quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

As cidades do futuro, na imaginação de quem vivia em 1929

Os dias finais de dezembro costumam ser férteis em previsões quanto ao que acontecerá no ano seguinte. Para bem dos supostos profetas, esses vaticínios são habitualmente esquecidos em razão da luta quotidiana que faz questão de comparecer a cada janeiro. Vejam como exemplo, leitores, o que aconteceu com o ano de 2020: se, por curiosidade, voltarem às profecias feitas no final de 2019, terão diversão garantida.
Era dezembro de 1929. A revista carioca O Malho trouxe este curioso prognóstico quanto às cidades do futuro, coisa de quarenta ou cinquenta anos adiante:
"Arranha-céus de duzentos ou trezentos andares, que ocupem áreas correspondentes a quatro ou cinco dos grandes quarteirões da atualidade, separados por vastos parques e locais para estacionamento de automóveis; aeroportos; grandes terraços com jardins; calçadas suspensas a cem ou duzentos metros do solo; paredes de vidro, que permitam a entrada da luz e do sol nos compartimentos mais interiores; garagens de tetos planos e muito elevados para a descida de máquinas aéreas tipo helicópteros; gigantescos hospitais aéreos, com paredes de cristal, suspensas sobre a cidade, a alturas fantásticas, a fim de proporcionar aos enfermos ar puro acima das nuvens.
Tudo isto é coisa infalível, que verão, desassombrados, talvez, os nossos olhos, daqui a quarenta ou cinquenta anos." (*)
Bem, leitores, a coisa seria para 1970 ou 1980, e nós, no final de 2020, vemos, felizmente, pouco disso por aí. É verdade que os estacionamentos se multiplicaram e parecem nunca ser suficientes, que aeroportos se tornaram indispensáveis e que prédios mais altos às vezes têm um heliporto, mas não se vê, em lugar algum, construções com trezentos andares. Paredes externas quase totalmente de vidro existem e são facilmente encontradas, mas não creio que as internas, com essa característica, sejam sequer desejáveis. Quanto às calçadas e hospitais aéreos... Nem parques de diversões são assim. Alguns doentes talvez morressem de desespero, só em olhar para baixo.
Mas, como disse, essa previsão parcialmente fracassada foi oferecida ao público no final de 1929. Lembrem-se, leitores, de que foi esse o ano em que eclodiu a maior crise econômica do Século XX. Multidões de desempregados, sem ter onde viver com a família, produção encalhada nas lavouras e nas fábricas por falta de compradores, grandes fortunas desfeitas em questão de horas e a sombra do totalitarismo ganhando o apoio dos crédulos e desesperados - esse era o cenário daqueles dias. Sonhar com um futuro brilhante, limpo e luminoso, com conquistas incríveis na arquitetura, nos transportes, na saúde, podia ser, ao menos, um magro consolo, diante da dura realidade, observável em quase todo lugar. 

(*) O MALHO, Ano XXVIII, nº 1422, 21 de dezembro de 1929.


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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Contra mosquitos, baratas e ratos

Compartilhar este planeta com certas espécies não tem sido exatamente uma aventura agradável para a humanidade, ainda que se reconheça o papel ecológico até de seres incômodos como são as baratas. Quem é que gosta delas? Aquelas longas antenas perscrutando o ambiente para uma investida desafiam a persistência até de maníacos por limpeza.
Guerra declarada contra baratas, portanto, mas não só contra elas. O Echo Phonographico, uma espécie de catálogo de produtos que podiam ser adquiridos pelo correio, trazia, em 1904, estes dois anúncios:
"Pó exterminador: o único infalível para extinguir pulgas, percevejos, mosquitos e outros insetos. Preço 1$000." (¹)

"Mata barata: Duas ou três latas acabam completamente com todas as baratas em sua casa. Preço da lata 1$600 réis." (²)
Que ilusão! Extinguir insetos? Talvez nem seja desejável. O mais bizarro, contudo, é este anúncio de uma espingarda de ar comprimido, que apareceu na mesma edição do Echo Phonographico:
"Sólida, atirando bolas de chumbo ou flechas, servindo para matar ratos e outros bichos. Tem boa pontaria.
Preço 15$000, com 12 flechas e 200 bolas 20$000. Frete a pagar [....]." (³)


No começo do Século XX a população rural era predominante. Seria desastroso, em um sítio ou fazenda, se ratos tivessem a péssima ideia de infestar o celeiro. Combatê-los com eficiência tinha a maior importância. A solução proposta pelo Echo Phonographico era inusitada, e isso é o mínimo que se pode dizer (⁴). Quem é que pensaria em deter uma praga de ratos com flechadas?  
Tentem imaginar, leitores, um fazendeiro furioso, ao perceber indícios da presença de ratos em seu estoque de milho; empunha, portanto, a dita espingarda, carrega uma flecha e um exército de murídeos à sua frente, como a zombar da pontaria, corre em todas as direções. Estranho desporto, esse... 

(1) ECHO PHONOGRAPHICO, Ano III, nº 22, janeiro de 1904.
(2) Ibid.
(3) Ibid.
(4) Não é improvável que esse brinquedinho pérfido fosse usado para matar pássaros.


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quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Cristãos em Roma

É fim de tarde e, apesar do movimento ainda grande na rua, Gaius começa a guardar seus apetrechos de sapateiro para fechar a oficina. Ele é conhecido em toda a cidade por fazer excelentes calçados para damas. Tem consciência e um justo orgulho de suas habilidades. Para um artesão livre como ele, isto significa respeito e uma situação econômica que, se não o faz rico, ao menos permite uma vida sem grandes dificuldades. À medida que as horas de luz se desvanecem, também nas oficinas vizinhas os trabalhadores, quer livres, quer escravos, vão encerrando a jornada. Tochas são acesas, o movimento de pedestres diminui, enquanto cresce o de carroças e carregadores que fazem chegar à cidade as mercadorias que vêm de longe.
Gaius olha, afoitamente, para um e outro lado, com a estranha sensação de estar sendo observado. Parece que alguém o segue. Um legionário, o que quererá? A cidade e o Império passam por tempos difíceis, as denúncias falsas e as extorsões não são raras. Bobagem, só uma impressão...
Não é. Gaius apressa o passo, tentando não mostrar qualquer alteração na fisionomia. Inútil. A respiração vai se tornando ofegante, as mãos suam frio. Logo ali está uma taberna. Entra, pede um pouco do cozido que fumega, paga por ele, tenta comer. O legionário entra e, olhando discretamente na direção de Gaius, também pede o cozido e pão. Aproxima-se do sapateiro, mergulha um dos dedos no caldo e, sobre a madeira, com dois movimentos, faz um tosco desenho. Gaius observa, esboça um tênue sorriso, assente com a cabeça, respira aliviado. O jantar modesto torna-se saboroso, sapateiro e soldado comem sem proferir qualquer palavra. O legionário parte o pão em bocados que fazem a alegria de alguns cães que estão por ali e que, agradecidos, abanam a cauda. 
Os dois homens saem e, logo adiante, enveredam por uma rua menos movimentada. O soldado voltara à cidade há pouco, depois de um tempo de serviço na Ásia Menor. Fora lá que um dia, na rua, ouvira um orador itinerante. Ideias novas, sim, mas persuasivas. Antes do retorno, alguém lhe dissera para, na capital do Império, procurar Gaius, o sapateiro. Estivera a observá-lo, esperando o momento de, sem ofensa à discrição, falar com ele. 
Caminhando sempre, chegam a uma área da cidade em que se veem casas habitadas por famílias de algumas posses.
- É aqui...
À porta, um escravo reconhece Gaius, mas franze a testa ao ver o legionário que, de imediato, traça no ar o mesmo sinal que, há pouco, usara para ser reconhecido pelo sapateiro. Assim identificado, é admitido. Passam por um corredor e logo estão em um pátio, de onde se vê, sob o brilho do luar, um jardinzinho bem-cuidado. Ao fundo, luzes oscilantes de candeia denunciam o lugar de reunião, e é para lá que se dirigem, já ouvindo a voz de alguém que lê.
Entram. É Urbanus, dono da casa, o leitor. Rodeiam-no a família, alguns escravos, alguns amigos. Os recém-chegados se acomodam, a leitura recomeça. De vez em quando, breve pausa para alguma explicação. São irmãos de fé.
Um quarto de hora mais tarde, finda a leitura, com olhos semicerrados, sussurram um cântico:
"...sed semet ipsum exinanivit formam servi accipiens in similitudidem hominum factus et habitu inventus et homo
humiliavit semet ipsum factus oboediens usque ad mortem mortem autem crucis
propter quod et Deus illum exaltavit et donavit illi nomem super omne nomem
ut in nomine Iesu omne genu flectat caelestium et terrestrium et infernorum
et omnis lingua confiteatur quia Dominus Iesus Christus in gloria est Dei Patris" (*)
Seria imprudência cantar mais alto, as palavras poderiam cair nos ouvidos errados. Suas vozes se perdem na noite romana. 

