quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Filósofos na Antiguidade

Por que, na Antiguidade, atenienses tinham tanto interesse em vários campos do conhecimento, enquanto espartanos não se importavam com nada disso? Estrabão (¹), em sua Geografia, avaliou a questão desta maneira: 
"Foi o hábito [dos estudos] que fez dos atenienses filósofos, enquanto espartanos não o foram, e nem mesmo os tebanos, que viviam tão perto de Atenas. Pela mesma razão, não é por natureza que babilônios e egípcios são filósofos, e sim por hábito e prática [de investigar, estudar]. O mesmo pode ser dito de cavalos, bois e outros seres vivos, cujas qualidades são resultado, não simplesmente do lugar em que vivem, mas do adestramento. [...]" (²)
Quando Estrabão falava em "filósofo", não dava à palavra necessariamente o mesmo significado que hoje recebe. Ele pensava em alguém que buscava o conhecimento em todas as suas formas, que se interessava pelas ciências, pelas artes, incluindo a música, que, enfim, era amigo das letras. O campo de conhecimento que interessava ao filósofo da Antiguidade era imenso. Nesse sentido, atenienses e babilônios, citados por Estrabão, eram filósofos, mas se ocupavam de coisas distintas. Enquanto os homens de Atenas se interessavam pela política, pela ética, pela matemática e outros campos afins, os da Babilônia, que também eram ótimos matemáticos, perscrutavam o céu, sendo, ao seu modo, astrônomos, mas também astrólogos, um campo que hoje ninguém, sensatamente, poderia chamar de científico.
É curiosa a comparação de que o hábito do estudo se desenvolveria nos humanos por adestramento, de modo análogo ao treino ministrado aos animais para que fossem úteis no trabalho. Está aí uma questão que poderia muito bem resultar em debate acalorado. E se a esse treino ou adestramento chamássemos educação?
Eu diria ainda (talvez contrariando um pouco o que disse Estrabão), que, para ser reconhecido como filósofo na Antiguidade, era preciso estar no lugar certo, no tempo certo. Não é possível calcular quanta ciência se perdeu, porque algum filósofo ou filósofa (no sentido antigo) estava sozinho (ou sozinha) com seus pensamentos, olhando as estrelas enquanto cuidava de um rebanho ou lutando para manter o fogo aceso ao preparar alimento, ou simplesmente porque estereótipos de gênero impediam que cerca de metade da humanidade expressasse raciocínios e ideias próprias.

(1) c. 63 a.C. - 24 d.C.
(2) ESTRABÃO, Geografia. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Argumento usado por escravizadores de indígenas

Dificilmente alguém descreverá melhor os motivos que fizeram tantos colonizadores percorrerem o sertão à procura de indígenas, a quem aprisionavam e escravizavam, do que aquilo que se lê neste breve parágrafo escrito por João Severiano da Fonseca (¹):
"Atravessaram, muitas vezes, estes sertões vastíssimos d'além Paraguai, Pedro Domingues e Brás Mendes, capitão do seu terço, segundo Roque Leme, natural de Sorocaba, sempre em busca de índios, com a santa ideia de os livrar do pecado, chamando-os ao grêmio da religião de Cristo - e a torpe tenção de fazê-los escravos." (²) 
Portanto, sem rodeios, para acalmar a consciência e para dar uma aparência decente ao que faziam, apresadores de indígenas - não só os citados por Severiano da Fonseca, mas uma multidão de outros - alegavam que, arrancando-os das florestas em que viviam e obrigando-os a trabalhar como escravos, estavam dando a eles a oportunidade da catequese. Ora, desde quando tal coisa é cristianismo? E que cristianismo tinham para ensinar esses homens que roubavam a liberdade dos indígenas? Argumento hipócrita, certamente, mas havia quem acreditasse nele, ou, pelo menos, fingisse acreditar, porque parecia conveniente. 

(1) Veterano da Guerra do Paraguai e integrante de uma expedição indicada para demarcar as fronteiras do Brasil com a Bolívia.
(2) FONSECA, João Severiano da. Viagem ao Redor do Brasil 1875 - 1878, Volume 1. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro e C., 1880, p. 41. 


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quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Hortas nas reduções jesuíticas na América do Sul

Os jesuítas que estabeleceram reduções indígenas na América do Sul tinham, em cada uma delas, uma horta devidamente provida, tanto de vegetais nativos como daqueles que haviam vindo da Europa com colonizadores. Em referência a uma dessas hortas, o cônego João Pedro Gay (¹) afirmou que era "murada de pedra e barro, com ruas alinhadas e plantadas de pinheiros, laranjeiras, limoeiros, marmeleiros, macieiras, pessegueiros, nogueiras da Europa, oliveiras, parreiras e outras muitas árvores e arbustos, tanto indígenas como exóticos [...]" (²). 
Assim descrita, a horta seria, com mais justiça, chamada pomar. É pena que o cônego João Pedro Gay não tenha citado por nome os arbustos cultivados, porque entre eles poderiam estar algumas plantas aromáticas muito apreciadas. Embora não mencionadas por ele, hortaliças em geral eram também cultivadas. Disso se podem tirar pelo menos duas conclusões:
  • A existência das hortas permitiu que espécies conhecidas pelos colonizadores, mas não nativas, fossem, em alguns casos, introduzidas, e, em outros, tivessem o cultivo desenvolvido e disseminado na América do Sul, um fato que talvez os jesuítas não tenham premeditado, mas para cuja ocorrência, de qualquer modo, contribuíram;
  • As hortas dos jesuítas incluíam espécies que hoje não são muito comuns na América do Sul, o que prova que seu cultivo era possível, e que razões variadas devem ter contribuído para que o plantio não se generalizasse em outras áreas de colonização.

