quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

A Conjuração de Catilina

Para refrescar sua memória, leitor: No ano 63 a.C. um senador romano chamado Lúcio Sérgio Catilina liderou uma tentativa fracassada de assumir o controle de Roma, mediante a supressão da autoridade senatorial. A esse acontecimento é que se dá o nome de "conjuração de Catilina". 
A visão tradicional do episódio, proposta por antigos manuais de história, é de que Catilina foi um traidor dos ideais da República romana, nem mais e nem menos. Como veremos, é possível, a partir dos fatos, estabelecer uma ruptura com essa interpretação algo simplista. 
Muito do que se sabe sobre a Conjuração de Catilina vem dos escritos de Salústio (¹), um pilantra perdulário e arquicorrupto, mas de inigualável eficiência quando se tratava de invectivar a imoralidade alheia. Era também muito bom escritor, e sua Catilinae coniuratio é uma obra de grande vivacidade, concisa e, até certo ponto, imparcial, uma vez que o autor, apesar de detestar Cícero (cônsul, na época), não se atreveu, só por isso, a pintá-lo em cores totalmente negativas. 
O fato é que, àquelas alturas, Roma vivia em rebuliço. Estava longe de ser a primitiva comunidade dedicada à agricultura e ao pastoreio, e, eventualmente, à guerra. Por falar em guerra, será útil recordar que foram as grandes vitórias militares que enriqueceram a orgulhosa cidade da Península Itálica e fizeram dos romanos um povo sedento de luxo e prazeres sensuais. Até havia quem combatesse esse estado de coisas - Catão era um deles - mas as palavras caíam em ouvidos pouco dispostos à atenção. Nesse cenário, Catilina reuniu um grupo de pessoas, nada desprezível em número, gente disposta, segundo as aparências, a apoiá-lo em uma tentativa de ocupar o poder, banindo a autoridade do Senado. 
Por acaso (ou não) Lúcio Catilina era um depravado; mas haveria, na Roma de seus dias, muitos que fossem melhores que ele? De acordo com Salústio, a conspiração contra o Senado obteve o apoio de gente notável por ações vis (vários, inclusive, provenientes das próprias famílias senatoriais), perdulários que haviam malbaratado o patrimônio (²), condenados ao desterro por haverem cometido algum crime e, muito importante, camponeses jovens, pobres e ambiciosos, que queriam da vida algo mais do que ela ordinariamente poderia proporcionar. Resumindo, com as palavras de Salústio, "em uma cidade tão corrupta, foi facílimo para Catilina ver-se rodeado de facínoras [...]" (³). Aneu Floro, que escreveu muito depois dos acontecimentos, acrescentou à já venenosa conjuração um detalhe que, verdade ou não, serve muito bem para mostrar o que, mais tarde, se dizia em Roma sobre esses fatos: "Sangue humano confirmou a conjuração, bebido em taça por todos compartilhada - o cúmulo da maldade, não fosse pior ainda o motivo pelo qual se bebia." (⁴)
Voltemos a Salústio, por meio de quem somos informados dos planos dos conspiradores, que incluíam, primeiro, pôr fogo em doze lugares diferentes da cidade (para que, com a confusão gerada, fosse mais fácil executar as etapas seguintes), depois, assassinar Cícero (que denunciara Catilina no Senado), assassinar senadores pela mão de seus próprios filhos que haviam aderido ao complô e, tudo feito, deixar a urbe, uma vez que, fora dela, os conjurados deviam juntar-se às forças reunidas por Catilina.
Cícero, senador romano (⁷)
Mas Cícero não dormia em serviço. Infiltrou espiões entre os rebeldes (⁵) e, com isso, obteve a prisão daqueles que, à noite, saíam da cidade. Um vivo debate no Senado opôs Catão a César. O último, considerando a alta posição social dos aprisionados, propôs que se lhes poupasse a vida, embora fossem punidos com o confisco dos bens; o parecer do primeiro, porém, era de que todos os implicados já presos fossem imediatamente executados. Catão prevaleceu.
Fora de Roma, Catilina, que já havia incitado gauleses à rebelião, conseguiu formar duas legiões, a fim de enfrentar as forças enviadas pelo Senado. Em desvantagem numérica, os revoltosos foram derrotados. De acordo com Floro, "o cadáver de Catilina foi encontrado muito longe, entre os corpos de inimigos: morte honrosíssima, se houvesse tombado em defesa da pátria" (⁶). 
O resultado final, com a execução dos rebeldes por ordem do Senado e a morte de Catilina em campo de batalha, assegurou que, à posteridade, a conjuração fosse descrita como uma traição a Roma. Não seria melhor dizer que foi uma traição ao poder senatorial? Fica evidente, lendo para além do óbvio, que havia, na cidade, muita insatisfação contra a concentração do poder nas mãos do patriciado (⁸). 
Catilina obteve, a princípio, um apoio considerável entre a plebe, visto que Roma, vitoriosa contra inimigos externos, não havia conseguido superar, em definitivo, os problemas internos. Na visão de Salústio, isso significou um reviver das antigas lutas entre patrícios e plebeus. Mais tarde, porém, ao perceber que as possibilidades de sucesso da conjuração se desvaneciam, a plebe mudou de lado, e chegou a celebrar a prisão dos revoltosos. Talvez a proposta de incendiar a cidade, sugeriu Salústio, tenha soado muito mal para aqueles cujas posses eram tão limitadas que corriam o risco de desaparecer, no caso de um incêndio. Ele não fazia ideia da importância que, no futuro, um incêndio ainda teria em Roma.

(1) Gaius Sallustius Crispus, ou Caio Salústio Crispo (escolha, leitor, de acordo com sua preferência); viveu entre 86 a.C. e 34 a.C., sendo, portanto, um contemporâneo da Conjuração de Catilina.
(2) Se isso era condição para apoiar Catilina, chega a ser surpreendente que o próprio Salústio não estivesse entre os conjurados.
(3) SALÚSTIO. Catilinae coniuratio.
(4) FLORO. Epitome rerum Romanarum Livro IV.
(5) Essa estratégia é muito antiga.
(6) FLORO. Op. cit.
(7) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 159.
(8) Aristocracia romana, que se dizia descendente dos fundadores da Cidade.
Todas as citações de Catilinae coniuratio e Epitome rerum Romanarum que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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6 comentários:

  1. Declaro-me perfeitamente ignorante quanto a este episódio. A verdade é que a história de Roma foi tão profícua em traições, assassinatos (e tentativas), golpes de Estado (e tentativas) que é fácil perder o fio à meada...
    P.S. Adorei a sua descrição do Salústio, haha
    Abraço
    Ruthia

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    1. Não só a de Roma... Creio que fenômenos análogos podem ser encontrados onde quer que humanos tenham se estabelecido.

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    1. É por isso que a ideia de que "a história se repete" tem tantos adeptos. Coincidência ou não, há, de fato, acontecimentos similares, dentro de uma mesma civilização ou entre várias diferentes.

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    1. Obrigada, AG. Que seu Natal seja maravilhoso (e 2018 também!).

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