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segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Desmatamento, há cento e vinte anos

Vivemos em dias difíceis, quanto às questões ambientais. Alguns problemas são claramente causados por ação humana - desmatamento, por exemplo - enquanto outros ainda requerem maiores estudos, mesmo que seja fácil admitir que a mão do homem, indiretamente, também esteja neles. Mas, como este é um blog voltado prioritariamente à História, vamos falar do desmatamento e suas consequências, não hoje, mas há cento e vinte anos.
Coelho Neto, em obra publicada em 1904, afirmou:
"Com a morte das árvores desaparecem as fontes; rios que rolavam águas abundantes derivam agora em filetes rasos e tão escassos que uma quente semana de verão é bastante para secá-los [...]. Estrangeiros que percorrem o interior voltam impressionados com a ausência de pássaros [...], tudo é silencioso, e viaja-se longamente, ao sol, sem um oásis, sem uma árvore, mas os tocos adustos, que apontam à flor da terra, atestam a existência anterior de florestas grandiosas - levou-as o machado, arrasou-as o fogo [...]. O ar vicia-se, o mesmo clima modifica-se, e isto é notado pelos velhos moradores desses lugares, dantes bem-regados e sadios, e hoje secos, ingratos e insalubres, onde o homem não vive, nem a sementeira vinga." (¹) 
É de provocar riso o modo como se fazia derrubada de árvores nesses dias já distantes:
"Um ferro de bom gume (²), o carro e quatro juntas de bois bastam ao que vai à floresta, e quem atravessa as estradas ouve monotonamente os golpes do machado, de repente um grito de aviso e logo o estrondo da queda da árvore talhada." (³)
Comparem, leitores, o som e a velocidade do desmatamento descrito por Coelho Neto àquilo que se faz com umas poucas motosserras. 
No começo do Século XX, as matas eram derrubadas para dar espaço a novas áreas de cultivo de café; também se desmatava para prover lenha para as locomotivas a vapor e para a colocação de dormentes nos trilhos das ferrovias que iam sendo implantadas. Ora, o problema do fornecimento de lenha para as ferrovias foi manejado mediante a introdução e cultivo de espécies vegetais de crescimento rápido, que não interferissem na preservação das matas nativas. Que dizer, porém, daquilo que estamos presenciando? Haverá tempo, ainda, para soluções inteligentes?


Desmatamento no Século XIX para o estabelecimento de uma roça (⁴)

(1) COELHO NETO, Henrique Maximiano. A Bico de Pena
(2) Machado.
(3) COELHO NETO, Henrique Maximiano. Op. cit.
(4) Cf. SELLIN, Alfred Wilhelm. Das Kaiserreich Brasilien. Leipzig: Frentag, 1885, p. 167. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Como se vestiam os homens que iam à Corte durante o Governo Joanino

Para que alguém se apresentasse diante do príncipe regente, depois rei Dom João VI, era preciso que se vestisse decentemente, dentro dos padrões da moda da época. Mas como era isso?
Joaquim Manuel de Macedo, em Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro, explicou:
"Somente de calções e meias de seda ia-se naquele tempo ao paço, fazer a corte ao rei, e os magistrados usavam, por mais requinte de tafularia (¹), levar aberta a beca para mostrar os calções e as meias de seda." (²) 
O detalhe curioso é que esta moda um tanto ridícula - pelos padrões atuais, mas não daquela época - somente foi abandonada, ainda de acordo com Macedo, por volta do tempo em que ocorreu a antecipação da maioridade do segundo imperador do Brasil:
"[...] O triunfo das calças teve lugar apenas em 1840, com satisfação indizível de todas as pernas finas e de todas as pernas grossas demais.
Os calções e as calças podiam bem servir não só para representar duas épocas distintas, mas ainda dois princípios que se contrariam. Teríamos em tal caso os calções representando a aristocracia, e as calças a democracia." (³)
Calças como representantes da democracia? Ora, reconheçamos, que exagero! Mas houve quem, a despeito da nova moda, perseverasse na antiga:
"Se aceitarem a ideia, pode bem ficar determinado que o último e fiel representante da aristocracia no Brasil foi um antigo inspetor de quarteirão da freguesia de São José, homem constante, que até o último dia da sua vida, anos depois de 1840, usou de calções de ganga amarela." (⁴) 
O tal homem tinha o direito de usar a roupa que quisesse. Mas é de se admitir que, provavelmente, ao vê-lo, parecesse aos circunstantes que estavam fazendo uma viagem no tempo.

(1) Exagero no rigor ao vestir-se.
(2) MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 44.
(3) Ibid.
(4) Ibid.


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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Quem costurava as roupas de dona Leopoldina

Desembarque da princesa Leopoldina no Rio de Janeiro (¹)

