quinta-feira, 27 de julho de 2017

A escrita já era muito importante no tempo de Hamurabi

A escrita era muito importante na Mesopotâmia durante o Século XVIII a.C.; tal fato pode ser comprovado em vários trechos do Código de Hamurabi, que é dessa época. Vejamos, então, leitores, alguns exemplos:
  • Juízes deviam lavrar sentenças escritas - é o que se depreende da lei que ordenava o afastamento definitivo do juiz que pretendesse mudar uma decisão, por ter cometido um erro ou por qualquer outro motivo (¹);
  • Um homem que desse um presente valioso à mulher com quem era casado (uma área de cultivo ou outra propriedade qualquer), deveria entregar a ela um documento escrito, no qual houvesse o seu selo (²), de modo a assegurar que, morrendo ele antes da mulher, os filhos não pudessem reclamar essa propriedade como parte da herança;
  • Um procedimento semelhante era recomendado no caso de um pai que fizesse, em vida, doação de uma propriedade a um filho favorito, para assegurar que, após a morte do pai, esse filho ficasse com o presente recebido e, além disso, tivesse sua quota na herança, junto com os irmãos;
  • Um caso muito interessante ocorria quando um homem tinha uma esposa e, além dela, tinha filhos com uma escrava: a lei determinava que, morrendo o marido, a esposa teria em exclusividade seu dote e/ou bens que houvesse recebido como um presente do marido, devidamente registrados e selados em uma placa de argila, devendo esses bens, em caso de morte também da mulher, passar aos filhos que ela tivesse, e nunca aos filhos da escrava (³);
  • A sacerdotisa de um deus, não sendo casada, poderia receber de seu pai algum patrimônio como dote, desde que se desse a ela um documento escrito e selado, de modo que, morrendo o pai, mediante esse documento ela pudesse fazer de sua herança o que quisesse, sem interferência dos irmãos.
Tablete de argila com inscrição cuneiforme
A vida na antiga Mesopotâmia era complexa - depois do que acabamos de ver, quem ainda iria falar na "vida simples" dos tempos antigos? Cabe explicar que a redação dos documentos escritos ficava, como regra, a cargo de escribas profissionais, que compunham textos de acordo com fórmulas mais ou menos previsíveis (⁴).
Finalmente, a mais conclusiva das evidências quanto à relevância da escrita nesses tempos remotos pode ser esta: Se o próprio Código de Hamurabi não fosse registrado através da escrita, não teria chegado até nós, e não teríamos conhecimento dele, a não ser, talvez, através de eventuais referências indiretas.

(1) A mesma lei previa que, sendo uma pena de multa atribuída pelo juiz, em caso de erro o dito magistrado é que seria multado em nada menos que doze vezes o valor que determinara.
(2) Uma espécie de carimbo pessoal, facilmente utilizável em placas de argila nas quais se registrava a escrita.
(3) No entanto, os filhos da escrava jamais poderiam ser escravizados pelos meios-irmãos após a morte do pai.
(4) Já havia escolas nesse tempo, mas não se pode considerar que algum tipo de "alfabetização" fosse fenômeno generalizado.


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terça-feira, 25 de julho de 2017

