segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O dia em que a Reforma Protestante começou

Era 31 de outubro de 1517. Um monge agostiniano pregou uma lista de proposições contra a venda de indulgências (¹) na porta da igreja do castelo em Wittenberg (Alemanha) e, com esse fato, teve início a Reforma Protestante. 
Mas será que foi assim mesmo? Já houve quem suspeitasse que não. As Noventa e Cinco Teses de Lutero (²), que ele teria afixado à porta da igreja, eram escritas em latim, a língua franca dos debates acadêmicos naquele tempo, o que não era nenhuma surpresa, já que ele era professor na universidade local. Se pretendia debater suas ideias com outros professores e com estudantes, por que é que iria pregar as Teses na porta da igreja, justamente em uma ocasião em que, em virtude de uma celebração religiosa importante (o Dia de Todos os Santos, 1º de novembro), havia ali grande movimento popular? Por outro lado, se queria falar ao povo, por que escrever em latim?
Ora, perguntarão os leitores, faz alguma diferença se as Noventa e Cinco Teses foram ou não pregadas na porta da igreja? Bem, acho que, em termos práticos, não muda coisa alguma, mesmo que Lutero tivesse apresentado suas proposições apenas para debate no âmbito acadêmico. É que para o movimento de reforma religiosa que, sem querer e sem saber, estava iniciando, pareceria emblemático que seu herói-fundador fosse retratado a bater um martelo com ímpeto contra a porta de um templo, no momento em que expunha ao mundo suas ideias. De um jeito ou de outro, as Noventa e Cinco Teses foram logo traduzidas para o alemão que o povo falava, e cópias, em grande quantidade, foram espalhadas com rapidez - a imprensa já havia sido inventada nesse tempo.
Quem lê os escritos de Lutero logo percebe que seu autor estava, pessoalmente, vinculado a valores ainda fortemente medievais. Não obstante, os pensamentos que expunha tinham um tremendo potencial revolucionário, que ia muito além dos limites religiosos, expressando um descontentamento que não era apenas o de um monge, mas de grande parte da sociedade. É possível dizer que, ao contestar a venda de indulgências, Lutero não fez mais que atear fogo à palha que já andava, há tempos, louca para entrar em combustão. Não somente lideranças políticas mostravam certa insatisfação com a interferência da Igreja em questões de Estado, como entre os eruditos, alguns deles até muito devotos, eram numerosos os que não hesitariam em afirmar que o desregramento do clero atingira um ponto intolerável. Nota-se, portanto, que a liberdade de pensamento incentivada pelo Renascimento ganhara terreno e tinha força suficiente para abalar os alicerces que haviam sustentado o mundo durante grande parte da Idade Média.
Vejam, a seguir, leitores, quatro das Teses publicadas por Lutero, escolhidas porque são bastante emblemáticas e capazes de dar uma ideia do teor que norteava o documento como um todo:
Tese 43 - "Os cristãos devem ser ensinados que dar esmolas aos necessitados é melhor do que comprar indulgências."
Tese 45 - "Os cristãos devem ser ensinados de que aquele que vê diante de si um necessitado e o negligencia, preferindo gastar o dinheiro na compra de indulgências, está adquirindo, não as indulgências do papa, mas a indignação de Deus."
Tese 62 - "O verdadeiro tesouro da Igreja é o sacrossanto Evangelho da glória e graça de Deus."
Tese 76 - "Afirmamos que as indulgências papais não podem remover a culpa nem mesmo do menor dentre os pecados veniais." (³)
Para a mentalidade ocidental do Século XXI o documento pode parecer um tanto estranho, mas não era assim para quem vivia no Século XVI. A venda de indulgências (que não era uma novidade) constituía-se, então, em um assunto muito atual, e, se a mentalidade religiosa popular tendia a aceitá-la, visto que procedia de Roma, entre os pensadores a visão não era exatamente unânime.
Von der Freiheit eines Christenmenschen
(Da Liberdade de um Cristão),
edição de 1520
Houve reformadores na Igreja muito antes de Lutero. Alguns foram bem-aceitos, como S. Francisco de Assis; outros pagaram caro pela audácia de contestar aquilo que, aparentemente, quase todo mundo aceitava. Foi o caso de Jan Hus. Por que, então, tudo foi tão diferente com Lutero?
Não há uma resposta única para esta questão, mas vale assinalar que ele viveu quando a invenção da imprensa facilitava a divulgação das ideias; foi também beneficiado pelo interesse renascentista por idiomas antigos - entre eles, o hebraico e o grego - cujo conhecimento tornou possível aquela que talvez seja a mais importante de suas obras, ou seja, a tradução da Bíblia. Muito mais que uma tradução, a chamada "Bíblia de Lutero" foi vital para dar forma ao moderno idioma alemão. Para quem conhece a língua, é uma obra apaixonante, independente da profissão de fé que se tenha (ou que não se tenha). Além disso, Lutero era um hábil escritor, capaz de expressar seus pontos de vista de um modo que o povo podia compreender (⁴). Não menos significativo, Lutero encontrou amparo nas forças políticas que não viam com bons olhos a atuação do papado como uma espécie de autoridade supranacional, a quem, em última instância, até ali os monarcas europeus vinham prestando obediência e reconhecendo como suprema arbitragem. Finalmente, é fato claríssimo que Lutero não tinha, em 1517, a mais leve intenção de iniciar um movimento que culminasse por dividir a cristandade ocidental. Ao contrário, acreditava que, como bom católico, era seu dever expor e condenar erros relacionados à venda de indulgências que maculavam a Igreja, e que suas proposições seriam recebidas favoravelmente pelo papa reinante. 
Os acontecimentos, porém, tiveram rumo muito diverso daquele imaginado pelo monge alemão. Querendo ou não, a Reforma Protestante começava, forças políticas e religiosas agitavam a Europa, ameaças externas ao Continente preocupavam governantes e seus súditos. A cristandade, que já não era a mesma dos séculos precedentes, iria mudar ainda mais.