Durante muito tempo, ou melhor, desde o início da colonização até que viesse ao Brasil a família real portuguesa, as roupas femininas foram, como regra, costuradas em casa da interessada em usá-las, pela própria dona ou por alguma escrava que, por ter o ofício de costureira, era considerada muito valiosa. Havia alfaiates que, além de trajes masculinos, também faziam roupas simples para mulheres, porém, como fornecedores desses artigos, eram exceção.
Mas veio 1808, veio a família real, vieram as mudanças daí decorrentes, vieram as costureiras francesas, as lojas de comerciantes franceses de artigos para vestuário feminino - tecidos, rendas, fitas, e uma infinidade de outras coisas, sempre anunciadas como última moda em Paris. Daí resultaram esquisitices que, adequadas ao inverno europeu, eram, no mínimo, ridículas sob o sol da capital do Império. "Calculem e façam ideia do que custa a moda e a elegância da cidade do Rio de Janeiro!...", exclamou Joaquim Manuel de Macedo, acrescentando: "[...] em cada corte de seda, em cada toalete, em cada xale, chapéu, gravatinha, etc., a compradora paga e deve pagar no seu tanto proporcional, além do valor e lucro do objeto que adquire, o aluguel da casa, e os honorários dos empregados de escritório, dos caixeiros, das modistas, das costureiras, dos serventes e dos criados, e antes de tudo isso os tributos da alfândega, que na verdade são de arrasar!..." (²)
Mas, falando das costureiras e modistas, cada uma era tanto mais famosa quanto fosse de maior prestígio a sua clientela. Qual não seria, então, a fama daquela que costurava para dona Leopoldina, a primeira imperatriz do Brasil? Voltemos a Macedo:
"Mlle. Josephine foi a modista da primeira imperatriz do Brasil, e, portanto, de todas as senhoras da corte, e, portanto, de quantas outras senhoras tinham pais e maridos dispostos a pagar frequentemente a habilidade e a fama da modista, cuja tesoura de imperial predileção cortava cara e desapiedadamente." (³)
Estejam certos, leitores, de que, se vivemos em outros tempos, não deixou de haver alguma correspondência, embora os hábitos e sonhos de consumo sejam outros. Não é verdade que quem presta serviço a alguma celebridade, seja lá para o que for, logo ganha fama e tem uma quantidade enorme de imitadores? Em sua essência, a humanidade continua exatamente a mesma.

(1) Cf. DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) MACEDO, Joaquim Manuel de. Memórias da Rua do Ouvidor.
(3) Ibid.


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sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Arraial ou povoado

O que era um arraial ou povoado nos Séculos XVIII e XIX? Hércules Florence (¹) fez esta descrição:
"Ver um povoado no Brasil, é vê-los quase todos. Uma praça oblonga com a igreja e a cadeia nos lados estreitos; uma ou duas ruas de cada lado traçadas a cordel; casas baixinhas, eis o que compõe um arraial." (²)
Florence estava certo e estava errado. Estava errado, porque a expedição da qual participou, não percorreu o Nordeste brasileiro e, portanto, sua definição não dá conta de todas as particularidades. Não viu, também, arraiais em Minas Gerais, onde o arruamento era completamente irregular, plantado no ritmo do estabelecimento de moradias para os que trabalhavam na mineração. Mesmo os que cresceram e se tornaram cidades de respeito - Ouro Preto é um ótimo exemplo - conservaram características herdadas desses dias em que a mineração começava e a coisa mais importante que um homem julgava fazer era procurar ouro e conseguir dele tanto quanto pudesse, sem se importar em demasia com outras questões que pudesse resolver mais tarde. 
Mas Hércules Florence também estava certo, se considerarmos os vilarejos por onde passou a Expedição Langsdorff, da qual participou. Nascidos como resultado da extração aurífera no centro-oeste brasileiro, nem todos prosperaram. Mais comum do que se imagina era que, tão logo o ouro superficial se esgotasse, os mineradores abandonavam o arraial e seguiam adiante, indo explorar outro local. Disso resultaram os vilarejos fantasmas, com casinholos vazios, quase sem habitantes, ou sem nenhum, mesmo. 

(1) Francês, Hércules Florence atuou como desenhista na Expedição Langsdorff (que saiu de Porto Feliz - SP em 22 de junho de 1826, e se estendeu até 1829). 
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829, trad. Visconde de Taunay. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 188.


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segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Antônio Conselheiro, uma celebridade?

Em 22 de julho de 1894, mais de dois anos antes, portanto, do início da Guerra de Canudos, Machado de Assis escreveu em sua coluna A Semana, na Gazeta do Rio de Janeiro:
"Telegrama da Bahia refere que o Conselheiro está em Canudos com dois mil homens perfeitamente armados. Que Conselheiro? O Conselheiro. Não lhe ponhas nome algum, que é sair da poesia e do mistério. É o Conselheiro, um homem dizem que fanático, levando consigo a toda a parte aqueles dois mil legionários. Pelas últimas notícias tinha já mandado um contingente a Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros lugares os seus assaltos."
Parece que o mito se formava, já, muito antes que o conflito armado contra as tropas governamentais tivesse início. Estaria o Conselheiro se tornando uma celebridade? Sim, ao modo do Século XIX, talvez não no sentido popular que a palavra ganhou em nossos dias. Em 14 de fevereiro de 1897, quando as armas contra Canudos já não eram apenas as da palavra, e na capital do Brasil os ânimos se exaltavam em debates quanto a ser ou não o movimento de caráter monarquista, Machado de Assis, também na Gazeta de Notícias, voltou a falar do Conselheiro, a partir de um pequeno incidente que presenciara:
"Conheci ontem o que é celebridade. Estava comprando gazetas a um homem que as vende na calçada da Rua de São José, esquina do Largo da Carioca, quando vi chegar uma mulher simples e dizer ao vendedor com voz descansada:
- Me dá uma folha que traz o retrato desse homem que briga lá fora.
- Quem?
Me esqueceu o nome dele.
Leitor obtuso, se não percebeste que "esse homem que briga lá fora" é nada menos que o nosso Antônio Conselheiro, crê-me que és ainda mais obtuso do que pareces. A mulher provavelmente não sabe ler, ouviu falar da seita dos Canudos, com muito pormenor misterioso, muita auréola, muita lenda, disseram-lhe que algum jornal dera o retrato do Messias do sertão, e foi comprá-lo, ignorando que nas ruas só se vendem as folhas do dia. Não sabe o nome do Messias; é "esse homem que briga lá fora". A celebridade, caro e tapado leitor, é isso mesmo. O nome de Antônio Conselheiro acabará por entrar na memória desta mulher anônima, e não sairá mais. Ela levava uma pequena, naturalmente filha; um dia contará a história à filha, depois à neta, à porta da estalagem, ou no quarto em que residem.
Esta é a celebridade."
Pois bem, celebridade ou não, o Conselheiro não escapou à morte durante a luta travada para esmagar o movimento que suscitara com suas pregações feitas entre o povo castigado pela pobreza e pela seca no Nordeste brasileiro. Aparecera ainda quando o Brasil era Império, e, segundo descrição feita por Euclides da Cunha em Os Sertões, usava "camisolão azul, sem cintura, chapéu de abas largas, derrubadas, e as sandálias. Às costas um surrão de couro em que trazia papel, pena e tinta, a Missão abreviada e as Horas Marianas". Citada também em Os Sertões, a Folhinha Laemmert de 1877 dizia:  
"Apareceu no sertão do norte um indivíduo que se diz chamar Antônio Conselheiro (¹), e que exerce grande influência no espírito das classes populares, servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e alimenta-se tenuemente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o a seu gosto, Revela ser homem inteligente, mas sem cultura." 
Euclides da Cunha provavelmente nunca viu o Conselheiro vivo, mas viu-o depois de morto. A última resistência do arraial de Canudos foi vencida em 5 de outubro de 1897, e, na manhã do dia seguinte, o cadáver do místico foi desenterrado, conforme se lê em Os Sertões:
"Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro. 
Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desparzido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tábua, o corpo do "famigerado e bárbaro" agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefato e esquálido, olhos fundos cheios de terra (²) - mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida.
[...]
Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal, extinto aquele terribilíssimo antagonista."
Segundo Euclides da Cunha, tiveram a ideia, depois, de cortar a cabeça do Conselheiro, para exibi-la como prova da vitória. Mas já estava morto... Muitos prisioneiros não tiveram a mesma sorte. Foram degolados - vivos.

