terça-feira, 30 de junho de 2020

Indígenas foram expulsos de três aldeias para a fundação da primeira capital do Brasil

O documento que veremos foi citado por frei Antônio de Santa Maria Jaboatão na segunda parte do Novo Orbe Seráfico, e trata da fundação da cidade da Bahia (ou Salvador), primeira capital do Brasil. Foi encontrado, segundo Jaboatão, em um catálogo antigo dos governadores da Bahia, e nele se dizia que Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral, chegara ao Brasil em março de 1549, mas esteve "preparando até o mês de julho a gente de guerra, que havia trazido de Portugal" (¹). 
Para que tanto preparo, para que tanta espera? Diz o documento:
"[...] preparando até o mês de julho a gente de guerra, que havia trazido de Portugal, escolhido já o sítio por Diogo Álvares (²) [...], que é o em que está hoje fundada a cidade, por ter porto acomodado para os navios e ser terra levantada, que a faz participante de todas as virações, marchou o dito capitão-mor (³) com mil homens de guerra (⁴) e quatrocentos índios, e com efeito fizeram despejar as três aldeias do gentio (⁵), que se achavam estabelecidas onde é o terreiro de Jesus (⁶), o Convento do Carmo e o Desterro [...]."
Acontecimentos dessa época são um tanto incertos; documentos escritos posteriormente podem conter erros. As fontes divergem, por exemplo, em relação ao número de soldados que acompanharam Tomé de Sousa na viagem ao Brasil. Uma coisa, porém, é certa: a Bahia era habitada por indígenas e, para que Salvador fosse fundada nos moldes de uma povoação portuguesa, ou sairiam eles, espontaneamente, ou seriam expulsos. 
Não surpreende que Tomé de Sousa tenha contado, além dos soldados que trouxera do Reino, com a ajuda de indígenas. Sabe-se que os vários grupos tribais tinham divergências quase permanentes e, conquistando as boas graças de alguns, era possível facilmente tê-los como apoio na expulsão de outros, principalmente se levarmos em conta que os nativos que apoiaram Tomé de Sousa deviam ser aqueles tupinambás com que se aparentara Diogo Álvares Correa, o Caramuru, náufrago português que, escapando ao mar e à antropofagia, deixou numerosa descendência mameluca. 
Há que se considerar, ainda, que a existência de três aldeias indígenas na localidade poderia ser um exagero, uma vez que povoações nativas eram, usualmente, algo distantes umas das outras, para preservar um território de caça e coleta capaz de sustentar, ao menos parcialmente, as respectivas populações, embora não seja de todo impossível que, próximo ao litoral, grupos indígenas vivessem mais perto uns dos outros, já que do mar podia vir muito de sua alimentação. No entanto, essa dificuldade talvez desapareça, se considerarmos que colonizadores poderiam pensar que cada habitação coletiva indígena seria, por si mesma, uma aldeia, e, desse modo, três grandes moradias fossem julgadas três povoações distintas. Não se pode desconsiderar, também, o exagero intencional, com o fim de encarecer ao monarca e mais autoridades do Reino as dificuldades superadas por aqueles que enviara ao Brasil, e grandes serviços, portanto, que prestavam a seu rei, para os quais se esperava régia recompensa.
Como já disse, aos indígenas que viviam nas terras da futura Cidade da Bahia apenas se ofereciam duas opções: ou saíam espontaneamente, ou seriam expulsos. O documento que analisamos, sem disfarces ou considerações humanitárias, conta muito bem (e oficialmente) o que aconteceu. Surpreendente? Não, porque era a lógica da conquista, praticada, nesse tempo, não só na América, mas na própria Europa, quando as várias monarquias guerreavam entre si, conquistavam territórios que, automaticamente, adicionavam a seus domínios, passando os súditos de um rei ou imperador a outro. Consequências desse fenômeno existem até hoje, no patchwork das nacionalidades e culturas dentro de Estados que, em alguns casos, são muito pequenos.

(1) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil Segunda Parte. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1859, p. 20.
(2) Diogo Álvares Correa, o Caramuru, náufrago português que já vivia entre indígenas na Bahia.
(3) Tomé de Sousa, considerado capitão-mor até que estabelecesse o Governo-Geral, quando passaria a ter o título de governador-geral.
(4) Outras fontes falam em um número diferente de soldados. De qualquer forma, o fato de se fazer acompanhar desde o Reino por um número considerável de soldados mostra que já se supunha que a ocupação da terra não seria pacífica.
(5) "Gentios" eram os indígenas não catequizados,
(6) Ou seja, defronte ao local onde posteriormente foi edificado o Colégio dos Jesuítas.


