quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Os fusos horários e a chegada do ano-novo

Todos aprendemos na escola que a Terra é, teórica e artificialmente, dividida em faixas verticais de 15º cada uma (¹), que são chamadas fusos. Para os leitores mais jovens, eu faria a seguinte comparação: imaginem que a Terra seja mais ou menos como uma laranja, composta por vinte e quatro gomos iguaizinhos - nessa comparação (simplista, mas útil), cada gomo corresponderia a um fuso.
Por convenção, utiliza-se o horário de Londres (²) como ponto de partida para a contagem dos fusos. Assim, o horário teórico de um ponto qualquer na superfície terrestre será dado ao se ter em conta se está localizado a Leste ou a Oeste do Meridiano Principal, bem como a quantos graus de distância.
Parece simples? Periodicamente, o horário de verão complica tudo, assim como outros ajustes, que são feitos por questões práticas - se estritamente seguidos, os fusos com base na divisão em faixas de 15º poderiam muito bem acabar fazendo com que lugares muito próximos, ou mesmo dentro de uma mesma cidade, tivessem horários diferentes. Seria uma calamidade! Então, cada país define a adoção de fusos ajustando-os à conveniência, até porque há países com mais de um fuso (³).
Em quase todo o mundo a contagem do tempo obedece a uma divisão em 24 horas, em que 12 horas correspondem ao meio-dia, e 24, à meia-noite. Assim, no final de cada ano, é de acordo com o fuso relativo a cada lugar que é celebrado o ano-novo: quem está em Tóquio ou em Sidney vai festejar um novo ciclo de trezentos e sessenta e cinco dias antes de quem está em São Paulo ou Los Angeles.
Mas vocês já pensaram, leitores, que a contagem do tempo, do dia e das horas nem sempre obedeceu a esse critério?
Plínio, o Velho, no Livro II de sua Naturalis Historia, relatou que "quanto ao modo como cada um observava os dias, os babilônios contavam entre dois sóis [de um nascer de sol a outro], os atenienses entre dois ocasos [de um pôr de sol a outro], os úmbrios de um meridiano a outro [meio-dia a meio-dia], pessoas comuns [em Roma], da luz às trevas [do amanhecer ao pôr do sol], os sacerdotes romanos e autoridades civis, assim como os egípcios, de meia-noite a meia-noite". (⁴)
Ora, convenhamos, seria uma enorme confusão se, até hoje, cada povo contasse o tempo como bem entendesse. Quando as comunicações entre países eram poucas e difíceis, os fusos talvez não fossem necessários, e cada lugar podia adotar a contagem das horas que lhe caísse no agrado; à medida que as comunicações se intensificaram, os fusos se tornaram imprescindíveis. Sua implantação, portanto, foi ditada não só pela conveniência, mas pela necessidade.

(1) Que se obtém pela divisão de 360° (supondo a Terra uma esfera perfeita) por 24, que é o número de horas de cada dia.
(2) Lembram-se do Meridiano de Greenwhich?
(3) É o caso do Brasil.
(4) O trecho citado de Naturalis Historia foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Uma nova capital

Brasília, Esplanada dos Ministérios, como é vista desde o lago Paranoá

A primeira capital do Brasil, a "Cidade da Bahia" (Salvador), foi estabelecida sob o comando de Tomé de Sousa, que fora designado para o cargo de governador-geral. Na escolha da localização da cidade, além de questões práticas como existência de um bom suprimento de água e condições favoráveis à defesa, pesaram outras duas questões importantes: estar perto da região produtora de açúcar e facilitar ao máximo as comunicações com Portugal. Era 1549, e, para que desse lucro, a produção açucareira do Nordeste brasileiro precisava ser levada à Europa. Portanto, considerava-se que estar localizada junto ao mar não era, para a capital, nenhum defeito, sendo, ao contrário, até uma vantagem.
Mais tarde, já no Século XVIII, a descoberta de jazidas auríferas e de pedras preciosas nas Gerais, em Goiás e nas "minas do Cuiabá" deslocou o eixo econômico do Brasil em direção ao Sul. Uma vez que era do porto do Rio de Janeiro que as riquezas minerais eram embarcadas para o Reino, para lá foi movida a capital, e, mesmo depois da Independência, assim permaneceu ao longo das décadas do Império, apesar de, ocasionalmente, vir à baila a necessidade de transferir a sede de governo para algum ponto no interior (¹). 
Após a proclamação da República houve quem sugerisse a mudança da capital para Petrópolis, mas a proposta logo foi afastada, porque, se oferecia umas poucas vantagens, tinha a inconveniência de preservar muitos dos problemas existentes no Rio. Assim, a Constituição de 1891, a primeira republicana, trazia em suas Disposições Preliminares, Título I, Art. 3º:
"Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a futura Capital Federal."
E na Seção I, Capítulo IV, Artigo 34:
"Compete privativamente ao Congresso Nacional:
[...]
13. Mudar a capital da União."
Cerca de dois anos mais tarde, escrevendo na Gazeta de Notícias, Machado de Assis ponderou:
Catedral de Brasília em fotografia infravermelha
"A capital da República, uma vez estabelecida, receberá um nome deveras, em vez deste que ora temos, mero qualificativo. Não sei se viverei até a inauguração. A vida é tão curta, a morte tão incerta, que a inauguração pode fazer-se sem mim, e tão certo é o esquecimento, que nem darão pela minha falta. Mas, se viver, lá irei passar algumas férias, como os de lá virão aqui passar outras. Os cariocas ficarão sempre com a baía, a esquadra, os arsenais, os teatros, os bailes, a Rua do Ouvidor, os jornais, os bancos, a Praça do Comércio, as corridas de cavalos, tanto nos circos como nos balcões de algumas casas cá embaixo, os monumentos, a companhia lírica, os velhos templos, os rabequistas, os pianistas..." (²)
Na suposição da mudança como algo estritamente necessário, a ideia era inaugurar a nova cidade dentro dos festejos relativos ao centenário da Independência, a ser comemorado em 1922, um plano que nunca se concretizou. Como os leitores bem sabem, a construção de Brasília data da segunda metade da década de 50 do Século XX, tendo a inauguração formalmente ocorrido em 21 de abril de 1960. Machado de Assis, que não era nenhum Matusalém, faleceu em 1908, e, portanto, não viveu o suficiente para ver a nova capital. Para vê-la, precisaria ter alcançado a idade de cento e vinte anos. 