(*) Ad Philippenses II, 7 - 11
Este poema do Primeiro Século foi composto originalmente em grego e provavelmente era cantado. Sendo esta postagem ambientada em Roma, decidi inclui-lo aqui em latim. Os leitores que assim o quiserem poderão vê-lo em português, na tradução mais a seu gosto, no capítulo II da Epístola de São Paulo aos Filipenses.


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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Era preciso dormir em rede nas longas viagens pelos rios da Amazônia

Antes de 1853, quando a navegação a vapor foi implantada, viajar por rios da Bacia Amazônica era não só uma aventura, como um desafio gigantesco à paciência. Nas palavras de Francisco Bernardino de Sousa, "até essa época todo o tráfico dos gêneros de comércio era morosamente feito em canoas, que raras vezes realizavam uma viagem redonda de Belém a Manaus em menos de cinco meses, viagem que hoje (¹) se efetua em treze a quinze dias, quando muito, compreendidos os cinco dias de demora em Manaus e nos dez pontos intermédios" (²).
Esse cônego Francisco Bernardino de Sousa, que, encarregado dos trabalhos etnográficos participou da Comissão do Madeira, devia ser afeiçoado às viagens longas e às conversas que lhe permitiam descobrir como viviam os habitantes de regiões longínquas do Brasil - digo longínquas, é claro, em relação ao Rio de Janeiro que, em seu tempo, era a capital do Império. Notou que nas viagens por essas vastidões de água e selva competia a cada viajante providenciar acomodação para dormir na embarcação. Uma rede, portanto, era indispensável na bagagem: 
"As redes são o leito de que geralmente se servem os habitantes das províncias do Pará e do Amazonas, e muitas vezes constituem a única mobília da gente mais pobre. No princípio custei a habituar-me a esse gênero especial de dormida; no Pará não tive necessidade de acostumar-me a ele, por me ter sido dada uma excelente cama; mas depois, obrigando-me a necessidade a aceitar a rede, porque mui raras vezes encontrava outra cama, cheguei por fim não só a acostumar-me a ela, como até a achei bem cômoda e bem apropriada para a terra.
Os vapores das diferentes companhias que navegam nos rios das duas províncias são dispostos a poderem os passageiros armar as redes na tolda. Somente as pessoas doentes e uma ou outra senhora aproveitam-se das camas dos beliches." (³)
Dormir em rede era hábito indígena, muito útil para quem era nômade ou seminômade. Da necessidade e conveniência veio o costume que, curiosamente, persiste até hoje (⁴): observem, leitores, as fotos seguintes, que fiz no porto de Manaus.

Embarcações no porto de Manaus - AM: na embarcação em primeiro plano podem
ser vistas redes usadas por passageiros 

Em detalhe, redes dispostas em uma embarcação

(1) "Hoje" é referência à ocasião, no Século XIX, em que o cônego Francisco Bernardino de Sousa escreveu Pará e Amazonas.
(2) SOUSA, Francisco Bernardino de. Pará e Amazonas. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1874, p. 43.
(3) Ibid., p. 50.
(4) Neste caso, leitor, "hoje" é hoje mesmo, quando você está lendo este texto.


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quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Beijos romanos

Os antigos romanos, quando encontravam alguém a quem eram particularmente afeiçoados, usavam como cumprimento um beijo na testa. 
Circulavam na Antiguidade muitos relatos - lendas, talvez - afirmando que as origens de Roma estariam ligadas a um grupo de pessoas que escapulira do incêndio de Troia, no final da famosa guerra contra os gregos. Tantas e tão numerosas eram as lendas nesse sentido que é quase impossível não haver, ainda que remotamente, algo de verdade nelas. O que é que isso tem a ver com beijos? É o que já veremos.
A história é um tanto bizarra. Segundo Plutarco (¹), depois de muito navegar, fugitivos de Troia chegaram à Península Itálica. Tinham, ao que parece, a intenção de continuar a viagem em busca de um novo lar. Ao menos era assim em relação aos homens. As mulheres, porém, estavam já cansadas dos longos dias no mar e, assim que puseram os pés em terra para algum descanso, decidiram, sem conhecimento dos maridos, incendiar as embarcações. Fugiam de um incêndio e começavam outro!
Descobrindo o que ocorrera, os homens tiveram um acesso de fúria. Foram, porém, acalmados por beijos e carícias das mulheres, chamando-os à razão. A terra parecia boa e, de qualquer modo, agora somente restava aos cansados troianos uma possibilidade: ficar. Teriam, portanto, segundo essa versão, iniciado o povoamento que, mais tarde, daria origem a Roma.
Agora, fala Plutarco:
"[...] Desde essa época vigora em Roma o costume, depois espalhado por toda a Itália, de que aqueles que têm entre si muita amizade, tanto homens como mulheres, se beijem na fronte quando se encontram, como demonstração de amor e paz." (²)
A explicação está dada. Uma tradição, mais uma entre muitas, das que havia entre os antigos romanos.

