quinta-feira, 29 de março de 2012

"Dias de peixe"

Sabe o que eram os "dias de peixe"? Bem, dependendo das práticas religiosas adotadas, para algumas pessoas não era - ainda é. Trata-se do período da Quaresma, no qual a gente devota se abstinha de carne, fazendo, portanto, crescer o consumo de peixe. Foi-se a devoção, ficou o hábito de comer peixe nessa época do ano.
Pode até parecer estranho, mas na Idade Média não eram escassas as discussões sobre como deveriam ser classificados certos seres vivos que passavam algum tempo na água e algum tempo em terra - se podiam ser tidos como peixes ou não e, se sendo peixes, podiam servir de comida na Quaresma. Ah, mas que grande diferença fazia isso? É preciso lembrar que, nesses passados tempos, obter alimento rico em proteínas em fins do inverno ou mesmo início de primavera não era exatamente uma tarefa fácil, que se agravava bastante com as restrições da abstinência quaresmal, daí porque uma questão que chega a nos parecer ridícula ganhava muita importância. A intensa religiosidade então reinante fazia com que esse assunto fosse tratado muito seriamente.
Gradualmente, chegou-se a constituir uma tradição culinária associada às semanas que antecediam a Páscoa e que, muito tempo mais tarde, quando os livros de receitas começaram a ganhar espaço, foi sistematizada. E, para os leitores que tenham porventura ficado quase a morrer de curiosidade sobre que comidas eram essas, vou dar um exemplo, sendo escusado salientar ser improvável que alguém tenha ânimo para ir à cozinha, pondo mãos à obra para provar a tal receita, que consta da Arte do Cozinheiro e do Copeiro, em edição que apareceu em Lisboa na primeira metade do século XIX:

Sopa de ervas para dias de peixe

"Azedas (duas pequenas mãos-cheias), uma alface, quatro até cinco folhas de acelgas. Examinai-as bem e tirai-lhes as impurezas, fazei-as branquear cinco minutos em água a ferver e tirai-as depois e escorrei-as, calcando-lhes brandamente. Cortai-as em tiras grosseiras, metei-as numa panela com uma quarta de manteiga, o sal preciso, e um pó de pimenta. Deita-lhes água fria e cozei-as um quarto de hora; depois acrescentai a panela com água a ferver e tornai a deixar cozer por outro quarto de hora. Passado este provai a ver se está bem temperado, e desfazei num prato três gemas de ovos e duas colheres de nata. Tirai o caldo do lume e ajuntai-lhe o condimento indicado, pouco a pouco e mexendo sempre. Ultimamente deitai bocados de pão numa sopeira e fazei a sopa. Se for de verão podeis ajuntar-lhe duas colheres de ervilhas guisadas verdes."


Veja também:

terça-feira, 27 de março de 2012

Uma juíza de futebol em 1922

Dias atrás assisti pela TV a uma partida de futebol na qual uma auxiliar da arbitragem (a "bandeirinha") era sistematicamente hostilizada por torcedores de uma das equipes. Motivo? A marcação de impedimentos sucessivos de um atacante.
Acontece que a auxiliar estava sempre certa - o atacante, esse sim, precisa ter mais atenção aos companheiros e à defesa adversária, se quiser ser útil à sua equipe, mas a torcida, como toda torcida, dificilmente reconhecerá esse fato. A culpa, como é costume, era sempre creditada à digna árbitra auxiliar que, impassível, com uma serenidade de dar inveja ao Mahatma Gandhi, prosseguia em seu trabalho, a despeito das contínuas imprecações até contra a sua milésima ancestralidade.
Pois bem, meus leitores, essa assistente parece ter tido, no Brasil, uma predecessora em tempos bem remotos, pelo menos em termos de futebol. A edição de primeiro de dezembro de 1922 da revista paulistana A Cigarra trouxe esta notícia:


Diz a legenda: "No Rio, uma senhora serviu de juiz em um prélio de futebol" (dos jornais). O jogo pesado será um mito... Teremos, em pouco tempo, uma luta de... gentilezas."
À parte o gracejo da revista, é fato que, em 1922, muita gente no Brasil ainda achava que a prática de esportes devia ser restrita aos homens, em especial quando se tratava de dar chutes em uma bola. Infelizmente a revista não mencionou o nome da juíza e nem o "match" que ela arbitrou, mas podemos nos perguntar que tipo de uniforme teria ela usado - os juízes da época costumavam apresentar-se irrepreensíveis em paletó e gravata, sem esquecer do chapéu, é claro.
Resta dizer, no entanto, que se a década de vinte (do século XX) viu o futebol explodir em popularidade no Brasil, foi também porque, na época, futebol era, sim, coisa de mulher, ao menos nas arquibancadas. Fotos da época mostram que a plateia dividia-se quase igualmente entre homens e mulheres, todos bem vestidos e igualmente bem comportados, principalmente as torcedoras que, se não iam aos modestos estádios vestindo a camisa do time preferido, costumavam trajar vestidos com as cores da equipe que apoiavam, equipes que provavelmente tinham atletas que se destacavam não apenas pelos atributos essencialmente futebolísticos. Para quem duvida disso, recomendo a leitura das seguintes postagens: "O jogador de futebol ideal" e "Futebol no Brasil no início do Século XX - Os torcedores".


Veja também:

domingo, 25 de março de 2012

Como os índios do Brasil obtinham fogo

Conta Hans Staden em Zwei Reisen nach Brasilien (¹) ter visto os índios fazendo fogo com o seguinte método: cortavam dois pauzinhos, atritavam-nos, disso desprendia-se um pó que, em resultado do calor do atrito, incendiava-se. No livro que fez publicar, dando notícia das aventuras que vivera na América, há uma ilustração que mostra esse procedimento, e pode ser vista abaixo:

Índio obtendo fogo mediante atrito, segundo Hans Staden

Já o Padre Simão de Vasconcelos, jesuíta, assim explica o processo de obtenção do fogo pelos índios:
"O fogo tiram de certos paus, um mole e outro duro, que roçam à força um com o outro, e com o movimento concebem calor e com o calor, fogo; e feito isto comem, bebem e dormem contentes." (²)
Vê-se que, em essência, ambos descrevem a mesma coisa - os indígenas obtinham fogo mediante atrito de dois paus.
São esses relatos confiáveis? Neste caso, em particular, não há motivo para duvidar deles, ainda que as explicações, para padrões científicos atuais, deixem algo a desejar. Hans Staden viveu involuntariamente entre os tupinambás (e, por muito pouco, deixou de virar "moquém"), de modo que teve tempo de sobra para observar-lhes os costumes. Já para o Padre Simão de Vasconcelos vale o que se pode dizer, em linhas gerais, dos registros feitos por muitos sacerdotes que, nos primeiros séculos da colonização, "iam ao sertão missionar", como então se dizia - são muito úteis e interessantes porque, a despeito de alguns erros de interpretação do que se via, fruto óbvio do choque de culturas tão diferentes, esses religiosos é que tinham o maior contato com os povos nativos, buscando aprender seus costumes e língua para melhor comunicar-lhes os ensinos que entendiam ser seu dever transmitir. Podiam revestir seus relatos de um preconceito do qual talvez nem estivessem conscientes, mas não se contavam, por suposto, entre os que viam os índios apenas com um obstáculo à exploração e ocupação do território, obstáculo esse que, quanto antes fosse suprimido, melhor.
Em suma, e para finalizar, vale para todos os documentos históricos (como são as obras de Hans Staden e do Padre Simão de Vasconcelos) a seguinte consideração: devem ser analisados criticamente, buscando-se, segundo correta metodologia de interpretação, extrair deles toda a informação possível e jamais desconsiderando o contexto em que foram produzidos.
 
(1) De acordo com a edição de Marburg, 1557.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 124.


Veja também:

quinta-feira, 22 de março de 2012

Como os escravos cumprimentavam seus senhores

"Bom dia", "olá", "oi", "tudo bem?" são cumprimentos usuais no português do Brasil, ao menos para quem vive em 2012. Mas nem sempre foi assim, e cumprimentar era, antigamente, quase um cerimonial, que demarcava com clareza o status das pessoas envolvidas. Um episódio interessante relatado por Hércules Florence ilustra bem esse assunto, ao referir-se à chegada da Expedição Langsdorff, que percorreu boa parte do Brasil entre 1825 e 1829, à fazenda Buriti, em Mato Grosso, propriedade de Dona Antônia, uma senhora já mencionada neste blog na postagem "Passeio de Rede - Parte 2":
"O administrador, que era irmão dela [de D. Antônia], e o feitor adiantaram-se ao seu encontro, e os negros e negras que haviam ficado em casa se chegaram para dar o louvado.
"Dar louvado" é pôr as mãos juntas e pronunciar as seguintes palavras: "Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo", ao que responde o senhor: "Para sempre seja louvado" ou simplesmente "Para sempre". É o bons-dias do escravo para o amo, do filho para o pai, do afilhado para o padrinho, do aprendiz para o mestre. Os pretos, que estropiam todos os vocábulos portugueses, fizeram dessa frase uma corruptela que exprimem por esta bárbara palavra Vasucris.
Em São Paulo e Cuiabá dá-se louvado; no Rio de Janeiro pede-se a benção por este modo: "a benção?"." (*)
O "louvado" praticamente desapareceu; curiosamente, "pedir a benção" ainda persiste em muitos lugares, nos quais os costumes mais tradicionais  não foram varridos. Já quanto ao falar estropiado de muitos cativos, vale recordar que Hércules Florence percorreu o Brasil em um tempo no qual o tráfico de africanos era ainda muito intenso. Recém-chegados ao Brasil, ninguém imagine que os candidatos a escravos eram, primeiramente, encaminhados a algum curso básico de português para estrangeiros para, só depois, seguirem a seus postos de trabalho. A realidade do aprendizado da nova língua fazia-se sob o chicote do feitor ou a palmatória da senhora, servindo quase sempre de modelo o que se falava na senzala e também aprendido, portanto, sob as mesmas condições. Deixo o estudo do fenômeno para os linguistas, mas o caso é que reduções de expressões demasiado extensas costumam ocorrer em muitos idiomas (para comodidade de quem fala), não sendo, pois, exclusividade do universo dos escravos. Que se veja o mais vulgar dos exemplos, a simplificação da expressão "vossa mercê", que no português do Brasil acabou resultando em "você", com um curioso trânsito do tratamento formal para o mais íntimo e familiar. E note-se que na língua oral a coisa prosseguiu, havendo quem fale "ocê" e até "cê", mas nesse momento a redução se esgota, por absoluta falta de matéria-prima.
Resta assinalar ainda que, ao dizer "vasucris" em lugar de "louvado seja...", percebe-se que, com grande probabilidade, essa expressão não significava coisa alguma para os escravos, ou ao menos seu significado pleno lhes escapava. Era apenas um cumprimento, e mais nada. Surpreendente? Nem um pouco. Na lógica de grande parte dos senhores, os escravos vinham ao Brasil para trabalhar, e não para que aprendessem uma nova religião, embora hipocritamente a escravidão fosse justificada com a suposta doutrinação dos cativos. Quem iria esperar coisa diferente, se mesmo entre os livres a instrução religiosa era bastante escassa, reduzindo-se, para grande parte da população, ao memorizar de umas poucas rezas, entremeadas de crenças supersticiosas que os religiosos mais esclarecidos procuravam, em vão, extirpar?

(*) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 144.


Veja também:

terça-feira, 20 de março de 2012

O mito da fênix

Que tipo de ser era a fênix? Pode-se defini-la, segundo a mitologia, como uma ave que tinha a capacidade de autocombustão para, depois, renascer das próprias cinzas. Era, claro, um símbolo da renovação da vida, talvez de crença em algum tipo de ressurreição, quem sabe ligada ao ciclo interminável de repetição das estações do ano, e não um ser vivo real, daqueles que se pode ver em um zoológico.
Acontece que, no século XVI, quando o movimento renascentista espalhou em inúmeras mentes instruídas um desejo quase incontrolável de classificar o que se apresentava na natureza, apareceu publicado em Paris um alentado volume (¹) cujo título era Portraits D'Oyseaux, Animaux, Serpens, Herbes, Arbres, Hommes et Femmes, d'Arabie & Egypte (sim, é isso mesmo, podem acreditar!), cujo autor era Pierre Belon, a quem, segundo o hábito típico do Renascimento, dava-se frequentemente o nome latino, ou seja, Petrus Bellonius Cenomanus. Como já disse, esse livro tinha o objetivo de, mediante excelentes ilustrações, classificar seres vivos e, curiosamente, nele estava listada a fênix, na seção de aves de rapina.