Brasília, Eixo Monumental, em fotografia infravermelha

(1) Um dos problemas apontados em relação ao Rio de Janeiro era a vulnerabilidade diante de eventual ameaça externa, por ser o litoral enorme e escassamente defendido. Com a instabilidade dos primeiros anos da República foram evidenciados também os problemas internos, com frequentes ameaças de revoltas que deixavam a população em polvorosa - basta lembrar a Revolta da Chibata (1910), quando marinheiros tomaram o controle de navios de guerra e ameaçaram bombardear a capital se suas reivindicações não fossem atendidas. Ameaça cumprida, aliás, ainda que levemente. 
(2) GAZETA DE NOTÍCIAS, 22 de janeiro de 1893.


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quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

No Natal do ano 800

Era Natal no ano 800: de acordo com um registro em Annales regni Francorum (¹), nessa data teve lugar a coroação de Carlos Magno (²) pelo papa Leão III, acontecimento visto como marco de fundação do Sacro Império Romano. Em palavras da crônica, "no exato dia do santíssimo nascimento de Nosso Senhor, estando o rei na missa, antes que se levantasse para a Confissão do Apóstolo São Pedro, o papa Leão colocou a coroa sobre sua cabeça, sendo então aclamado pelo povo romano "Carlos Augusto [...], grande e pacífico imperador dos romanos, vida e vitória!""
Esse fato, longe de ser meramente cerimonial, tinha implicações políticas nada desprezíveis:
  • Por ter ocorrido em Roma (³), a coroação reforçava a expectativa quanto a um renascimento do Império Romano, agora reconhecendo a autoridade suprema da Igreja, daí o nome de "Sacro Império Romano", atribuído ao território sob domínio de Carlos Magno;
  • A questão de que, em última análise, o poder real estava submetido à autoridade da Igreja ficava sutilmente implícita, por ser do papa Leão III a iniciativa de pôr a coroa na cabeça do rei (⁴).
Entretanto, o sonho de uma Europa unificada sob a dinastia carolíngia teve vida curta. As lutas sucessórias entre os netos de Carlos (filhos de Luís, o Piedoso, coroado como herdeiro de seu pai em 814), se incumbiram de fragmentar o efêmero império. A Igreja, porém, longe de sair enfraquecida, veio a ser, ao longo da Idade Média, a verdadeira autoridade supranacional, aceita, ainda que com eventuais contestações, nos múltiplos territórios em que se fragmentou politicamente o Continente Europeu.

(1) datado do ano seguinte, 801.
(2) Carlos já era rei dos francos; a coroação em Roma fez dele o imperador do Sacro Império Romano.
(3) Indo a Roma, Carlos fizera um "favorzinho" ao papa, ao acalmar agitações locais; a recompensa, como se vê, foi generosa.
(4) Alguns historiadores entendem que a coroação, que devia parecer uma surpresa, fora previamente combinada.


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terça-feira, 19 de dezembro de 2017

A primeira capela dos capuchinhos franceses no Brasil

Muito semelhante à fundação do Colégio de São Paulo por missionários jesuítas em 1554, o princípio da catequese no Maranhão por capuchinhos franceses foi marcado pela construção de uma capelinha, cuja edificação, concluída na véspera do Natal de 1613, propiciou aos religiosos um lugar mais adequado à celebração da data, já que, antes disso, vinham usando uma espécie de tenda, que não primava pela solidez. A propósito desse acontecimento, o padre Yves d'Évreux registrou:
"Acabou-se esta capela na véspera de Natal e muito a propósito pela devoção que sempre teve o Seráfico Padre São Francisco, a quem era dedicada." (¹)
Lembremo-nos, leitores, apenas de passagem, que a tradição atribui a São Francisco o primeiro presépio, com a intenção de tornar mais vívida a história do Natal para pessoas que, de outro modo, teriam dificuldade para compreender o significado da data. Essa tradição, porém, é difícil de comprovar, aceita mais pela singeleza que encerra que por existência de documentação histórica. Mas vamos adiante, porque o padre d'Évreux fez outras considerações sobre a recém-construída capela, que nos permitem saber que, além dos capuchinhos, compareceram aos ofícios religiosos os franceses que, àquela altura, tentavam estabelecer uma colônia no norte do Brasil:
"Na verdade enchia-me de imenso prazer vendo nesta capelinha, feita de madeira, coberta de folhas de palmeiras, mais semelhante ao presépio de Belém do que esses grandes e preciosos templos da Europa, os nossos compatriotas franceses cantarem os salmos e matinas desta noite, e depois de purificados pelo sacramento da penitência receberem o mesmo Filho de Deus no presépio de seus corações, envolvido nas faixas do Santíssimo Sacramento do altar." (²)
Leitores de propensões poéticas talvez considerem que é ingenuamente belo esse relato de Yves d'Évreux. Não se pode deixar de notar, todavia, que, para além da celebração do Natal, a presença de franceses em um território que Portugal considerava sua propriedade iria opor, ali, soldados de duas nações cristãs, os quais, sendo necessário, não poupariam a vida dos inimigos, com o objetivo de assegurar à Coroa que defendiam o domínio de um pedaço de terra a mais na América do Sul. Como sucinta conclusão, basta lembrar que, neste caso, Portugal venceu.

(1) D'ÉVREUX, Ivo. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 10.
(2) Ibid., pp. 10 e 11.