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quinta-feira, 25 de junho de 2020

Deuses egípcios, para os ricos e para os pobres

A simples consideração dos túmulos egípcios, que atravessaram milênios e ainda existem, leva à dedução de que muito da riqueza que o antigo Egito produziu foi gasta em construir e adornar essas moradas dos mortos - mas não para todos.
Faraós e seus familiares, sacerdotes e outros poderosos, oficiais do governo, esses asseguravam para si túmulos soberbos, nos quais eram sepultados com os objetos pessoais e o que mais fosse necessário para garantir, "no além", uma vida tão boa quanto a que tinham na terra. O raciocínio era simples: aquele que morria era avaliado pelos deuses, o que significava que seu coração seria pesado em relação à "pena da verdade". Se aprovado, iria para a vida bem-aventurada. O chamado "Livro dos Mortos", que na verdade não era um livro, estava repleto de truques e encantamentos para ludibriar os deuses e facilitar a rota da vida eterna àqueles que utilizavam suas propriedades mágicas. 
Os pobres, contudo, não tinham direito sequer ao consolo da esquálida justiça social que professa nivelar os homens na morte. Suas casas eram, como regra, miseráveis habitações feitas de barro, quase destituídas de mobiliário. Com poucos recursos, dificilmente poderiam assegurar para si mesmos uma mumificação eficiente para enfrentar a jornada ao além. As próprias crenças egípcias não lhes eram em nada favoráveis, asseverando que, no máximo, seriam, depois da morte, camponeses e artesãos, como sempre tinham sido. Não obstante, toda moradia, ainda que paupérrima, tinha uma ou mais estátuas de deuses, pequenas, sim, mas, na opinião popular, indispensáveis. É que se supunha que os deuses podiam afugentar animais peçonhentos. Relatos da Antiguidade referem que serpentes e escorpiões eram em extremo comuns no Egito. Pragmáticos, portanto, os egípcios pobres esperavam que seus deuses fossem capazes de, ao menos, mantê-los nesta vida por mais tempo, já que talvez não tivessem ocasião de topar com eles na eternidade.


terça-feira, 23 de junho de 2020

O vocabulário do futebol no português falado no Brasil

Ventos do final do Século XIX trouxeram ao Brasil uma nova mania. Amado por muitos, detestado por outros (em menor número), o futebol caiu no gosto da maioria dos brasileiros, e, para isso, sequer foi necessário esperar um longo tempo. Logo multidões afluíam aos gramados, de início com as artes da improvisação, para ver os jogos das equipes favoritas. 
Jogos e equipes? Não, porque jogo, nesse tempo, ainda era match, e equipe, team, o árbitro era referee e o gol... Era goal, é claro.. Tão importado quanto o futebol, era o vocabulário de quase tudo o que a ele se referia (¹). 
O correr dos anos e o crescimento da paixão pelo futebol levou à formação de um vocabulário futebolístico brasileiro, refletido nas publicações da época, nas quais o futebol ("foot-ball") conquistava cada vez mais espaço. Os termos de origem britânica foram adaptados e acrescidos, pela necessidade de designar adequadamente o jeito brasileiro de jogar. 
O anúncio que se vê abaixo, publicado na revista carioca O Malho em 1922, com uma lista de preços de bolas e outros artigos para praticantes do futebol, traz uma expressão curiosa para mencionar calçados esportivos, que exemplifica muito bem o que foi dito: "Shooteiras desde 26$ a 35$000" (²) 


Hoje, diríamos chuteiras. Notaram o que aconteceu, leitores? Se uma língua não passa pela formação e nem pela inclusão de novos vocábulos, podem ter certeza: ela está morta. O português do Brasil, vivinho da silva, se ajeitou para incluir o futebol no linguajar do dia a dia.

(1) Já era alguma novidade, porque no Brasil do começo do Século XX o idioma estrangeiro mais valorizado nos estudos ainda era o francês.
(2) O MALHO, Ano XXI, nº 1057, 16 de dezembro de 1922.