A cobrança dos dízimos pela administração portuguesa no Brasil Colonial

Dízimos, leitores, eram cobrados da população colonial como se faria em relação a um imposto qualquer. Funcionava assim:
  • Era o Estado português que cobrava os dízimos, ficando encarregado, por isso, de prover tudo o que se relacionava ao sustento da Igreja e do clero;
  • Como regra geral, em lugar de fazê-lo diretamente, o governo lusitano arrendava a cobrança a alguém que pagava um valor antecipado (um "contratador dos dízimos"), e que, por isso, ficava com o direito à arrecadação junto aos "contribuintes", com todas as consequências daí decorrentes, que os leitores não terão dificuldade em imaginar;
  • Também como regra geral, o dízimo era arrecadado em espécie (até porque, nos dois primeiros séculos da colonização, quase não havia dinheiro amoedado no Brasil).
A questão intrigante que se levanta é esta: por que o Estado, e não a Igreja, fazia a cobrança dos dízimos? De acordo com João Manuel Pereira da Silva, "cabendo aos reis de Portugal, pela bula pontifícia de 1551, na qualidade de grão-mestres das três ordens militares de Cristo, Avis e Santiago, os privilégios de inteira jurisdição espiritual e eclesiástica sobre as suas conquistas, chamou a si a Coroa portuguesa o direito à cobrança do imposto do dízimo nas colônias, o qual no Reino e em vários Estados católicos da Europa, pertencia ao clero, formando a base da sua subsistência e da manutenção do culto divino [...]." (¹)
O pagamento dos dízimos era compulsório e pressupunha que os colonizadores teriam direito a receber assistência religiosa. Esta, porém, não estava disponível em grande parte do Brasil - não foram poucos os autores que referiram o fato de haver localidades em que jamais pisava um padre, não ocorrendo, pois, sequer celebração de missa, é preciso frisar, em tempos nos quais se entendia que morrer sem os sacramentos era uma terrível maldição.
Tudo isso considerado, veremos, agora, alguns casos interessantes, relativos à cobrança dos dízimos no Brasil. Referindo-se à produção de açúcar nos engenhos coloniais, Antonil observou:
"Tira-se também o dízimo, que se deve a Deus, que vem a ser de dez, um; e ele fica no engenho e põe-se nas caixas, que antecipadamente manda o contratador dos dízimos ao caixeiro vazias, e dele as torna a cobrar cheias." (²)
Análoga era a situação quanto ao tabaco que se produzia e exportava:
"Beneficiado e enrolado o tabaco, e pago o seu dízimo a Deus [...], como consta do arrendamento do dízimo [...], vem pagando seis carretos e fretes para a Cidade da Bahia, até se meter em uma sua própria alfândega, aonde se despacham para Lisboa, um ano por outro, de vinte e cinco mil rolos para cima [...]." (³)
Nem mesmo a população indígena ficava isenta do pagamento dos dízimos. Neste caso, porém, foi proposto um sistema de cobrança per capita, e não percentual, conforme se vê em documento citado por Varnhagen na segunda edição da História Geral do Brasil"Como, entre os índios, não se podem bem averiguar estes dízimos [...], visto não saberem contar até dez, ordenaram os predecessores de Vossa Majestade que pagassem tais dízimos por encabeçamento [...]." (⁴) Esse documento, de autoria de Bento Maciel Parente, é datado da primeira metade do Século XVII.
Finalmente, leitores, iremos considerar um caso absolutamente escabroso de pagamento de dízimos, ocorrido quando paulistas, havendo atacado missões jesuíticas, repassaram a dois clérigos que os acompanhavam como capelães (!!!) uma parte dos indígenas aprisionados para escravização. Foi o que relatou o missionário Antonio Ruiz de Montoya:
"O número de pessoas que levaram não se sabe (⁵), algo se rastreará pelo dízimo que pagaram à Igreja: deram ao religioso, como sua quota, quinhentas pessoas, de modo semelhante ao pecuarista que paga o dízimo de ovelhas ou vacas; ao clérigo entregaram duzentos [índios]." (⁶)
Como já foi dito, o dízimo, no Brasil Colonial, devia ser pago à administração portuguesa, e não diretamente à Igreja; neste caso, porém, tão ilegal quanto a expedição de apresamento, foi a entrega de escravizados aos dois capelães, a não ser por um detalhe: as missões atacadas e destruídas ficavam em território colonial espanhol, e não lusitano.

(1) SILVA, João Manuel Pereira da. História da Fundação do Império Brasileiro Tomo I. Rio de Janeiro: Garnier, 1864, p. 160.
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 90.
(3) Ibid., p. 120.
(4) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 493.
(5) Quando atacavam as missões ou reduções, era comum que bandeirantes matassem a todos que opunham resistência; além disso, muitos indígenas aprisionados morriam no caminho até São Paulo ou nos primeiros tempos de escravidão. É por isso que Montoya não sabia dizer com exatidão quantos índios haviam sido levados.
(6) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 20 de julho de 2017