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quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

A Conjuração de Catilina

Para refrescar sua memória, leitor: No ano 63 a.C. um senador romano chamado Lúcio Sérgio Catilina liderou uma tentativa fracassada de assumir o controle de Roma, mediante a supressão da autoridade senatorial. A esse acontecimento é que se dá o nome de "conjuração de Catilina". 
A visão tradicional do episódio, proposta por antigos manuais de história, é de que Catilina foi um traidor dos ideais da República romana, nem mais e nem menos. Como veremos, é possível, a partir dos fatos, estabelecer uma ruptura com essa interpretação algo simplista. 
Muito do que se sabe sobre a Conjuração de Catilina vem dos escritos de Salústio (¹), um pilantra perdulário e arquicorrupto, mas de inigualável eficiência quando se tratava de invectivar a imoralidade alheia. Era também muito bom escritor, e sua Catilinae coniuratio é uma obra de grande vivacidade, concisa e, até certo ponto, imparcial, uma vez que o autor, apesar de detestar Cícero (cônsul, na época), não se atreveu, só por isso, a pintá-lo em cores totalmente negativas. 
O fato é que, àquelas alturas, Roma vivia em rebuliço. Estava longe de ser a primitiva comunidade dedicada à agricultura e ao pastoreio, e, eventualmente, à guerra. Por falar em guerra, será útil recordar que foram as grandes vitórias militares que enriqueceram a orgulhosa cidade da Península Itálica e fizeram dos romanos um povo sedento de luxo e prazeres sensuais. Até havia quem combatesse esse estado de coisas - Catão era um deles - mas as palavras caíam em ouvidos pouco dispostos à atenção. Nesse cenário, Catilina reuniu um grupo de pessoas, nada desprezível em número, gente disposta, segundo as aparências, a apoiá-lo em uma tentativa de ocupar o poder, banindo a autoridade do Senado. 
Por acaso (ou não) Lúcio Catilina era um depravado; mas haveria, na Roma de seus dias, muitos que fossem melhores que ele? De acordo com Salústio, a conspiração contra o Senado obteve o apoio de gente notável por ações vis (vários, inclusive, provenientes das próprias famílias senatoriais), perdulários que haviam malbaratado o patrimônio (²), condenados ao desterro por haverem cometido algum crime e, muito importante, camponeses jovens, pobres e ambiciosos, que queriam da vida algo mais do que ela ordinariamente poderia proporcionar. Resumindo, com as palavras de Salústio, "em uma cidade tão corrupta, foi facílimo para Catilina ver-se rodeado de facínoras [...]" (³). Aneu Floro, que escreveu muito depois dos acontecimentos, acrescentou à já venenosa conjuração um detalhe que, verdade ou não, serve muito bem para mostrar o que, mais tarde, se dizia em Roma sobre esses fatos: "Sangue humano confirmou a conjuração, bebido em taça por todos compartilhada - o cúmulo da maldade, não fosse pior ainda o motivo pelo qual se bebia." (⁴)
Voltemos a Salústio, por meio de quem somos informados dos planos dos conspiradores, que incluíam, primeiro, pôr fogo em doze lugares diferentes da cidade (para que, com a confusão gerada, fosse mais fácil executar as etapas seguintes), depois, assassinar Cícero (que denunciara Catilina no Senado), assassinar senadores pela mão de seus próprios filhos que haviam aderido ao complô e, tudo feito, deixar a urbe, uma vez que, fora dela, os conjurados deviam juntar-se às forças reunidas por Catilina.
Cícero, senador romano (⁷)
Mas Cícero não dormia em serviço. Infiltrou espiões entre os rebeldes (⁵) e, com isso, obteve a prisão daqueles que, à noite, saíam da cidade. Um vivo debate no Senado opôs Catão a César. O último, considerando a alta posição social dos aprisionados, propôs que se lhes poupasse a vida, embora fossem punidos com o confisco dos bens; o parecer do primeiro, porém, era de que todos os implicados já presos fossem imediatamente executados. Catão prevaleceu.
Fora de Roma, Catilina, que já havia incitado gauleses à rebelião, conseguiu formar duas legiões, a fim de enfrentar as forças enviadas pelo Senado. Em desvantagem numérica, os revoltosos foram derrotados. De acordo com Floro, "o cadáver de Catilina foi encontrado muito longe, entre os corpos de inimigos: morte honrosíssima, se houvesse tombado em defesa da pátria" (⁶). 
O resultado final, com a execução dos rebeldes por ordem do Senado e a morte de Catilina em campo de batalha, assegurou que, à posteridade, a conjuração fosse descrita como uma traição a Roma. Não seria melhor dizer que foi uma traição ao poder senatorial? Fica evidente, lendo para além do óbvio, que havia, na cidade, muita insatisfação contra a concentração do poder nas mãos do patriciado (⁸). 
Catilina obteve, a princípio, um apoio considerável entre a plebe, visto que Roma, vitoriosa contra inimigos externos, não havia conseguido superar, em definitivo, os problemas internos. Na visão de Salústio, isso significou um reviver das antigas lutas entre patrícios e plebeus. Mais tarde, porém, ao perceber que as possibilidades de sucesso da conjuração se desvaneciam, a plebe mudou de lado, e chegou a celebrar a prisão dos revoltosos. Talvez a proposta de incendiar a cidade, sugeriu Salústio, tenha soado muito mal para aqueles cujas posses eram tão limitadas que corriam o risco de desaparecer, no caso de um incêndio. Ele não fazia ideia da importância que, no futuro, um incêndio ainda teria em Roma.

(1) Gaius Sallustius Crispus, ou Caio Salústio Crispo (escolha, leitor, de acordo com sua preferência); viveu entre 86 a.C. e 34 a.C., sendo, portanto, um contemporâneo da Conjuração de Catilina.
(2) Se isso era condição para apoiar Catilina, chega a ser surpreendente que o próprio Salústio não estivesse entre os conjurados.
(3) SALÚSTIO. Catilinae coniuratio.
(4) FLORO. Epitome rerum Romanarum Livro IV.
(5) Essa estratégia é muito antiga.
(6) FLORO. Op. cit.
(7) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 159.
(8) Aristocracia romana, que se dizia descendente dos fundadores da Cidade.
Todas as citações de Catilinae coniuratio e Epitome rerum Romanarum que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O trabalho do meirinho-mor, de acordo com as Ordenações do Reino

