quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Na guerra do açúcar, a farinha de mandioca era o principal alimento dos soldados

Não foi pelas paisagens belas da região que holandeses tentaram se estabelecer no Nordeste brasileiro no Século XVII - embora os lindos cenários não faltem por lá. Pau-brasil, tabaco e, principalmente, açúcar, estavam entre as mercadorias desejadas pela Companhia das Índias Ocidentais. A briga pelo controle da região durou mais de duas décadas e, ao contrário do que se poderia prever, foi concluída com a saída das forças holandesas (¹).
Alimentar os que lutavam, de um lado e de outro, não era tarefa fácil. Em certos momentos, a escassez de suprimentos chegou a decidir o controle de fortalezas e acampamentos militares. Entre os que resistiam à ocupação holandesa, fossem eles portugueses do Reino ou do Brasil, ou ainda espanhóis e italianos enviados como reforço (²), o principal sustento vinha de um prosaico alimento da terra, beneficiado segundo técnica indígena: a farinha de mandioca. Ciente de que seus leitores europeus provavelmente não sabiam do que se tratava, Duarte de Albuquerque Coelho explicou: "A mandioca é uma raiz semelhante a um nabo grande, de que se faz a farinha que vem a ser o pão e principal sustento do Brasil" (³). Em outra passagem do diário da guerra que escreveu, observou: "A cada dia era mais incômoda a falta de farinha [de mandioca], por ser o principal e costumeiro sustento; e se não chegassem da Bahia (⁴) alguns barcos dela, mal se pudera passar, e era muito o que passavam mal os moradores por essa falta" (⁵).
Quanto aos holandeses, tiveram que se contentar, a princípio, com suprimentos enviados da Europa que, depois de meses no mar, certamente não deviam ser o que há de mais saboroso. Mas, à medida que obtiveram algum controle do território ao redor de Olinda e Recife, foram aderindo aos costumes locais quanto à alimentação. Sabe-se disso porque, após desistirem do ataque à Bahia em maio de 1638, deixaram para trás alguns suprimentos, assim descritos por Duarte de Albuquerque: "[...] mais de mil barris de farinha, de que faziam seu pão de munição, e muitos outros de legumes e arroz [...]" (⁶). É pouco provável que essa farinha fosse outra coisa que não a de mandioca, por pelo menos quatro razões: qualquer farinha de trigo ou centeio que eventualmente viesse da Europa teria pouca chance de chegar ao Brasil em bom estado, se considerarmos as condições de transporte na época; não havia plantações de trigo no Nordeste brasileiro que pudessem resultar em tanta farinha; no contexto da obra de Duarte de Albuquerque Coelho, "farinha" é sempre a de mandioca, e qualquer outra, como pouco usual na situação, certamente teria sido especificada por ele; finalmente, convém recordar que foi prática durante a guerra que forças da Companhia das Índias Ocidentais atacassem engenhos, não só para intimidar moradores, mas para capturar suprimentos. Que outra farinha achariam lá? 

Escravos descascando mandioca no Século XIX, muito tempo depois, portanto,
dos fatos referidos acima (⁷)

(1) Os soldados contratados pela Companhia das Índias Ocidentais não eram todos holandeses. Havia também gente de outras nacionalidades.
(2) Parte da luta contra a ocupação holandesa do Nordeste aconteceu durante a União Ibérica. 
(3) COELHO, Duarte de Albuquerque. Memorias Diarias de la Guerra del Brasil. Madrid: Diego Diaz de la Carrera, Impressor del Reyno, 1654. Este trecho e os demais da mesma obra citados nesta postagem foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Na Bahia estava a capital do Brasil na época.
(5) COELHO, Duarte de Albuquerque. Op. cit.
(6) Ibid.
(7) RIBEYROLLES, Charles. Brazil Pittoresco. Paris: Lemercier, 1861. A imagem original pertence à BNDigital e foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