(1) De uma forma bem simples, as indulgências dos dias de Lutero poderiam ser descritas como certificados de perdão de pecados.
(2) É prática neste blog que os nomes próprios sejam, tanto quanto possível, apresentados em sua grafia original. Entretanto, neste caso, o uso da forma aportuguesada como Martim ou Martinho Lutero é tão disseminado, que me pareceu mais razoável adotá-la, em lugar de Martin Luther.
(3) 43 - Docendi sunt Christiani, quod dans pauperi aut mutuans egenti melius facit, quam si venias redimeret.
45 - Docendi sunt Christiani, quod, qui videt egenum et negecto eo dat pro veniis, non indulgentias papae, sed indignationem dei sibi vendicat.
62 - Verus thesaurus ecclesiae est sacrosanctum evangelium glorie et gratiae dei.
76 - Dicimus contra, quod veniae papales nec minimum venialium peccatorum tollere possint quoad culpam.
Cf. LUTHER, M. et KÖHLER. W. Luthers 95 Thesen. Leipzig:. J. C. Hinrichs'sche Buchhandlung, 1903.
(4) Ao leitor de hoje, alguns de seus escritos podem parecer grosseiros e até preconceituosos (Lutero era um escritor que não tinha "parafuso na língua"). É preciso, portanto, levar em consideração a época de sua publicação original e o público a que eram destinados.


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sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Flechas incendiárias

Não, leitores, elas não foram inventadas por Nero - o uso de flechas incendiárias ocorreu entre as mais diversas culturas, e era bem conhecido entre povos da Antiguidade. Heródoto afirma, no Livro VIII de suas Histórias, que os persas, durante as Guerras Médicas, haviam usado flechas incendiárias quando lutavam contra os atenienses que, protegidos pelas muralhas de sua cidade, resistiam corajosamente. Apenas como curiosidade, os persas finalmente tiveram êxito em forçar a entrada, e, conforme o hábito nas guerras antigas, degolaram todos os defensores que se haviam refugiado no templo de Palas Atena. A cidade foi entregue às chamas. Depois de saqueada, é claro.
Flechas comuns eram dirigidas, habitualmente, contra as formações dos exércitos inimigos. Ajudavam a reduzir o número de combatentes, antes que se travasse a luta corpo a corpo. Foi também Heródoto quem afirmou, no livro VII das Histórias, que, na guerra contra os gregos, as chuvas de flechas provenientes do exército persa, comandado por Xerxes, chegavam a encobrir a luz do sol.
Flechas incendiárias, porém, eram usadas com o objetivo de atear fogo às construções que os inimigos procuravam defender. Eram um recurso extremo, quando parecia impossível forçar a entrada de outro modo, pois um incêndio durante uma batalha dificilmente seria contido antes que tudo, ao redor, acabasse em cinzas. Admissíveis, portanto, quando o projeto era aniquilar o adversário, flechas incendiárias não eram uma ideia inteligente quando se pretendia conquistar uma cidade, conservando-a para o vencedor. 
De acordo com Hans Staden, indígenas do Brasil (*) conheciam o uso de flechas incendiárias, que preparavam do seguinte modo: um chumaço de algodão era untado com cera e, em seguida, amarrado à ponta de uma flecha, à qual se ateava fogo. Arqueiros fortes e bem-treinados atiravam contra as casas de seus inimigos, geralmente cobertas por folhas de alguma palmeira, que logo estavam em chamas. Os colonizadores perceberam a eficácia desse procedimento e, tão pronto conseguiam, pela diplomacia ou pela força, arrolar indígenas entre seus comandados, incluíam as flechas incendiárias entre seus recursos bélicos.

(*) Observação válida pelo menos para os tupinambás, com quem Hans Staden, mesmo contra a vontade, teve convivência demorada. Feito por eles prisioneiro, somente a muito custo conseguiu escapar de ser o prato principal de um banquete antropofágico.


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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Com que se parece uma preguiça?

A preguiça é, como se sabe, um animal muito lento. Seria injustiça dizê-la preguiçosa - não é defeito de caráter, mas culpa da taxa de metabolismo.
Vem do padre Anchieta (¹) a mais perniciosa descrição das preguiças que conheço:
"Há outro animal que os índios chamam aig e nós "preguiça", por causa da sua excessiva lentidão em mover-se; na verdade preguiçoso, pois é mais vagaroso que um caracol; tem o corpo grande, cor de cinza, a sua cara parece assemelhar-se alguma coisa do rosto de uma mulher [...]." (²)
Parecida com o "rosto de uma mulher"? Ora, bem se vê que Anchieta não entendia mesmo do assunto...
Era voz corrente no Século XVI que indígenas comiam qualquer coisa que encontravam, exceto aranhas (³). Tolice! Segundo Gabriel Soares, senhor de engenho e contemporâneo de Anchieta, indígenas do Brasil não comiam a carne das preguiças:
"[...] Acontece muitas vezes tomarem os índios um destes animais [as preguiças], e levarem-no para casa, onde o têm quinze e vinte dias, sem comer coisa alguma, até que de piedade o tornam a largar; cuja carne não comem por terem nojo dela." (⁴)
A explicação mais provável é esta: vários povos indígenas achavam que comer a carne de outro ser vivo (depois de morto, naturalmente) permitia adquirir algumas de suas características (⁵). Uma prova acabada desse fato é o modo como aqueles que praticavam a antropofagia repartiam a carne do prisioneiro que sacrificavam. Pois bem, no caso da preguiça, a razão para não incluí-la na dieta torna-se evidente - não queriam adquirir a lennnnnnnnnnntidão do animal.