Horticultura e jardinagem na Idade Média

Walahfrid Strabo, um monge beneditino do Século IX, era tão apaixonado pelas plantas que cultivava que, em homenagem a elas, escreveu um poema (naturalmente em latim), chamado Hortulus. Por isso, sabemos que em seu jardim havia, entre outros cultivos, sálvia, arruda, abrótano, melão, absinto, marrúbio, erva-doce, íris, levístico, cerefólio, lírio, papoula, sálvia-esclareia, menta, poejo, aipo, bardana, agrimônia, erva-dos-gatos, rabanete e rosas. Ufa...
Aqueles dentre os leitores que sonham em cultivar um terreno ao estilo medieval já têm um ponto de partida. Alguns vegetais da lista de Strabo não são encontrados no Brasil, mas sua coleção tampouco dava conta de todos os cultivos usuais na Europa Medieval. Um número bem maior de espécies era conhecido, dependendo, é certo, das condições climáticas de cada região (¹).
Muitos jardins medievais seriam, para nossos padrões, um misto de horta, jardim e pomar, visto que, neles, era possível encontrar legumes, verduras, flores, ervas aromáticas e medicinais e até árvores frutíferas. Como não havia lojas onde comprar sementes e mudas, o jardineiro devia, necessariamente, tratar de conservar sementes de uma safra para outra, se quisesse plantar as mesmas espécies no ano seguinte. Viajantes que, vez ou outra, passavam pelo lugar, podiam trazer preciosas amostras de espécies ainda desconhecidas e cujo cultivo seria experimentado com prazer.
Quem quiser entender o que eram a horticultura e a jardinagem na Idade Média precisará deixar de lado muito do que se sabe dessas práticas na atualidade. As ferramentas disponíveis não eram das mais eficientes; tampouco havia a indústria química para fornecer fertilizantes, herbicidas e outros produtos - tais coisas estavam ainda muitos séculos no futuro (²). Como sempre, porém, era preciso cavar a terra, adubar, remover ervas daninhas e, algumas vezes, tomar providências para manter as aves bem longe dos canteiros.
O cultivo da terra, mesmo em pequena escala, era, porém, indispensável à vida. Afinal, de onde é que viriam as ervas para medicamentos, para alimentação, para compor os cosméticos da época, para usos relacionados à limpeza e cuidados das casas? No universo das "pessoas comuns", hortas e jardins eram cultivados, portanto, com o propósito de suprir necessidades quotidianas, mas mesmo eruditos (³) não desdenhavam os prazeres da jardinagem. Sem pôr as mãos na terra, não seria possível que um bom número deles pudesse escrever obras sobre técnicas de cultivo, como de fato o fizeram (⁴).
E quanto aos servos? A eles, como regra geral, competia a agricultura em larga escala, não como um prazer, mas como uma obrigação (⁵). Os campos em que eram cultivados cereais estavam sob sua responsabilidade. Em termos de estratificação social, esses trabalhadores eram vistos sempre como inferiores. No entanto, toda a sociedade medieval dependia deles para sobreviver.

Trabalhando em um jardim (⁶)

(1) Há divergências quanto à identificação de várias espécies mencionadas em escritos medievais, mas a seguinte lista, contendo em ordem alfabética alguns cultivos mais comuns e seguramente reconhecidos, dará uma ideia aos leitores daquilo que podia ser encontrado num belo jardim, fosse em um claustro ou na propriedade de algum secular: abrótano, absinto-selvagem, acônito, agrimônia, aipo, alcaravia, alecrim, alho, anis, arruda, aspargo, avelã, azevinho, bardana, borragem, cálamo, calêndula, camomila, carvalho, cebola, cerefólio, cereja, chicória, coentro, cominho, dedaleira, dente-de-leão, doce-cecília, edelweiss, endívia, erva-doce, erva-dos-gatos, estragão, funcho, hissopo, hortelã, íris, jacinto, junípero, lavanda, levístico, lírio-do-vale, louro, maçã, malva, manjericão, manjerona, marmelo, marrúbio, melão, melissa, miosótis, mirtilo, morango-silvestre, mostarda-preta, narciso, papoula, peônia, pera, poejo, prímula, rabanete, rosa, salsa, sálvia, sálvia-esclareia, segurelha, tília, tomilho, uva, valeriana, verbasco, violeta-doce.
(2) Decidir se são boas ou más fica por conta de vocês, leitores.
(3) Membros do clero ou não.
(4) Levando em conta algumas características da mentalidade tipicamente medieval, é admissível conjecturar que a posição de honra atribuída à jardinagem tivesse fundamento religioso: "plantaverat autem Dominus Deus paradisum voluptatis a principio in quo posuit hominem quem formaverat / [..] tulit ergo Dominus Deus hominem et posuit eum in paradiso voluptatis ut operaretur et custodiret illum" (Liber Genesis II, 8, 15)
(5) Portanto, a nobre jardinagem seria uma recordação do trabalho que mantinha o homem ocupado antes do funesto bate-papo com a serpente; o trabalho dos servos em cultivar os campos corresponderia à maldição que acompanhara a expulsão do Paraíso: "maledicta terra in opere tuo in laboribus comedes eam cunctis diebus vitae tuae" (Liber Genesis III, 17)
(6) Imagem publicada em edição do Século XVI para uma obra de Pietro de' Crescenzi, autor medieval (Séculos XIII e XIV). A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 18 de julho de 2017