(1) Antônio Vicente Mendes Maciel.
(2) Como poderia ser diferente?


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segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Carros de passageiros e vagões de carga em ferrovias paulistas no Século XIX

Locomotiva a vapor e carros ferroviários

"Sempre se viaja com mais facilidade e comodidade em um wagon de primeira do que no melhor carro de bois do tempo de Jacó."
Coelho Neto, A Bico de Pena

Voltem no tempo, leitores: vocês estão, agora, viajando em uma ferrovia paulista do Século XIX. Conseguem imaginar a potência da locomotiva e, como resultado, quão veloz é o deslocamento do trem? Não se esqueçam da fumaça, com o odor correspondente...
Mas o conforto, mesmo, ficava por conta dos bancos em que os passageiros eram acomodados. Para ajudar quem está, corajosamente, tentando formar uma imagem mental do que era uma viagem ferroviária naquela época, pode-se ler alguma coisa escrita em 1875 por J. Ewbank da Câmara. Comecemos pela célebre Companhia Paulista:
"Os carros de passageiros são ingleses da conhecida fábrica de J. Ashbury, de Manchester.
Os wagons de carga são abertos e fechados, da mesma fábrica inglesa, e de 7000 quilogramas de lotação." (¹)
Mais interessante, ainda, é o que foi dito quanto aos carros da Companhia Mogyana:
"Os carros salões de 1ª classe são elegantes, confortáveis, contém água e compartimento privado.
Além das molas comuns aos trucks, adotaram-se [...] espirais de ferro; os bancos de palhinha, por seu turno, descansam sobre pequenas espirais de ferro, que compensam os choques.
Na 2ª classe os bancos são dispostos longitudinalmente, e nos carros mistos, simples compartimento separa as duas classes." (²)
"Bancos de palhinha"... "Compensam os choques"... Querem ter uma experiência concreta de volta ao passado, leitores? Planejem um passeio de final de semana por uma das ferrovias turísticas, que têm locomotivas e carros perfeitamente restaurados. Depois disso, ficarão em extremo agradecidos por estarmos no Século XXI.

(1) CÂMARA, J. Ewbank da. Caminhos de Ferro de S. Paulo e a Fábrica de Ipanema em Agosto de 1875. Rio de Janeiro: G. Leuzinger & Filhos, 1875, p. 6.
(2) Ibid., p. 15.


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segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Como era feito o contrabando de ouro e diamantes

Extração de diamantes no Brasil (¹)

Muitos mineradores, e mesmo simples faiscadores de ouro do Século XVIII achavam que a cobrança dos "reais quintos" não passava de exploração. Afinal, eram eles que arrancavam o ouro da terra, à sua custa e à custa do suor de seus escravos, e ainda tinham que pagar um imposto extorsivo? A ideia de que o rei era "senhor natural" do território que governava e que, por sua muita bondade, fazia aos súditos a concessão para que explorassem o ouro não era nada popular no Brasil, e continuou a desfrutar de idêntica antipatia no Século XIX, mesmo com a distinta presença da Corte no Rio de Janeiro.
Em consequência, o contrabando de ouro e diamantes era enorme. A criatividade dos contrabandistas não conhecia limites. O barão de Eschwege (²) descreveu, em Pluto Brasiliensis, algumas das "técnicas" de contrabando, em particular quando era necessário passar por algum registro, que era um ponto de controle de carga e bagagem entre uma capitania e outra: 
"A fim de passar a salvo, usa de toda espécie de espertezas, já bastante conhecidas: caixas com fundo falso, sacos de couro cozidos nas almofadas das cangalhas, esconderijos de madeira nas canastras e fardos de algodão, apesar de estes poderem ser revistados por meio de uma agulha de ferro, que se atravessa em todas as direções. Um deles, quando conduzia uma boiada, teve a ideia de atar saquinhos com ouro na cauda de bois mansos.
Os diamantes eram também escondidos nas bengalas e nos cabos ocos dos chicotes, na coronha das espingardas ou das pistolas, no próprio cano das mesmas, ou no salto das botas." (³)
Eschwege escrevia sobre o que tinha visto, mas devia, também, ter ouvido muitas histórias. É impossível que houvesse presenciado tudo isso porque, afinal, viera ao Brasil a convite do governo joanino. Não era um funcionário público, mas não era, também, alguém em quem contrabandistas iriam facilmente confiar. Fica, porém, uma questão: se as artimanhas dos contrabandistas eram fartamente conhecidas, por que ainda eram usadas? Pode-se imaginar perfeitamente quanta corrupção acontecia nos registros, sem falar no aborrecimento dos funcionários que, dia a dia, precisavam fiscalizar cada caravana, cada tropa de mulas, cada grupo de viajantes que passava, monotonamente, no passo preguiçoso ou cansado de homens e animais. Como regra, não deviam achar razoável que as filas de verificação se tornassem demasiadamente longas. 