Representação bastante razoável de uma preguiça (⁶)
Que tal esta outra, leitores? É do Século XVII... (⁷)

(1) Em carta escrita em São Vicente no ano de 1560, tendo por destinatário o Geral dos jesuítas, que era, na época, Diego Laynez.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 106.
(3) Essa e muitas outras tolices semelhantes eram resultado de um conhecimento ainda escasso sobre a diversidade cultural dos povos indígenas.
(4) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 258.
(5) Como a força, por exemplo, mas não sua aparência.
(6) SELLIN, Alfred Wilhelm. Das Kaiserreich Brasilien. Leipzig: Frentag, 1885, p. 52.
(7) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648, p. 221.


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segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Cidades-Estado na Antiguidade

Uma cidade-Estado, leitores, pode ser definida como uma unidade que é, do ponto de vista político, autônoma e independente, mas com território reduzido. Assim, tem governo próprio, leis próprias e juízes e tribunais próprios, exército próprio e, em muitos casos, religião e costumes próprios. Sim, tudo próprio! Ressalvadas algumas diferenças, bem poderíamos dizer, no limite da simplificação, que uma cidade-Estado é um país em forma de cidade. 
Isto posto, podemos considerar que cidades-Estado existiram em muitos lugares na Antiguidade. Em algumas épocas e circunstâncias eram a regra, e não a exceção. A despeito disso, é fácil constatar que, em locais distintos, cidades-Estado tinham também suas especificidades. Na Grécia Antiga, por exemplo, uma cidade-Estado:
  • Era um agrupamento urbano, ao qual correspondiam as áreas de cultivo adjacentes; 
  • Era habitada por indivíduos que, como cidadãos, tinham direitos políticos, inclusive quanto à participação no governo;
  • Tinha um culto em comum;
  • Exercia funções de defesa, já que, em tempos de guerra, a população rural das redondezas vinha buscar proteção dentro de suas muralhas;
  • Era um local de trabalho para artesãos e para o comércio local;
  • Geralmente passava por várias fases de desenvolvimento político, de modo que, ao longo dos anos, podia apresentar diferentes formas de governo.
Em sua grande maioria, as cidades-Estado da Grécia Antiga começaram como um ponto de sedentarização para grupos que migravam de outras regiões. Por sua vez, muitas cidades, posteriormente, deram origem a outras, por terem enviado grupos de colonizadores. Disso nasceria a chamada Magna Grécia.
Agora, leitores, se observarmos o que acontecia nas cidades-Estado encontradas na Palestina e na Mesopotâmia, veremos que:
  • Como regra, eram pontos de encontro para caravanas de mercadores;
  • Os "cidadãos" eram simplesmente os moradores da cidade, que adotavam seus costumes e praticavam a religião da comunidade, sem ter, necessariamente, algum direito à participação política;
  • Exerciam, como as cidades gregas, funções de defesa, o que explica a construção de muros e torres;
  • O governo era, com frequência, confiado a um rei, que contava ainda com a assessoria de um conselho de anciãos;
  • Tendo nascido como entrepostos de rotas comerciais, tinham costumeiramente um mercado anexo à porta principal;
  • À medida que se desenvolviam, passavam a contar também com oficinas de artesãos, de modo que algumas cidades vieram a ser notáveis por uma determinada modalidade de trabalho artesanal.
Nos dois casos que acabamos de investigar - cidades da Grécia Antiga e cidades da Palestina e Mesopotâmia - a "fundação oficial" era sempre descrita como um evento de caráter religioso, já que a nova povoação era consagrada a um deus ou deusa, cujo templo, ainda que modesto, era logo construído, como um símbolo da própria cidade e da proteção da divindade invocada. Os atos cívicos eram, então, quase sempre também atos religiosos, praticados no templo principal ou em suas imediações. Isso não descarta o fato de que algumas cidades podiam nascer "por acaso", sem uma intenção deliberada de fundação. Para esse defeito havia uma solução formidável: cronistas tratavam de criar as mais mirabolantes fábulas, remontando a origem de sua pátria a tempos tão distantes que a fundação só poderia ser obra dos deuses... E estava tudo resolvido, ao menos para eles. Para quem hoje tenta, seriamente, deslindar a verdadeira origem de cidades e povos, toda essa megalomania dos antigos é uma grande dor de cabeça.


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sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Marmeladas de São Paulo

São Paulo tinha uma produção agropecuária bastante variada em fins do Século XVI


No primeiro século da colonização, São Paulo era mais famosa pelas constantes revoltas e arruaças do que por aquilo que nela se produzia. Paulistas já andavam perscrutando o interior, mas o achado de jazidas auríferas ainda estava distante. As expedições eram, portanto, como regra, organizadas para "descimento do gentio", um eufemismo para aprisionamento de indígenas que seriam escravizados.
Apesar disso (ou, talvez, por causa disso), para padrões coloniais a agricultura tinha razoável desenvolvimento nas terras da Capitania de São Vicente, que hoje integram o Estado de São Paulo. O padre Anchieta escreveu (¹), sobre a região:
"É terra de grandes campos, fertilíssima de muitos pastos e gados, de bois, porcos, cavalos, etc., e abastada de muitos mantimentos. Nela se dão uvas e fazem vinho, marmelo em grande quantidade e se fazem muitas marmeladas, romãs e outras árvores de fruto da terra de Portugal. [...] Se dão rosas, cravinas, lírios brancos." (²)
Anchieta devia saber do que falava, porque não somente viveu em São Paulo de Piratininga, como esteve presente à sua fundação. Ele não foi, porém, o único a falar da produção agrícola e pastoril que havia na Capitania, citando, com entusiasmo, as famosas marmeladas. Gabriel Soares, em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587 (³), observou: 
"São os ares frios e temperados [...], cuja terra é mui sadia e de frescas e delgadas águas, em as quais se dá o açúcar muito bem, e se dá trigo e cevada [...]. Criam-se aqui tantos porcos e tamanhos que os esfolam para fazerem botas [...]. Dão-se nesta terra todas as frutas de espinho (⁴) que em Espanha [...]; dão-se [...] uvas, figos, romãs, maçãs e marmelos em muita quantidade, e os moradores da vila de São Paulo têm já muitas vinhas [...]; e também há já nesta terra algumas oliveiras que dão fruto, e muitas rosas, e os marmelos são tantos que os fazem de conservas, e tanta marmelada que a levam a vender por as outras capitanias." (⁵)
É evidente a concordância entre os testemunhos de Anchieta e de Gabriel Soares. Sabendo que Anchieta viveu durante vários anos em São Paulo, e que, mais tarde,  como provincial jesuíta entre 1577 e 1587 residiu em Salvador, é lícito pensar que possa ter sido uma das fontes de informação a que Gabriel Soares recorreu para compor o seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Não parece restar dúvida, porém, de que ambos eram apreciadores das marmeladas de fabricação paulista, ou não seriam tão enfáticos em fazer menção a elas.