Simão, um herói negro no Brasil escravista

Foi em 9 de outubro de 1853: uma embarcação a vapor, que vinha do Rio Grande do Sul para o Rio de Janeiro com mais de oitenta pessoas a bordo, naufragou em meio a uma tempestade. Trágico, sim, mas poderia ser muito pior, não fora a audácia de um foguista chamado Simão. Excelente nadador, salvou a vida a nada menos que treze pessoas. Sua ação causou comoção nacional. É que num país escravista, como era então o Brasil, o herói do dia, ainda que de condição livre, era negro e africano.
Em sua primeira página, a edição de 18 de novembro de 1853 do jornal Marmota Fluminense trazia um poema que homenageava o cabo-verdiano Simão:

"Com mais de oitenta pessoas
Vinha o vapor brasileiro
- Pernambucana - em viagem
Para o Rio de Janeiro.

Por cima de verdes águas,
Deixara tranquila a barra 
do Rio Grande do Sul.
[...]
Eis que súbita rebenta
Procelosa tempestade
[...]
Soberbo o mar encrespado
Todo o navio alagou,
E das caldeiras o fogo,
Como de um sopro apagou!...
[...]
Salta o leme, e o barco à toa
Já sem rumo, e sem governo
Levado foi ao naufrágio
[...]
SIMÃO, um preto foguista,
Que no navio existia,
E de quem sequer o nome
Muita gente não sabia;

SIMÃO, que era marinheiro,
E de preto tinha a cor,
Natural de Cabo Verde,
Homem de força e valor;

Lança-se ao mar, e consigo, 
Leva uma comprida espia,
Que na praia a custo prende,
Segundo o caso exigia.

Cada qual busca salvar-se,
E salvar o que era seu;
Ninguém pelos mais arrisca
A vida que Deus lhe deu!

SIMÃO que, sendo já livre,
Podia o mesmo fazer,
Porque tinha, como os outros,
Uma vida que perder;

Para o vapor vai da praia
Nadando, gente buscar,
E dele à praia conduz
Náufragos... sempre a nadar!...

Assim, de treze pessoas
SIMÃO a vida salvou:
Quantos perigos não teve!
Quanto isto lhe não custou!
[...]
Se o que salva uma só vida
Tem prêmio, e título de glória,
O que treze vidas salva,
Que nome terá na história?
[...]."

Já na página 3, a mesma edição da Marmota Fluminense trazia a versão em prosa dos acontecimentos:
"O desgraçado acontecimento do naufrágio do Vapor Pernambucana fez aparecer, em 1853, um Herói, um Preto, que cheio de coragem e amor pela humanidade, lançou-se ao mar, não uma, mas muitas vezes, e arriscando em cada uma delas a vida, foi assim salvando a de quantos passageiros nele, e só nele tinham fitos os olhos! Isto é tanto mais louvável quanto, sendo ele Preto, todos aqueles a quem salvava eram Brancos, entrando neste número senhoras casadas, moças donzelas e crianças, a quem ele respeitava e animava cheio de confiança em si! Cansado já da luta, sentindo enfraquecidas as pernas do resfrio do mar, estendeu-as uma vez sobre a praia, e esfregando-as com areia, pôde assim restabelecer a circulação do sangue e conseguir seus desejos, até onde puderam chegar suas forças, e lhe permitiram as circunstâncias!"
Talvez as palavras do jornal soem algo preconceituosas aos leitores de hoje; lembremo-nos, todavia, de que a publicação, assim como o acontecimento a que se refere, vêm de 1853, quando o Brasil era um Império escravista, e mesmo o tráfico de africanos fora há pouco abolido em definitivo (¹). Mas, para fazer justiça à redação do jornal, dever-se-ia reconhecer que, ao mencionar o fato de que Simão era negro, enquanto brancas eram as pessoas que ele salvou, propunha-se à Nação, indiretamente, o debate de um assunto que era verdadeiro tabu no Brasil, e que sobreviveu à Lei Áurea: a questão do preconceito racial.
No dia 7 de julho de 1866 (²), Elizabeth Cary Agassiz anotou em seu diário de viagem, depois haver estado no Museu de Belas-Artes do Rio de Janeiro:
"A única tela interessante da galeria atrai a atenção muito menos pelo mérito do autor do que pelas circunstâncias cuja recordação perpetua. É o retrato de um negro que, durante um naufrágio nas costas do Brasil, salvou, com risco de vida, grande número de passageiros; já havia conduzido à praia vários deles; disseram-lhe que a bordo haviam ficado ainda duas crianças; ele se atirou mais uma vez às ondas e conseguiu trazê-las para a praia [...]." (³)
Recordando que, nas semanas seguintes ao naufrágio, o retrato de Simão, impresso em uma gráfica, foi distribuído e até oferecido como presente no Rio de Janeiro, somos levados à conclusão, meus leitores, de que a façanha do foguista cabo-verdiano forçou o Brasil a refletir sobre a condição dos negros e, por extensão, dos escravos na sociedade. O movimento abolicionista que ia, aos poucos, tomando forma, ganhava uma situação concreta, a partir da qual era possível argumentar, ao menos em termos humanitários. Aspectos políticos e econômicos seriam reforçados após a conclusão da guerra contra o Paraguai.

