quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Nomes antigos, longos e (até) estranhos de cidades brasileiras - Parte 2

Está aqui a segunda postagem sobre antigos nomes de cidades brasileiras. Como se sabe, no caso do Brasil, as duas principais razões para as denominações originais de localidades foram nomes indígenas já existentes e nomes dos santos padroeiros, quase sempre escolhidos por sua relação com a data oficial de fundação. Há casos evidentes, também, de uma combinação das duas coisas, como a lista seguinte poderá demonstrar. É interessante notar que, em muitos casos, a simplificação do nome veio com a elevação da povoação à categoria de cidade.
Vejamos a segunda lista:

Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre (Porto Alegre - RS)
São Bento de Araraquara (Araraquara - SP)
Senhor Bom Jesus dos Aflitos de Pirassununga (Pirassununga - SP)
São Carlos do Pinhal (São Carlos - SP)
Santo Antônio dos Anjos de Laguna (Laguna - SC)
Nossa Senhora Mãe dos Homens do Araranguá (Araranguá - SC)
São Sebastião da Serra dos Cristais (Cristalina - GO)
Ribeirão dos Fugidos (Borborema - SP)
Arraial do Ribeirão das Minas de Santo Antônio do Bom Retiro do Serro do Frio (Serro - MG)
São Pedro de Uberabinha (Uberlândia - MG)
Nossa Senhora da Glória de Valença (Valença - RJ)
São Lourenço dos Índios, depois Vila Real da Praia Grande (Niterói - RJ)
Nossa Senhora das Neves, depois Filipeia de Nossa Senhora das Neves, depois Frederikstadt, de novo Nossa Senhora das Neves, depois Cidade da Paraíba (João Pessoa - PB). É muito? Há quem proponha nova mudança de nome...


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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Nomes antigos, longos e (até) estranhos de cidades brasileiras - Parte 1

Muitos têm observado que, em certos aspectos da vida, a tendência é a simplificação. Ainda bem! Quase sempre, quanto mais simples, melhor. E, para não matar meu leitor de curiosidade, vamos ao assunto de hoje: os nomes que se davam às povoações, vilas e cidades brasileiras que, felizmente (quase sempre), foram abreviados, mudados, trocados, simplificados... Em alguns casos, é fácil identificar a simplificação; em outros, nem tentando adivinhar.
A lista abaixo, meramente aleatória, traz os antigos nomes de algumas cidades e sua denominação atual, mas é suficiente para demonstrar a enorme criatividade dos fundadores. Divirta-se, leitor.

Vila Nova da Constituição (Piracicaba - SP)
São Sebastião do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro - RJ)
São Salvador da Bahia de Todos os Santos (Salvador - BA)
São João Batista do Ribeirão Claro (Rio Claro - SP)
Arraial de Sant'Anna, depois Vila Boa de Goyaz (Goiás - GO)
Nossa Senhora da Luz dos Pinhais (Curitiba - PR)
Vila de Nossa Senhora do Ribeirão do Carmo (Mariana - MG)
Nossa Senhora das Dores de Tatuibi (Limeira - SP)
Arraial Novo do Rio das Mortes (São João del-Rei - MG)
Arraial Velho de Santo Antônio, depois Vila de São José do Rio das Mortes, depois São José del-Rei (Tiradentes - MG)
Vila de Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba (Sorocaba - SP)
São Francisco das Chagas de Taubaté (Taubaté - SP)
Vila de Guaypacaré (Lorena - SP)
Vila Nova do Espírito Santo (Vitória - ES)
Minas de Nossa Senhora do Rosário Meia Ponte (Pirenópolis - GO)
Forte de São José do Rio Negro, depois Cidade da Barra do Rio Negro (Manaus - AM)
Arraial da Igreja Nova de Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo (Barbacena - MG)


sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Um ano depois

Em 25 de dezembro de 2009 coloquei a primeira postagem neste blog. Ela havia sido escrita dias antes, enquanto aguardava uma reunião que não começava nunca, mas foi só na tarde do dia de Natal que tive alguns minutos livres para, finalmente, por assim dizer, inaugurar o blog.
Um ano depois, estamos na 94ª postagem. É tempo de agradecer, porque ao longo deste ano, se tive muito trabalho (seria tolice negar), encontrei muita gente simpática, disposta a colaborar, respondendo com paciência minhas quase intermináveis listas de perguntas. Às vezes, deixamos de agradecer por receio de omitir alguém. Pior, no entanto, seria esquecer de todos. Por isso, digo "obrigado":
- Ao André, que tantas vezes leu e deu palpites nas postagens antes que elas fossem publicadas;
- Aos restauradores e outros profissionais que interromperam seu trabalho para dar explicações sobre o que estavam fazendo;
- Aos seguranças e outros funcionários de igrejas, museus e cemitérios, que além de exercerem as funções para as quais são pagos, atuam, sem remuneração, como guias para os visitantes (menciono especificamente os funcionários do Museu Ferroviário de Jaguariúna (SP) , do Museu Gustavo Teixeira, de São Pedro (SP), do Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira (SP), das Igrejas de N. Sra. da Candelária e do Bom Jesus, em Itu (SP), dos cemitérios, também de Itu, e São João Batista, de Rio Claro (SP), do Parque Ecológico de Amparo (SP) e da Polícia Rodoviária de Águas da Prata (SP);
- Ao Padre Rodolfo, do Santuário de N. Sra. do Perpétuo Socorro, de São João da Boa Vista (SP), um templo belíssimo, muito bem conservado e que vale a pena ser visitado;
- Aos estudantes que fizeram suas pesquisas visitando o blog;
- Aos seguidores do blog (poucos, mas muito bons!);
- Aos assinantes (feed ou e-mail);
- Aos que enviaram comentários;
- A você, leitor;
- No fim da lista, mas não menos importante, agradeço por todas as estripulias de todos os que foram antes de nós (e às de alguns contemporâneos também), sem as quais este blog não teria a menor razão para existir!