A fênix existente no livro de Pierre Belon, que afirmava
retratá-la de acordo com o costume
O autor assumia nunca ter visto uma, mas dizia que Aristóteles a tinha mencionado, assim como Plínio, e que ambos, possivelmente sem nunca ter com os próprios olhos testemunhado a existência de tal criatura, baseavam-se, no entanto, no relato de Heródoto. Sim, é aqui que a coisa fica interessante, pois de fato Heródoto refere-se a ela, nos seguintes termos, ao tratar do que presenciara no Egito:
"Outra ave sagrada há ali que vi apenas em pintura, e cujo nome é fênix. São raras, pois, as ocasiões em que pode ser vista, e em tão largos intervalos, que dizem os de Heliópolis que somente a cada quinhentos anos aparece no Egito, ao morrer seu pai. De acordo com as descrições, seu aspecto e tamanho são semelhantes aos de uma águia, tendo as penas parcialmente douradas e vermelhas.
Contam-se dela coisas fabulosas, que me parecem pouco dignas de crédito, mas ainda assim não deixarei de relatá-las. Para fazer transportar o cadáver de seu pai da Arábia até o templo do Sol, faz assim: confecciona primeiro um ovo sólido de mirra, do maior tamanho que possa carregar, testando o peso para verificar se pode com ele e, depois, o esvazia para criar nele um nicho capaz de conter o cadáver e, depois de ali colocá-lo, preenche os vazios com mirra, de tal modo que, com o cadáver dentro, o ovo tenha o mesmo peso que apresentava quando era apenas de mirra. Fechado o ovo, é carregado pela ave até o templo do Sol no Egito. É isso o que conta-se dessa ave."
Em conclusão,  vê-se que ninguém a viu, o próprio Heródoto não acreditava em sua existência, mas todos a descrevem. É certo que, no contexto da mitologia do Antigo Egito, a fênix fazia sentido, mas daí a continuar a aparecer em uma classificação de seres vivos no século XVI vai uma distância enorme. (²)
Apesar de toda a revolução no pensamento ocidental que o Renascimento representa, romper com a tradição de sábios da Antiguidade como Heródoto, Aristóteles e Plínio podia ser pesado demais. Sabemos bem como é isso, pois se já não invocamos Aristóteles cada vez que precisamos reforçar uma ideia, muitos de nós ainda têm grandes dificuldades em arrancar as amarras ideológicas que nos prendem ao passado, mesmo quando reconhecemos o quanto são inúteis e absurdas.

(1) 1557.
(2) Nada disso chega a ser em extremo surpreendente - Pierre Belon, em uma obra erudita chamada De Aquatilibus (1553), menciona um peixe-monge, que aparece devidamente ilustrado, conforme pode-se ver na postagem já publicada neste blog com o título "Peixe-monge, peixe-bispo - exóticas 'celebridades' do Renascimento".


domingo, 18 de março de 2012

Ela, a palmatória - instrumento para torturar escravos

Se, na postagem anterior, tratou-se do uso da palmatória nas escolas, uso este fundado na suposição de que com elas a criançada era mantida no devido respeito, nesta ver-se-á que não eram apenas os pobres escolares que sofriam com os "bolos". Não, meus leitores, o uso já remoto (ao menos oficialmente) desse instrumento de tortura fez apagar da memória da maioria das pessoas o fato de que palmatórias eram usadas, também, para castigo dos escravos, em especial daqueles que trabalhavam dentro das casas de seus senhores, "escravos domésticos", como se dizia.
Há um trecho notável de O Mulato, de Aloísio Azevedo, que retrata muito bem esse hábito  pouco civilizado, mas que era extremamente comum no Brasil escravocrata, quando hipocritamente se dizia que os senhores repreendiam seus escravos do mesmo modo que os pais a seus filhos (o que não exclui a dura realidade de ser filho, na época):
"E aquele castigo covarde, que encontrava o lombo passivo do escravo, inerme e submisso, revoltava-o pelo desrespeito à reciprocidade dos deveres sociais e pela afronta ao direito natural do homem. E, como a mudança não fosse tão fácil, Raimundo contentava-se com passar parte dos dias no bilhar do único hotel da Província, não sem pena de abandonar as inocentes conversas da varanda.
Em breve criou fama de jogador e bêbado. O fato é que por tudo isto minava-o uma repugnância surda contra a Província e contra aquela maldita velha  - quando o estalo do chicote ou da palmatória rebentava no quintal ou na cozinha, Raimundo repelia o lápis ou a pena com que trabalhava no quarto, exclamando: - Lá está o diabo! Nem me deixa fazer nada! Arre!"

"Castigos Domésticos", obra de Rugendas (¹)

Tanto Rugendas quanto Debret deixaram excelentes imagens retratando esse costume selvagem, imagens que causam forte impressão mesmo após quase duzentos anos, e não é sem causa que surge a questão: poderia alguma coisa melhor derivar do escravismo? Se o sistema de trabalho era, em si, uma aberração, como esperar que, em seu círculo de ação, brotasse alguma coisa que contribuísse para a dignidade humana? Embora a imagem "clássica" do castigo de um escravo seja aquela do feitor espancando um pobre ser humano amarrado, sem qualquer possibilidade de defesa, não se pode negar que, em essência, o emprego da palmatória não era menos aviltante, posto que menos público, quase sempre circunscrito ao interior de residências e oficinas.
Espantoso é que tenha havido quem intentasse a defesa do sistema escravista, como bem o descreveu o líder da Independência, José Bonifácio, em um trecho algo longo, mas impagável, que vale a pena conhecer:
"[...] A cobiça não sente nem discorre como a razão e a humanidade. Para lavar-se pois das acusações que merecia lançou sempre mão, e ainda agora lança de mil motivos capciosos, com que pretende fazer a sua apologia: diz que é um ato de caridade trazer escravos d'África, porque assim escapam esses desgraçados de serem vítimas de despóticos régulos; diz igualmente que, se não viessem esses escravos, ficariam privados da luz do Evangelho, que todo cristão deve promover e espalhar; diz, que esses infelizes mudam de um clima e país ardente e horrível para outro doce, fértil e ameno; diz por fim, que devendo os criminosos e prisioneiros de guerra serem mortos imediatamente pelos seus bárbaros costumes é um favor, que se lhes faz, conservar a vida, ainda que seja cativeiro.
Homens perversos e insensatos! Todas essas razões apontadas valeriam alguma coisa, se vós fosseis buscar negros à África para lhes dar liberdade no Brasil, e estabelecê-los como colonos; mas perpetuar a escravidão, fazer esses desgraçados mais infelizes do que seriam, se alguns fossem mortos pela espada da injustiça, e até dar azos certos para que se perpetuem tais horrores, é de certo um atentado manifesto contra as leis eternas da justiça e da religião. E por que continuarão e continuam a ser escravos os filhos desses africanos? Cometeram eles crimes? Foram apanhados em guerra? Mudaram de clima mau para outro melhor? Saíram das trevas do paganismo para a luz do Evangelho? Não, por certo, e todavia seus filhos, e filhos desses filhos devem, segundo vós, ser desgraçados para todo o sempre." (²)

Oficina de sapateiro, com escravo sendo castigado, obra de Debret (³)

Quero apenas lembrar aos leitores deste blog que essa citação faz parte de uma memória que José Bonifácio pretendia expor diante da Assembleia Constituinte, a mesma que D. Pedro I dissolveu em novembro de 1823 para, após ela, outorgar a Constituição de 1824. Evidentemente ninguém pode adivinhar o que teria ocorrido se, não sendo dissolvida a Constituinte, Bonifácio tivesse a oportunidade de discutir a questão do sistema de trabalho vigente no Brasil. Teriam outros deputados apoiado a ideia de uma abolição, ainda que gradual? Não sabemos, mas quase se pode afirmar que, nesse caso, talvez não fosse necessário esperar 1888.