(1) Lei Eusébio de Queirós, 1850.
(2) Quase treze anos após o naufrágio, portanto.
(3) AGASSIZ, Jean Louis R. et AGASSIZ, Elizabeth Caryt Viagem ao Brasil 1865 - 1866t Brasília: Senado Federal, 2000, p. 435.


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quinta-feira, 13 de julho de 2017

Causas da decadência do Império Romano

Já estão aqui no blog duas postagens que introduziram o assunto das causas do declínio e queda de grandes impérios. Se vocês ainda não correram os olhos por elas, talvez seja útil fazê-lo, antes de entrar na questão de hoje, que trata da decadência do Império Romano. Aqui estão os links:
- Ascensão e decadência de impérios, de acordo com Heródoto;
- Sêneca e sua teoria sobre a decadência dos impérios.

Houve quem atribuísse o declínio de Roma à expansão do cristianismo, cujas ideias pacifistas teriam tornado o exército pouco apto para o combate e, portanto, também para a defesa das fronteiras. Ficaremos, no entanto, com aquelas que são as causas mais frequentemente apontadas, para que vocês, leitores, depois de alguma reflexão, possam construir sua própria interpretação dos fatos. 
Grande extensão do Império, dificultando o controle sobre áreas remotas - Diferentes povos, com uma variedade de culturas, todos submetidos a um só governo, nem sempre adequado às condições locais, tornavam difícil a administração; o Império chegou a ser tão extenso que, ocorrendo uma invasão ou outro problema qualquer em determinada área, levava muito tempo até que a notícia chegasse a quem devia tomar decisões. As providências, não raro, aconteciam tarde demais.
Invasões bárbaras (¹) - Povos bárbaros forçavam as fronteiras de Roma desde os tempos da República. Ocorre que, então, o exército romano era forte o bastante para repelir as tentativas de invasão (²). Mais tarde, bárbaros foram assimilados no Império, e o exército passou a admitir um grande número deles em suas fileiras. As invasões dos Séculos IV e V somente vieram a ser um fator de desagregação do Império porque este já era demasiado fraco em sua capacidade de resistência.
Elevados impostos e tributos - As diferentes contribuições impostas aos cidadãos e aos povos dominados, necessárias, por exemplo, para custear o exército e manter as distribuições periódicas de cereais (³), retiravam recursos das atividades produtivas e empobreciam a população, gerando descontentamento e revoltas sociais. Mais ainda: sendo Marco Aurélio imperador, o direito de cidadania tornou-se extensivo às províncias, apenas com a finalidade de cobrar mais impostos. O sentido de ser um romano estava, com isso, desaparecendo.
Número exagerado de desocupados entre a população - Este problema era antigo; nasceu com o sucesso de Roma em suas incursões militares. Povos vencidos foram escravizados e, com isso, parte da população livre, não encontrando trabalho, passou a depender do Estado para sobreviver (⁴). 
Lutas sociais -  Aconteciam desde a República. A princípio, eram os plebeus que exigiam mais direitos (⁵); depois, vieram as revoltas de escravos (⁶) e as agitações no tempo dos irmãos Tibério e Caio Graco, as sedições provocadas por desocupados, as rebeliões por falta de víveres e outras mais.
Corrupção - Quem estava no poder, em qualquer esfera que fosse, buscava, como regra geral, extrair a maior vantagem econômica possível da função que ocupava. O problema era muito grave, particularmente na administração das províncias (⁷), cujos habitantes, percebendo que eram explorados além do previsto, viviam sempre prontos para uma rebelião.