O que o trabalho do meirinho-mor nos ensina sobre a autoridade monárquica


"Você sabe com quem está falando?" - frases com conteúdo equivalente a esta existem há muito tempo e geralmente brotam da boca de quem acha que as leis e regras são necessárias e devem ser estritamente cumpridas - pelos outros, é claro.
Admitindo que gente poderosa, na eventualidade de cometer algum ato indevido, podia oferecer resistência à prisão, as antigas leis do Reino (¹) estipulavam que houvesse um funcionário para agir especificamente nestes casos: era o meirinho-mor. 
O Livro I, Título XVII das Ordenações do Reino (²) afirmava que ao meirinho-mor competia "prender pessoas de estado e grandes fidalgos e senhores de terras [...]". Ora, leitores, dessa breve determinação podemos extrair ao menos duas conclusões:
  • Nesse tempo, a gente que eventualmente se achava acima da lei e até acima da autoridade real incluía a nobreza e os grandes proprietários de terras, sem desconsiderar que, com certa frequência, as duas posições coincidiam em uma mesma pessoa;
  • O fato de que as leis previam um funcionário especificamente para assegurar que os infratores de alta posição social e/ou econômica fossem alcançados pela Justiça é indício de que, de outro modo, escapariam, fazendo burlas aos tribunais e à própria autoridade real, mesmo em um país de precoce centralização monárquica. 
À vista disso, meus leitores, respondam: Se era assim no Reino, como imaginar que em terras portuguesas na América, sendo poucas as autoridades e distante o governo, haveria pronta aplicação das leis? Como não seriam elas papéis, apenas papéis? Há coisas que os séculos não conseguiram apagar (ainda).

(1) O "Reino", neste caso, era Portugal; nos tempos coloniais, era comum que colonizadores do Brasil assim se referissem a seu país de origem.
(2) Compilação de leis publicada no começo do Século XVII, que vigorava em Portugal e em seus domínios (também no Brasil, portanto). A maioria das leis era de existência anterior. Neste blog é seguida a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.


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quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

E se Papai Noel, em lugar de deixar presentes, levasse os sapatos?

Nicolau de Mira foi um bispo que viveu entre os Séculos III e IV. Daí a ser chamado Papai Noel houve um longo e acidentado caminho, não completamente entendido. 
O ser humano "de carne e osso" não era o que poderíamos classificar como um modelo de serenidade: à semelhança de muitos clérigos de seu tempo, Nicolau gostava de um debate doutrinário que, às vezes, degenerava em comportamento pouco apropriado para religiosos. Isso era moda em seus dias, e as pessoas ficavam tão entusiasmadas com essas discussões quanto hoje ficam os fãs por suas equipes de futebol preferidas.
Apesar disso, Nicolau de Mira (ou, se quiserem, São Nicolau) ficou conhecido por suas preocupações pastorais em favor das crianças que viviam em sua área, especialmente as que eram pobres. Talvez tenha brotado daí a tradição que, depois de voltas tão numerosas que dariam uma espiral, acabaria chegando ao velhinho gorducho, sorridente, com longas barbas brancas e traje vermelho, que corta o céu do Natal em um trenó puxado por felizes renas do Polo Norte. Convenhamos: nessa história, o capitalismo se esmerou.
No Brasil de outrora as crianças ouviam que seus presentes eram trazidos pelo Menino Jesus. Aos poucos, São Nicolau foi encarregado do assunto, e hoje não há menino ou menina que não espere por presentes encomendados ao "bom velhinho", devidamente pagos pelos pais, tios e avós. Ficou fácil para Papai Noel, ainda que seja pouco provável encontrar quem acredite nele. Apesar disso, ainda é argumento eficiente para crianças malcomportadas: "Olhe que Papai Noel não vai trazer seu presente de Natal!..." (¹)
Pois bem, voltando ao Brasil de antigamente, recordemos que, ao entardecer da véspera de Natal, era costume que as crianças colocassem seus sapatos na janela ou em outro local visível, aonde iam, na manhã seguinte, procurar os presentes (²). Aos poucos, essa tradição, como muitas outras, desapareceu.  E se Papai Noel resolvesse, em lugar de deixar presentes, levar os sapatos? Ora, leitores, que maldade! Nem pensar em uma coisa dessas... 
De qualquer modo, quando a economia não vai bem, os sapatos sofrem e têm a aposentadoria adiada, sabe-se lá para quando. Vejam, à direita, um cartoon que apareceu na revista carioca O MALHO, edição de 22 de dezembro de 1923. A legenda diz:
"JECA - Esse sapato é meu, Papá Noel.
PAPÁ NOEL - Eu já sabia. Reconheci pelos buracos." (³)
Alguém tem dúvida de qual seria o melhor presente para o Jeca?

(1) Portanto, leitores, se Papai Noel não anda generoso com vocês, agora já sabem o motivo.
(2) Na maior parte do Brasil, as casas não têm lareiras (não são necessárias), daí o costume já abandonado, mas que foi muito comum, de colocar os sapatos das crianças junto a uma janela, à espera dos presentes de Natal.
(3) O MALHO, Ano XXII, nº 1110, p. 35. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 5 de dezembro de 2017

"Haitianismo", ou o medo de um levante geral dos escravos

"Não é possível que haja escravos sem todas as consequências escandalosas da escravidão: querer a úlcera sem o pus, o cancro sem a podridão é loucura, ou capricho infantil."
Joaquim Manuel de Macedo, As Vítimas-Algozes

O medo de uma revolta de escravos


Proprietários de escravos e autoridades viviam sob medo constante de uma revolta de cativos. Não era para menos: privados da liberdade, submetidos a uma rotina de trabalho extenuante e, em muitos casos, com alimentação insuficiente e vestuário miserável, os escravos viviam no limite da capacidade humana de tolerância. Não era raro que algum escravo morresse em consequência dos maus-tratos que recebia. Estranho, mesmo, seria se não acontecessem rebeliões. 
"Haitianismo", porém, já era outra coisa: o terror inspirado, não por uma revolta isolada, mas pela possibilidade de um levante massivo de escravos, não contra um senhor em particular, mas contra o próprio sistema escravista, nos moldes do que ocorrera durante os eventos relacionados à independência do Haiti. 
E se alguma coisa parecida acontecesse no Brasil? E se os fatos ocorridos no Haiti chegassem ao conhecimento dos escravos e "contaminassem" a população cativa? 
É fato, todavia, que, se uma rebelião de proporções nacionais jamais aconteceu no Brasil, aqui e ali pipocavam revoltas. Vejamos, então, leitores, uns poucos dentre os muitíssimos incidentes dessa natureza, dos quais se tem registro. 