(1) O documento atribuído a José de Anchieta tem a data de 1585 e recebeu o título de "Informação da Província do Brasil Para Nosso Padre".
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, pp. 423 e 424.
(3) Vejam, portanto, leitores, que Gabriel Soares escreveu pouco tempo depois de Anchieta haver composto a sua "Informação da Província do Brasil Para Nosso Padre".
(4) Referência às frutas cítricas.
(5) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, pp. 98 e 99.


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quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Problemas relacionados aos transportes no Brasil

Acabo de ler em um site de notícias que, em uma cidade importante do interior de São Paulo, vários ônibus foram vistos circulando com superlotação, impossibilitados de manter as portas fechadas, a tal ponto que, em pelo menos um caso, havia até passageiro pendurado do lado de fora. Aparentemente sem se importar com a possibilidade de um grave acidente, o motorista seguia com o veículo em movimento. 
A insuficiência e/ou deficiência (¹) dos serviços de transportes não é, no Brasil, duvidoso privilégio de uma única cidade. Casos como este a que me referi são, infelizmente, muito comuns. E não é de hoje. Vejam, leitores, este cartoon publicado na revista carioca O Malho, edição de 5 de maio de 1923 (²): 


A legenda diz:
""A diretoria da E. F. Central pediu auxílio à polícia para evitar pingentes nos seus carros." (dos jornais)
- Desça, cidadão. Você não pode viajar pendurado.
- Eu sou senhor do meu nariz. O que é que a Estrada tem com a minha vida?
- Não tem nada, mas você não pode derrubar os postes ou destruir a boca dos túneis com a cabeça.""
É verdade que nem todos os "pingentes" dos trens da Central viajavam do lado de fora por falta de espaço dentro dos carros. Mas, leitores, deixando de lado essa questão, parece haver certo humor na legenda, sugerindo que, afinal, o fator prioritário não era a integridade física dos passageiros.
Uma explicação para a deficiência nos transportes, ainda que não a única, é que o Brasil foi, por séculos, um país essencialmente rural, com poucas cidades expressivas, e que, por uma série de razões, começou a apresentar crescimento urbano acentuado a partir das primeiras décadas do Século XX. Nesse cenário, tanto a infraestrutura quanto os serviços logo se tornaram insuficientes, ou seja, não acompanharam a demanda. O problema é que o problema persiste (³), e será cada vez maior, se não houver uma mudança radical na abordagem adotada para o setor de transportes, que não pode ter em vista apenas medidas paliativas. As "soluções" de sempre já não solucionam coisa alguma.

(1) Refiro-me aos aspectos quantitativo e qualitativo do problema, respectivamente.
(2) O MALHO, Ano XXII, nº 10177. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) É claro que a repetição foi intencional.


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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

A roca e o fuso d'A Bela Adormecida e os teares da Revolução Industrial

"E Ana Margarida, ama de mestre Afonso Domingues, saiu da porta com a roca ainda na cinta, e o fuso espetado entre o linho e o ourelo que o apertava."
Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas

A princesa prestes a tocar o fuso, ilustração
de Wilhelm Jordan (²)
As versões da história são muitas, mas o que importa é que a linda princesinha, ao nascer, cai no desagrado de uma bruxa ou fada invejosa (¹), e, em consequência, é predestinada a um sono de cem anos, tão logo tenha seu lindo dedinho picado pelo fuso de uma roca. Desesperado, o rei, pai da menininha, ordena que todas as rocas sejam destruídas. Mas (conto de fada ou de bruxa que se preza sempre tem um "mas"...), um dia, o inevitável acontece. A menina curiosa vê escorrer uma gotinha de sangue e logo adormece. O reino todo resolve dormir também, até que (sim, todo conto de fadas também costuma ter um "até que") um príncipe maravilhoso, cem anos mais tarde, removendo a floresta cerrada e as teias de aranha que haviam crescido por toda parte, chega até a princesa e, com um beijo, a faz despertar, bem como a todo o seu séquito de dorminhocos. Como é óbvio, acontece uma festa de casamento e todos vivem felizes para sempre.
Dornröschen, para os Irmãos Grimm, ou A Bela Adormecida, como o conto é costumeiramente chamado em português, pode ser muito instrutivo para quem se interessa por História. É o que veremos agora mesmo, leitores.
Roca e fuso eram usados para transformar linho, cânhamo, flocos de lã, etc., em fios, que, depois, em um tear, seriam usados para fazer tecido. Não é sem causa que uma das imagens mais frequentemente associadas à ocupação de mulheres na Idade Média seja justamente a de alguém fiando. Independente de condição social, saber fiar e tecer era uma questão de sobrevivência. Nesse tempo, todo o processo de produção de fios e tecidos era extremamente moroso, o que explica, ao menos em parte, por que as pessoas tinham, em geral, poucas roupas, que eram consertadas repetidas vezes. O tempo do tear a vapor, uma verdadeira marca da chamada Revolução Industrial inglesa, ainda estava distante: a spinning jenny, capaz de fiar oito fios ao mesmo tempo, é datada de 1764, enquanto que o primeiro tear a vapor somente foi registrado em 1780. Com esses inventos, perdia-se a serenidade de fiar lentamente, ao modo medieval, e entravam em cena os trabalhadores reunidos em enormes galpões - as fábricas - em que, ao ritmo das máquinas, e não mais segundo a capacidade individual dos seres humanos, os fios e tecidos eram fabricados em larga escala, para atender a mercados em expansão, bem perto, no próprio país, ou muito longe, além do oceano.