Vale dizer que, quando comecei o blog, ouvi sugestões no sentido de postar em inglês, o que me garantiria um número maior de acessos. Não duvido, mas procurei acreditar que é possível formar um público razoável, interessado em História e assuntos correlatos, prioritariamente no Brasil e nos demais países de língua portuguesa. De qualquer forma, sempre há o Google Translator... E o blog acabou tendo um número considerável de acessos do Exterior. Portanto, agradeço também aos leitores dos mais diversos lugares do mundo que acessaram o blog ao longo deste ano. Essa é uma parte importante (e boa) da Internet.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A questão da origem dos presépios de Natal

Presépio da Igreja de N. Sra. da Candelária, em Itu, SP.
Como ocorre nas igrejas, o Menino Jesus só é adicionado
na noite de Natal.
Há quem afirme que S. Francisco de Assis teria sido o primeiro a ter inventado o que chamamos de "presépio", ou seja, uma representação da cena do nascimento de Jesus, usando, para tanto, figuras vivas. Entretanto, parece não haver provas conclusivas que reafirmem esse fato. De todo modo, sabemos que, durante o Medievo, eram frequentes as representações natalinas defronte às igrejas, e não é impossível que daí tenha vindo a ideia de retratar, geralmente com esculturas, o Menino Jesus na manjedoura, Maria e José ao seu lado, a chegada dos pastores e, um tanto anacronicamente, os magos do Oriente (que, segundo contam os Evangelhos, não teriam como estar presentes na noite em que Jesus nasceu, ou Herodes não deveria preocupar-se em mandar matar todos os meninos com dois anos de idade ou menos). 
Presépio da Igreja do Bom Jesus, Itu, SP
Essa origem medieval, todavia, é inequívoca. Se nunca o fez, vá até uma igreja e olhe o presépio que lá está. Dessa visita podem ser tiradas ao menos duas instrutivas lições:

1) Os presépios de igreja, curiosamente, quase sempre têm as personagem retratadas em trajes medievais, o que apenas reforça a época de origem dessa tradição;

2) Os "inventores" medievais do presépio, ao retratarem as personagens em trajes de seus dias, demonstravam não ter uma visão clara de como se vestiam os humanos do primeiro século da Era Cristã que viviam em áreas sob influência da cultura mediterrânica. Isso não chega a surpreender, porque sabemos que o interesse por questões greco-romanas só iria reviver no período chamado, com justiça, de Renascimento.
Diante disso, leitor, comemore o Natal se e como quiser, mas fique de olho na História!

Presépio em um centro comercial na cidade de Pedreira, SP

Presépio em uma praça pública em Serra Negra, SP


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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Um sonho de Natal - os brinquedos de antigamente

Tente lembrar, leitor, qual foi, em sua infância, o presente de Natal mais esperado. Não cometerei a indiscrição de perguntar se recebeu-o ou não... Como se sabe, Papai Noel não traz presentes para crianças desobedientes e pouco estudiosas. Em vez disso, e fazendo jus ao propósito desde blog, trataremos de descobrir quais eram os presentes mais almejados nas primeiras décadas do século XX.
Nessa empreitada, vêm em nosso socorro dois anúncios publicados em diferentes edições de A Cigarra, sendo a primeira  do dia 1º de dezembro de 1919 e a segunda de 27 de setembro de 1930. Vai, portanto, pouco mais de uma década de distância entre uma e outra.
O primeiro caso, como se vê abaixo, é um anúncio de página inteira, com ilustrações bem interessantes das mercadorias oferecidas:


Bonecas, instrumentos musicais, bolas, cavalinhos de madeira sobre rodas, velocípede - aos jovens leitores, explico que velocípede era o nome dado a uma bicicleta de três rodas. Tive um mais ou menos assim, embora, obviamente não tenha vivido em 1919. Posso assegurar que era muito divertido correr com ele. O caso é que, em última instância, são brinquedos que, em suas respectivas versões contemporâneas, podemos encontrar em qualquer boa loja. Mas vamos adiante.
O segundo anúncio, também de página inteira, mostra brinquedos que seriam entregues a título de premiação para os vencedores de um concurso (o título diz: "Alguns dos ricos prêmios do Grande Concurso de Natal de "O Tico-Tico"" (*)).


Imagino que devia haver prêmios específicos para meninas, já que estes, pelo menos na época, pareciam ser destinados aos guris. Vemos modelos de automóveis, ônibus (de um tipo mais conhecido como "jardineira" aqui em São Paulo), um barco a motor, uma tuba, um caminhão de bombeiros. Esses são brinquedos que até hoje fariam a alegria de um colecionador. Infelizmente, o concurso foi há oitenta anos...
Dadas as condições econômicas do Brasil ao tempo desses anúncios, dado também o fato de ser a população eminentemente rural, sem acesso a lojas especializadas, é provável que brinquedos assim tenham sido presenteados a bem poucos meninos e meninas, àqueles cujas famílias, vivendo em áreas urbanas, tinham recursos suficientes para admitir tal luxo. Para a maioria das crianças, os presentes de Natal eram, no máximo, bonecas de pano feitas pelas mães ou avós, um cavalinho de pau feito pela habilidade paterna, talvez algum brinquedo barato. Seriam felizes os que recebiam tais presentes? Não podemos ter nenhuma ideia dos casos individuais, mas sabe-se que, ao menos no Brasil, ainda não predominava nenhuma regrinha capitalista obrigando a crer que "quanto mais caro, melhor". O que não impedia, que, vez por outra, uma belíssima boneca que abria e fechava os olhinhos brilhantes ou um modelo perfeito de automóvel pudesse frequentar os sonhos da criançada.

(*) TICO-TICO era uma revista infantil que, na época, fazia muito sucesso.


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sábado, 18 de dezembro de 2010

Humor natalino nas primeiras décadas do Século XX - As crianças também têm ideias próprias

Andei investigando o que as crianças estão pedindo ao Papai Noel neste ano, e descobri que, na maioria das lojas, os brinquedos mais cobiçados (supostamente para meninos) são os helicópteros com controle remoto. Há, naturalmente, montanhas de outras coisas, tais como carrinhos e bonecas, além de uma grande variedade de jogos de tabuleiro que, ao menos por hora, voltaram a fazer sucesso. Em uma loja em que estive vi uma menina de uns dez anos de idade, acompanhada da mãe, escolhendo patins novos. A questão é que ela não queria os oferecidos pela vendedora, alegando que aqueles eram "patins de criança". Repito, leitor, ela devia ter uns dez anos. Como se vê, quem tem dez anos não é mais criança...
Como esta série de postagens trata das celebrações do Natal nas primeiras décadas do século XX, aqui vão mais dois cartuns, desta vez envolvendo as preferências infantis.
Até que idade é adequado presentear uma menina com bonecas? Essa é uma questão difícil, mas a pequena retratada pelo desenhista (em 1923) encarregou-se, por si mesma, de recusar o brinquedo:


"- Não, Papai, eu não quero! Eu só aceito uma caixa de pó de arroz e um baton de rouge." (¹) Neste caso, a exigente menina deixou claro ao Papai Noel que suas preferências haviam mudado - daí porque Papai Noel deve ter voltado ao Polo Norte com o carregamento de bonecas de pano quase intacto. Duvido muito que alguma mocinha pense em pedir, atualmente, pó de arroz, mas os interesses, ah, esses não parecem ter variado tanto!
Além dos presentes, outra preocupação natalina foi e continua a ser o gênero de festa que se fará. No início do século XX as pessoas eram, geralmente, muito religiosas (ou, ao menos, aparentavam sê-lo). Isso significa que ir à missa ou a um culto protestante era parte essencial das comemorações. A chamada Missa do Galo, particularmente, era celebrada à meia-noite, hora em que a tradição afirmava haver nascido Jesus. Entretanto, também isso passou por transformações, e o cartum abaixo retrata exatamente essa mudança:


Conversam as crianças:
"- Nós vamos esperar o Papai Noel à meia-noite?
- Xiii! Luisinha! Você é muito trouxa!... À meia-noite nós vamos dançar o fox-trot no Trianon..."
(²)
Por que deveríamos fazer mais comentários?