(1) c. 45 - 125 d.C.
(2) Vitae Parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 15 de dezembro de 2020

A lenda do ouro que mudava de lugar

Uma explicação supersticiosa para o esgotamento rápido das jazidas auríferas no interior do Brasil


O declínio rápido da mineração no interior do Brasil desde fins do Século XVIII é fenômeno complexo. Os métodos de extração empregados na época e as ferramentas primitivas funcionavam enquanto o mineral era abundante na superfície, mas falhavam quando era preciso realizar exploração profunda. Muito metal precioso era desperdiçado e, literalmente, ia por água abaixo. Por consequência, quando o ouro de fácil extração se esgotava, a população de mineradores procurava outro lugar para viver e explorar. Era assim que povoações, nascidas de um dia para outro, em pouco tempo se convertiam em ruínas. Além disso, essas povoações, a maioria de caráter provisório, eram assoladas por doenças e, sem que houvesse qualquer recurso médico para deter a marcha da morte, decresciam os braços disponíveis para o trabalho que, é bom que se diga, era quase sempre feito por escravos. O custo dos gêneros alimentícios e outros artigos indispensáveis à sobrevivência, sendo elevadíssimo nas regiões auríferas, torna difícil afirmar que os ganhos dos mineradores justificavam os gastos que estavam obrigados a fazer.
A promessa de enriquecimento rápido e fácil, que seduzia tanta gente, provava-se, em largo número de casos, uma trágica fantasia. Superstição corrente entre o povo asseverava que as minas se esgotavam porque o ouro mudava de lugar. 
Como assim?
Vou explicar. Bartolomeo Bossi, genovês que empreendeu uma expedição em Mato Grosso em 1862 (¹), ouviu uma senhora muito idosa contar, sob a alegação de ter presenciado o fenômeno:
"Procurei tomar alguns antecedentes daquela anciã [...]. Disse-me que quando seu falecido esposo resolveu habitar este deserto (²), foi por ter encontrado nele um indivíduo que extraía muito ouro, porém depois o ouro se havia retirado, conforme eles mesmos haviam presenciado. Pedi-lhe mais explicações sobre essa fábula, filha da superstição e da ignorância, e disse-me que nas noites escuras haviam visto levantar-se da terra, junto ao arroio, uma chama viva que corria em direção ao oeste, e que seguindo por esse rumo o metal seria encontrado. [...]." (³)
Na prática, não era o ouro, é claro, quem mudava de lugar. Eram os mineradores que iam atrás dele. Poucos tinham a sorte de poder afirmar que essa rude peregrinação era compensadora.

(1) Sua ideia era encontrar áreas propícias à extração de ouro e diamantes. Chegou a consultar antigos mapas e referências à lendária região dos Martírios. A expedição por ele encabeçada não teve grande sucesso econômico, mas contribuiu para ampliar o conhecimento sobre o Brasil Central, ainda escasso na época.
(2) Lugar quase despovoado em Mato Grosso, não uma região árida.
(3) BOSSI, Bartolomé. Viage Pintoresco por los Ríos Paraná, Paraguay, San Lorenzo, Cuyabá. Paris: Libreria Parisiense - Dupray de la Mahérie, 1863, p. 85. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Armas dos espanhóis nas mãos de guerreiros astecas

Retirada é uma ação estratégica organizada, quando o confronto aberto parece indesejável ou impossível. Hernán Cortés bem que tentou, mas a saída de seu bando de invasores de Tenochtitlán, após a morte do imperador Montezuma, não foi mais que uma fuga, com um só lema: salve-se quem puder.
Sob o ataque da população local em fúria, espanhóis e indígenas aliados (¹) tentaram escapulir, carregando parte do enorme tesouro que haviam encontrado. Tanto peso, porém, era demais para quem precisava fugir para salvar a vida. Sob chuva, neblina e em terreno difícil, as perdas em homens, cavalos e armas foram terríveis. Para os sobreviventes, essa foi a "noite triste".
Era 1520. Nos meses seguintes, Cortés tratou de reorganizar seu grupo, atraindo mais soldados e obtendo armamento. Os astecas, contudo, não descansavam. Não davam tréguas, enviando grupos de combatentes que não permitiam que europeus e seus aliados pudessem sequer dormir em paz. Além do encontro eventual em templos astecas dos ossos de companheiros que haviam perdido, os invasores logo descobriram que as espadas deixadas em Tenochtitlán não eram desperdiçadas, quando, em algum combate, viam seus oponentes usando "lanças muito longas para matar os cavalos, nelas engastadas as espadas que nos tomaram na noite do desbarate" (²), segundo informou Bernal Díaz del Castillo, um dos soldados que acompanhavam Cortés.   
Pode-se imaginar qual terá sido a reação dos espanhóis quando viram nas lanças astecas um brilho de lâminas de Toledo!... Mas não foi só. Ainda de acordo com Bernal Díaz, os valorosos astecas logo aprenderam a empunhar as espadas com maestria: "Os capitães mexicanos [...] traziam espadas das nossas, fazendo com elas muitas demonstrações de valentia, e diziam que com nossas armas nos haviam de matar [...]" (³).

(1) Principalmente tlaxcaltecas.
(2) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Ibid. 


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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

A presença de automóveis levou à introdução de novas regras no trânsito

Enquanto o movimento nas ruas se restringia a pedestres e veículos com tração animal, não era muito grande a necessidade de sinalização para disciplinar o trânsito. A entrada em cena dos veículos automotores provocou alterações significativas no que, até então, e com algumas horripilantes exceções, fora um cenário quase bucólico. Guardas de trânsito munidos de apito, placas e, mais tarde, sinalização automática (que deixa de funcionar e até hoje leva os centros urbanos ao caos quando há algum problema na rede elétrica), vieram anexar seus préstimos para diminuir a confusão. Se vocês, leitores, já viram algum filme mostrando as ruas de uma grande cidade por volta da década de vinte do século passado, sabem do que estou falando. 
Para a geração que crescera antes da aparição dos automóveis talvez parecesse difícil a ideia de ter de parar nas esquinas, esperando autorização para atravessar uma rua ou avenida. A obediência às regras, agora, não era só para condutores de veículos. Pedestres, de boa ou má vontade, também tiveram que adotar novos hábitos, em proveito da própria segurança. O cartoon abaixo, que apareceu na revista carioca O Malho no ano de 1926, oferece, com humor, uma ideia do desagrado dos que estavam aprendendo a esperar a vez, quando queriam atravessar uma rua:


Diz a legenda:
"- Ora viva, "seu" Praxedes! Há quanto tempo!
- Estive preso.
- Preso?!
- É verdade. Ali na esquina, esperando que o guarda abrisse o sinal." (*)

(*) O MALHO, Ano XXV, nº 1266, 18 de dezembro de 1926, p. 22. O original pertence à BNDigital. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

