dos Annales, afirmou que Augusto teria escolhido Tibério como sucessor "para ter a vantagem de ser comparado a um pior que ele". Ora, os anos subsequentes mostraram que, se a intenção de fato foi essa, a escolha resultou perfeita. Tibério era um mestre das arbitrariedades e, quando morreu em 37 d.C., as manifestações públicas de alegria foram mais que exuberantes. De acordo com Suetônio, o povo corria pelas ruas de Roma, gritando que o cadáver do imperador deveria ser jogado no Tibre, pedindo aos deuses que não lhe dessem descanso, além de outras atrocidades mais. Romanos, romanos... Ainda não sabiam que o próximo imperador seria Calígula.

(1) 69 - 141 d.C.
(2) c. 47 d.C. - 120 d.C.
(3) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.



terça-feira, 6 de outubro de 2020

Quantos alunos de primeiras letras havia na Província de São Paulo em meados do Século XIX

A instrução pública nunca foi o foco da suprema atenção de governantes nos tempos coloniais, e ficou pior depois da expulsão dos jesuítas em 1759. Por seu turno, as poucas palavras dedicadas ao assunto na Constituição de 1824 mostram que, logo após a independência política, educar crianças e jovens não era a maior preocupação do Império. 
Contudo, ainda que a passos de tartaruga, o número de escolas e de alunos matriculados foi crescendo. Era o caso, por exemplo, na Província de São Paulo. Em discurso à Assembleia Legislativa Provincial, pronunciado em 1º de maio de 1852, o presidente da Província - era, na ocasião, José Thomaz Nabuco d'Araújo - declarou: "Esta Província contém dois liceus, o de Taubaté e o de Curitiba (¹), uma escola normal de estudos pedagógicos (²), dois seminários de instrução primária, o de Sant'Ana e o do Acu (³), dois na cidade de Itu, uma aula de pintura e desenho, 24 cadeiras de francês e latim, 169 de primeiras letras, das quais 115 são para o sexo masculino e 54 para o sexo feminino" (⁴). Essas eram instituições públicas de ensino, não sendo listadas, evidentemente, as particulares, tanto na capital da Província como em outras localidades.
Era pouco para a vastidão da Província, mas, mesmo assim, representava alguma evolução, ao menos nas aparências. Digo isso porque, ao prosseguir o discurso, o presidente acrescentou: "Das cadeiras de francês e latim estão 14 providas, 10 vagas; das de primeiras letras do sexo masculino estão providas 98, vagas 17, e do sexo feminino estão providas 49, vagas 5 [...]" (⁵). Cumpre notar que, faltando professor para determinada cadeira, era usual a nomeação de um interino, quase sempre sem qualificação, e desde que houvesse alguém interessado. A melhoria, a despeito de tudo, ao menos em relação aos tempos coloniais, estava na existência de um número razoável de classes para meninas. Coeducação dos sexos era vista, ainda, como prática moderna demais para ser adotada, que até escandalizava alguns pretensos especialistas em educação.
Mas quantos alunos, havia, ao todo, matriculados em escolas de primeiras letras na Província? O presidente, em sua fala, assumia não ter números exatos, dizendo que, segundo informações do inspetor geral da instrução pública, "[...] o número aproximado dos alunos de primeiras letras, compreendidas as escolas particulares, é de 5.767, e orçando, como ele orça, a população livre da província em 333 mil almas, a proporção é de 1 para 57 habitantes, posto me pareça muito abaixo da realidade o cálculo da população, que sem exageração se pode elevar além de 600 mil, todavia, mesmo assim, é lisonjeira para a Província a proporção da instrução pública com sua população" (⁶). O fato de que ele assim pensasse diz muito sobre as expectativas da época nessa matéria.