(1) Haverá alguma diferença entre uma bruxa e uma fada perversa?
(2) WEGENER, Friedrich. Dornröschen. Berlin: Globus Verlag, 1901.


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sexta-feira, 14 de outubro de 2016

O que você veria se chegasse a uma pequena povoação no Brasil Colonial

Você, leitor, e eu, não podemos voltar ao passado. Mas podemos, com o uso de documentos antigos, reconstruir, até certo ponto, como era a vida em outros tempos. Se chegássemos, por exemplo, a uma pequena povoação no Brasil Colonial, em algum momento entre os Séculos XVI e XVIII, veríamos uma realidade muito diferente daquela que encontramos atualmente em centros urbanos. 
As ruas dos vilarejos coloniais eram, em sua maioria, tortuosas, nascidas sem qualquer planejamento. Poucas eram calçadas. A poeira, no estio, e a lama, em tempo de chuva, eram inevitáveis. Seria comum, andando por elas, ver porcos, galinhas e, às vezes, alguma cabra que houvesse escapulido de um quintal. As casas eram muito simples, feitas de taipa. Os muros, com frequência, eram construídos com tijolos de adobe, mas cercas de bambu eram também corriqueiras.
Em sua viagem mental, leitor, você chega a cavalo, depois de uma noite chuvosa, entra por uma dessas ruas e não vê quase ninguém. Tem, no entanto, a sensação de que está sendo observado. É que, por trás das gelosias, sempre há olhares à espreita... 
Siga em frente. Em toda vila colonial que se preza, o ponto de convergência é uma pequena igreja ou capela, usualmente construída no ponto mais alto da localidade. Ao redor dela, estão umas poucas oficinas - um ferreiro, alguém capaz de fazer e consertar calçados, talvez um alfaiate. Algum comércio de gêneros alimentícios produzidos nas redondezas também pode ser encontrado, mas não se deve esperar muito mais que isso. As hortas estão em quase todos os quintais e ajudam a suprir a mesa das poucas famílias residentes.
Sua primeira preocupação é dar água ao cavalo. Com sorte, esta vila terá um chafariz, e lá você poderá matar a sede e deixar que seu cavalo faça o mesmo. Não há nenhum problema, já que, nos dias coloniais, ninguém dirá ser falta de higiene que humanos e animais bebam água no mesmo lugar. Dois escravos, com grandes vasilhas de barro, recolhem a água que jorra, conversam entre si, olhando com curiosidade para o estranho que acaba de chegar (você!), e depois se vão. Aqui, quem não tem um poço, depende do chafariz para abastecimento, e mandar escravos em busca de água é um hábito. 
Um breve descanso e você vai em direção à "venda", o pequeno comércio local. Do lado de fora, grandes argolas de ferro servem para prender cavalos. Você desmonta, amarra seu animal perto de três outros que lá estão, e entra. O interior é meio escuro, mas não impede que você veja, ao fundo, alguns homens entretidos com um jogo de cartas (o jogo é proibido, mas, como se sabe, ninguém teria o trabalho de proibir aquilo que não se faz). Ao centro da mesa, uma cachaça de má qualidade. 
Você vai ao rústico balcão e pergunta ao vendeiro se há milho para o cavalo. Sem tirar o cigarro de palha do canto da boca, ele resmunga alguma coisa ininteligível e aponta para um jacá perto da porta. Depois, contraindo o nariz, indaga se você mesmo quer comer. O aspecto do lugar não inspira confiança, mas a fome não lhe deixa escolha. No fogão a lenha está um enorme caldeirão fumegante, que, pelo aspecto externo, não é lavado há muito tempo. Logo lhe é apresentado um cozido cujos componentes você nem tenta identificar. Melhor assim...
Enquanto você come, umas poucas pessoas entram, sem pressa, fazem suas compras e, sem tomar conhecimento do grupo envolvido com o jogo, lá se vão. Um breve aceno de cabeça em sua direção mostra que você não passa despercebido.
É hora de ir. A vila não tem uma estalagem em que se possa passar a noite. Você coloca em um saco de couro as espigas de milho que comprou para o cavalo, paga a conta e sai. Já na rua, vê passar uma criatura coberta por uma pesada capa escura, que só deixa à vista parte do rosto. As mulheres "de bem" que vivem nas vilas e cidades coloniais só saem à rua cobertas desse jeito, ou seja, usando mantilha. Você desamarra o cavalo, monta, contorna a igrejinha e sai da vila pela mesma rua por onde entrou. Já quase chegando à trilha, vê passar um sujeito escarrapachado em uma rede que dois escravos suam para carregar. Deve ser algum proprietário rural das redondezas. 
Logo depois, o som das patas e o resfolegar de animais parece mostrar que uma tropa de mulas está por perto. Você não está enganado. Desta vez, haverá companhia para seguir viagem.


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quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Unhas de tamanduá viravam apitos

Sabem, leitores, o que é o objeto da foto abaixo?