A lenda da aparição de Teseu na batalha de Maratona

Teseu foi um herói lendário, supostamente introdutor do conceito de democracia em Atenas, e teria vivido nos primórdios da cidade. Nada impede que haja existido alguém real com esse nome, a quem o tempo e as sucessivas narrações dos feitos se encarregaram de quase deificar. Em sua homenagem eram realizadas cerimônias em Atenas, que Plutarco, justificando em Vitae parallelae, relacionou a uma suposta aparição durante a batalha de Maratona em 490 a.C., durante a Primeira Guerra Médica: "Naquela terrível batalha que travaram em Maratona contra os medos (¹), afirma-se que muitos dos combatentes que nela estiveram viram nitidamente a figura de Teseu que marchava diante deles portando armas e, de espada em punho, fazia muitas vítimas entre os inimigos" (²).
Lendas bélicas não são exclusividade de povo algum. Os romanos também tinham como certa a aparição de Castor e Pólux, os gêmeos celestes, em momentos decisivos de suas guerras. Uma dessas ocasiões teria sido em um combate contra os latinos, no contexto do fim da realeza, com a deposição do rei Tarquínio, o Soberbo, e o estabelecimento da República em Roma. São palavras de Aneu Floro, em Rerum Romanarum: "Tanto foi a ferocidade da batalha que correu a notícia de que estavam os deuses Castor e Pólux como espectadores, montados em cavalos brancos, e não houve quem duvidasse" (³).
Se essa ideia de que deuses e heróis mortos tinham a capacidade de aparecer para ajudar os vivos fosse coisa só da Antiguidade, eu poderia desejar um bom dia a vocês, leitores, e encerrar o assunto por aqui. Mas não! Vamos às tradições vinculadas à luta de portugueses contra tamoios e franceses no Rio de Janeiro, no Século XVI. Deixo o caso por conta do padre Simão de Vasconcelos, jesuíta famoso por seus escritos publicados no Século XVII, em que relata o incidente da aparição de São Sebastião para ajudar as forças lusas contra os guerreiros nativos da América: "[...] os tamoios todos na mesma conformidade perguntavam depois aos nossos com grande espanto, quem era aquele soldado gentil-homem, que andava armado no tempo do conflito, e saltava intrépido em nossas canoas? "Porque a vista dele", diziam, "nos meteu terror. E foi a causa de fugirmos, igualmente à do incêndio". Foi tido o caso por milagroso. Eu nisto não determino nada; acho porém que fazem força as palavras de José [de Anchieta], que escrevendo dele diz assim: "A mão de Deus andou ali, e mostrou nesta ocasião sua misericórdia e providência: foi medo que Deus nosso Senhor pôs aos índios à vista daquele incêndio; e particular favor do glorioso mártir São Sebastião, que ali foi visto dos tamoios, que perguntavam depois, quem era um soldado que andava armado, muito gentil-homem, saltando de canoa em canoa, e os espantara, e fizera fugir?"." (⁴)
Sem querer assumir a ocorrência de um milagre, Simão de Vasconcelos contou o incidente, mas é razoável supor que, como homem de seu tempo, acreditasse nele. De qualquer modo, e já entrando no lado efetivamente histórico da questão, o governador-geral Mem de Sá, chegando com alguns navios ao Rio de Janeiro no começo de 1567, para desfechar um ataque decisivo contra franceses e indígenas, decidiu que o combate seria travado no dia 20 de janeiro, não por acaso a data em que o calendário católico celebra o soldado romano e mártir São Sebastião. Saíram-se bem os portugueses, ainda que com algumas perdas: "Depois de vários sucessos, encontros e recontros [...] foi entrada e vencida [a fortificação inimiga] com estrago lastimoso, porque dos tamoios não ficou um com vida. Dos franceses morreram dois no conflito, e cinco que houveram às mãos os portugueses, foram pendurados em um pau, para escarmento de outros: à vista de tão triste espetáculo, ficaram tremendo as demais aldeias" (⁵).Coisas da colonização, leitores!

(1) Os gregos se referiam genericamente ao Império Persa, que agregava diversos povos, como sendo dos medos, e, por essa razão, as guerras entre gregos e persas são conhecidas como Guerras Médicas.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelaeO trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) FLORO, Aneu. Epitome Rerum RomanarumO trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, pp. 53 e 54.
(5) Ibid., p. 55.


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terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Luminárias para festejar a chegada da família real

Antes que houvesse luz elétrica, e mesmo antes da existência de iluminação de rua a óleo ou a gás, era costume, em ocasiões em que se pretendia dar demonstração pública de alegria, que fossem colocadas luminárias - candeias, velas ou tochas - diante das residências. Assim, tão logo anoitecia, em lugar da escuridão habitual, havia pequenos pontos de luz bruxuleante por toda parte. Em conjunto, o resultado devia ser até bonito.
Era comum que as autoridades locais ordenassem a colocação de luminárias em datas festivas, mas quase sempre a ordem era apenas formalidade, porque a população gostava da ideia e muitas famílias aproveitavam a ocasião para sair de casa e ir ver as luzes, ainda que, maldosamente, a intenção fosse comparar a glória da própria residência com o que se podia ver nas redondezas. 
Havia circunstâncias, porém, em que as demonstrações públicas de regozijo, não sendo do agrado popular, eram acolhidas com má vontade. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando a população do Rio de Janeiro foi intimada a colocar luminárias na noite seguinte à execução de Tiradentes. A obediência, para muitos, deve ter vindo apenas pela conclusão de que um enforcado já era suficiente.
Caso oposto correu na noite de 8 de março de 1808, para marcar o desembarque da família real portuguesa no Rio de Janeiro. A população, nesse momento, deu mostras espontâneas de felicidade, e as velas se multiplicaram por toda parte. Nas palavras de José Vieira Fazenda em Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro, "as casas ricas e edifícios públicos apresentavam velas de cera, e as pobres de carnaúba e sebo; bem certo é o ditado: cada um enterra seu pai como pode. Foi um rega-bofe completo, que durou por nove dias sucessivos". Talvez seja legítimo inquirir se, um ou dois meses mais tarde, a população ainda estaria tão disposta a festas para o príncipe regente e sua corte como estivera na hora da chegada.


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quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Por que Tibério usava uma coroa de louros

Louro (Laurus nobilis)
Louro (Laurus nobilis) é bom na cozinha, mas Tibério, o imperador romano, achava que era bom na cabeça. Na cozinha, é um tempero formidável, e Apício, o cozinheiro imperial, concordava. Para Tibério... Bem, vamos à história.
Tibério, imperador romano, usava sempre uma coroa de louros - foi o que disse Suetônio (*) no Livro III de De vita Caesarum. Não se imagine, porém, que esse adorno pouco convencional era decorrente de alguma vitória em competições esportivas. Nada disso. Tentem descobrir o motivo, leitores: quem de vocês adivinha?
Aqui vai a resposta. Tibério tremia, apavorado, ao ouvir trovões e, mais ainda, morria de medo de ser atingido por algum raio. Por isso, de acordo com Suetônio, em dias de tempestade, colocava na cabeça uma coroa de louros porque, adepto de um arsenal de superstições, achava que essas folhas iriam torná-lo imune aos raios - e lá ia ele, assim coroado, a governar Roma e o mundo.

(*) 69 - 141 d.C.