(1) Ainda parte da Província de São Paulo nesse tempo.
(2) Cuja finalidade era formar professores.
(3) Respectivamente para meninos e meninas, órfãos em muitos casos.
(4) AURORA PAULISTANA, Ano I, nº 40, 9 de maio de 1852.
(5) Ibid.
(6) Ibid. 


quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Nuvens de gafanhotos na América do Sul

"sin autem resistis et non vis dimittere eum ecce ego inducam cras lucustam in fines tuos quae operiat superfieciem terrae nec quicquam eius appareat sed comedatur quod residuum fuit grandini conrodet enim omnia ligna quae germinant in agris"
Exodus X, 4 - 5

As recentes nuvens de gafanhotos na América do Sul fizeram muita gente pensar nas famosas "pragas do Egito". Que mais faltaria para coroar o acervo de catástrofes de 2020? Falou-se nos exércitos de insetos que encobriam a luz do Sol como consequência do desequilíbrio ambiental que assola este sofrido planeta. Ora, meus leitores, vou mostrar a vocês que, em se tratando de bandos de incontáveis ortópteros destruidores, não há novidade alguma nesta parte do Continente Americano e, portanto, não se pode atribuir o aparecimento de nuvens de gafanhotos na atualidade exclusivamente à relação inadequada entre a humanidade e o meio ambiente. Pragas dessa natureza já devastavam a América do Sul há quase quinhentos anos, pelo menos. Não temos relatos escritos que comprovem o fenômeno anteriormente à colonização; não há, contudo, razão para duvidar que ameríndios já o enfrentassem. 
Ulrich Schmidel (¹), um mercenário alemão que veio à América do Sul no Século XVI com Pedro de Mendoza e esteve na Argentina e no Paraguai, registrou a praga em várias localidades e afirmou que gafanhotos, devorando as plantações, chegavam a deixar indígenas sem quase nada para comer (²) - péssimo para Schmidel e seus companheiros, habituados a ir de aldeia em aldeia pilhando o fruto do trabalho da população nativa. 
Mais tarde, Félix de Azara, que esteve na América Espanhola entre 1789 e 1801 (³), tendo maior conhecimento de ciências naturais e, por conseguinte, maior interesse pelo assunto, depois de descrever a aparência dos gafanhotos em suas várias fases de desenvolvimento, explicou como se comportavam as "nuvens" que podiam ser vistas principalmente no Paraguai: "[...] elas cobrem às vezes extensões consideráveis de terreno, a tal ponto que andei duas léguas marchando continuamente sobre esses insetos. Não cessam de devorar tudo, até que se sentem bastante fortes para subir nas árvores e matas que cobrem inteiramente [...]. Enfim, quando estes gafanhotos acham alguma noite favorável [...], sobretudo clara pela luz da Lua, partem, sem que se saiba para onde vão [...]" (⁴).
Observador cuidadoso, Azara ainda registrou um detalhe pitoresco, fruto da rivalidade entre moradores de Buenos Aires, na Argentina, e colonizadores do Paraguai: "Esta praga é rara em Buenos Aires; os habitantes dessa cidade zombam dos [moradores] do Paraguai, dizendo-lhes que se eles são incomodados com tanta frequência pelo gafanhoto, é castigo por sua má conduta para com um de seus bispos. [...]" (⁵).
Não, meus leitores, o desmatamento, os incêndios florestais, o uso inadequado do solo, ruins como são, não inventaram o fenômeno das nuvens da gafanhotos na América do Sul. Notem que elas já existiam muito antes que esses transtornos ambientais atingissem grandes dimensões, mas podem, talvez, ter-se agravado com uma ajudinha da humanidade, de quem se espera, agora, bom senso no manejo do problema.

(1) A primeira edição de seus escritos foi publicada na Alemanha em 1567. Seguiu-se aqui a edição de 1599.
(2) Cf. SCHMIDEL, Ulrich. Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart. Nürnberg: Levinus Hulsius, 1599 p. 78.
(3) Foi enviado pelo governo espanhol para trabalhar na demarcação de limites entre terras pertencentes à Espanha e Portugal.
(4) AZARA, Félix de. Viajes por la América del Sur 2ª ed. Montevideo: Imprenta del Comércio del Plata, 1850, p. 115. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) Ibid.