Enfraquecimento da disciplina do exército - A disciplina de seu exército transformara em potência a modesta cidade-Estado que era Roma; foi justamente o enfraquecimento dessa disciplina um dos fatores mais importantes para o declínio do Império, à medida que candidatos à sucessão no trono imperial compravam, literalmente, o apoio dos soldados. O resultado dessa prática desastrosa foi que o exército passou a apoiar aquele que pagasse mais, não vacilando em assassinar um imperador para elevar ao poder algum outro que oferecesse mais dinheiro. Ainda em relação ao exército, chegou o tempo em que, devido à extensão do Império e, portanto, também das fronteiras que deveriam ser vigiadas, já não era possível recrutar apenas romanos para a carreira das armas. Nasceu daí a necessidade de recrutar "auxiliares" (mercenários) nas províncias para completar as legiões (⁸). Tal fato contribuiu para enfraquecer o exército romano, que, afinal, já não era tão romano assim.
Declínio dos valores e da moralidade - Para quem acha que falar em decadência de valores é "politicamente incorreto", será útil lembrar que o assunto era alvo de debates recorrentes no Senado romano (⁹). Dizia-se que os homens que haviam liderado Roma na conquista do mundo primavam pela frugalidade, economia e amor ao trabalho. O contato com outras civilizações introduzira em Roma o amor pelo luxo (¹º) e pela ostentação; a chegada de multidões de escravizados, em consequência das conquistas militares, fizera do trabalho um constrangimento (¹¹). Leis foram impostas com a intenção de restaurar os antigos costumes, mas não tiveram o efeito desejado.
Vejam, leitores, que não é nada razoável apontar para uma causa, apenas, e dizer: É esta a responsável pela decadência de Roma! Muito mais sensato é perceber que o declínio foi um processo lento, que já estava em ação quando o Império se imaginava no auge do poderio. Como todos os grandes impérios do passado, Roma também chegou ao fim. Deixou, todavia, um legado relevante, que persiste até nossos dias.

(1) Os romanos chamavam "bárbaros" a todos aqueles cuja língua materna não era nem o latim e nem o grego.
(2) Apesar disso, César relatou, em De Bello Gallico, que a fama da força física e da coragem dos germanos deixava apavorados os soldados de Roma.
(3) Esses cereais eram, como regra, importados (principalmente do Egito).
(4) A política de "pão e circo" se insere nesse contexto.
(5) Basta lembrar as retiradas da plebe para o Monte Sagrado.
(6) A Revolta de Espártaco é a mais conhecida, mas não foi a única.
(7) Tácito afirmou no livro XII dos Annales que Félix, governando a Judeia, "entendia poder fazer, impunemente, qualquer malefício".
(8) No Livro II de Rerum Romanarum, Aneu Floro afirmou que, diante da necessidade de mais homens para lutar contra os cartagineses comandados por Aníbal, até mesmo escravos foram incorporados ao exército romano.
(9) Tácito, no Livro II dos Annales, registrou que, durante o governo de Tibério, um decreto para cercear a "desonestidade das mulheres" de condição nobre foi posto em vigor.
(10) Tito Lívio, em Ab urbe condita libri, afirmou que foram as tropas de L. Cornélio Cipião, quando voltaram da guerra contra Antíoco, as primeiras a "introduzir em Roma os hábitos de luxo dos estrangeiros".
(11) De acordo com Floro, os jogos foram criados para dar uma ocupação aos soldados, quando estes não se encontravam ocupados em campanhas militares.