Algumas revoltas de escravos


Escravo, de acordo
com Thomas Ender (²)
1. De acordo com Varnhagen, "em 1807 houve receios de um levante de africanos uçás [sic]; evitou-o o governador ordenando que os presos não andassem de noite fora de casa". (¹) É possível que haja na História Geral do Brasil um erro de revisão, e que a ordem para não sair de casa à noite tenha sido imposta aos escravos em geral. De qualquer modo, essa tentativa de levante ocorreu na Bahia.

2. O segundo volume da Crônica Geral do Brasil, escrita por Mello Moraes, traz este outro registro de uma tentativa frustrada de levante, novamente na Bahia:
"[...] Em virtude de uma denúncia da Câmara da Bahia no dia 20 de dezembro de 1830, de que na noite do dia 24 de dezembro [...], mesmo mês e ano, haveria horrorosa sublevação dos escravos na cidade e recôncavo da Bahia, por denúncias que teve o vereador da Câmara, Domingos José Antônio Rebelo, que um escravo de J. Galdino da Maia Guimarães lhe havia dito ter sido convidado para o levante na noite do Natal, dos africanos da nação mina, nagô, bronum, autá [sic], jeje, sendo o plano matar os senhores, capitaneados eles por um chefe, doze cabos de guerra, cujos africanos tendo planejado a sublevação foi ela abortada pelas prisões dos chefes e comprometidos em diferentes pontos da cidade [...]." (³)
A ideia de começar a revolta na noite de Natal pode ser facilmente entendida porque, estando a população livre ocupada nos festejos e celebrações religiosas, maior seria o descuido em relação à conduta dos escravos; além disso, muitos senhores tinham o costume de dar aos cativos alguma licença para comemorar a data, presenteando-os com uma pequena importância em dinheiro e, frequentemente, também com alguma roupa nova.

3. Em 1839, no Maranhão, "apareciam partidas de escravos armados debaixo da direção de um tal Cosme, negro muito audaz, que se havia evadido da prisão, e sublevado outros de diferentes fazendas" (⁴), conforme informação de Abreu e Lima.

4. Como quarto e último exemplo, uma pequena (e curiosa) rebelião ocorrida no Rio de Janeiro em 1858, tendo o pintor francês Auguste François Biard como testemunha ocular; hábil em usar pincel e tintas, Biard, neste caso, compôs muito bem o quadro empregando as palavras:
"Durante minha permanência no Rio venderam-se sete escravos que pertenciam a um senhor de bom coração; esses pobres diabos, habituados a ser tratados com doçura, não se conformavam com a ideia de irem cair a outras mãos e, nesse propósito, revoltaram-se, entrincheiraram-se. Ofereceram desesperada resistência a uns sessenta soldados e muitos deles só foram dominados depois de gravemente feridos. Levaram-nos então para a Correção. É nessa prisão que os donos de escravos mandam castigar suas "peças" por meio de chicotadas. [...]." (⁵)

O que se entendia por crime de insurreição de escravos no Código Criminal do Império do Brasil


De acordo com o Código Criminal do Império, Capítulo IV, Artigo 113, não era qualquer ato de insubordinação de um ou mais escravos que caracterizava o crime de insurreição; era preciso um mínimo de vinte rebeldes com a intenção explícita de atentar contra a ordem estabelecida, rompendo com a condição servil: "Julgar-se-á cometido este crime reunindo vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força." A punição para quem liderasse uma insurreição de escravos ia de quinze anos de galés à pena de morte; todos os demais integrantes da sublevação seriam sujeitos a açoites. Quantos? O juiz é quem determinava.

(1) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 1078.
(2) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) MORAES, Alexandre José de Mello. Crônica Geral do Brasil vol. 2. Rio de Janeiro: Garnier, 1886, pp. 301 e 302.
(4) LIMA, José Inácio de Abreu e. Compêndio de História do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1843, p. 295.
(5) BIARD, Auguste François. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 48.


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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Romanos copiavam o que havia de interessante em outros povos

A simples observação do que ocorria entre muitos povos da Antiguidade é suficiente para que se conclua que, em se tratando de inimigos vencidos, a regra era, tanto quanto possível, apagar até mesmo a lembrança de sua existência. 
Querem um exemplo, leitores? Aconteceu um pouco com a ajuda das intempéries, é fato, mas, após a derrota para uma coligação de medos e caldeus, o espetacular império assírio (¹) foi varrido do mapa. A destruição foi tão completa que, antes das escavações arqueológicas do Século XIX, havia muita gente que julgava sua existência apenas imaginária, qualificando-a uma "fábula bíblica" (²). Vale o mesmo em relação aos hititas. Civilizações inteiras desapareceram ante a fúria dos vencedores, deixando, no melhor dos casos, pouquíssimos vestígios. Triunfadores tinham um orgulho insano de sua pretensa superioridade, e, portanto, julgavam ter o direito de esmagar os traços culturais dos derrotados, ainda que, em si mesmos, esses traços fossem até muito bons. 
Pragmáticos, os romanos não pensavam assim. Sem nenhum constrangimento, assumiam que, se havia algo de bom e/ou útil em outras culturas, a melhor coisa a fazer era copiar. Em um discurso no Senado, Júlio César, conforme relato de Salústio, assim se expressou:
"Nossos antepassados [...], aos quais não faltava nem discernimento e nem coragem, nem por isso, soberbamente, deixaram de adotar instituições alheias, quando pareciam dignas de imitação. Armas e armaduras vieram dos samnitas, insígnias ostentadas pelos magistrados foram copiadas dos etruscos (³); portanto, o que viam de útil, fosse entre aliados ou inimigos, adotavam [...]." (⁴)
Um modelo da paixão dos romanos por tudo o que era notável na cultura alheia pode ser visto a partir da conquista da Grécia. É verdade que os romanos derrotaram os gregos em campo de batalha. Enfeitiçados, porém, pela arquitetura, pela escultura, até pela comida dos sofisticados helenos, a gente rústica de Roma jamais seria a mesma. Nas escolas, os meninos romanos, que até então não iam muito além de aprender a ler, escrever e fazer algumas contas simples, passaram a estudar não somente seu latim materno, mas também o grego. E mais: com o idioma dos vencidos, vieram as aulas de filosofia, de retórica e de outras disciplinas nas quais os gregos tinham construído um saber modelar. À vista disso, talvez seja o caso, meus leitores, de levantar a questão: Em tal cenário, quem foi, finalmente, o autêntico vencedor?