(1) SPIX, Johann B. von et MARTIUS, Carl F. P. von. Atlas zur Reise in Brasilien. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) Wilhelm Ludwig von Eschwege (1777 - 1855), especialista em minas, esteve no Brasil a convite do governo joanino, que pretendia reanimar a extração de minerais preciosos no país. 
(3) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis, trad. Domício de Figueiredo Murta. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 525.


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segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Varíola na Guerra de Canudos

Agosto de 1897. A guerra contra Antônio Conselheiro e seus seguidores, que ficaria conhecida como Guerra de Canudos, começara no ano anterior e, desde então, sucessivas derrotas das forças governamentais faziam crescer a fama dos sertanejos que lutavam pelo líder místico, acreditando que, afinal, o arraial era imbatível. 
Entre as forças do Exército, a situação chegava, às vezes, a ser desesperadora. Além de todas as misérias, decorrentes da falta de suprimentos e de fardamento adequado à luta na caatinga, a tropa tinha de enfrentar, ainda, uma epidemia de varíola, relatada por Euclides da Cunha em Os Sertões:
"Neste comenos dizimava-a a varíola. Destacavam-se das suas fileiras, diariamente, dois ou três enfermos, volvendo para o hospital, em Monte Santo. Outros, estropiados, naquela repentina transição das ruas calçadas da capital federal para aquelas ásperas veredas, distanciavam-se, perdidos à retaguarda, confundindo-se com os feridos, que vinham em direção oposta."
As baixas, portanto, eram provenientes dos ferimentos recebidos em combate, do despreparo da tropa para a luta na caatinga e da varíola, doença infecciosa para a qual se conhecia a vacinação no Brasil desde fins do Século XVIII. 
Como admitir tal coisa? Se todos os soldados houvessem recebido a vacina previamente à viagem ao sertão, a calamidade não teria se manifestado. Sabe-se, porém, que o descuido nessa questão, aliado à ignorância de parte considerável da população quanto à utilidade da vacina, não se esgotou na Guerra de Canudos. Um episódio ainda mais grotesco, a chamada Revolta da Vacina, de novembro de 1904, mostraria, fora de qualquer dúvida, o quanto era ainda preciso fazer no Brasil em se tratando de saúde pública. 


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quarta-feira, 31 de julho de 2024

Tesourinhas

Não se trata aqui, leitores, de instrumentos cortantes, e sim de uma avezinha muito simpática (Tyrannus savana), que o brigadeiro Cunha Matos avistou ao viajar pelo interior do Brasil pouco depois da Independência, na região do Rio Tesouras em Goiás: 
"[...] Ao lado esquerdo nasce um córrego, que encostado a um cordão de morros vai entrar no rio de Tesouras. Os caminhos desta marcha são extremamente pedregosos, e tudo deserto. [...]" (¹).
Foi então que passou a falar do pássaro que o encantou:
"[...] A geração humana parece estar morta por estes lugares, mas a ornitologia oferece uma raridade bem digna da meditação do naturalista. Neste deserto (²) há um pequenino pássaro preto [...], a cauda é forcada, e as penas compridas cruzam-se em forma de tesouras, e por este nome é conhecido. O passarinho quando bate as asas dá estalos com a cauda. [...] Esta pequena ave deu o nome ao rio e extinto arraial de Tesouras." (³) 
Felizmente a ave não é tão rara quanto Cunha Matos deve ter suposto. E, para leitores que não a conhecem, vão aqui duas fotos, que fiz há algum tempo.

Tesourinha

Tesourinha no ninho

(1) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 178.
(2) Cunha Matos falava em "deserto" com o sentido de lugar pouco habitado, não de uma região árida. 
(3) MATOS, Raimundo José da Cunha. Op. cit., p. 178.


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segunda-feira, 22 de julho de 2024

Como era a comitiva que conduzia diamantes do Distrito Diamantino ao Rio de Janeiro durante o governo joanino

Comboio de diamantes, de acordo com Rugendas (¹)

A segurança no transporte de ouro e diamantes que pertenciam à Coroa, desde as minas até o Rio de Janeiro, devia, necessariamente, ser reforçada. Mas o que significaria isso no tempo em que as estradas eram pouco melhores que trilhos, cercadas por vastidões de mato e árvores, onde era muito fácil que gente de más intenções se escondesse, sabendo que a força militar que fazia a escolta nem sempre era tão numerosa e equipada como  a situação requeria?
Há um relato interessante do barão de Eschwege que explica muito bem como era a comitiva que escoltava os diamantes tão desejados pela Coroa. 
"A produção anual é encerrada em uma bela caixa forrada de marroquim vermelho, preso por tachas amarelas. É nessa caixa que os diamantes são enviados para o Tesouro do Rio de Janeiro, acompanhados durante toda a viagem por um empregado escolhido pelo Intendente, que lhe dá por escolta forte destacamento do corpo de cavalaria e dos pedestres. 
A caixa dos diamantes vai dentro de uma canastra, que o comissário leva consigo. Alguns cavalarianos partem à frente, a uma certa distância, seguidos logo depois por alguns pedestres, que conduzem a mula, coberta de uma manta onde se veem as armas reais. Logo atrás seguem outros pedestres, precedendo imediatamente o comissário, que nunca perde de vista o cargueiro e é seguido por novos cavalarianos, que fecham a marcha." (²)
Eschwege deve ter examinado o assunto com os próprios olhos porque veio ao Brasil por solicitação do governo joanino (³), e permaneceu até o início de 1821, tempo suficiente, portanto, para verificar o que acontecia. Talvez tenha achado graça na pompa dessa tensa remessa anual, quando, mais importante que qualquer outra coisa, seria zelar pela segurança do que se transportava. O contrabando de diamantes, contudo, geralmente ocorria por outras rotas. Era do local de extração que as pedras extraviadas sumiam, para que Sua Majestade jamais pusesse nelas as suas reais mãos.