(1) A CIGARRA, 15 de dezembro de 1923.
(2) A CIGARRA, 15 de dezembro de 1924.


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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Humor natalino nas primeiras décadas do Século XX - As preferências da juventude

Desde que o mundo é mundo os idosos acham os jovens "modernos demais" e os jovens acham os velhos "ultrapassados". Sim, leitor, há culturas em que, por tradição, os jovens reverenciam os idosos, mas isso é, em grande parte, fruto da coesão (e também da coerção) social. Prova disso é que, mesmo nas sociedades mais conservadoras, vez por outra estoura uma rebelião... Seja como for, o que se verifica com frequência é que a população de mais idade tenta preservar as antigas práticas, enquanto que os mais novos buscam, geralmente, ultrapassar antigos limites, variando apenas a velocidade com esse fenômeno ocorre, e que depende em grande parte do ritmo da mudança histórica.
Nesta postagem veremos dois cartuns que expõem, ainda que secundariamente, a visão que se tinha da juventude urbana, nos anos vinte, o que inclui expectativas quanto às figuras feminina e masculina - tudo muitíssimo diferente do que se vira em décadas anteriores. O objetivo primário era, supõe-se, provocar riso nos leitores.


Ao chegar com seus brinquedos (¹), Papai Noel é surpreendido pela menina que já não quer suas bonecas (²) - arranjou outra, mais conveniente. Contraste, leitor, as figuras masculinas dominantes e patriarcais dos dias do Império, ao garotão reduzido ao papel de "boneca". Contraste também as antigas regras de namoro e casamento, sempre conduzidos pelos pais ou, mais especificamente, pelo pai, levando em conta interesses econômicos e até políticos, com essa menina que escolhe livremente sua "boneca". Não se pode negar que as mudanças são significativas!
Mas vamos adiante. O desenho abaixo foi capa de A Cigarra, em dezembro de 1924 (³):


Expliquemos, antes de mais nada, que a expressão "almofadinha" era usada para designar o homem que se vestia com cuidado, de acordo com a última moda. O que era a última moda em 1924, depreende-se do modelo de sapato (a gíria podia ter, eventualmente, um aspecto pejorativo, indicando exagero e esbanjamento no vestir-se). Agora, observe o "presente" desejado. Cabelo muito curto, roupas justas e também curtas, joias algo extravagantes. Fico pensando em quanto isso tudo devia ser chocante para senhoras de mais idade. As meninas talvez argumentassem que essa era a moda em Paris, o que só contribuía para aumentar a confusão. Afinal, mães e avós também haviam usado a moda parisiense, principalmente sendo elas de alta posição social, e nem por isso haviam andando a constranger os circunstantes.
Não pode haver dúvidas - a Primeira Guerra Mundial varrera as velhas configurações políticas oriundas do século XIX e, no rastro, banira também velhos hábitos e costumes. De boa ou má vontade, a sociedade brasileira estava a adaptar-se às novidades. O planeta era cada vez mais um só, mas (problema de percepção, naturalmente), parecia girar de maneira muito estranha.

(1) Legenda original: "- Não, Papá Noel, este ano não preciso mais das suas bonequinhas... Arranjei agora uma boneca melhor..."
(2) A CIGARRA, 15 de dezembro de 1922.
(3) A CIGARRA, 15 de dezembro de 1924.


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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Humor natalino nas primeiras décadas do Século XX - A política e os políticos são o alvo

Por estranho que possa parecer, as crises e, dentre elas, as crises políticas e/ou econômicas em particular, parecem ter o dom (!) de aquecer o senso de humor. Talvez seja apenas um modo de tornar a vida um pouco menos insuportável. Ou, rindo do caos, acabar topando com alguma solução para ele.
Todos sabemos que, no Brasil, como em muitos outros países do Ocidente, os anos vinte foram tempos difíceis. Tratava-se, nesse caso específico, de dar forma, unidade e coesão a um país que tinha falta em grau extremo de tudo isso. A escravidão acabara em fins do século XIX, mas as disparidades raciais e econômicas dela decorrentes eram absurdas. Além disso, a chegada de multidões de imigrantes, poucos dos quais conheciam a língua, leis e costumes do Brasil, contribuiu para gerar ainda maior desigualdade entre a população, ainda que a imigração em si tenha sido, ao fim e ao cabo, um grande bem. Mas isso era só uma face do problema.
Na área econômica, a dependência das exportações de café havia levado o Brasil a um contínuo "balança-mas-não-cai", que acabou caindo. Só que, enquanto balançava, produziu revoltas, greves e agitações de toda ordem. Governar um país nessas condições... Foi coisa para presidentes como Epitácio Pessoa e Artur Bernardes, os alvos do humor natalino desta postagem.


Ironicamente, o desenhista deseja "Boas Festas", com "O lindo presente que, por culpa do Epitácio, o funcionalismo federal vai receber para carregar durante todo o ano!" (¹) Claro está que a referência é às medidas de austeridade econômica (que afetavam a população) adotadas no governo do presidente Epitácio Pessoa, apresentando um contraste gritante com as elevadas despesas feitas para a comemoração do centenário da independência. No cartum, o funcionário público recebe, como presente de Natal, um pesado fardo a carregar por todo o ano seguinte - portanto, o congelamento de soldos e salários era visto como um legado indesejável do presidente que deixara o cargo em 15 de novembro de 1922.
Acontece que o novo governo (o do presidente Artur Bernardes) foi também de muitas dificuldades, não apenas no plano econômico, mas também no político. Isso porque, se o marco inicial do Tenentismo é a chamada Revolta do Forte de Copacabana, ocorrida ainda no governo de Epitácio Pessoa, os desdobramentos da luta da jovem oficialidade das Forças Armadas só seriam plenamente conhecidos no mandato seguinte. Portanto, o pobre caboclo brasileiro, ansioso por melhoras na qualidade de vida, deixa seu sapato à espera de Papai Noel, mas tem uma surpresa bem desagradável. O cartunista assim interpretou a questão:


A legenda é explícita: "Natal! - O sapato do pobre..." (²) Sim, no sapato do pobre está a CRISE, exibindo os dentes com sarcasmo. Pode-se dizer, sem risco de erro, que no Brasil, ao menos para a parcela da população de menor renda, a Crise de 1929 chegou antes de 1929. Pode-se também afirmar que a Era do Café talvez tenha deixado, romanticamente, saudades em alguns. Economicamente, foi embora muito tarde.

(1) A CIGARRA, 15 de dezembro de 1922.
(2) A CIGARRA, 15 de dezembro de 1923.