(1) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) SILVA, José Bonifácio de A. e. A Abolição. Rio de Janeiro: Lombaerts & Com., 1884, pp. 14 e 15.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

quinta-feira, 15 de março de 2012

Ela, a palmatória - instrumento para torturar jovens estudantes

"Que haja sem livros letrado,
homem, que é pobre, com teima,
poeta, sem muita fleima,
e sem muleta aleijado:
que haja sem funda quebrado,
estudante sem estudo,
cavalheiro sem escudo,
e mestre sem palmatória!
Boa história."
Gregório de Matos, A Musa Praguejadora

"-  Perdão, seu mestre... solucei eu.
-  Não há perdão! Dê cá a mão! dê cá! vamos! sem-vergonha! dê cá a mão!
-  Mas, seu mestre...
-  Olhe que é pior!
Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas."
                                                   Machado de Assis, Conto de Escola em Várias Histórias

Quando meninas e meninos vão hoje para o famoso "primeiro dia de aula", depois de algumas semanas de intensa expectativa, que envolvem a compra do uniforme e do material escolar, podem ter certeza, as crianças e seus pais, que, pelo menos em tese, toda escola séria se propõe a tornar o estudo o mais atraente possível, adotando procedimentos pedagógicos que aliem alto nível de ensino ao prazer de aprender. Pelo menos, é assim que deveria ser.
Mas, no passado, o dia da estreia escolar de um menino podia ser coisa bem diferente. Era pouco provável que o professor fizesse questão de ser simpático com os alunos - julgava que não era para isso que estava diante da classe - dispondo-se a usar de qualquer método para meter as lições na cabeça das crianças, tratadas, em geral, pela mesma didática empregada na época com os animais do pasto. E olhem, leitores, que isso não é coisa assim tão remota: contava meu pai, que estudou em um colégio tido como de primeira linha, que os alunos do internato eram, a cada manhã, postos em fila para a marcha até a sala de aula sob a supervisão de um funcionário que usava, em uma das mãos, um grande anel, com o qual golpeava as cabeças dos mais irrequietos. Isso, claro, com a absoluta ciência e conivência dos pais, que ali haviam matriculado seus fedelhos na expectativa de severa disciplina, um ingrediente que, na época, era tido como indispensável à boa educação.
Pois bem, o anel do "Loro" (era esse o apelido do inspetor de alunos) era apenas um detalhe eventual na série de torturas a que pequenos escolares eram submetidos. O ícone absoluto desse sistema era ela, no entanto. Ela? Sim, a palmatória.
Quase sempre feita de madeira escura e resistente, talvez para reforçar o aspecto sinistro, servia para dar "bolos" nas mãos de quem bulia na aula, de quem não fazia a lição direito, até daquele por quem o professor não tivesse grande simpatia. Nem era preciso muita explicação, bastava que o professor quisesse.

Uma antiga palmatória que, pelo estado de conservação, deve ter sido muito usada! (*)
Quanto se aprendia sob esse verdadeiro "reinado do terror"? É discutível. Há mais de mil e quinhentos anos Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho, como queiram, asseverou que, sob seu ponto de vista, a curiosidade que brotava do próprio estudante era muito mais eficaz na aprendizagem que qualquer método coercitivo. É claro que tinha razão, desde que se queiram alunos capazes de pensar com a própria cabeça, educados para o exercício pleno da democracia. A palmatória, porém, e todos os seus modernos sucedâneos, talvez não tão violentos fisicamente, mas não menos coercitivos, são perfeitamente eficazes se o objetivo for a formação de batalhões de repetidores, sem qualquer iniciativa, prontos a obedecer às ordens do mandachuva do momento.

(*) Essa palmatória integra o acervo do Museu Histórico e Geográfico de Monte Sião, MG. Se visitar a cidade, não deixe de ir ao Museu, pois vale a pena. Há lá muita coisa interessante.

terça-feira, 13 de março de 2012

As senzalas, moradias dos escravos no Brasil


"Habitação de Negros", segundo Rugendas (³)
As senzalas foram, durante séculos, as habitações dos escravos no Brasil. Variavam na forma e nas dimensões, de acordo com o número de cativos que vivia em uma dada propriedade e que, portanto, eram devidamente trancafiados à noite, para que se evitassem as fugas em massa.
Em alguns casos eram construídas ao redor de um pátio, como nessa descrição que aparece em Til, de José de Alencar:
"É aí o quartel ou quadrado da fazenda, nome que tem um grande pátio cercado de senzalas, às vezes com alpendrada corrida em volta, e um ou dois portões que o fecham como praça d'armas."
Outras vezes, como se vê nesta descrição de Hércules Florence da fazenda Camapuã, a senzala podia ser parte de uma área maior, mas necessariamente bem fechada:
"Há duas casas de sobrado, uma onde mora o comandante, que na ocasião era um alferes de milícias (guarda nacional); outra fronteira, separada por vasto pátio, que tem um engenho de moer cana tocado por bois. O pátio é fechado pela senzala dos escravos, toda ela baixa e coberta de sapé. À noite, são eles metidos debaixo de chave.
A gente forra mora do outro lado do rio Camapuã." (¹)
Havia ainda as senzalas construídas como longas casas, não muito largas, com quase nenhuma iluminação natural ou ventilação. Foi um tipo muito comum em algumas áreas de São Paulo. Por quê? Uma hipótese é que, tendo, durante muito tempo, sido a escravidão de indígenas, e não de africanos, a que predominou em terras paulistas, as moradias dos escravos eram construídas de uma forma algo semelhante às habitações coletivas que muitos nativos tinham em suas aldeias, ainda que os materiais empregados na edificação fossem, eventualmente, outros. Aliás, cabe ainda acrescentar que, em São Paulo, nos primórdios do chamado "sistema de parceria", houve casos de que moradias de escravos fossem, por assim dizer, "adaptadas" para receber famílias de imigrantes, o que acarretou alguns incidentes marcantes de rebelião entre esses trabalhadores livres.
No entanto, independente da forma e do tamanho, quase todas as senzalas, Brasil afora, tinham um elemento em comum: eram sempre localizadas bem próximo à residência dos senhores. Isso pode parecer um absurdo, pois se sabe muito bem o quanto os senhores temiam uma revolta e consequente vingança de seus escravos, mas corria-se o risco, já que os escravos, como dizia Antonil, "são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente"(²), podendo o mesmo ser dito em relação a todas as demais atividades econômicas praticadas durante a fase colonial e boa parte do Império. Ou seja, os senhores sabiam perfeitamente que grande parte de sua riqueza vinha da exploração da mão de obra escrava, o que os levava a preferir o risco inerente a uma revolta da escravatura (muito mais numerosa do que os livres), à possibilidade de perderem seu "investimento", sem o qual, a rigor, não eram quase nada.