(1) Cf. RUGENDAS, Moritz. Voyage Pittoresque dans le Brésil. Paris: Engelmann, 1827. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis, trad. Domício de Figueiredo Murta. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 497.
(3) Wilhelm Ludwig von Eschwege (1777 - 1855) era especialista em minas. A ideia de D. João era que estudasse o que podia ser feito para reativar a produção aurífera no Brasil, que, nesse tempo, estava em notável declínio. 


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segunda-feira, 10 de junho de 2024

Batalha do Riachuelo

À data de 11 de junho de 1865 corresponde a batalha do Riachuelo, no contexto do conflito que, no Brasil, é chamado Guerra do Paraguai (¹). Essa batalha foi assim descrita pelo Barão de Tefé (²), que comandava a canhoneira Araguary:
"Uma pequena esquadra brasileira de nove navios de madeira - lançada a centenas de léguas da pátria para operar em um rio crivado de escolhos perigosos e dominado pelo inimigo - bateu-se de sol a sol, e derrotou por completo a esquadra inimiga, composta de quatorze unidades.
Ao escurecer, o combate cessou por falta de combatentes.
O Brasil perdera totalmente um navio e trezentos homens, mas o Paraguai ficara sem a sua esquadra e perdera dois mil homens." (³)
Mas essa foi apenas uma batalha. A guerra, propriamente, estava apenas começando. Nela, os soldados enfrentariam as dificuldades naturais do ambiente em que tinham de lutar, as doenças, a falta de suprimentos. Ao Brasil, foi ocasião para tomar conhecimento de si mesmo: muitos lugares por onde as tropas precisaram se deslocar eram quase desconhecidos, e não havia deles mapa algum. Em tais condições, estabelecer uma rota para entrega regular de suprimentos e armas era quase impossível. 
As perdas foram enormes, dos dois lados, mas, certamente, maiores do lado paraguaio, porque os países envolvidos eram desiguais em recursos. Para o Brasil, o fim da guerra trouxe novidades no panorama interno. Militares, até então pouco expressivos na vida política, ganharam espaço e passaram a ser vistos com mais respeito, como veteranos de guerra que eram. Muitos ex-escravos lutaram entre as forças brasileiras no conflito. Seu retorno do cenário de guerra para a vida civil acendeu com mais força o debate sobre o fim da escravidão, um tema que se arrastava há muito tempo e que, já tarde, precisava ser resolvido. Finalmente, os anos da guerra foram marcados por reflexões quanto à capacidade do Império em lidar com os problemas do Brasil. Quem mais, no Continente Americano, era monarquia? Não deveria o Brasil, também, ser uma República, como todos os seus vizinhos? 
As décadas seguintes veriam esses debates em crescimento. A escravidão chegou formalmente ao fim em 13 de maio de 1888; proclamou-se a República em 15 de novembro de 1889. 

(1) 1864 - 1870.
(2) Antônio Luís von Hoonholtz.
(3) HOONHOLTZ, Antônio Luís von. A Batalha Naval do Riachuelo. Rio de Janeiro: Garnier, 1865, p. 147.


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sexta-feira, 3 de maio de 2024

Fazendeiros que não moravam em fazendas

Período Regencial. Nada, ainda, de ferrovias - o transporte de mercadorias era feito por tropas de muares. Eram os pobres animais que tinham de conduzir, serra abaixo, até o porto de Santos, grande parte do que se produzia na Província de São Paulo e que se destinava à comercialização em outras Províncias ou no Exterior.
O fazendeiro, porém, rico senhor de terras, não morava em sua fazenda. Era, como se costuma dizer, absenteísta, para desgosto dos jovens estudantes que se assustam com o vocábulo. Não há motivo: designa, apenas, alguém que está ausente. Os fazendeiros, muitas, vezes, estavam mesmo, mas com um bom motivo. 
Embora o termo seja empregado frequentemente para fazendeiros do período áureo da exportação do café na segunda metade do Século XIX, não foi com eles que teve início o costume de residir na capital da Província, e não na fazenda. Nos dias do Período Regencial já era assim, conforme se pode ler nesta observação feita por Daniel P. Kidder (¹):
"Os subúrbios e os arredores de São Paulo são muito interessantes e neles encontram-se numerosas residências elegantes, cercadas de jardins. A cidade é o centro de convergência de toda a Província. Muitos dentre os fazendeiros mais abastados têm casas na cidade e só permanecem algum tempo na fazenda, pois, de São Paulo, podem melhor orientar a venda de suas safras, à medida que passam serra abaixo em demanda do mercado." (²) 
Portanto, o foco das atividades dos grandes fazendeiros estava na comercialização vantajosa, ficando para outros o cuidado com a produção. Era um modo de pensar a atividade agrícola, e tudo o que a ela se relacionava, muito diferente do que se verificara nos séculos precedentes. E, se já era assim nos dias da Regência, muito mais o seria quando a produção cafeeira de São Paulo crescesse e ganhasse o mundo, durante o Segundo Reinado. 

(1) Pastor e missionário metodista americano, Daniel P. Kidder esteve no Brasil entre 1837 e 1840. 
(2) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil, trad. Moacir N. Vasconcelos. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 198.