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terça-feira, 11 de julho de 2017

Executados em efígie

Quando um sentenciado à morte não estava preso e não podia ser capturado, era executado em efígie (¹). O que acontecia era uma encenação da execução (como, por exemplo, no caso de um boneco ser queimado em um auto de fé), e o indivíduo era declarado legalmente morto, inclusive com documentação comprobatória, de que se seguiam todos os efeitos legais. Esse morto-vivo ou vivo-morto que escapulira da Justiça não tinha mais direito algum e, ainda que continuasse a viver biologicamente, era considerado morto, para a família e para a sociedade.
Estranho? Talvez, mas não exatamente incomum. Dos três condenados à morte pela Revolta de Beckman no Maranhão em 1684 - Manuel Beckman, Jorge de Sampaio e Francisco Dias de Eiró - um deles, o último, foi executado em efígie; os outros dois morreram "de verdade", quer dizer, foram enforcados. Conforme registrou Berredo, "condenados todos a morte natural, com Francisco Dias de Eiró [...], neste se executou só em estátua, porque soube cuidar na salvação da vida, que perderam no infame patíbulo, por tão justa sentença, Jorge de Sampaio e Manuel Beckman [...]." (²) Sabe-se também que, dos responsabilizados pela entrega da cidade do Rio de Janeiro a invasores franceses em 1711, ao menos um foi executado em efígie: foi Antônio Soares, a quem competia o comando na fortaleza de São João. 
Não me perguntem, leitores, se havia alguma vantagem em fugir de uma sentença de morte e continuar a viver, a despeito da execução em efígie. Cabe apenas a conjectura de que, num território tão vasto como o Brasil, alguém, nessa situação, podia perfeitamente desaparecer das vistas dos conhecidos, indo passar o resto de seus dias (com outro nome) em algum lugar distante, sem que ninguém desconfiasse de sua verdadeira identidade. Na Europa da época, no entanto, a situação seria muito mais complicada.

Uma execução "de verdade": enforcamento de conspiradores (³)

(1) Ou "em estátua" - é a mesma coisa.
(2) BERREDO, Bernardo Pereira de. Annaes Históricos do Estado do Maranhão. Lisboa: Officina de Francisco Luiz Ameno, 1749, p. 624.
(3) A.P.D.G. Sketches of Portuguese Life. London: Geo. B. Whittaker, 1826. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 6 de julho de 2017

Estudantes malcomportados no Império Romano

Aurelius Augustinus era professor de retórica. Hoje não são muitos os estudantes que se dedicam a essa disciplina, mas em Roma ela era muito valorizada, porque qualquer jovem com pretensões a uma carreira intelectual e/ou política precisava aprender a falar de forma clara e persuasiva.
É verdade que Augustinus, o professor, não era, nesse tempo, nenhum candidato à canonização, conforme ele mesmo reconheceria em suas Confissões - só mais tarde é que esse cidadão romano nascido em Tagaste, no norte da África, ficaria conhecido como Santo Agostinho. Dava aulas de retórica porque a remuneração era boa e, portanto, ensinava a seus discípulos toda a argumentação necessária para a defesa de algo ou alguém, independente da honestidade do propósito, que podia ser mesmo a absolvição de um criminoso. A ética, já se vê, acabava em segundo plano (se é que tinha algum espaço). Mas, se o professor não era ainda um santo, seus alunos também estavam longe disso. 
Irritava-se Augustinus com a conduta dos estudantes em Cartago. Eram uns arruaceiros, se devemos crer nele, que andavam de uma sala de aulas para outra, sem grande respeito pelos professores e pelos rapazes mais sérios, que queriam, de fato, estudar. Faziam tais coisas, é claro, na certeza da impunidade.
Acreditando que na velha Roma a conduta dos alunos devia ser melhor, para lá viajou Augustinus, a fim dar prosseguimento à sua carreira docente. Logo se tornou conhecido como professor, ainda que, com desgosto, tenha constatado que a algazarra estudantil não era, ali, menor que em Cartago. Talvez fosse até pior: bandos de estudantes entravam em acordo e, sem pagar o que haviam combinado com um professor, passavam para a escola de outro. Que vergonha!
Nesse momento, o Império Romano estava, já, em franca desagregação, o que talvez explique, ao menos parcialmente, o comportamento desregrado dos estudantes. A conduta dos jovens era, de uma só vez, parte e consequência desse processo. Supõe-se que nos dias de Cícero, por exemplo, nenhum jovem aspirante à carreira política ousaria insultar o professor.
Depois de algum tempo, Augustinus decidiu ir trabalhar em Milão, onde, afinal, aconteceria a mais radical mudança em sua vida. Até ali um adepto do maniqueísmo, começou a tomar real interesse pelo cristianismo (¹), ao ouvir as prédicas do bispo Aurelius Ambrosius (²). Entre o estilo de vida que levava e aquele preconizado pelos cristãos havia uma grande diferença, de modo que, a princípio, Augustinus resistiu à ideia do batismo. Afinal, depois de ser catecúmeno, foi batizado em 387 d.C., abandonando o ensino da retórica para dedicar mais tempo aos assuntos de sua nova fé. Acabava o professor, mas estava nascendo o religioso que, por séculos, ditaria o pensar teológico da Igreja.