A guarda pessoal de Rômulo

Parece que povos da Antiguidade tinham certa afeição pelo número 300, quando se tratava de designar um grupo de heróis de guerra, gente capaz de proezas inimagináveis nos campos de batalha. Quem não se lembra do bíblico Gideão (¹) que, com apenas trezentos soldados, venceu um exército numerosíssimo de saqueadores nômades que infestavam o território dos hebreus? O sucesso dos trezentos de Gideão acabou despertando a coragem entre os indecisos que, em consequência, se uniram a eles para expulsar os invasores.
A Grécia teve também os seus trezentos ao lutar contra os persas na Batalha das Termópilas. Eram espartanos, sob o comando do rei Leônidas (²), que procuraram deter a passagem do exército persa pelo desfiladeiro das Termópilas, e ali mesmo, depois de luta sangrenta, tombaram. De acordo com Heródoto, Leônidas dispensou aqueles que não fossem capazes de lutar e morrer com honra e, por isso, muitos gregos, percebendo que, se ficassem iriam morrer, resolveram voltar às respectivas cidades. Permaneceram, além dos famosos trezentos de Esparta, os tespienses (de livre vontade), e os tebanos (a quem Leônidas conservava quase como reféns). Não eram só trezentos, portanto! 
No relato de Heródoto (³) em Histórias é dito que "[...] estando as lanças de quase todos os espartanos já embotadas na fúria da luta, foram, com a espada, matando muitos persas e, nesse combate, Leônidas, lutando com bravura, tombou, além de muitos outros espartanos, tanto entre os renomados como entre os desconhecidos [...]" (⁴). Em memória dos que ali morreram, foi, naquele lugar, colocada, ainda em conformidade com Heródoto, a seguinte inscrição: "Quatro mil habitantes do Peloponeso lutaram sozinhos aqui, contra três milhões de persas" (⁵). É preciso reconhecer que havia, nessa homenagem, certo exagero. Em memória dos espartanos - os trezentos -, outra inscrição dizia, na suposição de que seria lida por alguém que, mais tarde, passasse pelo mesmo lugar: "Amigo, conte aos lacedemônios que foi em obediência à sua ordem que aqui caímos" (⁶). Nada poderia ser mais típico de Esparta.
Roma não ficou sem os seus trezentos. No dizer de Plutarco (⁷) em Vitae parallelae, Rômulo, o fundador lendário da cidade, instituiu para si uma guarda pessoal com trezentos homens: "Rômulo determinara a existência de uma guarda pessoal com trezentos homens [...], porque, sendo autoritário e muitas vezes injusto, temia o ódio de seus concidadãos, e [...] quis estar rodeado por trezentos homens, cuja responsabilidade fosse sua segurança pessoal" (⁸).
Que belo rei tinham os primeiros romanos! Mas, supondo que Rômulo tenha mesmo vivido na época que presumiam os autores da Antiguidade, será que poderia ter uma guarda, tal qual a descrita por Plutarco?
Não é muito provável. Se os primeiros romanos eram tão poucos, a ponto de terem chegado a raptar mulheres para que a população da cidade não se extinguisse, dificilmente haveria trezentos homens disponíveis para compor a guarda do rei, quando a maioria das pessoas precisava trabalhar arduamente na lavoura e no pastoreio, a fim de garantir a sobrevivência. 
Mas, fosse a guarda de Rômulo composta por trezentos, ou apenas por meia dúzia de valentões, Numa Pompílio (⁹), o segundo rei de Roma, tratou, como primeiro ato de seu governo, de extingui-la. Para Numa, não era bom que um rei desse a seus súditos a impressão de que desconfiava deles, ao se fazer cercar por uma guarda. São "os maus governantes", afirmou Plutarco, os que "vivem sob contínuas suspeitas, por se tornarem tiranos, pondo de lado a justiça" (¹º).

(1) Cf. Judicum VII.
(2) Havia dois reis em Esparta. Era uma diarquia, portanto. 
(3) 485 - 425 a.C.
(4) HERÓDOTO. Histórias, Livro VII. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(5) Ibid. 
(6) Ibid.
(7) c. 45 - 125 d.C.
(8) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(9) Outro dentre os chamados "reis lendários" de Roma, pela insuficiência das fontes sobre seu governo e a época em que se supõe que tenha vivido. 
(10). PLUTARCO. Op. cit. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Caçando moscas

Se um sujeito é um tanto desocupado ou desatento, diz-se que anda "caçando moscas". Vou provar a vocês, leitores, que nem todo caçador de moscas - literalmente - tem falta do que fazer, voluntariamente ou não.
Foi no Século XVIII, quando Félix de Azara (¹), mandado pela Coroa espanhola à América para trabalhos de demarcação de fronteiras, resolveu fazer uma viagem entre Buenos Aires e Asunción. Ia a cavalo, sempre que possível, em pelota ou canoa, quando necessário. À altura de Corrientes, tomou conhecimento da existência de um senhor que contava já noventa e três anos. Contar, aqui, não é acaso, e nem força de expressão, conforme vocês, leitores, já vão descobrir.
O que haveria de especial com o tal homem? Bem, em idade avançada, era de todo independente, preparando a própria comida, além de ir, por si mesmo, buscar água e lenha. Não é por isso, contudo, que está hoje sendo apresentado aqui. Sobre ele, disse Félix de Azara: "[...] Se entretém com três livrinhos religiosos, em engordar galinhas, que, quando quer, abate com arco e bodoque, e em matar moscas e contá-las. No ano passado matou [...] nove mil setecentas e quarenta e nove." (²)
É provável que tão estrita contabilidade consumisse parte do tempo de nosso ancião. Ainda por relato de Azara, sabe-se que seus netos moravam nas proximidades. 