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domingo, 12 de dezembro de 2010

Humor natalino nas primeiras décadas do Século XX - Papai Noel leva um susto

Como era ou, melhor dizendo, como a sociedade brasileira das primeiras décadas do século XX via a si mesma? Essa é uma questão interessante, que o cartum abaixo talvez ajude a responder (¹):


A legenda original diz: "Tipos característicos da Missa do Galo". A benefício dos pouco religiosos, vale esclarecer que a Missa do Galo é uma celebração católica tradicionalmente realizada à meia-noite, em honra do nascimento de Jesus. Ocorre que, de acordo com o costume, iam todos à missa, após a qual realizava-se a famosa ceia de Natal. O interessante do cartum é perceber como o desenhista procura retratar, de alguma forma, a totalidade da população brasileira, ao menos segundo o seu ponto de vista. Portanto, leitor, divirta-se procurando identificar que parcelas da população estão representadas.
Agora, voltando a um tema que tem sido recorrente em minhas postagens, o do ritmo da mudança historicamente verificável, temos aqui outro cartum (aliás, ótimo):

Aqui está em questão o espanto de Papai Noel, ao chegar à Terra no Natal de 1924 (²). Diz ele: "Homessa! Não há mais mulheres nesta casa!?" (³)
Você já vê, leitor, que Papai Noel está pouco à vontade com os novos cortes de cabelo adotados pelas mulheres... E, admitamos, para os muito conservadores, devia ser chocante. Se você está familiarizado com autores brasileiros do século XIX, já deve ter notado a emoção com que é descrito um pezinho, ou um tornozelo que, indiscretamente, uma jovem deixa seu amado entrever. Cabelos longos, longos vestidos, eram essenciais às mulheres decentes da época. Graças a uma nova mídia, no entanto (refiro-me ao cinema), as brasileiras rapidamente começam a adotar outros padrões, de modo que o vestuário passa a exigir sempre menos tecido, enquanto os cabelos vão ficando cada vez mais curtos. É tudo tão rápido e, continuamente, tão novo, que Papai Noel, que vem das geleiras do Ártico, tem lá suas dificuldades em encontrar as amáveis donas dos presentes que vem trazer. Mas, pelo visto, o 'bom velhinho" teve de ir se habituando às mudanças velozes - elas são a marca registrada de nosso tempo.

(1) A CIGARRA, 15 de dezembro de 1921.
(2) A CIGARRA, 15 de dezembro de 1924.
(3) "Homessa" é uma interjeição de época, que hoje quase ninguém mais usa; significa mais ou menos o mesmo que "Ora essa!".


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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Quem traz os presentes de Natal? (Parte 2)

Na postagem anterior mencionei que, até as primeiras décadas do século XX, havia uma tradição muito difundida no Brasil, segundo a qual quem trazia os presentes de Natal para as crianças era o Menino Jesus. Entretanto, nos anos vinte (do século XX) a figura de São Nicolau (*) com presenteador natalino já era comum no País, e começava a ser substituída, até rapidamente, pela de Papá Noel ou Papai Noel (como preferir, na linguagem da época ou na de hoje). Havia, por suposto,  vozes em contrário, já que o velhinho que vinha do Polo Norte não se relacionava em nada às tradições natalinas tipicamente brasileiras, e é preciso lembrar que a década de vinte, tempo de ouro do movimento modernista brasileiro, foi um período de valorização da cultura nacional.
A legenda original diz: "Entrega de brinquedos às crianças
pobres, no palco do Royal. Os pequenos recebiam os seus
presentes das mãos de S. Nicolau."
(A Cigarra, 30 de dezembro de 1915)
Todavia, a despeito dos protestos, Papai Noel desbancou São Nicolau, que por sua vez havia ocupado, ainda que por pouco tempo, o lugar do Menino Jesus. É bem verdade que há quem afirme que São Nicolau e Papai Noel são a mesma figura, mas a mim me parece que o segundo simplesmente é retratado com algumas características do primeiro - as longas barbas brancas, por exemplo - mas cumpre um propósito bem diferente.
Ao contrário do Menino Jesus e de São Nicolau, Papai Noel não é uma figura intrinsecamente religiosa, embora associado à celebração de uma data de caráter religioso. Nem católico, nem protestante, presta-se, por isso, tão bem à apropriação capitalista dos festejos natalinos. É, por excelência, o ícone perfeito para a fúria em vender brinquedos e outros presentes, pois não está amarrado a nenhuma profissão de fé em particular - a não ser que assim consideremos a arte de vender o máximo possível, aproveitando outra construção do imaginário ocidental, o "espírito do Natal". Quem saberia dizer com exatidão o que vem a ser isso?
Porém, como não quero ficar em má situação com Papai Noel, enquanto espero meus presentes, vou colocando as velinhas no Adventskranz e até já instalei uma árvore de Natal aqui no blog...

(*) S. Nicolau de Mira, falecido a 6 de dezembro do ano 342, de quem se afirma que era muito dedicado ao cuidado das crianças, particularmente das crianças pobres.


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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Quem traz os presentes de Natal? (Parte 1)

"Mas um vulto de criança surgiu na esquina, atravessou, a correr, um raio de luz e ela, mais com o coração do que com os olhos, reconheceu nele o filho.
Ainda ele vinha longe, e já a porta se abria.
Entrou esbaforido e, antes de qualquer explicação, disse arquejante:
—Olha o que eu achei na praia. Que havia de ser? nem mais, nem menos que um frangalho de sapato sem sola, com um resto de salto recomido das pedras.
—Para que trazes isto?
—Pois não sabes que, na noite do Natal, quando todos dormem, anjos descem do céu com presentes para as crianças? A gente põe um sapato perto do fogão, porque os anjos entram nas casas pela chaminé, e, de manhã, quando acorda, vai encontrá-lo cheio de presentes?  Como eu não tinha sapato saí por aí à procura de um e achei este. Está velho, mas é grande! Se os anjos o enchessem de dinheiro... nem sei!"
Coelho Neto, O Sapato do Natal in Vesperal