É artesanato indígena: um pequeno apito de cerâmica. Para que funcione, deve-se colocar água dentro dele. Interessante, não?
No primeiro século da colonização do Brasil esteve em uso outro tipo de apito. Pelo menos, foi o que disse Gabriel Soares (¹), em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, ao falar do tamanduá:
"Tem as mãos como cão [sic], com grandes unhas e muito voltadas, de que se fazem apitos." (²)
Pra falar a verdade, não acho muita semelhança entre a pata de um cão e a de um tamanduá. Portanto, cada um de vocês, leitores, decida por conta própria sua opinião a respeito. Já quanto ao uso que era dado às unhas, Gabriel Soares não explicou se os apitos eram feitos pelos colonizadores ou pelos indígenas. Fica evidente, porém, que, para que as unhas virassem apitos, era preciso abater seu proprietário. Que injustiça!

Tamanduá-mirim (Tamandua tetradactyla)

Tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla)

(1) Era português de nascimento; veio ao Brasil, foi senhor de engenho e acabou a vida em uma expedição que foi ao interior à procura de metais preciosos.
(2) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 247.


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segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Como o luxo chegou aos romanos

Historiadores da Antiguidade foram enfáticos em afirmar que os habitantes de Roma, nos primórdios da cidade, prezavam, como virtudes impagáveis, a sobriedade, a frugalidade e o hábito de economizar. 
Que dizer? Eles não podiam, mesmo, ser muito diferentes disso. A primitiva aldeia de pastores e agricultores era pobre demais para cultivar gente dada ao luxo.
Porém, com o passar do tempo, vieram as conquistas militares e, com elas, duas coisas aconteceram:
a) Os romanos passaram a copiar alguns costumes estrangeiros que pareciam úteis, ainda que viessem de inimigos que haviam derrotado;
b) O enriquecimento proporcionado pelas conquistas militares abriu caminho para que hábitos de luxo se infiltrassem na sociedade romana.
Tito Lívio, em Ab urbe condita libri, assinala a entrada do luxo na época em que os romanos, sob o comando de Lúcio Cornélio Cipião (¹), também conhecido como "Asiático", derrotaram as forças comandadas por Antíoco III na Batalha de Magnésia (190 a.C.):
"Quando L. Cornélio Cipião voltou a Roma, celebrou-se um notável triunfo e concedeu-se-lhe o apelido de Asiático: seu exército é que começou a introduzir o luxo estrangeiro em Roma." (²)
Ora, meus leitores, o que estava em jogo na Batalha de Magnésia, vencida pelos romanos, era o domínio sobre a Grécia. Podem, portanto, imaginar o botim de guerra em tal ocasião!
Desde o tempo da guerra contra Siracusa (³) os romanos vinham admirando a arte grega. Marco Cláudio Marcelo, o cônsul que comandou a vitória, depois de saquear a cidade derrotada, levou a Roma uma quantidade enorme de obras de arte, que foram consagradas aos deuses, em seus respectivos templos. Segundo Tito Lívio, foi assim que "as obras de arte gregas começaram a ser admiradas em Roma" (⁴).
Mas, acreditem, não foram apenas as grandes obras de arte produzidas por gênios da cultura grega que ganharam a afeição dos romanos. Coisas aparentemente corriqueiras do dia a dia também conquistaram o coração dos outrora sisudos moradores da Península Itálica, cujo principal alimento era uma espécie de mingau de aveia. Conquistaram o coração, sim, mas inclua-se nisso também o estômago: a comida da Grécia, em particular a arte da panificação, enfeitiçou Roma, a tal ponto que se afirma que, nos dias do imperador Augusto, chegou a haver na cidade nada menos que trezentas e vinte e nove padarias públicas. 
O jeito romano de fazer as coisas, porém, veio a manifestar-se nesta questão.  Para exercer controle e evitar que cada um fizesse o pão como bem entendesse, havia um funcionário público cujo trabalho era fiscalizar continuamente se todos os estabelecimentos de panificação cumpriam seus deveres conforme estipulado, em quantidade e qualidade, quer fazendo o alimento que se vendia para distribuição aos escravos, quer fabricando finíssimos pães, com ingredientes sofisticados, que só frequentavam a mesa dos ricos.

(1) Irmão de Públio Cornélio Cipião, apelidado "O Africano".
(2) Tito Lívio, Ab urbe condita libri
(3) 212 a.C.
(4) Tito Lívio, Op. cit.
As citações de Ab urbe condita libri que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Na falta de médicos, jesuítas prestavam assistência aos doentes no Brasil Colonial