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terça-feira, 24 de novembro de 2020

Lei sobre a obrigatoriedade da instrução primária em São Paulo em 1857

Embora não fosse tratada com tanta atenção como merecia, a questão da obrigatoriedade da instrução primária para toda a população foi, aos poucos, ganhando importância no Brasil. Publicou-se na Província de São Paulo em 1857 o Código de Instrução Pública da Província de São Paulo, cujo Artigo 51 dizia:
"O ensino primário é obrigatório para todos os menores de 7 a 15 anos, que residirem dentro do raio de um quarto de légua da povoação, onde houver escola pública, ou particular subsidiada."
A légua era uma unidade de medida um tanto variável, porém em São Paulo a légua terrestre era equivalente a seis quilômetros. Portanto, tomando essa distância como base, quem morasse a mais de mil e quinhentos metros de uma escola estava desobrigado de mandar os filhos às aulas. Como nesse tempo a maior parte da população residia em áreas rurais, ia a obrigatoriedade, em grande parte, por água abaixo. 
Mas não era só. Dizia o Artigo 163: 
"Não serão admitidas à matrícula, nem à frequência das escolas:
1º Os escravos.
2º Os que sofrem moléstias contagiosas."
Para quem sabe qual era a importância numérica da população escrava em São Paulo nesse tempo, maiores comentários são dispensáveis. 
No entanto, esse Código tinha algumas virtudes. Uma delas era a obrigatoriedade da instrução primária, ainda que nas condições já citadas, inclusive para as meninas. Além disso, havia, ao menos formalmente, um elemento de coerção para pais que julgassem ser dispensável aos filhos e filhas os conhecimentos básicos de escrita e aritmética: era, para esses, prescrita uma multa. Outra providência salutar era a exigência de vacinação contra varíola para que uma criança ou adolescente frequentasse as aulas, conforme dizia o Artigo 164:
"No ato da matrícula o professor verificará se o aluno foi ou não vacinado, e no caso negativo dará parte à autoridade competente para fazê-lo vacinar."
Como essa vacina deixa na pele uma marca característica, era fácil ao professor, ao admitir um novo aluno, verificar se fora vacinado (*).
Satisfeitas essas exigências, os alunos podiam e deviam ir às aulas que, como regra geral, não primavam pela modernidade pedagógica. As disciplinas eram poucas, e seu programa, restrito, conforme se vê no Artigo 39 do Código de Instrução Pública:
"A instrução primária tem por objeto as seguintes matérias:
§ 1º A instrução moral e religiosa.
§ 2º A leitura.
§ 3º A escrita.
§ 4º As noções elementares de gramática nacional.
§ 5º As principais operações práticas da aritmética.
§ 6ª O sistema de pesos e medidas da Província."
A ênfase no ensino religioso explica-se por ter o Brasil, durante o Império, uma religião oficial. No dia a dia, de palmatória em riste, professores e professoras tratavam de ensinar como podiam, em classes multisseriadas e separadas por sexo, com material didático escasso e em instalações às vezes precárias. Poucas escolas tinham a honra de ser um paraíso para a infância.

(*) A prática da vacinação contra varíola era corrente no Brasil muito antes de 1857. Não há razão, portanto, para a alegação tão frequente, na tentativa de justificar a chamada Revolta da Vacina, ocorrida em 1904, de uma suposta ignorância da população quanto ao que era e para que servia a vacina.


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quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O juramento de lealdade ao imperador romano

Todo soldado romano fazia um juramento de lealdade ao imperador, comprometendo-se a, se necessário, sacrificar a vida por ele. Lembrem-se leitores: juramento era coisa séria. Podia ter consequências dramáticas. Podia ser hilário. Duvidam?
Vamos ao primeiro caso. Era o ano 66, ou, se preferirem, 819 da fundação de Roma. Tramou-se o assassinato do imperador - era Nero - mas a conspiração foi descoberta, e os envolvidos, levados a julgamento. Um deles, o tribuno Subrius Flavius, ao ser interrogado pelo próprio imperador e acusado de ter faltado ao julgamento de lealdade que lhe fizera, respondeu: "Eu te odeio, mas ninguém entre os soldados foi mais fiel a ti do que eu, enquanto mereceste ser amado; mas eu te odeio, pois és o assassino de tua mãe e de tua mulher, e te fizeste auriga, comediante e incendiário." (¹) 
Agora, o episódio cômico. O imperador - era Nero, outra vez - preparava-se para uma representação teatral e, conforme exigência da peça, devia aparecer no palco caracterizado como um prisioneiro, carregado de cadeias. Acontece que um soldado pouco experiente, desconhecendo tratar-se apenas de uma representação, correu a socorrê-lo, disposto a dar a vida para libertá-lo (²). O imperador, todos sabem, apreciava exibir diante das massas seus talentos como ator e cantor, mas era pouco dado às lides de Estado, para desgosto da elite senatorial, que via os supostamente tradicionais valores de Roma se esvaindo, enquanto Nero dedilhava a cítara.

(1) TÁCITO. Annales, Livro XV. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Cf. SUETÔNIO. De vita Caesarum, Livro VI.


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terça-feira, 17 de novembro de 2020

Esperando a volta do bandeirante

Ela viera do Reino ainda menina e com quinze anos incompletos o pai a casara com um português da terra, duas vezes viúvo e dono de uma casa na vila, com a correspondente criação de porcos e galinhas, e de umas roças de milho e feijão nas redondezas. Passava por rico e, poucos meses depois do casamento, sem muitas explicações, se juntara a uma tropa que, no rumo do sertão, fora procurar ouro e descer índios para a lavoura. Sendo já passados mais de quatro anos, nunca mais se ouvira falar no bando de aventureiros. Por onde andarão? Estarão ainda vivos? Ninguém sabe dizer.
Ela espera e espera... O assoalho de madeira range sob seus pés, enquanto vai à janela pela vez infinita. Fragmentos do existir chegam através da gelosia - o patear dos animais de carga pela ruazinha tortuosa, os resmungos dos tropeiros, uma cabra fugitiva denunciada pelo guizo que leva ao pescoço, os brados de uma vendedora de pães e doces - a vida e a visão se perdem na distância.
- Mamã!...
Os pensamentos se interrompem.
- Mamã, olha!...
É o seu menino quem balbucia, à porta. Dois companheiros cor de bronze, olhos faiscantes e cabelos negros, sorriem, enquanto um deles segura algo entre os dedos. Abaixa-se e deixa voejar um filhote de sanhaço.
- Ah, é tão novinho, onde o pegaram?
O mais velho, com seus sete anos, explica:
- Embaixo da pitangueira, caiu do ninho...
Mais um instante e lá se vão, a correr para o pátio. Ouve-se, entre risos, a algaravia que amalgama o português ao tupi e que, inutilmente, ela tenta compreender. 
Volta, então, à cadeira e retoma o bordado. Ajusta o tecido no bastidor, tem já a linha na agulha e trabalha. Entre um ponto e outro, estranhas inquietações que tornam imperceptível o correr das horas.
Na igrejinha da vila o sino toca para o Angelus. Ela se une às escravas para rezar. Pedem pelos que estão, pelos que foram. Voltarão?
Anoitece, a oração termina. Velas de sebo rústico quebram a escuridão, enquanto lá fora começa a cair uma chuvinha gelada. À espera do bandeirante, ela vai mais uma vez à janela. A vila é só silêncio e trevas.
Partindo da cozinha, o aroma da ceia se espalha pela casa.