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quinta-feira, 18 de junho de 2020

O corte de cabelo de Teseu

Cabelos longos ou curtos? Na Antiguidade havia quem os quisesse longos, enquanto outros gostavam de tê-los bem curtos. Questão de gosto e costume, sim, mas era, também, questão de conveniência na guerra. Barbas e cabelos longos podiam ser desvantagem em um combate corpo a corpo. 
Glorificando as virtudes de Teseu, herói ateniense, Plutarco explicou, em Vitae parallelae: "Todos os rapazes daquele tempo, no momento em que deixavam de estar sob a disciplina dos mestres, o que acontecia por volta dos quatorze anos, tinham por tradição o dever de ir a Delfos e, em seu templo, oferecer a Apolo o primeiro corte dos cabelos, como um sacrifício de agradecimento. Seguindo o costume de seu lugar de nascimento, Teseu foi a Delfos e lá cortou os cabelos, mas apenas aqueles que ficavam na parte frontal da cabeça [...]" (¹). Portanto, meninos gregos usavam cabelos longos, mas, logo que chegavam à idade militar, deviam cortá-los e, religiosamente, oferecê-los a Apolo. 
Deixando de lado o que pode haver de lendário na história de Teseu, é inegável que o costume grego de que rapazes cortassem os cabelos em Delfos, oferecendo-os a Apolo, encontra eco na tradição romana de que os jovens, no dia em que deixavam de usar a toga pretexta, passando a vestir a toga viril, oferecessem os fios da primeira barba que faziam em um templo, queimando-os sobre um altar. Passavam, nessa ocasião, a ser reconhecidos como homens adultos, o que incluía, ao lado dos privilégios inerentes a um cidadão romano, o dever do serviço militar.
Alexandre, o Grande (³)
Alexandre da Macedônia, ainda conforme Plutarco, via também inconveniência em barbas exageradas nos soldados - considerem, leitores, a hipótese de uma luta corpo a corpo: "Alexandre, rei da Macedônia, sendo sábio, percebeu os males que poderiam vir e, assim, estabeleceu um regulamento para os soldados de seu exército, pelo qual os macedônios estavam obrigados a cortar a barba, para que, durante o combate, não fossem, por causa delas, atingidos pelos inimigos" (²). Não será absurdo, portanto, conjecturar que o costume religioso de oferecer barbas e cabelos aos deuses cumpria uma função muito útil, convencendo a população masculina a fazer um verdadeiro sacrifício (em mais de um sentido), nesses tempos remotos em que instrumentos cortantes não eram nada confiáveis.

(1) PLUTARCO. Vitae parallelaeOs trechos citados nesta postagem foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Ibid.
(3) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. 
Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 60. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


terça-feira, 16 de junho de 2020

Quantos tiros um mosqueteiro disparava em um combate no Século XVII

Ao relatar uma escaramuça ocorrida durante a luta pela expulsão dos holandeses que haviam entrado no Nordeste brasileiro no Século XVII, Antônio de Santa Maria Jaboatão, em obra que data originalmente de 1757, afirmou: "dos nossos pereceram sete, e foram feridos vinte e cinco, e Jerônimo Correa com três flechadas (¹), de que sarou com muito perigo; e assim ele como os dois companheiros da primeira canoa, com as mãos tão empoladas da quentura dos mosquetes, que por muitos dias sofreram aquela moléstia; porque cada um naquele combate havia disparado mais de quarenta tiros" (²).
Comparados a outras armas da época, os mosquetes eram pesadões e um tanto desajeitados. Carregar um deles e preparar o tiro demandava alguns minutos. Enquanto isso, o mosqueteiro, provavelmente rezando para não ser atingido pelo inimigo, trabalhava tão rápido quanto sua habilidade e treinamento permitiam. Finalmente, partia o tiro. Quanto ao alcance, qualquer arqueiro experiente faria melhor, mas, como arma de fogo que era, o mosquete produzia um estrago maior. Apesar de todos os inconvenientes, mosquetes - com aperfeiçoamentos, por suposto - continuaram em uso por bastante tempo.
Contrastem, leitores, os cerca de quarenta tiros ao todo disparados por Jerônimo Correa, fazendo uso de um mosquete do Século XVII, com a velocidade e precisão das armas automáticas atualmente disponíveis. Tem-se, desse modo, uma dentre as muitas razões que tornaram as guerras de hoje tão letais.

