segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Costumes indígenas adotados por missionários jesuítas no Brasil

Se é verdade que a catequese  de indígenas (por jesuítas, principalmente, mas não só) representou o fim de algumas tradições da cultura nativa, também é verdade que, para uma adaptação ao Brasil, os religiosos precisaram adotar muitos dos hábitos e costumes dos "brasis", como então se dizia. Em sentido amplo, viver no Brasil, no Século XVI, e mesmo no XVII, pressupunha, em vários aspectos, viver como os índios. De outro modo, a sobrevivência seria quase inviável.

O costume de dormir em redes


Indígena do Brasil dormindo
em uma rede (¹)
Muito do que sabemos sobre o modo de vida dos missionários nesses primeiros tempos de colonização e catequese vem das cartas escritas por José de Anchieta. Em uma delas, redigida em Piratininga no ano de 1554, explicava que os padres da Companhia de Jesus que viviam na Capitania do Espírito Santo haviam adotado o costume indígena de dormir em redes, ficando as camas relegadas apenas aos doentes:
"Em lugar de cama, usa a máxima parte dos Irmãos de uns panos tecidos à maneira de rede, suspensos por duas cordas e traves; todavia, os que padecem de enfermidade de corpo por algum tempo, usam de camas como em Portugal." (²)
Como se sabe, a maioria dos indígenas do Brasil dormia em redes, cuja confecção variava conforme as tradições tribais. Era um modo conveniente de dormir, ao menos para os ameríndios nômades ou seminômades.

Hábitos alimentares aprendidos com indígenas


Em uma outra carta, Anchieta descreveu alguns detalhes da alimentação de que dispunham, revelando que, sob esse aspecto, já tinham aprendido bastante com seus catecúmenos:
"O principal alimento nesta terra é a farinha de pau, feita de umas certas raízes que se plantam (a quem chamam mandioca) [...]; isso substitui entre nós  a farinha de trigo. Constituem outra parte da alimentação as carnes selváticas, como sejam os macacos, as corças, certos outros animais semelhantes aos lagartos (³), os pardais, e outras feras; também os peixes dos rios, mas esses raramente. A parte mais importante, porém, do sustento consiste em legumes e favas, em abóboras e outras que a terra produz, em folhas de mostarda e outras ervas cozidas; usamos, em lugar de vinho, de milho cozido em água, a que se ajunta mel, de que há abundância; é assim que sempre bebemos as tisanas ou remédios; e se isto temos com fartura quase que não nos parecemos a nós mesmos pobres." (⁴)

Vestuário leve e ausência de calçados


Em um documento que se supõe escrito também por Anchieta, diz-se que, no Brasil, em razão do clima, era comum que as pessoas não usassem muita roupa - não estava falando dos índios, naturalmente, que isso já é outra história. O caso é que os jesuítas, seguindo a "moda da terra", também não tinham grandes preocupações com vestuário:
"Os nossos Padres e Irmãos vestem e calçam propriamente como em Portugal dos mesmos panos que lá, mas faltam-lhes muitas vezes, mas não se amofinam, porque a terra não pede muita roupa e quanto mais leve e velha tanto é melhor e folgam com ela; e o andarem descalços é uso da terra e não lhes dá tanta pena e trabalho como se fora na Europa [...]." (⁵)

Um exemplo de adaptação ao modo de vida dos ameríndios


É ainda da pena de Anchieta, ao traçar a biografia do Padre Gregório Serrão, que nos chega um exemplo de como vivia um missionário jesuíta que, ao empreender a catequese, estava disposto, se necessário, a abrir mão dos costumes de sua cultura de origem, adotando os hábitos e tradições vigentes entre os nativos da América:
"Residiu em uma aldeia muito tempo, que se ajuntou duas léguas de Piratininga com o Irmão Manuel de Chaves, aprendendo ali a língua e ensinando os meninos da escola, passando muito frio e fome. Pela muita pobreza que então havia de mantimento e vestido, nunca trouxe mais naquele tempo que a roupeta (⁶) velha sobre camisa e ceroulas, dormindo em uma rede, tendo o fogo por cobertor." (⁷) 
Chega a ser surpreendente que Anchieta, capaz como era, até por divertimento, de escrever cartas inteiras usando apenas trechos da Bíblia, tenha resistido aqui à tentação de citar o apóstolo que viveu e trabalhou no mundo greco-romano do Primeiro Século, quando afirmou: "omnibus omnia factus sum ut omnes facerem salvos..." (⁸)

(1) ________ Bilder - Atlas, Siebenter Band. Leipzig: F. A. Brockhaus. 
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 37.
(3) Levando em conta outras referências na obra de Anchieta, é possível que falasse dos jacarés.
(4) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Op. cit., pp. 43 e 44.
(5) Ibid., pp. 426 e 427.
(6) Hábito tradicional dos religiosos jesuítas.
(7) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Op. cit., p. 490.
(8) Epistula ad Corinthios I, IX, 22 ("Fui de tudo e de todos, para com modos diversos conseguir salvar alguns"). 


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