Engana-se quem pensa que, pelo menos no Brasil, sempre foi Papai Noel o encarregado, por ocasião do Natal, de trazer presentes às crianças. Na verdade, as referências mais antigas apontam para um aspecto bem popular da religiosidade, uma crença quase roceira, ainda que vivenciada também nas regiões urbanas, a de que, na Noite de Natal, vinha o próprio Menino Jesus deixar brinquedos e doces para os pequenos que pusessem seus sapatos do lado de fora das casas. No imaginário da gente simples, era como se Jesus, a cada Natal, se tornasse menino outra vez... Isso, entenda-se bem, somente até as primeiras décadas do século XX.
A título de demonstração, veja-se este breve trecho que apareceu na Revista Escolar, edição de 1º de fevereiro de 1926:
"Noite linda, que já lá se vai tão longe!...
Como é sublime a inocência! Oh! mães, zelai pela candura de vossos filhinhos. Castigai severamente o perverso que procure desvendar aos pequenitos os vícios e pecados deste mundo, não os deixando mais acreditar nos contos de fadas, nos castelos encantados, no menino Jesus que lhes põe doces e brinquedos nos sapatos..."
Fica subentendido, no entanto, que quem escreve coloca essa crença no Menino Jesus que traz presentes em pé de igualdade com fadas e castelos encantados, o que, naturalmente, não adiciona muito mérito religioso ao caso, mas isso já outro assunto.
Resta ainda saber se tal ideia, digamos, aparentemente ingênua, tinha algum uso comercial. Adivinhe! Pois veremos já um exemplo que, para mim, é verdadeiramente emblemático. Na edição de 11 de dezembro de 1914 de A Cigarra, apareceu um anúncio de página inteira, do qual extraí um parágrafo decisivo:
"Os presentes, com que Jesus costuma contemplar as suas inúmeras protegidas, encontram-nos os papás, como se vê no clichê abaixo, num riquíssimo sortimento da Casa Lebre, que as criancinhas poderão obter, se souberem convencê-los, com toda a ternura das suas almas meigas, a visitá-la."
Ora, dificilmente alguém verá propaganda mais explícita: Jesus traz presentes para as crianças que protege (às outras, subentende-se que não), desde que os pais façam a compra do brinquedo na loja citada - devendo os pequenos, para isso, usar toda a sua capacidade de convencimento. Já vi muita coisa neste mundo, mas tamanha falta de sutileza surpreende até a mim! E, se você ficou curioso para saber o que havia na loja, vai abaixo o citado clichê, exibindo o sortimento de brinquedos então disponível.


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domingo, 5 de dezembro de 2010

1918, o ano em que a humanidade quase enganou São Nicolau

Era o ano de 1918 - que, como todo mundo sabe, marcou o fim da "Grande Guerra", como então se dizia, e que nós usualmente chamamos de Primeira Guerra Mundial. Era o ano de 1918, era dezembro, chegava o Natal. Crianças dos mais diferentes lugares deviam andar à espera de seus presentes. E eis que uma revista da época descobriu que São Nicolau havia sido enganado pela gente da Terra, acabando por preparar os presentes errados. Deixo falar a própria revista:
S. Nicolau, conforme apareceu
em A Cigarra de 24/12/1918
"S. Nicolau, que é um bom velho pachorrento, selecionou cuidadosamente a sua quinquilharia, reservando para a distribuição à pirralhada da Terra apenas aqueles que melhor lhe soubessem ao paladar militarizado. Proveu-se de minúsculos artefatos bélicos [...]: - canhões e soldadinhos de lata, aeroplanos, naves de guerra, submarinos, telégrafos sem fio, trincheiras, retiradinhas estratégicas, quarteizinhos-generais, obuseiros, gases asfixiantes, comunicadinhos oficiais, imperadores, presidentes de república e de conselhos, ases de aviação e toda a longa lista de condimentos com que se prepara uma guerra moderna, reduzidos à proporção de brinquedos infantis..." (*)
Você, leitor, percebe com facilidade todo o clima da guerra retratado nesse parágrafo. Mas acontece que a 11 de novembro de 1918 a Guerra formalmente acabou. Com isso, os interesses dos meninos também mudaram - ao menos é o que diz o articulista:
"E, afinal, agora, nas vésperas da sua chegada, com esse escolhido carregamento, eis que a humanidade se transforma inesperadamente, cuidando apenas de se preparar para uma paz duradoura!... S. Nicolau não encontrará já dois petizes a quem tentem os bonecos guerreiros que ele lhes traz. O gênero passou da moda. Ninguém mais os estima. Para obter algum sucesso nesta sua próxima viagem, o santo teria de alijar toda a sua carga arrierée e procurar um stock de outros brinquedos, pelos menos maximalista ou bolchevistamente feitos... Qual! desta vez, os homens enganaram a S. Nicolau!"
Não, o enganado foi o articulista. Não sei se a criançada de 1918 mudou suas preferências, mas posso assegurar, sem receio de erro, que a humanidade em geral continuou a mesma. Não houve nenhuma paz duradoura (os anos que se seguiram são, não por acaso, chamados de "período entre-guerras"), e a conflagração seguinte, a Segunda Guerra Mundial, foi desmesuradamente pior que a precedente. Os brinquedos bélicos, reais ou virtuais, continuam a ser muito atraentes e estão por toda parte.
Estamos em dezembro de 2010. Que terá S. Nicolau reservado para as crianças este ano? Pelo andar da carruagem, as preferências parecem ser por vazamentozinhos de informações confidenciais, ameaçazinhas de guerra, debatezinhos eleitorais, construçõezinhas de armas nucleares, corrupçõezinhas, discursozinhos, renunciazinhas, apedrejamentozinhos, conferenciazinhas de cúpula... Estão fora de moda as honestidadezinhas, decenciazinhas, responsabilidadezinhas, e vai por aí. Você tem mais alguma ideia? Deixe uma dica para S. Nicolau!

(*) A CIGARRA, 24 de dezembro de 1918.


Veja também:

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Jornal das Senhoras - Publicação de mulheres para mulheres em um Brasil quase analfabeto

Em primeiro de janeiro de 1852 circulou o primeiro número do Jornal das Senhoras, cujas linhas iniciais diziam:
"Redigir um jornal é para muitos literatos o apogeu da suprema felicidade, já sou Redator, esta frasezinha dita com seus botões faz crescer dois palmos a qualquer indivíduo.
No círculo ilustrado o Redator é sempre recebido com certo prestígio do homem que em letra de imprensa pode dizer muita coisa, propícia ou fatal a alguém.
Noutra roda de gente que considera o progresso do gênero humano como uma heresia, e os literatos como uma casta de vadios, porque entendem que se possa cavar com uma enxada, porém o trabalho intelectual é para essa gente uma alocução em grego; e portanto o Redator é... é um vadio mesmo, um ente inútil.
Ora pois, uma Senhora à testa da redação de um jornal! que bicho de sete cabeças será?" (¹)
Seria, sim, porque no Brasil do século XIX ler era coisa para poucos; escrever, já nem se fala. Isso para os homens, a quem, pensava-se, até por interesse econômico, havia uma certa obrigação de desasnar. (²) Que dizer das mulheres?
Os dados são de arrepiar os cabelos. Veja, leitor, por si mesmo, os índices de analfabetismo na segunda metade do século XIX e início do século XX. Começamos com a população masculina:

ANO DE 1872
População masculina alfabetizada..................................1.013.055
População masculina analfabeta.....................................4.110.814 (80,2%)

ANO DE 1890
População masculina alfabetizada..................................1.385.854
População masculina analfabeta.....................................5.852.078 (80,9%)