(1) Creio ser útil recordar que havia sempre indígenas nos combates, de um e outro lado.
(2) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil Primeira Parte. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, p. 217.


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quinta-feira, 11 de junho de 2020

Como um jovem se tornava cidadão romano

Para um adolescente romano, tonar-se cidadão envolvia mais que direitos políticos: mesmo havendo algumas variações ao gosto de cada família, como regra era ocasião também para uma cerimônia religiosa, que remetia a tradições muito antigas. 
Rapazes romanos usavam uma peça de vestuário chamada toga pretexta. Contudo, no tão esperado dia em que devia ser reconhecido como cidadão, o jovem fazia a barba pela primeira vez, cujos fios eram costumeiramente levados a um templo e oferecidos a uma divindade, e, desde então, passava a vestir a toga viril, que caracterizava os homens romanos. Depois de ir ao Foro em companhia do pai e, diante das autoridades, ser formalmente incluído no registro dos cidadãos, festejava a data com a família. Era, portanto, um verdadeiro (e, aparentemente, indolor) ritual de passagem. 
Acontece, meus leitores, que, a despeito de, em linhas gerais, ser este o costume, alguns adolescentes não tiveram o privilégio do reconhecimento como cidadãos sob as mesmas formalidades. O futuro imperador Calígula, por exemplo, tinha dezenove anos quando fez a barba pela primeira vez e passou a vestir a toga viril, sem que maiores cerimônias ocorressem (¹), e seu sucessor, o futuro imperador Cláudio, sequer passou pelo cerimonial sob a luz do dia: conduzido em uma liteira (talvez para que não o vissem), realizou o sacrifício no Capitólio por volta da meia-noite (²). Roma vivia dias turbulentos, e a sucessão imperial era resultado de intrigas, suborno e, não raro, de derramamento de sangue. Nada, portanto, seria exageradamente bizarro em tal contexto. 

(1) Cf. SUETÔNIO. De vita Caesarum, Livro IV.
(2) Ibid. Livro V.


terça-feira, 9 de junho de 2020

Instrução primária no Império do Brasil

"Arnaldo tinha partilhado das lições que o padre capelão dava a Flor, Alina e Jaime; mas sabidas as primeiras letras, o haviam tirado da escola, visto que um vaqueiro não carecia de mais instrução, e essa mesma já era luxo para muitos que se contentavam em saber contar pelos riscos de carvão."
José de Alencar, O Sertanejo 

Dizia a Constituição de 1824, Art. 179, XXXII: "A instrução primária é gratuita a todos os cidadãos."
Gratuita, sim, mas não obrigatória. Gratuita, também, se ministrada em instituições públicas de ensino, que simplesmente não existiam em boa parte do País, embora registros ao longo dos anos do Império mostrem uma melhoria gradual, de modo que ao menos as povoações maiores tinham escola de primeiras letras. Outra novidade é que, em algumas delas, além de uma classe para meninos, havia outra destinada às meninas, na qual uma professora dava aulas. Nas escolas públicas, crianças livres eram admitidas independentemente da origem social ou da cor da pele. Em localidades com maior número de habitantes podia haver, eventualmente, instituições de ensino particulares.
Convenhamos: já era um progresso em relação à segunda metade do Século XVIII, quando, após a expulsão dos jesuítas, as escolas existentes ficaram, muitas delas, na mão de professores absolutamente incapazes, isso quando não fecharam as portas, porque não havia nenhum interessado em dar aulas em troca de baixíssimos salários.
É, porém, fato incontestável que a população que vivia no interior do Brasil nos tempos do Império não dava, como regra, muita importância à instrução. Pergunto: haveria como ser diferente? Como é que em um país em que mais de 80 % da população era analfabeta poderia haver apreço pela instrução? Afinal de contas, para ser senador do Império era preciso ter renda alta. Instrução? Não vinha ao caso. Consta ter havido senadores do Império que eram candidamente analfabetos. Este depoimento do casal Agassiz, que liderou a Expedição Thayer e visitou o Brasil entre 1865 e 1866, é significativo:
"Num país de população escassa e disseminada numa área imensa, é necessariamente difícil, a não ser nas grandes cidades, conseguir reunir crianças numa escola. Nos lugares em que se puderam organizar estabelecimentos desse gênero, o ensino é gratuito; infelizmente, os professores são pouco numerosos, a educação é limitada e bem fracos os meios de instrução. Escrita, leitura e cálculo, com tinturas o mais ligeiras possíveis de geografia, eis o programa dessas escolas. Os professores têm grandes dificuldades a vencer; não são suficientemente prestigiados pela coletividade. Esta não sabe apreciar convenientemente a importância da instrução, como base necessária e fundamental de uma civilização superior." (¹) 
Por outro lado, dentre as escolas existentes, havia aquelas que não eram mais que centros de tortura para crianças. O desejo de ir à escola, tão comum entre os pequenos que querem parecer grandes, acabava tão pronto começava a primeira aula. Mas, se tentarmos um olhar inverso, chegaremos à seguinte interrogação: em que consistia a existência de um professor nesse tempo? Ficam aqui umas palavras de Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas, que dão muito em que pensar: 
"[...] Vejo-te ainda entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho, - ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita." (²)