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 66.
(2) ANTONIL, André João (Giovanni Antonio Andreoni). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 22.
(3) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


Veja também:

domingo, 11 de março de 2012

A reclusão de mulheres no Brasil Colonial (Parte 2): Um caso extremo e uma exceção

"Guardava-a seu pai, e guardava-se ela; porque não há cadeados, guardas e fechaduras que melhor guardem a uma donzela do que o recato próprio."
                                                                                                    Miguel de Cervantes, Dom Quixote

Depois de considerações de caráter geral sobre a reclusão de mulheres que viviam no Brasil Colonial (veja a postagem anterior), trataremos agora de um caso específico, aberrante, é verdade, dos primeiros tempos após a Independência, que nos chegou por um relato de Hércules Florence. Esse artista tomou conhecimento do fato durante a Expedição Langsdorff (1825 - 1827), mas àquela altura, a pobre criatura de que fala já era falecida, como ele próprio diz, ao contar de um fazendeiro que o hospedou em Mato Grosso, Domingos José de Azevedo, português de nacionalidade:
"Falou-nos na mulher, e ao nos levantarmos da mesa, levou-nos para os seus aposentos, que eram dois quartinhos. No fundo suspendeu do soalho um alçapão e mostrou-nos uma salinha colocada no primeiro pavimento, escura, úmida e com uma única janela de grades que dava para o engenho de cana. "Aqui embaixo", disse-nos ele, "é que eu guardava a mulher, quando tinha de sair de casa. Ela descia por uma escadinha que eu recolhia e recebia alimentos pela janela do engenho."
Tal homem dispensa, nem merece qualquer reflexão. Supúnhamos que, como acontecia em todas as fazendas, pudéssemos ir ao engenho, mas vendo que ele se mostrava cioso de suas mulatas, conservamo-nos no alpendre e no terreiro que ficava diante da casa." (¹)
Ora, possivelmente alguns de meus leitores dirão: Esse sujeito era um sociopata! Sim, talvez, mas a questão é que, em sua época, agia assim, não fazia disso segredo algum e não consta que tenha sido punido ou mesmo advertido por seu procedimento. Nisso reside o problema, e também na enorme probabilidade de que esse não fosse um caso isolado - muitos outros devem ter ocorrido, dos quais não sabemos simplesmente porque ninguém escreveu sobre eles. A ação e/ou omissão do Estado e da religião encarregava(m)-se do restante. Há que se considerar, para além de tudo que, educadas para a submissão, muitas mulheres sequer conseguiam enxergar o quanto de monstruoso havia em tudo isso, e nosso artista-viajante-escritor que nos deixou essa memória talvez só o percebesse porque, como estrangeiro, tivesse sobre isso um olhar algo mais crítico que o dos nacionais, acostumados a essa realidade de quotidiana opressão (²). Pode-se dizer que, em maior ou menor grau, a violência contra mulheres era generalizada país afora, condição que não ia mudar tão depressa assim (e que, lamentavelmente, continua a existir, ainda que não na mesma escala, e a despeito de toda a legislação que prevê penas severas para os agressores).
Mas, ao que sabemos pelos relatos de Saint-Hilaire, o naturalista francês, havia pelo menos uma região no Brasil na qual as coisas eram um pouco diferentes. Ao andar pelo Rio Grande do Sul em 1820, observou:
"...as mulheres têm uma bela cor e nunca se escondem à aproximação de forasteiros." (³) E, em 12 de julho do mesmo ano, após ir, em Porto Alegre, a um pequeno baile ao qual haviam-no convidado, ainda acrescentou:
"Encontrei maneiras distintas em todas as pessoas da sociedade. As senhoras conversavam sem constrangimento com os homens; estes as cercavam de gentilezas, mas não demonstravam desvelo ou desejo de agradar, qualidade, aliás, quase exclusiva dos franceses. Desde que estou no Brasil ainda não tinha visto uma reunião semelhante. No interior, como já afirmei centenas de vezes, as mulheres se escondem; não passam de primeiras escravas da casa, e os homens não têm a mínima ideia dos prazeres que se podem usufruir com decência." (⁴)
O contraste entre o que vira em outras regiões do Brasil e o que agora presenciava deve ter-lhe causado forte impressão, uma vez que voltou ao assunto posteriormente, considerando, sobre as mulheres brasileiras:
"Uma infinidade delas não sabe ler nem escrever: aprendem algumas costuras, a recitar orações que elas próprias não entendem, e é tudo; por isso as brasileiras, em geral, ignoram os encantos da sociedade e prazeres da boa conversação. Entretanto, nesta região, em que as mulheres se ocultam menos do que as das capitanias do interior, têm elas, é preciso convir, melhores noções de vida; são bem desembaraçadas, conversam um pouco mais, porém ainda estão a uma infinita distância das mulheres europeias." (⁵)
Pois bem, já concluindo, podem ser feitas algumas observações:
a) Saint-Hilaire, ou qualquer outro que quisesse analisar as condições vigentes no Brasil da época precisaria ter em conta o fato de que esse era um país muito grande e, por isso mesmo, sem extrema homogeneidade no processo de colonização, o que resultava em uma grande variedade de arranjos sociais, embora alguns elementos (como o fenômeno da reclusão de mulheres) fossem predominantes na maioria das regiões;
b) As más condições de vida das mulheres não eram, em absoluto, exclusividade do Brasil: em muitos lugares da Europa, na época, elas tinham uma existência verdadeiramente lamentável;
c) É certo que uma educação mais esclarecida, tanto de homens como de mulheres, poderia fazer muito para elevar o padrão de vida da população, mas nesse tempo nem meninos e nem meninas recebiam muita instrução formal, sendo notável em São Paulo a existência, já no século XVII, de mulheres que, em documentos oficiais (como inventários, por exemplo), se declaravam capazes de ler e escrever, quando a maioria da população da Colônia era crassamente analfabeta;
d) Por último e muito importante, vale notar que muitos dos problemas que enfrentava o Brasil ao tornar-se independente, tais como defasagem na estrutura educacional, diferenças sociais acentuadas e desigualdade de oportunidades para homens e mulheres permanecem até hoje - muda-se, quase sempre, a fachada, mas parece difícil vencer a batalha contra as deficiências em seus alicerces.