(1) Sua mãe já era cristã.
(2) Mais tarde conhecido como Santo Ambrósio.


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terça-feira, 4 de julho de 2017

Preparativos dos indígenas quando iam à guerra

A preparação de muitos povos indígenas, quando se tratava de fazer guerra ofensiva, envolvia várias etapas.
Era necessário ter, por suposto, uma grande quantidade de armas: arcos (que os homens aprendiam a manejar desde a infância), muitas flechas, tacapes e lanças de madeira, dentre outras. 
Mas não era só. De acordo com Yves d'Évreux (¹), que afirmou ter investigado o assunto acuradamente, toda a tribo era envolvida nos aprestos, havendo muito cuidado em preparar alimentos suficientes para que nenhum guerreiro deixasse, por falta de sustento, de combater no máximo de sua capacidade:
"[...] As mulheres e suas filhas preparam a farinha de munição, e em abundância, por saberem, naturalmente, que [...] a fome é a coisa mais perigosa num exército [...]." (²)
Explicando, de passagem, que "farinha de munição" era um tipo de farinha de mandioca, já vamos constatando que, enquanto isso, os homens estavam, também, em grande atividade. É que, para muitos grupos indígenas, o deslocamento até o território inimigo era feito por mar ou por rios, sendo, portanto, indispensável a confecção de canoas grandes e resistentes - aqueles soberbos exemplares cavados no tronco de uma única árvore, que podiam levar, cada um, vinte ou trinta combatentes:
"[...] Empregam-se os homens em fazer canoas ou consertar as que já possuem próprias para esse fim, porque é necessário que sejam compridas e largas para levarem muitas pessoas, suas armas e provisões [...]." (³)

Indígenas em uma canoa (⁴)

Finalmente, era preciso cuidar de um aspecto que, para nós, talvez pareça supérfluo, mas que, entre os indígenas, era visto como essencial:
"[...] Preparam suas penas, tanto para a cabeça, braços e rins, como para as armas." (⁵)
No contexto cultural dos povos indígenas, a ornamentação de armas e homens com penas de aves podia ter vários significados, além, é claro, do aspecto puramente estético. Manter uma tradição era um dos motivos, de acordo com o padre d'Évreux:
"Quis saber por intermédio do meu intérprete por que traziam sobre os rins [...] penas de ema: responderam-me que seus pais lhes deixaram este costume para ensinar-lhes como deviam proceder na guerra, imitando a ema, pois quando ela se sente mais forte ataca atrevidamente o seu perseguidor, e quando mais fraca abre suas asas, despede o voo e arremessa com os pés areia e pedras sobre seus inimigos; assim devemos fazer, acrescentavam eles. [...]." (⁶)
Outra razão que se tem aventado para esse colorido costume de usar penas de araras, emas, papagaios e outras aves (⁷) seria de caráter ritual, à medida que qualidades e virtudes tidas como desejáveis nessas criaturas seriam, magicamente, compartilhadas pelos guerreiros, em sua condição de representantes, guardiões e herdeiros das façanhas bélicas empreendidas pelos antepassados. Juntemos a isso o orgulho pessoal de cada indígena que queria, no combate, aparecer do modo mais favorável ao realizar suas proezas, e um intenso desejo de intimidar o adversário, e já teremos, leitores, um panorama do que ocorria nas semanas de preparo que antecediam as lutas entre grupos, cuja inimizade, não raro, era cultivada desde tempos remotos.

Indígenas atacando uma aldeia (⁸)

(1) Capuchinho francês que esteve no Brasil entre 1613 e 1614.
(2) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 20.
(3) Ibid., p. 21.
(4) D'ORBIGNY, Alcide. Voyage Pittoresque dans les Deux Amériques. Paris: Furne et Cie., 1841.
(5) D'ÉVREUX, Yves. Op. cit., p. 21.
(6) Ibid., p. 22.
(7) Além de outros materiais de origem animal.
(8) DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837.


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