(1) AGASSIZ, Jean Louis R. et AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 457.
(2) A sagacidade dos leitores deve tê-los levado a pensar, assim espero, na questão da instrução no Império por vários pontos de vista: o dos alunos nas escolas públicas, quer na capital do Império, quer em outras localidades; o dos que não eram alunos, por não haver escolas para eles; o dos que ensinavam, ou tentavam ensinar, apreciando o que faziam, ou simplesmente porque não tinham outro modo de sobrevivência. Que tal um contraponto com a atualidade?


quinta-feira, 4 de junho de 2020

Quando a moda de fazer a barba chegou a Roma

Antigo romano com barba (³)
Romanos que viveram durante os dias da realeza e nos primeiros tempos da República não tinham o costume de aparar a barba. Melhor dizendo, a profissão de barbeiro, entre eles, resultaria em absoluta penúria. A moda, porém, só é moda porque é volúvel. Se, em tempos antigos, ostentar barba era motivo de orgulho, coisa de dignos patres familias, o correr dos séculos trouxe novidades. Ainda assim, para um romano, aparar a barba era, literalmente, colocar a cabeça em risco.
Foi por volta de 300 a.C. que o costume de aparar a barba chegou a Roma, ganhando, aos poucos, status de ritual, ao menos para cada adolescente que, quando autorizado pelo pai a fazer a barba pela primeira vez, além de consagrar os fios em um templo ou no altar doméstico, era, desde então, reconhecido como um adulto. No entanto, a transição nos hábitos, até que o barbear se tornasse obrigatório, não foi caminho livre de contratempos. Júlio César, por exemplo, teria sido alvo de deboche de seus contemporâneos pelo exagero no cuidado com a barba (¹). Augusto, porém, não dava grande importância ao assunto, porque, enquanto barbeiros e cabeleireiros se ocupavam dele, chegava a ler ou escrever, distraidamente (²). E mais: consternado pela derrota de Públio Quintílio Varo e suas legiões na batalha de Teutoburgo (⁴), por meses deixou de fazer a barba e até de cortar o cabelo.  
Contudo, alguns dos sucessores de Augusto foram adeptos fanáticos do barbear diário: Oto, por exemplo, não apenas se fazia cuidar por um barbeiro diariamente, como teria, ainda, o costume, desde a adolescência, de salpicar o rosto com farelo de pão (⁵), para que a barba jamais fosse notada. Não, leitores, não sei se o truque funcionava.
Ora, não se imagine que fazer a barba em Roma tinha as mesmas facilidades de hoje em dia. Primeiro, não era comum a aplicação de emolientes, o rosto era apenas massageado com água, vindo a seguir a navalha, que, pelas condições tecnológicas da época, não era instrumento dos mais confiáveis. Asim, o barbear completo levava tempo, e sempre havia o risco de algum ferimento. Para a elite romana, porém, e mesmo para outras camadas da sociedade, a demanda por tempo não era um grande problema, de modo que os cuidados com a aparência viraram obsessão. Zombando dos exageros, Sêneca (⁶), o filósofo estoico, escreveu:
"Você acha que são desocupados os que gastam muito tempo sob os cuidados de um barbeiro que corta o cabelo nascido na noite anterior, que cuida do penteado, ou que faz com que as madeixas despenteadas sejam novamente arrumadas, ou que arruma o cabelo de um e outro lado, formando um topete?
Imperador Adriano (⁸)
Irritam-se, com valentia, por qualquer erro do barbeiro, enchendo-se de raiva se cortou algo a mais de seus cabelos, se um fio ficou fora de lugar ou se algum está fora dos cachos. Você pensa que estes estão mais preocupados com o bem-estar da República que com a compostura do cabelo? Não estarão mais ansiosos em arrumar a cabeça, valorizando o belo mais que o honesto, em lugar de buscar a prosperidade do Império? É justo que sejam tidos como desocupados, se estão atarefados entre o espelho e o pente?" (⁷)
Recordo aos leitores que espelhos, nesse tempo, não eram lá muito eficientes - não como hoje, pelo menos. 
Tanto exagero, afinal, cansou o Império. Ao que parece, foi Adriano (⁹) o primeiro entre os imperadores a romper com o incômodo do barbear diário. Suas estátuas, bem como as de seus sucessores, atestam devidamente a mudança. E, se mudavam os costumes do imperador, por que o restante do Império não lhe seguiria o exemplo?