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quarta-feira, 1 de maio de 2024

Conservação do feijão e do milho em fazendas no Século XIX

Produzir alimentos é essencial; conservá-los, adequadamente, para que possam ser consumidos até que nova safra esteja disponível, é tão importante quanto a produção.
Em meados do Século XIX, era este o procedimento adotado em fazendas do Brasil, particularmente no Sudeste, para a conservação do feijão que fora colhido, segundo relato de Augustinho Rodrigues Cunha, em Arte da Cultura e Preparação do Café:
"[...] Em muitas fazendas costumam expor o feijão, principal alimento, ao sol todos os oito ou quinze dias, conforme o tempo tem sido mais ou menos úmido; em outras costumam misturar com cinza. [...]" (¹)
Mais ainda:
"Eu pude observar que o feijão guardado em sacos expostos à luz diáfana se conserva perfeitamente bem, e sabe-se que guardado em barricas se deteriora em muito pouco tempo, a ponto de não servir. [...]" (²)
Quanto ao milho, o mesmo autor observou:
"[...] O milho se conserva melhor quando é esbulhado e batido, do que guardado em espiga. [...]" (³)
Havia, pois, muito trabalho a fazer. Era preciso, também, todo o cuidado para que os grãos fossem estocados longe do alcance de ratos e outros animais que pudessem danificar a safra. 
No sudeste brasileiro, feijão e milho não eram importantes apenas para alimentação de famílias senhoriais ou para venda à população de áreas urbanas próximas. Eram, com alguns acréscimos, a alimentação habitual dos escravos. Milho, inclusive, era cultivado para alimentar os animais. A conservação de modo apropriado, sob contínua vigilância, era o preço que se pagava para que alimentos não viessem a faltar.

*****

Segundo uma técnica antiga muito empregada no Brasil, milho e feijão eram cultivados simultaneamente, em roças com carreiras alternadas. Isto se faz ainda hoje, em áreas de agricultura de subsistência. A foto abaixo mostra o cultivo simultâneo de milho e feijão em 1911 (⁴). 



(1) CUNHA, Augustinho Rodrigues. Arte da Cultura e Preparação do Café. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1844, p. 103.
(2) Ibid., p. 105.
(3) Ibid.
(4) OAKENFULL, J. C. Brazil in 1911. 3ª ed. London: Butler & Tanner, 1912. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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sexta-feira, 29 de março de 2024

Luto na capital do Império nas horas da Sexta-feira Santa

No Brasil do Século XIX, ostentar religiosidade fazia bem à imagem pública de qualquer pessoa - com fé ou sem ela. Por isso, em ocasiões em que tradicionalmente as práticas religiosas eram lutuosas, ninguém que se pretendesse respeitável fugia à obrigação de aparentar tristeza. Era o que acontecia nas Sextas-feiras Santas. 
O olhar observador de um mercenário alemão que esteve no Brasil entre 1824 e 1826, C. Schlichthorst, captou esta imagem em palavras, a partir do que acontecia no Rio de Janeiro, capital do Império:
"Na Sexta-feira da Paixão, todas as igrejas se cobrem de preto, os altares, as alfaias de prata e ouro se envolvem em crepes, e toda a gente põe luto. De cinco em cinco minutos, as fortalezas e navios de guerra salvam com um tiro de canhão. Põem-se as bandeiras a meio pau e braceiam-se as vergas nos navios de guerra. Para onde quer que se volva o olhar, veem-se sinais da mais profunda tristeza. [...]" (*) 
Era, como já foi dito, tristeza aparentada, como mandava a boa conduta, não necessariamente tristeza sentida. Nesse tempo, o catolicismo era religião oficial. Explica-se, portanto, que a necessidade de ostentar luto fosse muito além do espaço das igrejas, alcançando, também, as unidades militares em terra e no mar.
 
(*) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826), trad. Emmy Dodt e Gustavo Barroso. Brasília: Senado Federal: 2000, p. 118.


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quarta-feira, 13 de março de 2024

Como o professor particular deveria ser recebido na casa de um aluno

Foi comum, até bem adiantado o Século XIX, que pais com recursos suficientes tivessem professores particulares para os filhos, não apenas para aulas de música, mas para a instrução regular. Nem sempre havia escolas adequadas por perto, existindo, também, quem preferisse ver o filho recebendo aulas dentro de casa. Um livrinho interessante, escrito pela professora Guilhermina de Azambuja Neves, com o título de Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade, sugeria o modo como um aluno deveria receber seu professor particular para a lição do dia:
"Suponhamos que o mestre toma o trabalho de ir à casa do discípulo para lhe dar as lições. Não se deve jamais fazê-lo esperar, nem esquecer de ter tudo à mão: os livros, o papel, o tinteiro (¹) sobre a mesa e junto desta a cadeira.
Chegando o mestre, deve o menino levantar-se, tomar-lhe o chapéu, o guarda-chuva ou a bengala (²) e convidá-lo a sentar-se.
Começando a lição, será ela ouvida com atenção, e bem assim os conselhos que o mestre der sobre o modo de estudar ou de proceder." (³) 
Iam além as instruções da professora Guilhermina, especificando o modo correto de responder quando o professor ou professora fizesse alguma pergunta:
"O tratamento que se lhe deve dar será o de Sr. Professor; e nas respostas afirmativas ou negativas dir-se-á: sim, senhor, não, senhor; ou se for mestra: sim, senhora, não, senhora." (⁴) 
Quando, finalmente, a aula era concluída, havia um modo correto de agir ao despedir-se o aluno do professor:
"Terminada a lição deve o discípulo agradecer-lhe o trabalho e o interesse que toma por seu progresso nos estudos, entregar-lhe o chapéu, o guarda-chuva ou a bengala, e acompanhá-lo até a escada ou a porta, cumprimentando-o com respeito." (⁵)
Sim, coisas do Século XIX... E qual era a solução do dito século para os meninos que não se mostravam tão polidos e estudiosos? Não é difícil imaginar, e olhem leitores, que mesmo no século seguinte o remédio seria idêntico. Voltemos à professora Guilhermina e seus meigos conselhos:
"Este procedimento é tão bonito, como censurável o do menino Simeão, que nunca sabe as lições, e durante a explicação do mestre ocupa-se em ver passar quem vai pela rua.
Teimoso, vadio e mal-educado, nada sabe, nada aprende e é por isso que os vizinhos o chamam de madraço (⁶).
Sabes qual foi o resultado de tudo isso?
Seus pais resolveram metê-lo de pensionista (⁷) em um colégio, com a recomendação de usarem para com ele de todo o rigor e severidade." (⁸) 
Não é de hoje, portanto, que há quem prefira terceirizar a educação dos filhos, ainda que os métodos, em nosso tempo, tenham mudado. 