(1) Não faltará quem diga que os assírios mereceram.

(2) Isso ocorria porque quase todas as referências aos assírios, até então conhecidas, estavam na Bíblia.
(3) Samnitas e etruscos eram povos que, assim como os romanos, habitavam a Península Itálica.
(4) SALÚSTIO, Caio. Catilinae coniuratio. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 28 de novembro de 2017

A escravização de indígenas foi geral no Brasil

                "Não, dos canhões não foi o eco estrondoso
                 Que ao índio impôs terror; nem mesmo a morte;
                 Que mortes e trovões terror não causam
                 Aos filhos dos sertões, à guerra afeitos.
                 Que livres deslizavam vida errante;
                 Foi sim o cativeiro, algemas foram,
                 Que alguns, ora colonos, de seus pulsos
                 Aos pulsos dos indígenas passaram;
                 Alguns, ora colonos, mas que outrora
                 Em Lísia réus infames se oprimiam
                 De empestadas prisões nos subterrâneos."
                                        Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios


Por causa da existência das chamadas "bandeiras de apresamento" formadas por paulistas, há quem pense que a escravização de indígenas ficou restrita à Capitania de São Vicente. Nada mais equivocado: a escravização de ameríndios foi fenômeno generalizado em praticamente todo o território colonial lusitano na América. Além disso, embora muitas expedições para captura de indígenas tenham, efetivamente, partido de São Paulo, também é fato que outras, e até bastante numerosas, foram organizadas em diferentes pontos do Brasil.
Em um documento do Século XVI atribuído a Anchieta encontramos esta observação, relativa à escravização de indígenas na Bahia (¹):
"Poucos [indígenas] escaparam que não fossem escravos, porque uns vendiam aos outros, outros se vendiam a si mesmos, introduzidos todos estes costumes pelos portugueses." (²)
De acordo com a expressão de Pero de Magalhães Gândavo em seu Tratado da Terra do Brasil, era esta a situação quanto ao cativeiro de indígenas em Pernambuco por volta de 1570:
"Esta [Capitania de Pernambuco] se acha uma das ricas terras do Brasil, tem muitos escravos índios que é [sic] a principal fazenda da terra. Daqui os levam e compram para todas as outras capitanias, porque há nela muitos, e mais baratos que em toda a costa [...]." (³)
Ainda quanto a Pernambuco, encontramos, em outro documento, também atribuído a Anchieta, cujo título é Informação da Província do Brasil Para Nosso Padre - 1585 (posterior, então, aos escritos de Gândavo):
"É Pernambuco terra rica, de muitos moradores, trata com açúcar e pau vermelho (⁴), o mais e melhor da costa, no comércio é uma nova Lusitânia, e mui frequentada.
Tem sessenta e seis engenhos de açúcar, e cada um é uma grande povoação e para serviço deles e das mais fazendas terá até dez mil escravos de Guiné e Angola e de índios da terra até dois mil." (⁵)
Nada muito diferente acontecia no Maranhão. No dizer de Ayres de Casal, em 1622 "apresentou o Senado um requerimento em nome do povo, para que [o governador] não consentisse ali os jesuítas, cujos sentimentos acerca dos indígenas não eram favoráveis aos colonistas" (⁶). O mesmo autor, em referência ao Pará, observou:
"O cativeiro dos indígenas, praticado em quase todas as outras províncias, e adotado nesta desde a sua primeira fundação, continuava. Todos os serviços eram feitos pelos braços dos índios, dos quais cada colono caprichava qual havia de possuir maior número. As riquezas calculavam-se pela quantidade destes infelizes, aos quais seus injustos possuidores davam o honesto nome de administrados." (⁷)
Sendo generalizada a escravização dos povos nativos, foram também frequentes os desentendimentos entre colonizadores e missionários jesuítas, uma vez que estes últimos pretendiam manter os índios em liberdade, ou, pelo menos, dentro daquilo que entendiam como liberdade. Não era raro que colonizadores alegassem que os jesuítas queriam ser os únicos com direito a explorar o trabalho dos índios. O confronto ia além: jesuítas precisavam combater outros clérigos, que, não tendo compromisso com a catequese, não tinham escrúpulos em escravizar aqueles a quem chamavam "gentios da terra". 

(1) Onde estava a capital do Brasil naquele tempo.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 357.
(3) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 35.
(4) Referência ao pau-brasil.
(5) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Op. cit., p. 410.
(6) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica  vol. 2. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 254.
(7) Ibid., p. 275.


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quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Touradas

Tauromaquia entre os cretenses na Antiguidade

A julgar pelas representações encontradas nas ruínas de Cnossos, a tauromaquia era uma paixão entre os antigos cretenses. Rapazes e moças foram retratados a dar saltos, parecendo dançar, até, diante de touros de aparência nada afável. Tudo isso tem recebido várias interpretações, desde atividade esportiva até prática cultual, mas a mania de tirar a paz dos touros persistiu em outras culturas - se os cretenses influenciaram outros povos, ou mesmo se compartilharam suas tradições, não sabemos ainda, ao menos de forma conclusiva.

Mural cretense com jovens e um touro (¹)
Touradas no Brasil

O Brasil não é conhecido pela prática de touradas e, já há bastante tempo, consideradas crueldade contra animais, são proibidas em todo o país. Convençam-se, porém, leitores: elas já aconteceram por aqui, e algumas cidades já tiveram lugares específicos para que homens e animais se enfrentassem. A tradição desses espetáculos sangrentos veio com os colonizadores (que também trouxeram os touros, inexistentes na América antes da chegada de europeus).