(1) Cf. SUETÔNIO. De vita Caesarum, Livro I. 
(2) Ibid., Livro II.
(3) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 128. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) 9 d.C.
(5) SUETÔNIO. Op. cit., Livro VII.
(6) c. 1 d.C. - 65 d.C.
(7) SÊNECA. De brevitate vitaeO trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(8) HEKLER, Anton. Op. cit., p. 248. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(9) Da dinastia nerva-antonina, foi imperador entre 117 e 138 d.C.


terça-feira, 2 de junho de 2020

Doações em testamento para obras pias

Ao morrer em 1572, Mem de Sá, terceiro governador-geral do Brasil, deixou testamento no qual legava um terço de seus bens à Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Se isso parece uma enorme generosidade, será útil considerar que, não só no Século XVI, mas até muito tempo depois, era costume, ao fazer testamento, que as pessoas legassem recursos para "obras pias", e isso não era prática apenas dos endinheirados - até gente modesta tratava de fazê-lo.
Qual seria a causa de tanta preocupação com projetos de caridade? Desconsiderando exceções, o motivo era bem simples: acreditava-se que isso podia aliviar o peso da conta que, depois da morte, deveria ser ajustada no purgatório. Então, como veem os leitores, não era apenas por bom coração que as doações eram feitas. Mandava, também, o interesse próprio.
Mas o que eram, afinal, as tais "obras pias", que recebiam as doações prescritas em testamento? 
Para disciplinar essa prática, evitando excessos e desvios de função, as Ordenações do Reino (¹) estabeleciam normas que regulavam as dotações testamentárias destinadas a obras pias. Assim, no Livro I, Título L, § 16, lê-se:
"E quando o defunto deixar em seu testamento, que se façam algumas obras meritórias por sua alma, e logo as declarar, como se dissesse que casem tantas órfãs, ou vistam tantos pobres, ou que nas ditas coisas se despenda tanto dinheiro [...], mandamos que assim como ele o dispuser, se cumpra por seu testamenteiro [...]."
De modo análogo, diz o § 41, do mesmo livro e título:
"E porquanto em algumas instituições se mandam cumprir algumas obras pias, sem se declarar quais são, declaramos que são missas, aniversários, responsos, confissões, ornamentos e coisas que servem para o culto divino. E bem assim curar enfermos, camas para eles, vestir ou alimentar pobres, remir cativos, criar enjeitados, agasalhar caminhantes pobres, e quaisquer obras de misericórdia semelhantes a estas [...]."
Esperava-se - e a lei exigia - que os responsáveis pela execução dos testamentos agissem prontamente, tão logo o testador fechasse os olhos em definitivo. Supunha-se que a demora podia ser prejudicial aos interesses do morto. Portanto, as Ordenações, ao menos em alguns casos, eram específicas:

Livro I, Título L, § 5 - Recursos para a redenção de cativos
"E assim farão cadernos de tudo o que os defuntos por seus testamentos deixarem para os cativos, e do que por bem da Ordenação pertence à redenção deles, por não ser aplicado a outra obra pia [...]."
Em favor do entendimento, deve-se lembrar que os "cativos", neste caso, eram principalmente cristãos que, em viagem marítima, haviam caído prisioneiros de piratas (nas imediações do Mediterrâneo e no Atlântico, geralmente na costa da África), e dos quais se exigia o pagamento de um resgate para a libertação. 