Os jesuítas que vieram ao Brasil desde meados do Século XVI tinham, como objetivo primário, empreender a catequese dos povos indígenas. Logo que chegaram, ficou evidente que, em grande parte, deles dependeria a assistência religiosa aos portugueses colonizadores. O trabalho junto aos indígenas tornou possível, também, que missionários da Companhia de Jesus andassem pelo interior do Brasil como verdadeiros exploradores do território ainda desconhecido para europeus. Logo, porém, os "padres da Companhia" perceberam que teriam ainda outra tarefa, diante das condições precárias em que vivia a maior parte da população colonial - deixemos que José de Anchieta explique por si mesmo:
"Neste tempo que estive em Piratininga servi de médico e barbeiro, curando e sangrando a muitos daqueles índios, dos quais viveram alguns de quem se não esperava vida [...]." (¹) 
Estas palavras foram escritas em uma carta datada de 1554. De saída, é necessário lembrar que, quando Anchieta diz que serviu como barbeiro, não queria isso significar que andava a cortar os cabelos ou fazer a barba de quem quer que fosse. É que nesse tempo, quando alguém tinha febre, costumava chamar um barbeiro que fazia sangria. Que é isso? Simples, acreditava-se, com base em ideias desenvolvidas ainda na Antiguidade greco-romana, que a febre era indício de um excesso "força vital". Portanto, para resolver o problema, retirava-se um pouco de sangue da pessoa febril, para que sarasse. Ora, com tal tratamento, às vezes a febre baixava mesmo. De uma vez para sempre. Sangrias, porém, não eram aplicadas apenas quando o paciente tinha febre. Eram recomendadas para quase tudo. E ninguém imagine que esse "tratamento" era praticado apenas em comunidades isoladas na América. Era o que se fazia em quase todo o mundo dito "civilizado", e assim continuaria a ser, ainda por centênios.
É verdade que, aos missionários, era vedado "derramar sangue", mas, depois de uma consulta ao Geral e Fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola, foi-lhes dada uma permissão para que socorressem os doentes, face à situação de penúria na Colônia, pela absoluta falta de profissionais habilitados na área da saúde. Por isso é que Anchieta escreveu a seus irmãos de Ordem que viviam em Portugal sobre o trabalho que andava a fazer, de "médico e barbeiro". A assistência a indígenas e portugueses não estava restrita à pequenina São Paulo de Piratininga, fundada em 1554. Era praticada, havendo doentes, onde quer que estivessem os padres.
Não há dúvida de que, ao cuidar de enfermos entre os índios, os padres procuravam, com habilidade, obter a confiança também em seus ensinos de caráter religioso. Em outra carta, escrita dois anos mais tarde, Anchieta seria explícito nessa questão:
"[Os indígenas] não podem deixar de admirar e reconhecer o nosso amor para com eles, principalmente porque veem que empregamos toda a diligência no tratamento de suas enfermidades, sem nenhuma esperança de lucro." (²)
Faziam isso como estratégia de evangelização:
"Fazemos isto, na intenção de preparar para o recebimento do batismo, caso haja necessidade, os seus espíritos, em tais circunstâncias mais redutíveis e mais brandos [...]." (³)
Independente da opinião que se tenha sobre os métodos de catequese que estavam em uso no Século XVI, não podemos deixar de admirar a caridade manifestada por Anchieta, segundo um relato feito por ele mesmo ao padre Diego Laynez (Geral dos jesuítas entre 1558 e 1565), relativo ao período em que esteve com Nóbrega negociando a paz entre tamoios e colonizadores. Um índio que tencionava matá-los adoeceu gravemente, e recebeu os cuidados dos padres:
"[...] Se inchou uma mão em tanta maneira que toda se corrompeu, a qual eu lha abri em duas partes com uma lanceta [...], e junto com isto se lhe empolou o braço até os ombros de umas inflamações tão feias, que os outros não se ousavam de chegar a ele, mas mirando-o de longe, me diziam que o curasse e fizesse não se estendesse aquele mal pelos outros, e todos o desampararam sem se doer dele, nem dar-lhe de comer, nem houve entre todos seus parentes quem me buscasse um pouco de mel pelos bosques com que o curasse, e ainda que eu lho pagava; eu rompi uma camisa que tinha e curei-o com azeite, buscando-lhe de comer e dando-lho por minha mão, porque ele não podia [...]." (⁴)
Os padres da Companhia eram procurados inclusive para prestar assistência às mulheres em trabalho de parto, conforme explicou Anchieta em outra carta, desta vez escrita em São Vicente no ano de 1560:
"Muitas vezes nos levantamos do sono, ora para os enfermos e os que morrem, ora para as mulheres de parto, sobre as quais pomos as relíquias dos santos, e parem, e o que elas não ignoram, começando a sentir as dores, logo as mandam pedir, havendo-se primeiro confessado." (⁵)
Sim, leitores, entendo que estejam horrorizados. Explico, apenas, que a prática absurda de colocar relíquias de santos sobre parturientes eram coisa comum no Século XVI, e mesmo mais tarde. Parece absurdo para nós, mas as pessoas daquele tempo realmente criam que isso funcionava, tanto para a mãe quanto para o bebê que ia nascer. 
Anchieta, em seus escritos, sempre procurava deixar claro que os jesuítas eram chamados para socorrer não apenas indígenas, mas também colonizadores que viviam nas proximidades dos colégios da Companhia de Jesus. "Acudimos a todo gênero de pessoa, português e brasil, servo e livre, assim em as coisas espirituais como em as corporais, curando-os e sangrando-os, porque não há outro que o faça [...]" (⁶), observou ele, em uma carta datada de 1562. O ponto essencial, aqui, destacado pelo próprio missionário, é que não havia ninguém que cuidasse da saúde da comunidade colonial em Piratininga, de modo que, nesse aspecto, os jesuítas faziam o que podiam ou achavam que dava algum resultado. Esse fato é extremamente revelador sobre as condições sanitárias que vigoravam nos primeiros tempos coloniais. A procura pelo atendimento dos padres era tão frequente, que, tanto no caso de indígenas como de portugueses, se traduzia em uma verdadeira dependência, sobre a qual Anchieta ainda diria:
"É gente miserável [os indígenas], que em [...] enfermidades nem sabem nem têm com que se curem, e assim todos confugem a nós outros demandando ajuda, e é necessário socorrê-los não só com as medicinas, mas ainda muitas vezes com lhes mandar a levar de comer e dar-lho por nossas mãos, e não é muito isto em os índios, que são paupérrimos, os mesmos portugueses parece que não sabem viver sem nós outros, assim em suas enfermidades próprias, como de seus escravos: em nós outros têm médicos, boticários e enfermeiros, nossa casa é botica de todos, poucos momentos está quieta a campainha da portaria, uns idos, outros vindos a pedir diversas coisas [...]." (⁷)
O que concluímos disso tudo? Ora, se parece certo que os missionários jesuítas não procuraram para si a atribuição de prestar os primeiros socorros nas incipientes comunidades coloniais, fica também evidente que o rumo dos acontecimentos foi interpretado como uma oportunidade para a catequese e para o crescimento da influência que a Companhia de Jesus podia exercer entre portugueses que viviam no Brasil, face à vulnerabilidade ocasionada por situações de risco para a vida.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 61.
(2) Ibid., p. 88.
(3) Ibid. 
(4) Ibid., pp. 227 e 228.
(5) Ibid., p. 149.
(6) Ibid., p. 179.
(7) Ibid., p. 240.