ANO DE 1900
População masculina alfabetizada..................................2.726.621
População masculina analfabeta....................................6.132.905 (68,9%)

ANO DE 1920
População masculina alfabetizada.................................4.430.088
População masculina analfabeta...................................10.973.750 (71,1%)

Agora os dados relativos à população feminina:

ANO DE 1872
População feminina alfabetizada...................................551.426
População feminina analfabeta.....................................4.255.183 (88,5%)

ANO DE 1890
População feminina alfabetizada..................................734.705
População feminina analfabeta....................................6.361.278 (89,6%)

ANO DE 1900
População feminina alfabetizada.................................1.701.060
População feminina analfabeta....................................6.836.848 (80,1%)

ANO DE 1920
População feminina alfabetizada.................................3.023.289
População feminina analfabeta...................................12.168.498 (80,1%) (³)

Uma rápida consideração desses números nos mostra que o analfabetismo era absurdamente alto no Brasil da virada do século, independente do sexo. Não podemos deixar de considerar que os recenseamentos da época eram bastante precários, nem podemos omitir o fato de que a imigração intensa contribuía para fazer flutuar os índices de alfabetização. Ainda assim, se comparados aos índices de países vizinhos (Argentina e Uruguai, por exemplo), nas mesmas ocasiões, os do Brasil são absolutamente escandalosos. E, a despeito disso, é incrível como o progresso na escolarização era lento. Por quê?
Há que se ter em conta uma vasta gama de fatores, dentre os quais podemos considerar pelo menos dois: a maioria da população era rural, e não havia quase escolas "na roça", além do fato de que preconceitos de gênero impediam que meninas frequentassem as escolas existentes, muitas delas, aliás, só aceitando mesmo a matrícula de meninos. A chamada "coeducação dos sexos" era coisa restrita a umas poucas escolas estrangeiras que se haviam estabelecido no país. Conheço uma senhora, já quase centenária, que até hoje chora por não ter podido estudar. Os meninos da roça iam de charrete para a cidade próxima, onde havia uma escola, mas ela, uma menina, foi proibida pelos pais de ir, porque se considerava uma indecência que andasse em companhia dos guris.
Diante disso, leitor (e retomando o assunto do início da postagem), era mesmo uma loucura que alguém, em 1852, tivesse a ousadia de lançar uma revista para o público feminino (havia tão poucas leitoras possíveis!), principalmente tendo uma mulher como redatora. O Jornal das Senhoras circulou entre 1852 e 1855. Nada mal, se considerarmos que muitas publicações destinadas ao público masculino tinham vida muito mais breve. E, para sua diversão, vai aqui um pequeno trecho publicado há exatos 155 anos, no dia 2 de dezembro de 1855, tendo como título "Importância do Número 4"
"Certo dia, o quarto da semana, segundo conta o Corsaire, discutia-se em casa do Sr. Quatromães de Quiney sobre a importância dos números: uns davam a palma ao nº 3, outros ao nº 7. Enfim o Sr. Quatro-barbas levantou a voz e pleiteou a causa do nº 4. E na verdade não temos nós os 4 Evangelistas, os 4 pontos cardeais, os 4 filhos de Aymon, os 4 membros, as 4 idades da vida, as 4 partes invariáveis do discurso, as 4 estações, os 4 naipes no baralho de cartas e os 4 mosqueteiros de Alexandre Dumas? Além disso, não se acha provado que César morreu 44 anos antes da vinda de Cristo, que também morreu no 4º ano da ducentésima olimpíada?
Ia esquecendo os 4 elementos, com que os físicos modernos não se têm querido contentar, depois as 4 partes do mundo, a que os nossos geógrafos anexaram sem nosso consentimento uma quinta parte; há ainda o vinagre dos 4 ladrões. Os Cristãos têm as 4 têmporas, sem falarmos das nossas carruagens, que têm 4 rodas, dos animais que as puxam que têm 4 pés e de nossas mulheres, que às vezes fazem o diabo a 4, com o que, leitoras, não vos agasteis, de sorte que nos façais descer os degraus de vossa casa 4 a 4."

Expediente do primeiro número do Jornal das Senhoras, 1º de janeiro de 1852

(1) Ao que tudo indica, o Jornal das Senhoras foi a primeira publicação brasileira que, voltada para mulheres, tinha uma mulher como redatora.
(2) Desasnar foi, durante muito tempo, particularmente no período colonial, expressão corrente que designava o aprendizado de leitura, escrita e um pouco de aritmética.
(3) EDUCAÇÃO - Órgão da Directoria Geral da Instrucção Pública e da Sociedade de Educação, de São Paulo Volume 1, p. 101.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Mulheres no mercado de trabalho e questionamentos sobre a inteligência feminina

Se observarmos a História do Brasil, verificaremos que, em se tratando de mulheres pobres ou escravas, nunca houve muito questionamento quanto à sua óbvia utilização como mão de obra, fosse o país uma colônia ou, já nação independente, império. O mesmo pode ser dito em relação à mulher imigrante. O diferencial está em relação às mulheres de uma certa posição social e econômica, do que poderíamos talvez chamar de "elite branca" (com milhões de aspas). Dessas, esperava-se, em geral, que fossem essencialmente "esposas e mães", repetindo o suposto modelo de incontáveis gerações, ou seja, contribuindo para preservar o status quo.
Mas, você que se interessa por História, sabe muito bem que tudo muda. E, nesse sentido, a mudança veio, ainda que a reboque, no Brasil da primeira metade do século XX. A Primeira Guerra Mundial foi, na maior parte da Europa e nos Estados Unidos, um marco decisivo em termos de inserção da mulher no mercado de trabalho. Compreende-se: por estarem os homens no front, havia vagas precisando, desesperadamente, de que alguém as ocupasse. Com o fim do conflito, pelo menos no caso dos Estados Unidos, a expansão econômica de parte dos anos vinte garantiu que o processo não fosse revertido. E, se a crise pós 1929 significou o fim de muitos postos de trabalho tanto para homens como para mulheres, a subsequente eclosão da Segunda Guerra Mundial consolidaria a atuação profissional das mulheres. Pelo menos, na parte mais industrializada do planeta.
Por aqui a coisa corria com uma certa desconfiança, num ritmo, digamos, mais lento. Mas acontecia. O que suscitava, na imprensa, vez por outra, alguma referência maldosa, pelo menos segundo o julgamento a partir de nossas concepções atuais. Quer ver? Vão aqui duas "anedotas", uma publicada em 1918 e outra um ano após, em 1919:

"- Escute, meu caro, ficarei contentíssima de me tornar sua esposa, mas com o que não me conformo é com deixar o meu emprego. Atualmente eu ganho trezentos mil réis por mês.
- Não, não, minha querida, não precisa deixar emprego... Assim viveremos melhor...
- Por quê?
- Eu deixo o meu. Eu ganho somente 150!" (¹)