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 150.
(2) Um fenômeno parecido pode ser observado em relação à escravidão, tratada como "normal" dentro do Brasil, ainda que parecesse chocante para quem vinha de fora.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 41.
(4) Ibid., p. 64.
(5) Ibid., p. 95.


Veja também:

quinta-feira, 8 de março de 2012

A reclusão de mulheres no Brasil Colonial (Parte 1): Olhando a vida através das gelosias

"Nem um nem outro reparou em certa dama que nesse instante e cerca deles passava para a igreja, acompanhada por uma velha aia. Estava ela completamente velada com o espesso crepe da mantilha, de modo que era impossível distinguir feições."
                                                                                                    José de Alencar, As Minas de Prata

Sabem, meus leitores, o que eram gelosias? Eram aquelas janelas cobertas de travessas de madeira, típicas de algumas regiões do Brasil no Período Colonial (mas também existentes em alguns países da Europa, de onde o costume foi importado). Serviam, naturalmente, para impedir que aqueles que passassem diante de uma casa pudessem ver quem ou o que havia dentro dela, o que significava, para os hábitos da época, manter as mulheres longe das vistas de quaisquer estranhos, já que os homens, com maior liberdade para ir e vir, não sofriam tanto as consequências de se ver o mundo, literalmente, através de grades de madeira.

Casa colonial com gelosias

As tradições vigentes determinavam que as mulheres "de boa família" não tivessem contato com homens que não fossem "da casa". Sair, só em companhia do pai, do marido, dos irmãos, dos filhos, e isso em raras ocasiões, para ir à missa, a algum casamento, ao sepultamento de alguém conhecido. Triste vida, não resta dúvida, essa que por séculos coube à maioria das mulheres do Brasil, destinadas desde o nascimento aos trabalhos domésticos, a um casamento precoce determinado por escolha paterna e à procriação, em virtude da qual muitas morriam, no parto de um dos muitos filhos que se esperava que tivessem. Afinal, os dias em que Joseph Lister introduziria uma série de procedimentos para debelar o catastrófico índice de mortes por infecções ainda estavam muito, muito distantes, no tempo, claro, mas também no espaço...
Voltando ao assunto das nossas tristes enclausuradas, vamos a alguns trechos de documentos que mostram o que de fato acontecia. O Padre Antonil, depois de explicar a necessidade da hospitalidade no Brasil em razão da inexistência de estalagens, aconselhava os senhores de engenho a terem casa separada para os hóspedes:
"Ter casa separada para os hóspedes é grande acerto: porque melhor se recebem, e com menor estorvo da família, e sem prejuízo do recolhimento que hão de guardar as mulheres e as filhas e as moças de serviço interior ocupadas no aparelho do jantar e da ceia." (¹)
Já seria suficiente, creio, mas há mais. O costume de trancafiar as mulheres durou séculos, como descreveria Varnhagen, referindo-se aos tempos imediatamente anteriores à chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil (1808):
"As mulheres sofriam no seu tanto mais tirania, com os hábitos de reclusão gerais no país, escondendo-se das pessoas estranhas à família, como se fossem mouras ou turcas." (²)
O estabelecimento da Corte no Brasil, a Independência e o maior contato com o Exterior, fruto da gradual melhoria nas condições de transporte e comunicações, contribuíram bastante para que, aos poucos, ao menos nas cidades mais importantes, os costumes fossem mudando, trazendo novos ventos de modernidade, o que significava, por suposto, novos padrões de convivência entre os sexos. A leitura da numerosa produção literária brasileira do século XIX dará, a quem tiver interesse no assunto, uma boa ideia de como essa transição ocorreu, alterando de forma sensível os padrões de sociabilidade.
No interior do país, todavia, as novidades, em quase todos os aspectos do quotidiano, demoravam muito a chegar. Assim, percorrendo o Brasil nos anos vinte do século XIX, Hércules Florence pode observar, com respeito à conduta das mulheres em Cuiabá:
"Não faz muito que elas começam a aparecer à mesa de jantar ao lado dos parentes e maridos. Entretanto em todas as casas do sertão, onde recebi hospitalidade, nenhuma delas se apresentou, ficando sempre no fundo dos aposentos, a menos que não seja a pessoa já muito familiar." (³)
Área mineradora por excelência, povoada por gente oriunda, a princípio, de São Paulo (⁴), não era surpreendente que os costumes trazidos com os bandeirantes lá permanecessem por mais tempo, como permaneceram, século XIX afora, em muitos outros pontos do Brasil.

(1) ANTONIL, André João (Giovanni Antonio Andreoni). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 31.
(2) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 1069. O trecho "como se fossem mouras ou turcas" referia-se, obviamente, a costumes vigentes em algumas regiões do Oriente, e não a uma etnia ou nacionalidade específica.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 128.
(4) mas também, ao propagar-se a notícia do descobrimento aurífero, por pessoas de muitos outros lugares.


Veja também:

terça-feira, 6 de março de 2012

Criaturas monstruosas das águas do Brasil

Quem é que ainda não viu algum desses programas de televisão sobre supostas aparições de monstros ou animais misteriosos e assustadores? Há programas sérios, é verdade, procurando demonstrar, mediante claras evidências, que tudo não passa de mero produto da imaginação de algumas pessoas, mas há outros, talvez a maioria (infelizmente), nos quais os fatos são intencionalmente distorcidos, para fazer crer a uma multidão de desinformados que as ditas aparições são a mais pura verdade. A partir disso, não constitui nenhuma novidade que haja, mesmo em nossos dias, gente que acredita no lobisomem, no chupa-cabra, no pé-grande, e por aí vai.
Há alguns séculos, porém, a crença na existência de seres monstruosos era generalizada, e mesmo as pessoas mais instruídas não eram muito questionadoras a esse respeito (¹). Há várias razões para isso, mas aqui me limito a apontar três delas:
a) Desde tempos remotos os mais diversos povos tinham suas lendas que envolviam monstros do mar, capazes de devorar navios inteiros de um só golpe e, na impossibilidade de uma verificação criteriosa dos fatos, não é estranho que tais lendas fossem perpetuadas como se fossem narrativas de acontecimentos reais (é bom lembrar que os padrões que hoje entendemos como científicos ainda não existiam);
a) Havia, pela época da Grandes Navegações, uma certa consciência de que o mundo era bem maior do que aquilo que se conhecia da Europa, norte da África e parte da Ásia, parecendo razoável supor que nesses lugares remotos e ainda por descobrir devia haver animais muito diferentes daqueles que já eram catalogados;
b) O medo era uma companhia garantida para os exploradores que se aventuravam por novas terras, de modo que qualquer coisa não devidamente observada podia passar, para mentes cheias de terror e imaginação, por ser o avistamento de criaturas monstruosas, enormemente letais.
Diante disso, não é difícil verificar que, ao longo da ocupação por europeus das terras no Continente Americano, foi-se construindo um apreciável "patrimônio" de superstições que, associadas às crenças nem sempre bem compreendidas dos povos indígenas, levaram ao estabelecimento de certas tradições que, por muito tempo, foram aceitas como verídicas. Trataremos, a seguir, de algumas delas.
Depois de fazer algumas considerações sobre a fauna do Brasil, Frei Vicente do Salvador deixou um relato sobre "homens marinhos" que ilustra bem a mistura de medo do desconhecido com crenças dos nativos da América:
"Há também homens marinhos, que já foram vistos sair fora da água após os índios, e nela hão morto alguns que andavam pescando, mas não lhes comem mais que os olhos e nariz, por onde se conhece que não foram tubarões, porque também há muitos neste mar, que comem pernas e braços e toda a carne." (²)
Ao tempo das monções, eram frequentes os "depoimentos" que davam conta da existência de canoas que vagavam sem piloto pelo  Tietê, bem como de monstros que habitariam suas águas, como se vê por esse trechinho anotado pelo sargento-mor Teotônio José Juzarte:
"... e navegando passamos por um poço que é um estreito que faz o rio morto, muito fundo, suas águas denegridas com seus paredões de pedra de um e outro lado muito fúnebre, e triste, ao passar esta paragem encontramos muito fétido, cujo lugar se chama pela língua da terra o poço de Pirataraca, cujo temiam muito passar os antigos por dizerem havia ali um grande bicho..." (³)
Outro que relatou coisa semelhante, em relação às crenças populares na bacia do rio Paraguai, foi Hércules Florence:
Das Sete Lagoas conta o povo fábulas aterradoras. Essas poçazinhas, pelo que dizem, são de profundidade insondável; enormes jacarés e monstros aquáticos ocultam-se debaixo de grandes rochas submergidas, prestes a devorar os que por desgraça lá caírem." (⁴)
Outras muitas fábulas há, todas seguindo mais ou menos a mesma linha, sem esquecer do famoso boto amazônico, cuja prole anda pelas raias do incomensurável. Mas resta ainda um episódio famoso, talvez dos mais antigos, que deixei para o final pela riqueza de detalhes com que foi narrado. Frei Vicente do Salvador, cuja obra deve ter sido concluída nos últimos anos da década de vinte do século XVII, referiu-se a ele, dizendo ter ocorrido na Capitania de São Vicente no ano de 1564. Mas, com grande probabilidade, esse primeiro historiador nascido no Brasil deve ter lido sobre o tal acontecimento em outra obra bem mais antiga, a famosa História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil, escrita por Pero de Magalhães Gândavo e publicada em Portugal em 1576. O trecho é longo, mas em síntese conta como Baltasar Ferreira, filho do Capitão, sendo já tarde da noite, foi alertado por uma índia de que havia na praia um ser monstruoso, ao qual o rapaz resolveu enfrentar. A partir daqui, segue o relato de Pero de Magalhães:
O "monstro marinho" que teria aparecido em
São Vicente no Século XVI
"Então se levantou ele mui depressa, e lançou mão de uma espada que tinha junto de si, com a qual botou somente em camisa pela porta fora, tendo para si (quando muito) que seria algum tigre ou outro animal da terra conhecido, com a vista do qual se desenganasse do que a índia lhe queria persuadir. E pondo os olhos naquela parte que ela lhe assinalou, viu confusamente o vulto do monstro ao longo da praia, sem poder divisar o que era por causa da noite lho impedir e o monstro também ser coisa não vista, e fora do parecer de todos os outros animais. E chegando-se um pouco mais a ele, para que melhor se pudesse ajudar da vista, foi sentido do mesmo monstro, o qual levantando a cabeça, tanto que o viu, começou de caminhar para o mar donde viera. Nisto conheceu o mancebo que era aquilo coisa do mar, e antes que nele se metesse, acudiu com muita presteza a tomar-lhe a dianteira. E vendo o monstro que ele lhe embargava o caminho, levantou-se direito para cima como um homem, ficando sobre as barbatanas do rabo, e estando assim a par com ele, deu-lhe uma estocada pela barriga, e dando-lha no mesmo instante se desviou para uma parte com tanta velocidade, que não pôde o monstro levá-lo debaixo de si; porém não pouco afrontado, porque o grande torno de sangue que saiu da ferida, lhe deu no rosto com tanta força que quase ficou sem nenhuma vista. E tanto que o Monstro se lançou em terra, deixa [sic] o caminho que levava, e assim ferido, urrando com a boca aberta sem nenhum medo, remeteu a ele, e indo para o tragar a unhas e dentes, deu-lhe na cabeça uma cutilada mui grande, com a qual ficou já mui débil, e deixando sua vã perfia, tornou então a caminhar outra vez para o mar. Neste tempo acudiram alguns escravos aos gritos da índia que estava em vela, e chegando a ele o tomaram todos já quase morto, e dali o levaram dentro à povoação, onde esteve o dia seguinte à vista de toda gente da terra."
Ora, o mais interessante é que no livro de Pero de Magalhães Gândavo há um desenho do dito monstro, reproduzido nesta postagem como consta na primeira edição de 1576. Aos muito curiosos, digo que, observando cuidadosamente o desenho e o relato acima, talvez seja possível supor qual o tipo de animal que teria enfrentado o bravo rapaz de São Vicente (que, segundo o já citado autor, teria perdido a fala por um certo tempo após esse evento).
O que concluir de tudo isso? Não chega a ser exatamente uma surpresa que, na terra das águas que "são muitas, infindas", no dizer de Pero Vaz de Caminha, algumas das mais famosas superstições e fantasias viessem a brotar justamente do mar, dos rios e das lagoas. Um verdadeiro banquete para quem se dedica a interpretar tais fatos no âmbito da psique humana, não?
(2) História do Brasil. c. 1627.
(3) Citado em: TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas 3ª ed., vol. 3. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 250.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 198.

domingo, 4 de março de 2012

Avanhandava

Quem, no século XVIII, se atrevia a empreender a rota monçoeira que ia, partindo de Araraitaguaba (Porto Feliz), até Cuiabá, tinha de enfrentar uma série de obstáculos. Além da longa viagem, dos ataques de mosquitos, carrapatos, onças e outras feras de diversos tamanhos, da fome como ameaça constante, dos possíveis confrontos com indígenas - o que já seria suficiente para demover a maioria das pessoas de uma rota assim - havia a transpor nada menos que cento e treze cachoeiras (¹), algumas maiores, outras menores, quase todas perigosas, não sendo fato raro encontrar, enroscado às raízes de árvores das margens dos rios, algum cadáver de monçoeiro que se afogara na perigosa travessia.

