A música e as festas - os jesuítas perceberam em seu contato com os indígenas do Brasil - eram recursos poderosos na catequese. Serviam para atrair a atenção e pareciam estar em maior conformidade com as tradições nativas do que os sisudos cerimoniais adotados nos ofícios religiosos que eram praticados entre os colonos. Portanto, a Semana Santa era sempre uma ocasião especial nas missões (¹). O padre visitador Cristóvão de Gouvêa teve a oportunidade de verificar, na prática, como procediam os missionários e os indígenas nesses festejos, ao viajar pela Colônia entre 1583 e 1590. Os acontecimentos dessa viagem foram registrados pelo também jesuíta, padre Fernão Cardim, que, em sua Narrativa Epistolar de uma Viagem e Missão Jesuítica, observou, a propósito de uma procissão de Sexta-feira Santa na Aldeia do Espírito Santo, na Bahia:
"A procissão foi devotíssima, com muitos fachos e fogos, disciplinado-se a maior parte dos índios, que dão em si cruelmente, e têm isso não somente por virtude, mas também por valentia, tirarem sangue de si e serem Abaetê, ou seja, valentes. Levaram na procissão muitas bandeiras que um irmão, bom pintor, lhe fez para aquele dia, em pano, de boas tintas, e devotas. Um principal velho (²) levava um devoto crucifixo debaixo do pálio; o padre visitador lhe fez todos os ofícios que se oficiaram a vozes com seus bradados." (³)
Tentem imaginar a cena, leitores.
Pode parecer chocante, para nós, do Século XXI, que os índios catequizados praticassem a autoflagelação tão de-vo-ta-men-te. Mas o caso é que, em sua cultura, isso não era uma pura e simples prova de devoção. Era antes evidência de coragem, valentia, força, tudo muito pouco compatível, afinal, com a contrição esperada pelos religiosos da época, mas perfeitamente de acordo com os valores mais celebrados entre os guerreiros indígenas.
Não sabemos o que terá passado pela cabeça do padre visitador, se terá ele compreendido ou não qual era a interpretação que faziam os indígenas dos rituais que praticavam. Mas é fato que Cardim o entendia muito bem, porque não hesitou em dizê-lo em sua Narrativa Epistolar.
Veio o domingo da Ressurreição, e novas celebrações ocorreram na aldeia, dessa vez mais alegres:
"Ao dia da ressurreição se fez uma procissão por ruas de arvoredo muito frescas, com muitos fogos, danças e outras festas; comungaram quase todos os da comunhão, que são perto de duzentas pessoas." (⁴)
Fato curioso é que o padre Cardim, antes de mudar de assunto na Narrativa Epistolar, cuidasse em dizer qual era o procedimento adotado pelos valentes indígenas para tratamento das feridas resultantes da autoflagelação:
"Esquecia-me dizer que os lavatórios cheirosos e pós de murtinhos com que se curam estes índios quando se disciplinam são irem-se logo meter e lavar no mar ou rios, e com isso saram, e não morrem." (⁵)
Pode-se bem imaginar que ferimentos eram esses, capazes de levar alguém à morte se não fossem tratados...
(1) As missões eram aldeamentos de indígenas sob supervisão de jesuítas. Em muitos casos, eram povoações forçadas pelas autoridades coloniais, que impunham o fim do nomadismo como condição para a paz.
(1) As missões eram aldeamentos de indígenas sob supervisão de jesuítas. Em muitos casos, eram povoações forçadas pelas autoridades coloniais, que impunham o fim do nomadismo como condição para a paz.
(2) Chefe indígena.
(3) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, pp. 58 e 59.
(4) Ibid., p. 59.
(5) Ibid.
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Cena inimaginável, nessa Narrativa Epistolar!
ResponderExcluirOs índios se sujeitavam à coisas incríveis...
Os europeus colonizadores, também. Era usual, e não apenas entre os membros de ordens religiosas. Nos tempos medievais, e mesmo muito depois, procissões de flagelantes percorriam cidades europeias, não só na Semana Santa.
ExcluirAinda acontece num ou outro lugar remoto deste mundo, facto que me causa uma certa náusea.
ResponderExcluirBeijinho
Sim, em uma porção de lugares. No Rio de Janeiro o próprio bispo proibiu, se não me engano, ainda no Século XVIII.
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