Vale a observação de que, na época, muitos porta-vozes do conservadorismo argumentavam que, se as mulheres trabalhassem fora de casa, seria o fim do casamento, e chegavam até a, de certa forma, ameaçar as jovens com esse "fantasma"... Curiosamente, as mulheres pobres trabalhavam há muito tempo, e nem por isso haviam deixado de se casar. É fato consumado que o discurso conservador tende a ganhar força em épocas de estagnação econômica, perdendo parte de seu sentido em momentos de exuberância do mercado de trabalho. Mas vamos adiante. Segunda anedota:

"Um esfarrapado subiu a um primeiro andar, onde está instalado um consultório médico. Bateu à porta, e veio abrir-lha uma senhora.
- Ó minha senhora! era uma grande caridade que me fazia, se me pedisse, para mim ao sr. doutor, um par de calças velhas, que já não lhe fizessem faltas!
- O sr. doutor sou eu, respondeu, sorrindo, a médica." (²)

Ah, leitor, mas isso é leve. Aberração mesmo é isto aqui:


Olhe, leitor, e olhe bem.  Tem alguma ideia sobre o que seja essa engenhoca? Vou ajudá-lo. Diz a legenda:
"Aparelho destinado a medir a capacidade cerebral das mulheres." (³)
Sim, você leu corretamente. Não tenho mais nada a dizer.

(1) A CIGARRA, 24 de dezembro de 1918.
(2) A CIGARRA, 1º de dezembro de 1919.
(3) A CIGARRA, 1ª quinzena de novembro de 1932.

Observação importante: Comentários de caráter sexista estão, desde já, polidamente rejeitados.



Veja também:

domingo, 28 de novembro de 2010

Futebol no Brasil no início do Século XX - Jogadas um pouco desastradas

Chega-se hoje, leitor, à última postagem desta série sobre futebol no Brasil no início do século XX, na qual veremos umas poucas jogadas um tanto estranhas. Nada de ilusões - esses lances desastrados não eram apanágio apenas dos primeiros futebolistas. Basta ter a paciência de assistir a qualquer partida de equipes menos brilhantes e veremos coisa parecida. Mas vamos às  três fotos, que ocuparam toda uma página em A Cigarra, edição de 29 de agosto de 1914:


Vê-se, antes de mais nada, o título: "As Peripécias do Foot-Ball". Dizia a legenda: "Interessantes instantâneos tirados no Velódromo Paulistano, por ocasião dos "matches" disputados pelos diversos clubs filiados à "Associação Paulista dos Sports Athleticos", com a "Squadra Representativa Italiana" e nos quais se apreciam curiosas posições."
Já fizemos referência em postagem anterior à visita da Squadra Representativa Italiana ao Brasil. Resta, numa breve análise, constatar que, se o futebol crescera muito desde o primeiro campeonato paulista (em 1902), a ponto de ocupar páginas inteiras de revistas importantes, inegavelmente ainda despertava um certo estranhamento, ao menos em parte do público, pelas jogadas algo bizarras. Mas não estaria aí um pouquinho da graça do esporte?


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Futebol no Brasil no início do Século XX - Corrida de touros?

É verdade que o público estava, no início do século XX, acostumado a atividades esportivas tais como remo, canoagem, esgrima ou hipismo, nas quais havia pouco ou nenhum contato físico; é verdade, também, que o futebol, com seus praticantes disputando cada jogada intensamente e com  muito contato, podia causar alguma estranheza nas plateias menos habituadas à modalidade. Todavia, o que lemos nesta pequena notícia que transcrevo, a seguir, dá uma ideia do que podia andar acontecendo em algumas partidas. Veja, leitor, começa como quase todas as notinhas futebolísticas da época:
"O match São Bento versus Ypiranga atraiu ao Velódromo numerosa e seleta concorrência.
Tratava-se do encontro entre duas equipes poderosas e havia dúvida quanto ao resultado. O match ia dar trabalho aos torcedores. Durante todo o jogo os dois clubs se portaram valorosamente. Foi uma constante alternativa, em que a vitória pairou ora sobre um, ora sobre outro club. O resultado foi um empate entre as duas equipes. Durante o match, os jogadores que mais se distinguiram foram: do São Bento, Irineu, José Pedro e Montenegro; do Ypiranga, Friedenreich, Alencar e Xavier. Este último podia ter sido o maior auxílio para a sua equipe, se abandonasse o jogo pessoal, que é pouco produtivo."
Não, não acaba aqui. Leia mais:
"Quanto aos incidentes desagradáveis dois dois últimos matches estamos certos que não mais se repetirão.
É preciso não permitir que o jogo de foot-ball se transforme em corrida de touros." (¹)
Corrida de touros? Quem escreveu em 1914 não cuidou em dizer o que teria motivado essa observação, já que o assunto devia ser voz corrente - nós, em 2010, é que não sabemos o que realmente aconteceu. Teria sido algum desentendimento entre torcedores? Ou a "tourada" teria corrido solta dentro das "quatro linhas"?
Bem, não temos certeza, mas podemos ao menos conjecturar o que significaria, logo no início da notícia, dizer que o match atraiu "numerosa e seleta concorrência". Talvez fosse um modo de dizer que, nas partidas anteriores, houvera problemas porque o público não era adequado... Ou seria ironia?
Esses fatos davam sobejos motivos aos detratores do futebol. Lima Barreto, que já mencionei em uma postagem anterior, escreveu:
"Nos bondes, nos cafés, nos trens não se discutia senão futebol. Nas famílias, em suas conversas íntimas, só se tratava do jogo de pontapés. As moças eram conhecidas como sendo torcedoras de tal ou qual clube. Nas segundas-feiras, os jornais, no noticiário policial, traziam notícias de conflitos e rolos nos campos de tão estúpido jogo; mas, nas seções especiais, afiavam a pena, procuravam epítetos e entoavam toscas odes aos vencedores dos desafios." (²)
E mais:
"Sendo assim, o nosso Conselho Municipal derrama-se, esparrama-se, derrete-se em favores aos moços de mais de quarenta anos que se dão ao sacrifício de dar pontapés numa bola, para desenvolvimento dos respectivos mollets e gáudio das damas gentis que, assistindo-lhes as performances aprendem ao mesmo tempo o calão dos bairros escusos, com cujos termos os animam nas pugnas. É verdade que essas singulares vestais dos nossos modernos coliseus, às vezes, engalfinham-se no correr da luta. É que elas têm partido: uma é pelo leão do Atlas e a outra é pelo retiário." (³)
E com esse engalfinhar-se das damas (ou seriam vestais?), termino a postagem, apenas dizendo que Lima Barreto, que morreu em 1922, não viu quase nada em se tratando de mau comportamento de atletas e torcedores. Não viu o público de estádios completamente lotados a berrar contra as respeitáveis mamães dos árbitros, dos atletas e dos treinadores, não viu torcidas em fúria invadindo gramados, cercando ônibus de jogadores ou atirando pedras nos adeptos de outros times, não viu tiroteios às portas das praças de esportes, não viu jogadores demonstrando, para agredir oponentes, habilidades dignas de outras modalidades. Teria ficando assombrado com tudo isso. Talvez esboçasse um "não falei?".
Mas também não viu o congraçamento de países, em muitos casos adversários em tudo o mais, disputando civilizadamente competições esportivas, não viu o papel educativo que as atividades esportivas desempenhariam, nem mesmo a importância que o futebol acabaria tendo, no Brasil, em termos de construção de algum tipo de identidade nacional, por frágil que seja. Como em quase tudo, temos pelo menos dois lados nessa história, é apenas uma questão de escolha e ponto de vista.