Praça de touros na primeira capital do Brasil

Gabriel Soares, senhor de engenho e explorador do território ainda pouco conhecido do Brasil, escreveu, no Século XVI, ao falar da Cidade da Bahia (Salvador), a primeira capital, fundada por Tomé de Sousa em 1549:
"Está no meio desta cidade uma honesta praça, em que se correm touros quando convém [...]." (²)
E quando é que convinha? Gabriel Soares não disse, mas podemos supor, com razoável chance de acerto, que a "conveniência" devia andar associada às festas religiosas e/ou populares, tão frequentes naqueles dias.

As touradas do "tempo do rei"

"Tempo do rei" é como se chamava, durante o Império, aos anos em que a Corte portuguesa permaneceu no Rio de Janeiro (1808 - 1821). O rei, portanto, era D. João VI. Ora, de acordo com C. Schlichthorst, um militar alemão contratado para o Segundo Batalhão de Granadeiros, touradas eram realizadas no período joanino, embora não chegassem a ser um sucesso retumbante:
"No tempo do Rei, às vezes havia touradas, pouco aplaudidas, porque os touros daqui são moles [sic], sendo impossível excitá-los ao ponto de tornar esses divertimentos tão perigosos como interessantes." (³)
Questão de ponto de vista, é claro: duvido que touros considerassem (ou considerem) as touradas interessantes. Estão de acordo, leitores?

Touradas em Santos - SP

O anúncio ao lado já é dos tempos da República; apareceu no Diário de Santos, edição de 5 de julho de 1907, em primeira página:
"Se o tempo permitir terá lugar, depois de amanhã, no redondel à rua Amador Bueno, uma grande tourada na qual exibir-se-á o rival de D. Tranquedo [sic] e o espada d. Galvecito que toureará um bicho, com pernas de pau." 
A redação do comunicado é um tanto deficiente, pela falta de clareza quanto a quem seria o usuário das pernas de pau, se d. Galvecito ou se o bicho (apesar da vírgula), ou se as pernas de pau é que seriam usadas para tourear... O contexto, porém, permite alguma inferência, naturalmente. 
Pondo de lado o aspecto cômico da questão, cabe recordar que, sendo o principal porto do Brasil na época, graças às exportações de café, Santos atraía muitos imigrantes. Não surpreende que, entre eles, houvesse numerosos apreciadores de touradas. Sérias ou não.

(1) EVANS, Arthur. The Palace of Minos Vol. 3. London: Macmillan and Co., 1930, p. 213. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 118.
(3) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 130.


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terça-feira, 21 de novembro de 2017

Caminhando por florestas densas

Floresta Amazônica e rio Negro

Poucas pessoas, dentre a população urbana, já andaram pelas matas fechadas do Brasil; são, por consequência, também poucas as que têm uma ideia correta do que é transpor a densa vegetação, como o fizeram os colonizadores, nos Séculos XVI, XVII e XVIII. Em uma pequenina obra, publicada em 1754 com o aparatoso título de Relação e Notícia da Gente que Nesta Segunda Monção Chegou ao Sítio do Grão-Pará e às Terras de Mato Grosso, encontramos a seguinte descrição:
Dentro da Floresta Amazônica
"Em toda esta terra, e em todo o tempo do ano estão as árvores cheias de folhas e os matos frescos, o intrincado dos quais nos serve de mortificação, porque se não pode por eles dar livremente um passo; ao chegarmos vendo o denso e frondoso dele nos parecia que o fogo poderia fazer caminho livre, mas ao depois nos desenganou a experiência, pois ainda cortados os paus e postos no lume, dificultosamente ardem; todas as árvores são enlaçadas de cipó [...], de sorte que pelo mato se não pode dar passo sem que se leve na mão um cutelo ou faca grande, com a qual se vai cortando aquela rede de cordas com que a natureza foi prendendo as árvores umas às outras [...]." (¹)
Notem, leitores, que o fato de as florestas do Brasil permanecerem sempre verdes era uma surpresa para quem estava habituado à vegetação decídua de climas temperados, mas a dificuldade apontada era caminhar por entre a mataria, não apenas pela densidade arbórea, mas também pela existência de cipós que, conforme aponta o trecho citado, formavam uma rede ligando as árvores e impedindo a passagem. Mesmo dispondo de boas ferramentas, quem pretendia explorar o terreno considerava a tarefa penosa, daí o recurso ao fogo, de modo análogo ao utilizado por indígenas (²). Esse método, inconveniente pelo dano ambiental que dele resulta, não era, todavia, muito eficaz para abrir o terreno. A despeito disso, foi usado por bandeirantes e outros exploradores do território, e continua até hoje a ser empregado - ilegalmente - para remover a floresta, dando lugar à monocultura e pastagens.

Dentro de mata no Brasil Central

(1) COUTO, Isidoro de; SILVA, Caetano Paes. Relação e Notícia da Gente que Nesta Segunda Monção Chegou ao Sítio do Grão-Pará e às Terras de Mato Grosso. Lisboa: Oficina de Bernardo A. de Oliveira, 1754.
(2) Antes da chegada de colonizadores europeus, as ferramentas usadas por indígenas do Brasil eram feitas com madeira e pedra, dificultando o corte de árvores, daí o uso do fogo para desbastar florestas.