(1) Vê-se, nessas palavras, qual era o material escolar mais comum no Século XIX.
(2) Objetos de uso pessoal comuns para homens no Século XIX.
(3) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade, 2ª ed. Rio de Janeiro: 1875, pp. 37 e 38.
(4) Ibid., p. 38.
(5) Ibid., p. 39.
(6) "Madraço" significa preguiçoso.
(7) Ou seja, mandaram-no para um internato.
(8) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Op. cit., pp. 39 e 40. 


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sexta-feira, 8 de março de 2024

Roupas e acessórios masculinos que eram moda na época da chegada da família real ao Brasil

Primeiras semanas de 1808. Estando perto os navios que traziam a família real, além de uma pequena multidão que incluía gente da nobreza, funcionários públicos e mesmo alguns que não eram nem uma coisa e nem outra, mas que haviam conseguido embarcar, a cidade do Rio de Janeiro pôs-se agitada. 
Toda pessoa que tinha alguns recursos e que pretendia ir às ruas para ver a passagem do cortejo real tratou de arranjar roupa que julgava adequada.  Ninguém queria fazer má figura diante da nobreza que aportava. Nas palavras de José Vieira Fazenda, "as meias de seda, os sapatos rasos de fivela de ouro e prata, as cabeleiras de rabicho ou de bolsa, os espadins, os coletes de cetim bordados a matiz e os chapéus armados subiram de preço" (*). 
O desembarque de D. João, então príncipe regente, aconteceu em 8 de março de 1808. Poderíamos falar em uma corrida às lojas nos dias que o antecederam? Seguindo a índole do comércio nesses tempos já distantes (e não só neles), os preços elevaram-se bastante. Não há razão para crer que, após o desembarque, os preços baixassem, uma vez que os que chegavam também iam às lojas à procura dos artigos a que estavam habituados.
O comércio do Rio de Janeiro era, então, modesto. Mas ganhou força com a chegada da corte, que atraiu comerciantes ingleses e franceses, estes últimos, geralmente dedicados ao vestuário de luxo e outros artigos de moda. Quem, nesse momento, poderia prever quão longe iriam as mudanças que apenas começavam a acontecer?

(*) FAZENDA, José Vieira, Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1940, p. 40. 


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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Mantilhas pretas e vermelhas

O uso de mantilhas foi generalizado entre as mulheres que viviam no Brasil Colonial. Cobriam-se com ela quando iam à rua e, em casos extremos, maridos ciumentos impunham seu uso até dentro de casa. Pode-se bem imaginar o que isso significava em tardes quentes de verão.
Aos poucos, comportamentos mais civilizados se introduziram na Colônia e, depois, no Império, e, à exceção do que ocorria em localidades interioranas, as mantilhas caíram em desuso. Não combinavam, mesmo, com as modas francesas que invadiram o Rio de Janeiro, capital do Império.
Apesar disso, por relato de Joaquim Ferreira Moutinho, um português que durante dezoito anos viveu em Cuiabá no Século XIX, vê-se que as mulheres daquela cidade, as pobres e as ricas, persistiam no uso da mantilha (ou talvez persistissem por elas os homens das respectivas famílias). Havia, contudo, uma diferença:
"É original ali [em Cuiabá], nas mulheres pobres e nas escravas, o uso de saírem à rua embuçadas em uma baeta vermelha. As pessoas mais favorecidas da fortuna usam de um manto de pano preto lemiste. no qual se envolvem, deixando apenas descoberta uma parte do rosto." (¹) 
Perversamente, Ferreira Moutinho concluiu: "Este costume - prejudicial às bonitas - é o salvatério das feias." (²) 

(1) MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícia Sobre a Província de Mato GrossoSão Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869, pp. 14 e 15.
(2) Ibid., p. 15.


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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

O maior defeito das ferrovias paulistas construídas no Século XIX

Trilhos de uma ferrovia desativada
A construção de ferrovias na Província de São Paulo foi, no século XIX, um passo importantíssimo de modernização nas comunicações e transportes. Sem elas, não seria possível exportar o que quer que fosse em larga escala - café, por exemplo - que devia ser levado das fazendas ao porto de Santos; sem elas, seria muito mais difícil o deslocamento de contingentes populacionais para trabalho na lavoura, mão de obra de imigrantes, que chegava ao Brasil na expectativa,
nem sempre alcançada, de melhora nas condições de vida; sem elas, a propagação de notícias continuaria nos velhos padrões, seguindo a pé, a cavalo ou em mulas, ou ainda em canoas. Grande mudança, portanto.
Contudo, essas ferrovias sofriam de um defeito sério, com graves implicações à sua utilidade: foram construídas sem um plano geral que antecedesse os trabalhos. A construção e administração de um trecho era entregue a uma companhia, muitas vezes de capital estrangeiro, enquanto outros trechos, de outras companhias, eram construídos com padrões diferentes. Era o caso, por exemplo, das bitolas entre os trilhos. Vejamos alguns exemplos:
  • Estrada de Ferro Santos - Jundiaí: 1,6 m (¹);
  • Companhia Paulista, ligando Jundiaí a Campinas: 1,6m (²);
  • Companhia Ituana, trecho Jundiaí a Itu: 0, 96 m (³);
  • Companhia Sorocabana: 1,0 m (⁴).
Outros casos poderiam ser citados, mas estes já são suficientes para demonstrar que havia uma dificuldade prática: trens de uma companhia não podiam circular nos trilhos de outra. Para os usuários, um incômodo problema: faziam-se necessárias as irritantes baldeações, quando, para seguir viagem entre trechos de distintas companhias, era preciso mudar de um trem para outro. 
É fato que, em parte, as bitolas diferentes eram intencionais, já que as empresas buscavam assegurar para si o maior lucro possível, garantindo que não haveria compartilhamento da infraestrutura, mas isso apenas demonstra que, de certo modo, o governo provincial, sem dispor de recursos próprios para estabelecer linhas férreas, via-se refém das companhias interessadas em assumir determinados trechos, cuja lucratividade, no entanto, competia ao governo garantir. A questão, vê-se, era complexa. O resultado, um quebra-cabeça de trilhos diferentes, para desgosto de quem viajava ou contratava o transporte de mercadorias.
Agora, leitores, se quiserem dar um mergulho no que era uma viagem ferroviária nesses tempos, podem ouvir "O Trenzinho do Caipira" (⁵) de Heitor Villa-Lobos. Fechem os olhos e deixem a imaginação voar. Se a experiência auditiva não for suficiente, poderão, também, fazer uma breve viagem em alguma das ferrovias turísticas em que circulam velhas locomotivas a vapor restauradas, com carros igualmente antigos. Vão descobrir, neste caso, que viajar não era exatamente uma experiência confortável.