(1) A CIGARRA, 15 de junho de 1914.
(2) LIMA BARRETO. Marginália
(3) LIMA BARRETO. Vida Urbana  - publicado originalmente em ABC, 26 de agosto de 1922.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Futebol no Brasil no início do Século XX - Os uniformes dos jogadores

Se, na postagem anterior, vimos os trajes usados pelos torcedores, nesta trataremos dos uniformes com que os atletas desfilavam suas habilidades a cada partida. Não, não imagine as atuais grifes esportivas (que, diga-se de passagem, demoraram a ter suas marcas estampadas nas camisas e demais peças do vestuário típico da modalidade); ainda assim, um "estilo" estava claramente a desenvolver-se. É só observar:


"O team do Fluminense Foot-Ball Club que disputou no Velódromo desta capital, um match interestadual com o Club Athletico Paulistano, vencendo-o por dois goals a um." (¹)


"Aspectos do Velódromo Paulistano, por ocasião de um dos matches disputados entre a "Squadra Representativa Italiana" e um dos clubes filiados à Associação Paulista dos Sports Athleticos. Vê-se, no centro, o "team" italiano." (²)


"Instantâneos tirados no Velódromo Paulistano por ocasião dos últimos matches disputados entre a "Squadra Representativa Italiana" e os clubs filiados à Associação Paulista dos Sports Athleticos. Vê-se no centro o valoroso scratch Paulistano e Scottish Wanders, que bateu o team italiano duas vezes, a última das quais por cinco a um." (²)


"O team do "Torino Foot-Ball Club", que se bateu, nesta capital, com os clubs filiados à Liga Paulista de Foot-Ball, saindo vencedor em todos os "matches" que disputou aqui." (²)

Eis aí, leitor, o fato de que, em 1914, quando vir da Europa ao Brasil significava, necessariamente, uma demorada viagem de navio, estavam algumas equipes brasileiras a jogar partidas internacionais, recebendo a visita de times importantes, com resultados não de todo maus, isso sem falar dos jogos entre equipes de diferentes Estados, lançando as bases de famosas rivalidades que ainda persistem. Ah, quanto aos uniformes, é bom saber que, pouco a pouco, os calções foram ficando mais curtos, até que, no início da década de 1990, com a introdução do uso sob o calção de uma bermuda térmica colante, chamada cool-flex (que poderia evitar lesões musculares), esse encurtamento foi detido, fazendo com que os calções voltassem a ter o comprimento próximo aos joelhos dos jogadores. Nesse caso, além de estética, a mudança foi também tecnológica, como muitas outras que ocorreram nas camisas, meiões, chuteiras e equipamentos de proteção, resultando em aperfeiçoamento das condições para a prática do esporte.

(1) A CIGARRA, 15 de junho de 1914.
(2) A CIGARRA, 29 de agosto de 1914.


domingo, 21 de novembro de 2010

Futebol no Brasil no início do Século XX - Os torcedores

"- Papai, você me dá cinco mil-réis, para eu ir hoje ao futebol?
O velho olhou o filho. Olhou a sua adolescência estúpida e forte, olhou seu mau feitio de cabeça; olhou bem aquele último fruto direto de sua carne e de seu sangue; e não se lembrou do pai. Respondeu:
- Dou, meu filho. Dentro em pouco, você terá."
Lima Barreto, Histórias e Sonhos

Esta postagem irá revelar a você, leitor, que traje seria apropriado para assistir a um "match" em 1914 - fica como orientação, para o caso de alguma viagem no tempo... Observe estas imagens, publicadas em um número de "A Cigarra":
A legenda diz: "Aspectos das arquibancadas do Velódromo, por ocasião dos últimos matches de foot-ball ali realizados pela Associação Paulista de Sports Athleticos. Fotografias tiradas especialmente para "A Cigarra"."
Senhoras, senhores, moças, rapazes, meninas e meninos, todos bem compostos, usando os imprescindíveis chapéus (até com plumas...), tendo os olhos colados na bola que não vemos na foto, mas bem podemos imaginar. Mas, como já disse em postagem anterior, não devemos nos enganar com essas imagens impecáveis divulgadas para a "boa sociedade", supondo que toda gente assistia às partidas com a mais irreprochável conduta. Aliás, havia quem não tivesse opinião das mais favoráveis sobre o novo esporte. Que se veja, sobre isso, o que escreveu Lima Barreto:
"Das coisas elegantes que as elegâncias cariocas podem fornecer ao observador imparcial, não há nenhuma tão interessante como uma partida de football.
É um espetáculo da maior delicadeza em que a alta e a baixa sociedade cariocas revelam a sua cultura e educação." (*)
É claro que o autor está sendo irônico; basta prosseguir na leitura, notando o que o escandalizado escritor afirma sobre a conduta das senhoras torcedoras:
"As senhoras que assistem, merecem então todo o nosso respeito.
Elas se entusiasmam de tal modo que esquecem todas as conveniências.
São as chamadas “torcedoras” e o que é mais apreciável nelas, é o vocabulário.
Rico no calão, veemente e colorido, o seu fraseado só pede meças ao dos humildes carroceiros do cais do porto.
Poderia dar alguns exemplos, mas tinha que os dar em sânscrito.
Em português ou mesmo em latim, eles desafiariam a honestidade: e é, por um, que me abstenho de toda e qualquer citação elucidativa." (*)
Ora, meu leitor, malgrado os desafetos, é preciso dizer que o futebol ia ganhando público, começava a tornar-se espetáculo, podia cobrar ingressos e, paulatinamente, abandonar os modos britânicos para fazer-se brasileiro.
A propósito, essa curiosa especiação, o surgimento de um jeito brasileiro de jogar, em parte pela distância física e de comunicação em relação ao centro originador do esporte, traria ainda resultados excelentes. Era inútil invectivar jogadores e torcedores. A mania de chutar bola caíra, irreversivelmente, no gosto do povo, ocupando espaço cada vez maior na imprensa e levando cada vez mais gente aos locais de prática.

(*) Lima Barreto. "Vida Urbana" (artigo publicado originalmente em CARETA, no dia 4 de outubro de 1919).