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quinta-feira, 12 de novembro de 2020

A morte de Montezuma, imperador asteca

Depois de entrar na capital asteca e aprisionar o imperador Montezuma, Hernán Cortés foi informado de que um exército numeroso, sob o comando de Pânfilo de Narváez, mandado desde Cuba pelo governador Diego Velásquez, acabara de desembarcar e estava já em marcha para pôr fim a seus projetos de conquista. Entendendo que sua única chance estava em não fugir ao confronto, Cortés saiu de Tenochtitlán, deixando entre os astecas somente aqueles a quem se confiou a guarda do imperador e a vigilância sobre o riquíssimo tesouro encontrado.
A despeito da franca desvantagem numérica, os comandados de Cortés suplantaram os de Narváez. Não tiveram, porém, muito tempo para comemorações, por chegarem notícias alarmantes do México, dando conta de uma sublevação geral, em decorrência de atitudes imprudentes de Pedro de Alvarado. Retornando a toda pressa, Cortés apenas pôde compreender que, já dentro da capital, ele e seus homens é que eram agora os prisioneiros, ainda que conservassem Montezuma em seu poder. 
Seguiram-se dias de combates sangrentos. De um lado, a população do México lutava para expulsar os invasores; de outro, os espanhóis se davam conta de que dificilmente sairiam dali vivos, mas não queriam renunciar ao tesouro asteca. 
Na tentativa de serenar os ânimos, Cortés compeliu Montezuma a falar ao povo, pedindo calma. A essa altura, porém, outro membro da família real já era apontado como governante, e o imperador prisioneiro não foi recebido com satisfação. Segundo o relato de Bernal Díaz del Castillo, soldado a serviço de Cortés, em um momento de descuido dos que deviam proteger Montezuma, alguém atirou contra ele "três pedradas, uma na cabeça, outra em um braço e outra em uma perna, e posto que lhe pedissem que se curasse e comesse, dizendo-lhe palavras amáveis, não quis [...]".(*) 
O que havia acontecido àquele que fora tratado como um deus, e a quem seus súditos chamavam "senhor, meu senhor, grande senhor"? Com uma autoridade alicerçada na força (sobre outros povos) e na religião (entre seu próprio povo), Montezuma mostrou-se incapaz de liderar os astecas contra um punhado de invasores europeus. 
Teriam as engrenagens do poder funcionado tão bem (pelo menos até ali), a ponto de disfarçarem a incapacidade de liderança por parte do imperador? Foi somente em meio a uma crise sem precedentes que a inaptidão de Montezuma II para o comando do Império Asteca ficou evidente, ainda que ele tenha sido, desde muito jovem, preparado para o cargo que ocupava. 
Supostas profecias, sugerindo a chegada de invasores que destruiriam o mundo asteca têm sido apontadas como causa para sua tímida reação diante das notícias relativas a estrangeiros que se aproximavam. Tentou negociar, ameaçou, bajulou, todavia jamais chamou seu povo às armas, em massa, para cortar a passagem aos que vinham do mar. A vitória teria sido fácil e rápida, se os astecas houvessem atacado com fúria idêntica à demonstrada mais tarde, quando suas crenças religiosas foram questionadas pelos espanhóis. Havia, também, suficientes intrigas palacianas e lutas surdas pelo poder na família real, mas nada disso explica, isoladamente, o comportamento apático do imperador ao receber Cortés e, posteriormente, ao ser aprisionado.
Montezuma morreu, ao que parece, em decorrência da pedrada na cabeça. Até os espanhóis choraram por ele, lamentando que não houvesse sido batizado por um dos religiosos que acompanhavam Cortés.

(*) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 10 de novembro de 2020

Uniformes esportivos para atletas do final do Século XIX

Praticantes de esportes precisam de roupas e calçados apropriados. Contudo, no último ano do Século XIX, as grandes marcas de artigos esportivos, como hoje as entendemos, ainda não existiam. Onde é que os esportistas que viviam no Rio de Janeiro, na época capital do Brasil, compravam trajes para suas aventuras?
Ora, meus leitores, eram frequentemente as lojas de roupas masculinas que anunciavam ter em estoque artigos destinados a esportistas. Alguns dos produtos eram de fabricação (quase) artesanal:

1. "Bonnets para cyclistas e remadores" (¹)


2. "Jerseys para remadores, maillots para cyclistas" (²)


Notem que, mesmo diante da mania etimológica que fazia muitos adeptos, a falta de vocábulos usuais em português do Brasil para descrever assuntos esportivos obrigava os anunciantes ao emprego de termos estrangeiros (³) ou, em alguns casos, a uma curiosa "miscigenação", evidenciando quanto a língua é dinâmica e levando a adaptações que ocorrem em todo o tempo para atender às mudanças na sociedade. Com o passar dos anos, alguns termos foram definitivamente aportuguesados, enquanto outros caíram no esquecimento. 
Para concluir, vejam mais um anúncio, desta vez de uma fábrica de bonés para regatas, ciclismo e outras atividades (⁴). A prática de esportes, com uma pontinha de controvérsia, era moda, e um fabricante de bonés não podia, é claro, perder a oportunidade de ampliar as vendas.



(1) SEMANA SPORTIVA, Ano XI, nª 403, 22 de setembro de 1900.
(2) Ibid., Ano XI, nº 409, 3 de novembro de 1900.
(3) Pode-se imaginar quanto o emprego de galicismos e anglicismos provocava crises alérgicas horrendas em muito Policarpo Quaresma da vida real.
(4) SEMANA SPORTIVA, Ano XI, nº 370, 27 de janeiro de 1900.
Os exemplares originais da Semana Sportiva citados aqui pertencem à BNDigital. As imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Método romano da Antiguidade para prever o sexo de um bebê

Lívia estava grávida e queria saber se teria um menino ou uma menina. Foi ao galinheiro e tirou de lá um ovo que uma galinha estava chocando. Levou-o para casa com muito cuidado e, com a ajuda das escravas, estabeleceu um rodízio para mantê-lo devidamente aquecido entre as mãos, até que a casca se rompeu e - uau! - saiu dele um frangote com uma crista enorme.
Pode parecer um absurdo, mas foi Suetônio quem contou essa história em De vita Caesarum. Lívia, ou melhor, Lívia Drusa, foi a mãe de Tibério, o imperador, que, segundo o mesmo Suetônio, acreditou a vida toda nessa lorota, na suposição de ser um presságio que o destinava a grandes realizações.
Era preciso, de fato, muita credulidade, mas os romanos eram viciados em "presságios", eventos que supostamente prediziam o futuro (*). Estaria correta a "previsão"? Suponho que vocês, leitores, sabem muito bem que grande homem foi Tibério!

(*) Ao ponto, talvez, de forjarem alguns.



terça-feira, 3 de novembro de 2020

Como mães indígenas cuidavam de seus bebês

"A jovem mãe passou aos ombros a larga faixa de macio algodão, que fabricara para trazer o filho sempre unido ao flanco; e seguiu pela areia o rastro do esposo, que há três sóis se partira. Ela caminhava docemente para não despertar a criancinha, adormecida como o passarinho sob a asa materna."
José de Alencar, Iracema