(1) Cf. PINTO, Adolpho Augusto. História da Viação Pública de São Paulo. São Paulo: Typographia e Papelaria de Vanorden & Cia., 1903, p. 40.
(2) Ibid.
(3) Ibid., p. 47.
(4) Ibid. p. 50.
(5) Bachianas Brasileiras nº 2.


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quinta-feira, 23 de março de 2023

Sobre a idade dos cavalos

A menos que alguém seja veterinário ou criador de cavalos, dificilmente irá se importar com o estado da dentição dos equinos. Contudo, para quem viveu há mais de cem anos, esse seria um conhecimento necessário, até indispensável, quando fosse comprar cavalos, porque todo mundo precisava deles, quer para puxar carroças, coches ou carruagens, quer para o trabalho na lavoura.
Então, leitores, imaginem-se vivendo, digamos, por volta de 1890, e precisando de um cavalo novo: um catálogo de arreios, selas e outros artigos para animais de tração, publicado nos Estados Unidos, trazia o seguinte guia para quem não era um especialista no assunto, mas não queria ser enganado por um vendedor trapaceiro, na hora de adquirir um potro ou mesmo um animal adulto:

Dentição dos cavalos de acordo com a idade (¹)

Figura 1: 8 a 14 dias;
Figura 2: 2 meses;
Figura 3: 8 meses;
Figura 4: 2 anos;
Figura 5: 3 anos;
Figura 6: 4 anos;
Figura 7: 6 anos;
Figura 8: 7 anos;
Figura 9: 8 anos;
Figura 10: 9 anos.

Agricultor trabalhando a terra com cavalos (²)

(1) ____ Illustrated Catalogue & Price List of Harness and Every Article Necessary for the Horse, Stable & Carriage. New York: R. S. Luqueer & Co., 1890, p. 138. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Ibid., p. 42.


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quinta-feira, 16 de março de 2023

Fábricas em São Paulo no Século XIX

Anúncio de loja e fábrica de chapéus em São Paulo, 1852 (¹)

Eram passados noventa anos desde a proibição de fábricas e manufaturas no Brasil por D. Maria I, e sessenta e sete desde que D. João assinara um decreto permitindo as ditas fábricas e manufaturas. O Brasil deixara de ser colônia, passara a Reino Unido com Portugal e Algarves e, em 1822, chegara a ser nação independente. Como andavam, em 1875, as fábricas na Província de São Paulo?
Em conformidade com Joaquim Floriano de Godoy, senador do Império, a situação era esta:
"Há [fábricas] de cerveja; de dourar; de encadernar; de bilhares; de chá; de chapéus de seda, castor e lebre (²); de chocolate (³); de licores; de livros em branco; de seges e carros (⁴); de móveis; de selins e outros arreios; de tabaco; de vinagres; de vinhos; de fogos; fundição de ferro e bronze; de funileiros e latoeiros; de relógios; e muitas outras que longo seria enumerar. Há boas litografias e tipografias. Há serrarias a vapor. Há grande fábrica de tecidos de algodão." (⁵)
Um ponto positivo nessa lista é a diversificação; note-se, ainda, que em alguns ramos era evidente a necessidade de concorrer com artigos importados, enquanto outras atividades, ganhando contornos industriais, eram sucessoras de antigas oficinas de trabalho artesanal. 
O panorama não era o de uma potência industrial. Mas revelava progresso, quando se faz uma comparação com o quadro vigente por volta da segunda ou terceira década do Século XIX. Havia necessidades locais que deviam ser atendidas, e mesmo algum espaço para pequena exportação para outras Províncias do Império. Os lucros do café, consideráveis nesse tempo, permitiam algumas aventuras promissoras para além do setor agrícola, e as atividades industriais nascentes pareciam ser um caminho natural para quem desejava ousar em algum empreendimento. O século à frente, com a inevitável crise do café, revelaria o acerto desse rumo. 

Anúncio de fábrica de chocolate em São Paulo, 1888 (⁶)

(1) AURORA PAULISTANA, Ano I, nº 47, 5 de junho de 1852.
(2) Nada de admiração: eram as modas da época.
(3) Artigo essencial, como todo mundo sabe.
(4) Para tração animal, é claro.
(5) GODOY, Joaquim Floriano de. A Província de S. Paulo. Rio de Janeiro: Typ. do Diário do Rio de Janeiro, 1875, pp. 24 e 25.
(6) CORREIO PAULISTANO, Amo XXXIV, nº 9511, 15 de maio de 1888.


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