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quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Como devia ser dado o aviso de incêndio na capital do Império do Brasil

Quem vivia na capital do Império do Brasil no Século XIX não veria, em caso de incêndio, viaturas modernas e bem-equipadas, em alta velocidade, conduzindo bombeiros em direção ao local do sinistro. Tampouco ouviria o som estridente das sirenes pedindo passagem. Não havia, ainda, veículos automotores, de modo que, para apagar o fogo, o sistema era bem diferente do de hoje, apesar de um tanto complexo. 
De acordo com o Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1871, o Regulamento de 30 de abril de 1860 estipulava que o sinal de fogo seria dado:
"1º Pelo toque do maior sino da igreja que primeiro souber.
2º Pelo toque do maior sino da igreja matriz da freguesia em que se manifestar o incêndio.
3º Pelo toque do sino grande da igreja de S. Francisco de Paula.
4º Por sinais do morro do Castelo do lado do mar, do seguinte modo:
Se for de dia, o sinal será seguido de uma bandeira encarnada, içada no mastro grande, a qual se conservará enquanto durar o incêndio. Sendo de noite, colocar-se-á uma lanterna encarnada no topo do dito mastro, a qual se conservará acesa até extinguir-se o incêndio. Estes sinais serão feitos de modo a serem bem vistos do lado do mar." (¹)
Observem, leitores, a importância que tinham os sinos das igrejas - eram muito mais do que sinalizadores do horário de serviços religiosos. Percebe-se, também, que o aviso era dado através de sinos, não só porque não havia modo mais eficiente, mas porque se esperava que todos os que pudessem, ajudassem prontamente nos trabalhos para apagar o fogo, embora nesse tempo já houvesse gente especializada, ou seja, já havia bombeiros que recebiam treinamento específico. Outra observação pertinente é que a bandeira ou lanterna "encarnada" que devia ser usada no morro do Castelo significa simplesmente bandeira ou lanterna vermelha. 
Como saber, porém, que o toque dos sinos avisava de um incêndio e não de qualquer outro acontecimento? O mesmo Regulamento fazia especificações nesse sentido:
"O toque dos sinos constará do número de pancadas seguidas, correspondente ao número de cada freguesia, repetindo-se este toque com intervalo de um minuto. Assim, para indicar o fogo na freguesia nº 1, o toque será de uma badalada, repetida clara e distintamente de minuto em minuto; na freguesia nº 2, será de duas badaladas repetidas com o mesmo intervalo de um minuto, e assim por diante (...)." (²)
Apenas como curiosidade, leitores, vejam a tabela abaixo, na qual estão listadas as freguesias existentes na época, e a respectiva numeração:


Imaginem, agora, o que seria um aviso de incêndio na última freguesia da lista: Dom, dom, dom, dom, dom, dom, dom, dom, dom, dom, dom - um minuto em silêncio - dom, dom, dom, dom, dom, dom, dom, dom, dom, dom, dom... Era preciso ouvir com atenção, não fosse o caso de alguém fazer a conta errada e ir para um lugar muito diferente daquele em que se propagavam as chamas.

(1) HARING, Carlos Guilherme. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1871. Rio de Janeiro: E & H Laemmert, 1871, Suplemento, p. 155 e 156.
(2) Ibid., p. 156.


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segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Vegetais nativos do Continente Americano

Exploradores europeus que chegavam ao Continente Americano, depois de uma travessia oceânica que podia durar meses, desembarcavam esfomeados. A comida dos navios era, quando existente, quase intragável. Sucede, porém, que, como regra, nas praias da América não havia nenhum banquete esperando por eles (se não tivessem cuidado, eles é que acabavam virando banquete). Em desespero de causa, só restava uma coisa a fazer: deviam, tão rápido quanto possível, adotar pelo menos alguns dos hábitos alimentares dos indígenas.
Com bons modos, conseguiam trocar facas, tesouras, canivetes, navalhas, machados, espelhos, peças de vestuário e outros objetos por milho, abóbora, mandioca, amendoim, batata, peixes, papagaios, tartarugas, etc., conforme a região em que estavam.
Com maus modos, usavam as armas de fogo, cães e cavalos para arrancar dos indígenas os estoques de comida que porventura tivessem. O inconveniente de usar a força é que quase sempre vinha uma retaliação (neste caso, plenamente justificada). Houve situações em que, face à ameaça dos invasores, tribos que antes eram inimigas se coligaram e empreenderam um ataque maciço. Não será difícil a ninguém imaginar os resultados.
Consideremos, porém, o assunto dos vegetais de uso alimentar que, à época da chegada dos primeiros colonizadores, eram cultivados por indígenas em áreas específicas do Continente. Plantas até então desconhecidas para os europeus foram por eles espalhadas pelo mundo e ganharam espaço na culinária, revolucionaram velhos hábitos e permitiram uma oferta maior de alimentos, salvando multidões da carência nutricional e mesmo da morte por inanição. As batatas, cultivadas há muito tempo na região andina, são exemplo notável, porém, dentre tantos outros, destacam-se também o amendoim, a mandioca (vital para os indígenas do Brasil), variedades de abóboras e o milho, tão importante que, entre os astecas, era associado a uma divindade, Cintéotl. Tentem imaginar, leitores, o mundo sem os gloriosos tomates - tomates que os astecas conheciam e apreciavam muito antes que Colombo e seus sucessores pusessem os pés no Continente Americano, mas que hoje estão em quase todo lugar. Como seria o mundo sem molho de tomate, em suas inumeráveis versões?


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