(1) Foi cônego em São Borja - RS no Século XIX e estudioso das missões jesuíticas na América do Sul. 
(2) GAY, João Pedro. História da República Jesuítica do Paraguay. Rio de Janeiro: Typ. de Domingos Luiz dos Santos, 1863, pp. 237 e 238.


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quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Ferramentas usadas por povos indígenas

Machado indígena (¹)

A surpresa com as ferramentas rudimentares usadas por indígenas é recorrente entre autores que estiveram no Brasil no início da colonização. O padre Yves D'Évreux, por exemplo, franciscano que esteve no Maranhão entre 1613 e 1614, afirmou:
Ralador indígena de madeira
com pedrinhas de granito (³)
"[...] estes selvagens [...] não tendo ferramenta alguma para trabalhar, quer nos bosques quer nas roças, servem-se unicamente de machados de pedra para cortar árvores, fazer suas casas e canoas, plantar raízes, e por única recompensa de seus trabalhos só comem farinha e raízes passadas por um ralador feito de pedrinhas agudas, engastadas em uma tábua da largura de meio pé." (²)
Bem, se tinham machados de pedra e, para a cozinha, um ralador, já não estavam sem ferramentas. Também é fato que indígenas não se alimentavam somente de farinha de mandioca e raízes, porque iam à pesca e à caça, e eram hábeis no manejo de suas armas. Coletavam frutas, ainda, de modo que, mesmo com a escassez de instrumentos para trabalhar, conseguiam sobreviver no ambiente em que estavam inseridos. D'Évreux minimizou as ferramentas usadas pelos indígenas que conheceu no Maranhão; mas poderia, com mais justiça, ter-se maravilhado com aquilo que eram capazes de fazer com tão poucos instrumentos.

(1) Etnia Fuini-ô Tapuya. Pertence ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF).
(2) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, pp. 43 e 44.
(3) Etnia walwa.  Pertence ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF). 


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quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Como o líder da Revolta de Beckman foi preso

Era o ano de 1685, e estava em curso a investigação - a "devassa", como então se dizia - sobre a rebelião que ficou conhecida como Revolta de Beckman, no Maranhão. Ao estilo da época, o governador, que pretendia ver preso e justiçado rapidamente Manuel Beckman, o líder do movimento, fez passar bando pela cidade de São Luiz e adjacências, com promessa de recompensas a quem denunciasse onde se escondia, além de ameaças severas contra quem lhe desse abrigo.
Ora, Beckman era um sujeito respeitado, e a revolta por ele liderada tivera a participação de muita gente importante, que também detestava a presença dos jesuítas com sua eterna insistência em combater a escravização de indígenas, e que se sentia igualmente prejudicada pela política da Metrópole na concessão de monopólios. Mesmo com tantas ameaças, quem é que teria a coragem de denunciá-lo? 
De acordo com os Anais Históricos do Estado do Maranhão, de Bernardo Pereira de Berredo, Manuel Beckman foi preso e entregue às autoridades por ninguém menos que um seu afilhado, a quem muito estimava. O motivo seria uma das promessas feitas pelo governador, que atraiu a cobiça do rapaz:
"Havia na cidade de S. Luís um Lázaro de Melo, moço de pouca honra, ainda que contava a dos privilégios de cidadão. Tinha sido pupilo do Beckman, e era seu afilhado, mas desprezando tudo a vileza do ânimo, de que se compunha, buscou o tal padrinho na sua fazenda [...] onde sabia bem que ele se ocultava, só com o interesse de granjear pela sua prisão a Companhia das Ordenanças da Nobreza, também um dos prêmios oferecidos nos bandos do governador [...]." (¹)
Por imaginar que Lázaro de Mello jamais iria traí-lo, Manuel Beckman concordou em recebê-lo em seu esconderijo. Com a ajuda de comparsas, o afilhado amarrou e acorrentou o padrinho e, depois, entregou-o ao governador, que segundo Berredo, ficou enojado com a traição. Não obstante, no cumprimento dos deveres do cargo, fez a Lázaro de Melo a concessão do posto que pretendia:
"[...] com a mais prudente dissimulação satisfez a promessa do seu bando, mandando-lhe passar a patente de capitão da Companhia da Nobreza, que lhe ficou sendo tão afrontosa, que intentando marchar para a função da posse, não houve um só homem dos alistados nela que quisesse segui-lo [...]." (²)
Em conformidade com a legislação da época, Manuel Beckman foi enforcado. Quanto a Lázaro de Mello, ainda de acordo com Berredo, teve morte semelhante, por acidente, alguns anos mais tarde:
"[...] além de lhe granjear a sua aleivosia um universal ódio, se enforcou por desgraça, depois de alguns anos, em uma engenhoca de fazer aguardente, acabando a vida também de garrote [...]." (³)

(1) BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão Livro XIX. Lisboa: Oficina de Francisco Luiz Ameno, 1749, p. 622. 
(2) Ibid., p. 623.
(3) Ibid., p. 625. 


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