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quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Como os antigos romanos descobriram que elefantes podiam morrer

Em luta contra o exército de Pirro, rei do Épiro, que se aliara aos tarentinos, os romanos enfrentaram pela primeira vez, ao que se sabe, os tanques de guerra vivos da Antiguidade: elefantes! Aneu Floro (¹), em Epitome rerum Romanarum, escreveu:
"Para defender a semigrega cidade (²) fundada por lacedemônios, [Pirro] trouxe homens do Épiro, da Tessália e da Macedônia, elefantes, até então desconhecidos, forças de mar, terra e cavalaria." (³)
Pânico geral entre os corajosos romanos. Quem ousaria enfrentar as terríveis criaturas que, sem mostras de caridade, pisoteavam os insignificantes soldados que esboçavam alguma oposição? O pavor campeou entre as forças de Roma até que Caio Minúcio, da Quarta Legião (ainda segundo Floro), ao cortar a tromba de um elefante, demonstrou que os ditos animais podiam ser mortos... 
Cortar a tromba - que ato de bravura! Não pretendo gastar tempo discutindo se os fatos foram mesmo assim. Afinal, Floro escreveu muito tempo depois da guerra contra Pirro. Mas podemos, de sua informação, extrair algumas conclusões:
  • Na memória coletiva dos romanos, a luta contra os elefantes na Batalha de Heracleia (⁴) tinha proporções exageradas (isso não é um trocadilho - mesmo!);
  • O episódio de valentia do soldado Caio Minúcio era reputado como real e notável, ou ninguém mais se lembraria dele;
  • O próprio Floro devia ter fé na autenticidade do episódio, ou não iria adicioná-lo à sua obra, correndo o risco de ser considerado mentiroso;
  • Os conhecimentos de zoologia dos romanos do Século III a.C. eram, no melhor dos casos, sofríveis, e a falta de informação quanto à existência de elefantes comprova que, nesse tempo, o contato de povos da Península Itálica com outras regiões não era expressivo - somos forçados a considerar que, para seus dias, o ousado golpe desferido por Caio Minúcio contra a tromba de um elefante significou, para Roma, mais que um feito militar, foi um grande avanço na ciência. Podem rir, leitores.
O caso é que, depois do susto inicial, os romanos gostaram tanto dos elefantes que, assim que puderam, trataram de incluí-los entre seus recursos bélicos. Mas tiveram problemas: consta que, tendo capturado alguns elefantes dos cartaginenses durante as Guerras Púnicas, os pobres animais acabaram morrendo de fome, porque seus novos senhores não tinham a menor ideia de como deviam alimentá-los. Na guerra ou na paz, o contato com outros povos serviu para ampliar os conhecimentos dos romanos. Posteriormente, elefantes seriam parte importante dos espetáculos circenses para o entretenimento de multidões na capital do Império.

Uma visão humorística do exército de Pirro (⁵)

(1) Este autor romano viveu entre os Séculos I e II d.C.; foi contemporâneo do imperador Adriano.
(2) Tarento.
(3) O trecho citado de Epitome rerum Romanarum é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) 280 a.C.
(5) BECKETT, Gilbert Abbott à et LEECH, John. The Comic History of Rome. London: Bradbury, Evans and Co., 1851, p. 138. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 14 de novembro de 2017

A preferência por indígenas das missões para captura e escravização

Exceto em casos de "guerra justa" (¹), a escravidão de indígenas era ilegal no Brasil. Isto não quer dizer que não acontecesse. Exatamente ao contrário, foi amplamente utilizada e, em algumas áreas, predominante.
Para muitos colonizadores, os índios "favoritos" eram aqueles que, tendo vivido em missões, acabavam capturados por bandeiras de apresamento. A questão que consequentemente aparece é: por que essa preferência?
Antes de qualquer outra coisa, era comum que, vivendo em aldeamentos organizados por missionários (quase sempre jesuítas), os indígenas andassem desarmados e sem treino contínuo para o combate. Nesse sentido, estavam em desvantagem em relação àqueles que, habitando aldeias próprias, ao estilo típico dos ameríndios, apresentavam maior prontidão para a defesa. É verdade que os missionários insistiam com as autoridades coloniais (particularmente aquelas em áreas subordinadas ao governo espanhol), para que fosse admitido o uso de armas de fogo como defesa para os índios das missões, mas a permissão era negada sob o pretexto de que, uma vez armados, os índios poderiam ser uma ameaça para as povoações de colonizadores.
Outra razão para a preferência pela escravização de indígenas catequizados é que estes estavam já habituados ao convívio com colonizadores de origem europeia, tendo aprendido técnicas agrícolas com os missionários. Não seria preciso, portanto, gastar tempo ensinando a eles o trabalho que se esperava que fizessem. Sabemos, por relato do padre Antonio Ruiz de Montoya, jesuíta que trabalhou nas missões do Guayrá, que a principal atividade dos nativos catequizados era a agricultura: "[...] Os próprios padres lhes haviam ensinado a preparar a terra com arado [...]" (²). E mais: "Todos são lavradores e cada um tem seu próprio terreno de cultivo; atingindo os onze anos, os rapazes já trabalham em seu terreno, ajudando-se uns aos outros [...]." (³) Convenhamos, leitores, que esses indígenas em muito se avantajavam, até mesmo em relação aos colonizadores, já que, no Brasil, ainda no Século XIX havia resistência entre latifundiários quanto à introdução do uso do arado nas lavouras; a rusticidade era tal, que fazia recair a preferência no uso apenas de enxadas, manipuladas por escravos de origem africana.
Um terceiro aspecto deve ser tido como sumamente relevante, em se tratando do apresamento de indígenas catequizados: além do conhecimento de técnicas agrícolas, muitos deles eram qualificados no exercício de várias profissões. Montoya, o jesuíta já mencionado, afirmou: "São muito habilidosos nos ofícios mecânicos; há entre eles ótimos carpinteiros, ferreiros, alfaiates, tecelões e sapateiros, e ainda que antes nada disso soubessem, a atividade dos padres tornou-os mestres, e não pouco no cultivo facilitado da terra pelo uso do arado [...]." (⁴)
Longe de desconhecer esse fato, os sertanistas apresadores de indígenas viam nele um estímulo a mais, em particular quando queriam "peças" (⁵), não apenas para trabalho nas lavouras, mas também para venda.

(1) Um recurso hipócrita, mas conveniente, para acalmar consciências e legalizar o apresamento e escravização de ameríndios. Outro meio de dar um aspecto de legalidade à existência de indígenas escravizados era afirmar que haviam sido comprados em aldeias nas quais eram prisioneiros reservados à prática da antropofagia.
(2) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.
(3) Ibid. 
(4) Ibid.
(5) Modo como usualmente eram chamados os indígenas escravizados.


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