Livro I, Título L, § 8 - Recursos para dote de órfãs, a fim de que pudessem contrair casamento
"E havendo-se de nomear e dotar algumas órfãs, de qualquer qualidade e condição que sejam, para efeito de executarem e cumprirem os testamentos e vontades de alguns defuntos, os ditos provedores nomearão e dotarão as ditas órfãs, com parecer dos deputados da Mesa da Consciência [...]."

Livro I, Título L, § 9 - Recursos para celebração de missas
"De todas as missas que os defuntos mandarem dizer, que não forem cumpridas, nem eles nomearem lugar certo onde se digam, farão os provedores um rol, que mandarão à Mesa da Consciência, para com parecer dos deputados dela se repartirem pelos mosteiros das Ordens reformadas que maiores necessidades tiverem, e onde com mais brevidade se possam dizer [...]."

Livro I Título L, § 15 - Recursos para a construção de capelas
"E quando o testador mandar fazer alguma obra certa, assim como capela ou outra coisa semelhante, o provedor a dará logo de empreitada pelo melhor preço que puder, para até certo tempo se dar de todo acabada. [...]"

Ainda que até mesmo aos condenados à morte fosse facultado o direito de legar bens para obras pias, havia casos em que as Ordenações do Reino vedavam tal prática, conforme especifica o Livro IV, no Título LXXXI, § 6:
"[...] havemos por serviço de Deus e bem de muitas almas, cujos corpos por Justiça padecem, queremos que quaisquer pessoas, que por Justiça houverem de padecer, possam fazer seus testamentos, para em eles somente tomarem suas terças, e disporem delas, distribuindo-as em tirar cativos, casar órfãs, fazer esmolas aos hospitais, mandar dizer missas e para conserto e refazimento de mosteiros e igrejas. E em outras algumas coisas e despesas não poderão distribuir as ditas terças. Porém isto não haverá lugar nos que forem condenados por crime de heresia, traição ou sodomia."
Para concluir, veremos dois exemplos instrutivos dessas doações, ambos ocorridos no Brasil Colonial. Rocha Pita, autor setecentista, diz que Domingos Afonso, também chamado Domingos Sertão, deixou seus bens em testamento para a Companhia de Jesus: "[...] o capitão Domingos Afonso [...], havendo despendido setenta mil cruzados com a fábrica do noviciado (²), deixou encapelados os mais bens (que constam de opulentas fazendas de gado) ao Colégio (³), ordenando que do seu rendimento se lhe mandassem dizer seis missas quotidianas [sic!], e deem três dotes de órfãs anuais, e outras esmolas na Bahia e na sua pátria [...]". (⁴) 
Quanto a Gabriel Soares, senhor de engenho na Bahia no Século XVI, além de autor do valioso Tratado Descritivo do Brasil em 1587, especificou, entre outras disposições, em testamento citado por Varnhagen (⁵), o hábito religioso com que seu corpo seria vestido para o sepultamento; o letreiro a ser posto em sua campa, com os dizeres "Aqui jaz um pecador"; as esmolas que deveriam ser dadas aos pobres que acompanhassem o enterro; a proibição de que houvesse toque de sinos durante o funeral; uma infinidade de missas que por ele e seus pais seriam celebradas; doações para a Santa Casa de Misericórdia e para confrarias; dote suficiente para que cinco moças pobres pudessem se casar; e, por fim, esta curiosa observação: "Acompanhará o meu corpo, se falecer nesta cidade (⁶), o cabido, a quem se dará a esmola costumada, e os padres de S. Bento levarão de oferta um porco e seis almudes de vinho e cinco cruzados" (⁷).

(1) De acordo com a Edição de 1824 da Universidade de Coimbra. Publicadas formalmente pela primeira vez no início do Século XVII, as Ordenações do Reino eram, em grande parte, uma compilação de leis que já existiam anteriormente.
(2) Rocha Pita se refere, aqui, à construção de um local para o noviciado dos jesuítas na Bahia, que Domingos Afonso patrocinou.
(3) Colégio dos Jesuítas.
(4) PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa 2ª ed. Lisboa: Ed. Francisco Arthur da Silva, 1880, p. 370.
(5) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, pp. 384 - 389.
(6) Cidade da Bahia (Salvador).
(7) VARNHAGEN, F. A. Op. cit., p. 385.


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