(1) Félix de Azara empenhou-se ativamente no estudo da natureza dos lugares da América por onde passou, e deixou escritos que são importantes para o conhecimento das condições da época.
(2) AZARA, Félix de. Viajes Inéditos de D. Félix de Azara. Buenos Aires: Imprenta y Librería de Mayo, 1873, p. 47. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Em 6 de janeiro de 1631

Foi há trezentos e noventa e um anos: a rica área colonial de produção de açúcar que era Pernambuco fora ocupada, no ano anterior, por holandeses da Companhia das Índias Ocidentais. Havia ainda alguma resistência local, feita mais com coragem, às vezes sob coerção, do que com recursos bélicos. Mas era justamente por causa dessa frágil resistência que as forças holandesas, cuja meta era controlar a produção açucareira, fazendo dela um negócio altamente lucrativo, estavam virtualmente aprisionadas junto ao local de desembarque. Nada de obter açúcar e, pior ainda, não havia sequer facilidade em conseguir água potável, lenha e vegetais frescos para a alimentação, de modo que a vida dos recém-chegados se fazia muito difícil. 
Nesse contexto é que se deu o episódio de 6 de janeiro de 1631, assim descrito por Duarte de Albuquerque Coelho:
Caju maduro
"Em seis [de janeiro] ordenou o general (¹) ao capitão Pedro Teixeira Franco, que junto com Matias de Albuquerque Maranhão [,,,] fosse fazer uma emboscada junto à vila, onde havia árvores chamadas cajueiros, e era o próprio tempo de seu fruto (²)."
(³) 
A escolha do local para a emboscada foi decisiva para que holandeses e portugueses (⁴) tivessem ocasião para um desafio às armas. Foi assim que aconteceu, ainda conforme Duarte de Albuquerque Coelho:
"[...] Quis sua sorte [sic] que encontrassem quatrocentos inimigos (⁵), tão descuidados que muitos andavam sobre as próprias árvores comendo a fruta, que, sendo doce, fizemos, com pouco esforço nosso, que lhes parecesse muito amarga. Sem resistência degolamos cento e sessenta, e entre eles um capitão inglês. [...]." (⁶)
Apenas dois breves comentários, e com eles vamos concluir. Primeiro, é preciso dizer que nem todos os soldados a serviço da Companhia das Índias Ocidentais eram holandeses - havia muita gente contratada em diversos países e, por isso, a presença de um capitão inglês não é surpresa. E, para os que ficaram horrorizados com a menção a cento e sessenta homens degolados, deve-se informar que, nessa guerra tal prática foi absolutamente corriqueira. São tantas as referências a isso na obra de Duarte de Albuquerque que seria entediante fazer a conta. Coisa do Século XVII? Não: na Guerra de Canudos, durante a última década do Século XIX, degolar sertanejos aprisionados foi um procedimento usado para aterrorizar os seguidores de Antônio Conselheiro. O tempo da luta contra holandeses já ia longe e a guerra, neste caso, era de brasileiros contra brasileiros.

(1) Nessa ocasião o comando geral da resistência estava a cargo de Matias de Albuquerque. Matias de Albuquerque Maranhão, também citado no documento, é outra pessoa.
(2) No caju, a parte carnosa é um pseudofruto decorrente do desenvolvimento do pedúnculo floral. A castanha é o fruto verdadeiro. 
(3) COELHO, Duarte de Albuquerque. Memorias Diarias de la Guerra del Brasil. Madrid: Diego Diaz de la Carrera, Impressor del Reyno, 1654. Os trechos aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(4) Nesse tempo, tanto os que vinham do Reino como os nascidos no Brasil eram, ainda, considerados todos portugueses.
(5) Soldados a serviço da Companhia das Índias Ocidentais. 
(6) COELHO, Duarte de Albuquerque. Op. cit. 


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