quinta-feira, 4 de junho de 2020

Quando a moda de fazer a barba chegou a Roma

Antigo romano com barba (³)
Romanos que viveram durante os dias da realeza e nos primeiros tempos da República não tinham o costume de aparar a barba. Melhor dizendo, a profissão de barbeiro, entre eles, resultaria em absoluta penúria. A moda, porém, só é moda porque é volúvel. Se, em tempos antigos, ostentar barba era motivo de orgulho, coisa de dignos patres familias, o correr dos séculos trouxe novidades. Ainda assim, para um romano, aparar a barba era, literalmente, colocar a cabeça em risco.
Foi por volta de 300 a.C. que o costume de aparar a barba chegou a Roma, ganhando, aos poucos, status de ritual, ao menos para cada adolescente que, quando autorizado pelo pai a fazer a barba pela primeira vez, além de consagrar os fios em um templo ou no altar doméstico, era, desde então, reconhecido como um adulto. No entanto, a transição nos hábitos, até que o barbear se tornasse obrigatório, não foi caminho livre de contratempos. Júlio César, por exemplo, teria sido alvo de deboche de seus contemporâneos pelo exagero no cuidado com a barba (¹). Augusto, porém, não dava grande importância ao assunto, porque, enquanto barbeiros e cabeleireiros se ocupavam dele, chegava a ler ou escrever, distraidamente (²). E mais: consternado pela derrota de Públio Quintílio Varo e suas legiões na batalha de Teutoburgo (⁴), por meses deixou de fazer a barba e até de cortar o cabelo.  
Contudo, alguns dos sucessores de Augusto foram adeptos fanáticos do barbear diário: Oto, por exemplo, não apenas se fazia cuidar por um barbeiro diariamente, como teria, ainda, o costume, desde a adolescência, de salpicar o rosto com farelo de pão (⁵), para que a barba jamais fosse notada. Não, leitores, não sei se o truque funcionava.
Ora, não se imagine que fazer a barba em Roma tinha as mesmas facilidades de hoje em dia. Primeiro, não era comum a aplicação de emolientes, o rosto era apenas massageado com água, vindo a seguir a navalha, que, pelas condições tecnológicas da época, não era instrumento dos mais confiáveis. Asim, o barbear completo levava tempo, e sempre havia o risco de algum ferimento. Para a elite romana, porém, e mesmo para outras camadas da sociedade, a demanda por tempo não era um grande problema, de modo que os cuidados com a aparência viraram obsessão. Zombando dos exageros, Sêneca (⁶), o filósofo estoico, escreveu:
"Você acha que são desocupados os que gastam muito tempo sob os cuidados de um barbeiro que corta o cabelo nascido na noite anterior, que cuida do penteado, ou que faz com que as madeixas despenteadas sejam novamente arrumadas, ou que arruma o cabelo de um e outro lado, formando um topete?
Imperador Adriano (⁸)
Irritam-se, com valentia, por qualquer erro do barbeiro, enchendo-se de raiva se cortou algo a mais de seus cabelos, se um fio ficou fora de lugar ou se algum está fora dos cachos. Você pensa que estes estão mais preocupados com o bem-estar da República que com a compostura do cabelo? Não estarão mais ansiosos em arrumar a cabeça, valorizando o belo mais que o honesto, em lugar de buscar a prosperidade do Império? É justo que sejam tidos como desocupados, se estão atarefados entre o espelho e o pente?" (⁷)
Recordo aos leitores que espelhos, nesse tempo, não eram lá muito eficientes - não como hoje, pelo menos. 
Tanto exagero, afinal, cansou o Império. Ao que parece, foi Adriano (⁹) o primeiro entre os imperadores a romper com o incômodo do barbear diário. Suas estátuas, bem como as de seus sucessores, atestam devidamente a mudança. E, se mudavam os costumes do imperador, por que o restante do Império não lhe seguiria o exemplo?

(1) Cf. SUETÔNIO. De vita Caesarum, Livro I. 
(2) Ibid., Livro II.
(3) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 128. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) 9 d.C.
(5) SUETÔNIO. Op. cit., Livro VII.
(6) c. 1 d.C. - 65 d.C.
(7) SÊNECA. De brevitate vitaeO trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(8) HEKLER, Anton. Op. cit., p. 248. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(9) Da dinastia nerva-antonina, foi imperador entre 117 e 138 d.C.


4 comentários:

  1. Fazer a barba, obviamente, tem muito a ver com o grau cultural de uma sociedade. E, sendo Roma a herdeira da civilização grega e o grande farol do mundo de então, esse pormenor fazia toda a diferença. Seria pela higiene? Por questões estéticas? Seja como for, ninguém imagina os chamados povos bárbaros daquele tempo de cara rapada.

    Um bom final de semana, Marta! :)

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    1. Pelo menos exige instrumentos cortantes com alguma qualidade. Ficaria difícil fazer a barba usando facas de pedra - eu acho, mas não tenho nenhuma prática nessa questão, é claro rsrsrssssssssssss...

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  2. Com o tempo os povos ditos "bárbaros" englobaram, digo, engoliram Roma. Após a queda desse império, em todos os reinos o que se via eram robustas barbas.

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    1. E não só barbas - lembra-se dos "reis cabeludos" da dinastia merovíngia?

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