Faixa indígena usada
para carregar bebê (³)
Por sua simplicidade, aspectos práticos da vida em comunidades indígenas intrigaram europeus que vieram ao Brasil nos Séculos XVI e XVII. Yves d'Évreux (¹), um capuchinho francês que esteve na França Equinocial, fracassada tentativa francesa de colonização no Brasil, assim descreveu o modo como mães indígenas cuidavam de seus bebês:
"A natureza, boa mãe destes selvagens, quis que o menino saído do ventre de sua mãe, se achasse em estado de receber em si as primeiras sementes do natural comum destes selvagens, porque não é afagado, pensado, aquecido, bem-nutrido, bem-tratado, nem confiado aos cuidados de alguma ama, e sim apenas lavado em algum riacho ou nalguma vasilha com água, deitado numa redezinha de algodão, com todos os seus membros em plena liberdade, nus inteiramente, tendo por único alimento o leite de sua mãe e grãos de milho assados, mastigados por ela até ficarem reduzidos a farinha, amassados com saliva em forma de caldo, e postos em sua boquinha como costumam fazer os pássaros com sua prole, isto é, passando de boca para boca." (²)
Nesta passagem D'Évreux estava comparando o cuidado dispensado às crianças indígenas ao modo como o pequenos eram tratados na Europa de seu tempo. A convivência com indígenas lhe dava autoridade para confrontar realidades tão distintas. Não se pode negar que, à vista do que afirmou, cada mãe indígena adotava procedimentos em conformidade com o modo de vida da respectiva etnia, adequados à natureza do lugar e às técnicas de sobrevivência que seu grupo dominava.  
D'Évreux interpretava todo o vigor físico dos indígenas quando adultos como um favor da natureza: "[...] tendo a natureza, por longos anos, recusado vestidos aos corpos dos índios, os compensara formando-os belos e agradáveis, sem o menor auxílio de suas mães, que apenas os lavam e carregam como se fosse qualquer pedaço de pau" (⁴). Entretanto, outro religioso, o jesuíta Simão de Vasconcelos, autor seiscentista assim como Yves d'Évreux, entendeu que o modo como indígenas criavam os filhos resultava em adultos de mais saúde: "[...] São de ordinário corpulentos, robustos, forçosos, e para que mais o sejam, os atam pelas pernas, quando nascem, com certas faixas [...], com que depois de grandes ficam mais vigorosos" (⁵). Sim, havia mortalidade infantil entre eles, mas não havia, também, e bastante elevada, entre os pequenos que, na época, vinham ao mundo em lares europeus? 

(1) Embora alguns relatos digam o contrário, Yves d'Évreux veio como superior dos quatro capuchinhos destinados à colônia francesa no Maranhão, onde permaneceu entre 1613 e 1614.
(2) D'ÉVREUX, Yves O. F. M. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 72.
(3) Essa faixa pertence ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF).
(4) D'ÉVREUX, Yves O. F. M. Op, cit., p. 95.
(5) VASCONCELOS, Simão de S. J. Vida do Padre João de Almeida. Lisboa: Oficina Craesbeeckiana, 1658, p. 15.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Leis de Rômulo sobre o casamento e o divórcio

Viagem maluca, leitores: venham comigo em um trem (imaginário, felizmente), capaz de transitar no tempo e no espaço. O detalhe é que ele apenas se move para trás, e assim passamos pela Guerra do Vietnã, pelas duas Guerras Mundiais, pela Guerra de Secessão, pela Revolução Francesa, pelas Grandes Navegações, pelas Cruzadas, invasões bárbaras no Império Romano, assassinato de Júlio César... Nosso meio de transporte, que partiu frenético, vai ficando mais e mais lento, à medida que recua no tempo. Roma, agora, é ainda uma pequena povoação, e Rômulo, seu lendário fundador, ainda vive e governa.
Chegamos, hora do desembarque. Afinal, viemos para conhecer a legislação que rege o casamento entre a gente romana desse tempo. Bem... Vamos ver o que disse Plutarco (¹), que era grego, e não romano: 
"[...] A nenhuma mulher era permitido divorciar-se do marido, embora ao marido fosse facultado o divórcio se ocorresse pelo menos uma dentre duas razões, sendo a primeira se fosse verificado que a mulher praticara algum dano contra os filhos, e a segunda, que cometera adultério, sendo isso desconhecido do marido [sic]. Entretanto, se algum marido, exceto por esses motivos, abandonasse a mulher, seria multado em dois terços dos bens que tivesse, sendo um terço destinado à mulher abandonada e um terço para a deusa Ceres (²). Além disso, o marido divorciado tinha a obrigação de oferecer sacrifícios para os deuses do submundo. [...]" (³)
De acordo com Plutarco, os romanos consideravam essas leis demasiadamente severas. Se, de fato elas foram praticadas nos primórdios de Roma, são anteriores à Lei das Doze Tábuas. No entanto, leitores, embora não tenhamos certeza absoluta de que as leis sobre casamento eram essas durante a infância de Roma, não há dúvida de que eram coerentes com os costumes da época e com legislações contemporâneas, que tendiam a dar amplos direitos aos homens e poucos às mulheres, isso quando elas tinham algum. No caso de Roma, porém, pode haver uma explicação pela insistência em reter as mulheres no casamento, se levarmos em conta o episódio (talvez) lendário do rapto das sabinas. Tenha ou não acontecido, esse incidente mostra que havia falta de mulheres na cidade, e permitir que elas tivessem o direito de pedir o divórcio talvez não parecesse uma boa ideia, ao menos para os rústicos romanos desses tempos. 
A questão que surge é: se não podemos ter certeza de que essas leis foram, em algum tempo, efetivamente aplicadas, qual o sentido de tomar conhecimento delas? É muito simples, meus amigos: o fato de Plutarco ter-se referido a elas revela muita coisa sobre a época em que esse famoso autor viveu. É que em seus dias a sociedade romana passava por transformações significativas, e o casamento, com suas leis e costumes, era parte desse processo. Havia quem se casasse sob leis antigas (principalmente entre a elite senatorial), mas, para muita gente, as tradições já não faziam tanto sentido. Conservadores, irados com as novidades, invocavam a religião (em que poucos acreditavam) para justificar a manutenção de costumes caducos, argumento que servia, de fato, para encobrir os interesses econômicos e ideológicos envolvidos. Entre o povo, para o qual o direito de propriedade e herança não significava grande coisa, as imposições do quotidiano falavam mais alto. Portanto, deve-se inferir que, ao tratar da legislação lendária que regia o casamento entre romanos de tempos remotos, Plutarco, estava, implicitamente, estabelecendo uma comparação que seus contemporâneos entendiam muito bem. O Império estava em mudança, como, de resto, todo o mundo que o rodeava. 

(1) c. 45 d.C. - c. 120 d.C.
(2) Ceres era uma deusa menor do panteão romano. O problema, neste caso, é que, até onde se sabe, seu culto não era ainda praticado em Roma na época em que se supõe que Rômulo possa ter vivido.
(3) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 27 de outubro de 2020

Como eram as escolas na Província de São Paulo em meados do Século XIX

Como deve ser uma escola? Quais são suas ideias sobre isto, leitores? 
No Século XIX, a comissão que elaborou o Código de Instrução Pública da Província de São Paulo de 1857 definiu a matéria deste modo, nos Artigos 148 e 149:
"Art. 148. O Governo fornecerá em um dos lugares mais silenciosos, e ao mesmo tempo mais centrais da cidade, vila ou freguesia, uma casa suficientemente espaçosa e salubre, onde se deem todas as aulas e escolas públicas de cada sexo nas horas que pelo Diretor Geral forem marcadas [...]. 
Art. 149. Onde não houver edifício público ou convento o Governo alugará para esse fim uma casa particular. Neste caso o Inspetor [...] promoverá em todo o Município uma subscrição para ser aplicada à construção de um edifício próprio para esse mister, a qual será auxiliada pelo Cofre Provincial, com a quantia que anualmente for votada na lei do orçamento. Enquanto, porém, o Governo não fornecer um edifício especial para as escolas e aulas públicas, continuarão elas como na atualidade." (¹)
Parece-me indispensável explicar que, pelo Código de 1857, era obrigatório enviar os filhos à escola, desde que se residisse não muito longe dela. Como, na prática, a maior parte da população era rural, não havia muita novidade, e a criançada, em sua maioria, continuava tão sábia nos assuntos do alfabeto quanto era ao vir ao mundo, assim seguindo pela vida afora. Mas, sejamos justos: era um começo de mudança. 
Em que deram tão boas intenções?
Há, por suposto, relatórios da época feitos por inspetores e outros funcionários, com as formalidades exigidas pelos respectivos cargos. Menos formal, ainda que talvez com observação mais isenta, há o relato de viagem feito por Augusto-Emílio Zaluar, sob o título de Peregrinação Pela Província de São Paulo 1860 - 1861, no qual o autor informa a condição da instrução pública na maioria das localidades por onde passou, dentre as quais:

Bananal
"A instrução é representada aqui apenas por duas escolas particulares do sexo masculino e uma pública de meninas, frequentadas as primeiras por uns vinte alunos, e a segunda por uma ou duas educandas!" (²)

São José do Barreiro
"[...] A instrução pública estaria aqui também em completa decadência se não fosse o povo manter à sua custa, há mais de vinte anos, uma escola de ensino primário, e há cerca de oito anos, um colégio de meninas [...]." (³)

Areias
"Areias tem duas escolas públicas de instrução primária, uma do sexo masculino, outra do sexo feminino; a primeira frequentada por sessenta e um, e a segunda por vinte e seis alunos [...]." (⁴)

Lorena
"[...] A instrução pública está representada nesta cidade por quatro escolas, divididas do modo seguinte: uma régia de instrução primária do sexo masculino, frequentada por cinquenta e um alunos, e outra do sexo feminino, que conta umas trinta educandas; uma aula de latim e francês, também pública, concorrida por uns seis alunos, e uma outra particular de instrução primária por uns trinta e tantos. Os professores são aqui, como em quase toda a Província, mesquinhamente recompensados." (⁵) 

Guaratinguetá
"A instrução pública [...] dá este resultado:
Duas escolas de ensino primário, frequentadas por alunos..... 115
Duas particulares, por .............................................................. 48
Uma do sexo feminino, por ...................................................... 30
Cadeira de latim e francês, por ................................................ 16
Colégio particular de meninas, por ...........................................16
No termo há muitas outras escolas, e o que é singular é que o número de alunos que frequentam estas aulas seja muito inferior ao dos que se matriculam todos os anos!" (⁶)

Pindamonhangaba
"Aqui há uma escola pública de instrução primária para meninos, frequentada por vinte alunos, e outra do sexo feminino, por sessenta educandas. Além destas, há uma cadeira de latim e francês, frequentada por doze alunos.
Existem mais quatro aulas de ensino privado, cursadas por quarenta e sete discípulos, outra por trinta e seis, outra por oito, e outra por seis." (⁷)
Havia, no entanto, mais estudantes dessa cidade frequentando escolas, mas não no próprio lugar: 
"[...] é preciso observar que a maior parte dos filhos das famílias mais distintas e abastadas não cursam as aulas do lugar, mas vão educar-se em São Paulo, onde o ensino público tem mais recursos, e onde ao mesmo tempo se habilitam para os estudos superiores e para entrarem na faculdade de Direito." (⁸) 

Campinas
"A instrução pública tem tido em Campinas um desenvolvimento não menos satisfatório que a lavoura. Existem aqui duas escolas públicas de primeiras letras, uma secundária, e cinco particulares de instrução primária, sendo uma de meninas, dois colégios de instrução secundária, sendo um de cada sexo; representando o número total dos alunos de todas estas aulas, do sexo masculino duzentos e quarenta, e do feminino cento e vinte educandas. Além destas casas de ensino, a maior parte dos fazendeiros paga mestres para educar seus filhos, e um bom número de jovens campineiros frequenta atualmente em São Paulo as aulas da faculdade de Direito. [...]" (⁹)

Piracicaba
"A instrução pública é representada aqui por duas escolas de ensino primário do sexo masculino, uma frequentada por cento e quatorze, outra por sessenta e dois alunos; além destas, há uma particular, com quatorze alunos,
A escola pública primária do sexo feminino é frequentada por quarenta e duas educandas, e uma particular do mesmo sexo por dezoito meninas." (¹º)
No entanto, uma das escolas para meninos tinha localização algo bizarra: 
"[...] em uma mesma casa [...] em frente da Matriz, reúne a Câmara Municipal as suas sessões, funciona o Júri, dão as devidas autoridades suas audiências e trabalha a escola pública de primeiras letras do sexo masculino! Note-se, porém, que isto é no pavimento superior, pois o térreo se distribui em uma prisão para homens, outra para mulheres e uma espécie de saguão com tarimba para a guarda. [...]" (¹¹). 
O resultado prático dessa estranha situação é que as aulas eram suspensas cada vez que funcionava o Tribunal do Júri. 

Sorocaba
"Há nesta cidade cinco escolas de primeiras letras, três do sexo masculino e duas do feminino; três públicas e duas particulares; frequentadas as do sexo masculino por cento e noventa e dois alunos, e as do feminino por cento e treze. Além destas, há uma aula de latim e francês com vinte e sete alunos, que aprendem simultaneamente as duas línguas." (¹²)

Em relação às cidades do Vale do Paraíba e adjacências, deve-se recordar que tiveram, durante algumas décadas do Século XIX, uma grande importância econômica devido à produção de café para exportação. Como se sabe, muitas dessas localidades seriam, no futuro, qualificadas como "cidades mortas", no dizer de Monteiro Lobato, uma vez que o esgotamento do solo, fruto de técnicas inadequadas de cultivo, tornou o efêmero progresso proporcionado pelo café apenas em memória saudosa do passado. Algumas delas, porém, adotando outros rumos, são hoje cidades importantes. 
No geral, é fácil perceber o vínculo entre desenvolvimento econômico de uma localidade e maiores oportunidades educacionais para as crianças e jovens, ainda que sempre haja exceções. Finalmente, os números mostram uma diferença gritante nas matrículas de meninos e meninas nas escolas (¹³), mesmo se considerarmos que nem todos os matriculados efetivamente frequentavam as aulas, a despeito da multa que podia ser imposta aos pais dos que se ausentavam sem justificativa. Não se esqueçam, leitores: as informações oferecidas por Zaluar cobrem um pequeno número de localidades. Quanto às demais, no entanto, é improvável que houvesse grandes diferenças. 

(1) _________ Código de Instrução Pública da Província de São Paulo. S. Paulo: Typographia Dous de Dezembro, 1857, pp. 24 e 25.
(2) ZALUAR, Augusto-Emílio. Peregrinação Pela Província de São Paulo 1860 - 1861. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1862, p. 51.
(3) Ibid., pp. 69 e 70.
(4) Ibid., pp. 77 e 78.
(5) Ibid. p. 108.
(6) Ibid. p. 116. 
(7) Ibid. pp. 140 e 141.
(8) Ibid. p. 142.
(9) Ibid. pp. 226 e 227.
(10) Ibid., p. 254.
(11) Ibid., p. 246.
(12) Ibid., p. 271.
(13) A explicação desse fenômeno pode ser assunto interessante para outra postagem.