Salto do Avanhandava, de acordo com Hércules Florence (⁴)

Todavia, dentre todas essas cachoeiras, havia uma que, só de ser mencionada, provocava calafrios nos viajantes: era o Salto do Avanhandava, no rio Tietê. Para transpor esse espetacular obstáculo era preciso muito trabalho, tanto de livres quanto de escravos, já que todas as canoas precisavam ser descarregadas para transporte por terra, em meio ao mato que circundava as margens. Um método tão engenhoso quanto antigo era empregado para possibilitar a realização da penosa tarefa: canoas e batelões eram rolados sobre trilhos feitos de toras de madeira, que a espessa floresta que margeava o Tietê provia.
Duas descrições nos darão uma boa ideia do que era o Avanhandava, lugar no qual a natureza fazia uma associação espantosa entre beleza e perigo. O primeiro relato vem do sargento-mor Teotônio José Juzarte, que empreendeu a rota do Tietê em 1769:
"É este Salto de Avanhandava uma obra da natureza cuja altura excede a cinquenta braças que despenhando-se por ele copiosas águas ao ponto que faz uma agradável vista, e figura, causa pavor, e medo, porque fazendo várias figuras, em umas partes à imitação de degraus de sepulcro, em outras fazendo vários redemoinhos pendurados pelo ar, em outras formando grossas e dilatadas fontes à maneira de chafarizes que é tal a bulha que para se ouvirem os homens uns aos outros é necessário gritar, além disto se experimenta nesta paragem um granizo continuado à maneira de chuva, que levanta pela monstruosidade de águas que se despenham seu peso, e sua altura, que caindo em um dilatado espaço que faz embaixo deste salto em o qual são tão grandes as ondas que ninguém as pode penetrar." (²)
O segundo depoimento é de Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff que passou pelo local em 1826:
"O salto de Avanhandava é uma bela e majestosa catarata. Corta o rio segundo uma linha oblíqua, de modo que a víamos bem de frente. Sua largura pode ser de 300 braças, a altura de 40 pés, o que, com a inclinação do álveo, antes e depois da queda, dá os 60 pés entre o porto superior e o inferior. À direita veem-se as águas se precipitarem entre a margem umbrosa, uma ilhazinha coberta também de árvores e uns grandes penedos. Forma-se, pois, duas gargantas por onde atiram-se as massas líquidas em tal agitação e revolvimento de espumas, que densas nuvens de vapores se erguem com neblina cerrada. As águas que caem pelo lado do grande maciço de rocha não são tão revoltas: milhares de cascatinhas divididas por pontas de rochedos constituem um anfiteatro de pedra riscado por fios d'água, alva como neve.
O grande maciço não se prende à margem esquerda. De permeio a eles fica uma ilha, e no intervalo lançam-se, espumantes e furiosas, espadanas de água, que se desfazem em vapores." (³)

Salto do Avanhandava, em imagem de 1920 (⁵)

As diferenças de abordagem nos dois trechos acima devem-se, naturalmente, às distintas perspectivas de seus autores. O primeiro, Juzarte, enfrenta a fúria do salto com preocupação, diante da responsabilidade de ter de passar o Avanhandava com sua gente, que conduz em viagem repleta de contratempos pelo Tietê, para ir povoar uma difícil área de fronteira; já Hércules Florence lança à paisagem seu olhar de artista, buscando na imensa massa de água o equilíbrio estético, a perspectiva correta, que almeja refletir em seus desenhos. Os dois, cada um a seu modo, deixaram um testemunho precioso de um espetáculo que desapareceu. À semelhança de Sete Quedas, hoje sob as águas de Itaipu, o Salto do Avanhandava foi engolido pela represa da Usina Hidrelétrica de Nova Avanhandava. Restam apenas o nome e as imagens do passado, três das quais estão nesta postagem.

Outra imagem do Avanhandava, também de 1920 (⁶)

(1) Segundo o Padre Ayres de Casal, em Corografia Brasílica:
"...das cento e treze, que os navegantes encontram de Porto Feliz até Cuiabá."
(AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica  vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 271.)
(2) Citado em:
TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas 3ª ed., vol. 3. São Paulo: Melhoramentos, 1975, pp. 248 e 249.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 40.
(4) Ibid., p. 54. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) A CIGARRA, 15 de setembro de 1920.
(6) A CIGARRA, 1º de setembro de 1920.


quinta-feira, 1 de março de 2012

Quem pode escrever com a "pena de um vampiro"?

Para que meus leitores tenham um dia feliz, nada melhor que começar esta manhã com um sorriso. Como conseguir isto? Para quem tiver senso de humor, bastará ler o que vem a seguir, tratando das confusões que se faziam sobre seres vivos da América do Sul, assunto já abordado em postagens anteriores (¹)
Pois bem, a "vítima" do dia será o Padre Ayres de Casal, que certamente prestou um inapreciável serviço com sua obra em dois volumes, datada de 1817, a Corografia Brasílica, a despeito de deixar algo a desejar em questões, por assim dizer, "zoológicas". Vejamos, então, duas citações, e será suficiente, tenham certeza:
"O cupim é uma formiga pequena, esbranquiçada e gorda, que só se mantém do farelo de lenho [...]." (²)
E, se essa chega a doer, vem coisa pior. Referindo-se à Guiana Francesa, então ocupada por ordem da Coroa Portuguesa, o mesmo Padre Ayres de Casal escreveu:
"Posto que o vento leste refresque a atmosfera todas as manhãs, o ar é doentio por causa dos pântanos que o infeccionam, e criam multiplicadas espécies de insetos, como sejam mosquitos, sapos, rãs, moscardos, formigas e outros, que incomodam a gente." (³)
Cupins viram formigas, sapos e rãs são insetos - coisas que enlouqueceriam Carl von Linné. Mas, para não deixar Ayres de Casal solitário em tão má situação, concluo com uma referência literária de ninguém menos que Machado de Assis, em seu conto "Bagatela", datado de 1859:
"É um morto que te escreve, meu caro Henrique, um verdadeiro morto, com a tinta negra do Estígio lago, e com a pena arrancada à asa de uma qualquer ave noturna ou maligna, vampiro ou o que quiseres."
Pena de um vampiro, Machado?

(1) Veja, sobre isso:
(2) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica, vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 74.
(3) Idem. Corografia Brasílica, vol. 2. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 357.


Veja também: