quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O calabouço da capital do Império do Brasil

Escravos presos ao tronco, de acordo com Debret (¹)

Segundo Joaquim Manuel de Macedo, no volume 3 do Ano Biográfico Brasileiro, o calabouço do Rio de Janeiro foi criado pelo vice-rei D. Luís de Vasconcelos (²), na intenção - acreditem, leitores - de limitar os exageros que eram cometidos pelos senhores quando castigavam seus escravos:
"Por ordem do rei e para coibir o excesso de castigos dados aos escravos nas casas de seus senhores, criou [o vice-rei] o calabouço público, feia e sinistra inovação; mas inspirada por louvável sentimento." (³)
Não imaginem os leitores que os serviços prestados pelo calabouço aos proprietários de escravos eram gratuitos. Nada disso! O esperto vice-rei, que tinha grandes projetos em termos de urbanização da capital de seu vice-reinado, logo encontrou aplicação para as quantias pagas pelos senhores. É também Macedo quem explica, desta vez em Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro, depois de mencionar a existência de um cofre no qual eram lançadas as rendas decorrentes do trabalho dos homens livres que, acusados de "vadiagem", eram recolhidos à Casa de Correção:
"Além desse dinheiro [dos detidos na Casa de Correção] recolhiam-se também no mesmo cofre as quantias que pelos açoites dos escravos pagavam os senhores no calabouço. E assim ia o vice-rei ajuntando boas somas, que aplicava às diversas obras públicas, e especialmente às do Passeio Público." (⁴)
Como sabem os leitores, a independência política do Brasil em nada alterou a situação dos escravos. Senhores continuavam a mandar cativos para o calabouço sempre que lhes dava na veneta, ainda que a legislação penal do Império fizesse vistas grossas para os castigos aplicados em casa ou em qualquer outro lugar, desde que "moderados", até porque ninguém provavelmente iria ter o trabalho de fiscalizar. O Almanaque Laemmert de 1852 assim explicava o funcionamento do calabouço:
"Acha-se também no estabelecimento [a Administração das Obras] a prisão do calabouço, para a qual são enviados os escravos que são presos por fugidos ou outros quaisquer motivos, ou por ordem de seus próprios senhores, que o podem fazer mediante um bilhete de remessa com as declarações necessárias, e acompanhado da importância provável da despesa que o escravo pode fazer durante o tempo que se quer que ele ali seja conservado, e findo este prazo devem mandar renovar o depósito da importância das referidas despesas, e não o fazendo é o escravo posto em liberdade.
Todo o expediente relativo a escravos, quer de solturas e informações para elas, quer para serem vistos ou examinados, tem lugar unicamente de manhã, das oito e meia às nove, e de tarde, de uma às três (⁵), dos dias úteis. Os escravos remetidos por seus senhores são recebidos nos dias úteis desde as sete horas da manhã até às cinco da tarde, e nos dias de guarda, desde as nove da manhã até duas da tarde." (⁶)
Reparem, leitores, a naturalidade com que se explica o funcionamento do calabouço, como se faria em relação a qualquer repartição pública. Mais detalhes são providos pela edição de 1871 do Almanaque:
"Pela reclusão do escravo no calabouço se paga, nos períodos designados no regulamento, 400 réis diários, ou 1200 réis se esteve na enfermaria; além disto, nada se cobra de carceragem ou outros emolumentos. Na entrada do preso muda ele de roupa, que é guardada com qualquer objeto de valor que se lhe encontre para lhe ser restituído à vista de seu senhor no ato de ser posto em liberdade." (⁷)
Posto em liberdade? Ora, no ato de voltar para a escravidão!...
Mas não era só. A mesma edição de 1871 do Almanaque explicitava a presença de um médico para determinar se e quanto podia um escravo ser castigado (ou, se preferirem, torturado):
"Os castigos são mandados infligir aos escravos por ordem da polícia, à requisição de seus senhores, e o médico do estabelecimento verifica se o paciente está nas condições sanitárias de os sofrer." (⁸)
É evidente que as exigências quanto a uma ordem policial e à autorização de um médico serviam, formalmente, para restringir exageros, além de fornecer um verniz de legalidade, mas não eram raras as testemunhas que, na época, diziam ter visto escravos que saíam do calabouço completamente ensanguentados. Por outro lado, não chega a ser uma surpresa que houvesse algum médico que se prestasse ao trabalho de examinar prisioneiros que iam ser torturados, já que em nosso moderníssimo Século XXI há ainda países que praticam barbaridades como castigos físicos, que, ou incluem ou resultam em mutilação vitalícia, sob o beneplácito de médicos que atestam que os infelizes podem assim ser punidos. Não se discute aqui se há, em cada caso, crime ou não. O que se questiona é a selvageria das penalidades. No mínimo, o Estado que procede desse modo é tão brutal quanto os criminosos sentenciados.
Tudo o que se disse em relação ao calabouço, era válido na capital do Império. Deixo aos leitores que imaginem o que sucedia nos pontos mais longínquos do País, onde dificilmente haveria qualquer autoridade para limitar o arbítrio dos senhores. 

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Vice-rei do Brasil entre 1778 e 1790.
(3) MACEDO, Joaquim Manuel de. Ano Biográfico Brasileiro vol. 3. Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia do Imperial Instituto Artístico, 1876, p. 120.
(4) Idem. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 102.
(5) Das treze às quinze horas.
(6) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano Bissexto de 1852. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1852, p. 105.
(7) HARING, Carlos Guilherme. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1871. Rio de Janeiro: E & H Laemmert, 1871, p. 137.
(8) Ibid.


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4 comentários:

  1. O passado faz parte da nossa herança, condicionando atitudes e comportamentos.
    Obrigado, Marta, por estas janelas que nos permitem espreitar e compreender melhor determinadas épocas.

    Uma boa semana :)

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    1. Obrigada por sua visita a este blog. Nem sempre conseguimos compreender tudo em relação ao passado. Melhor dizendo, quase nunca. Mas aquilo que chegamos a entender pode ser muito útil para evitar a repetição de erros cujas consequências poderiam ser desastrosas.
      Tenha uma ótima semana! Continue a escrever, seu post mais recente está fenomenal.

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  2. Obrigada pelo post! O único jeito de evitar a volta de atrocidades é, em primeiro lugar, tendo consciência de que elas existiram e eram e são, de fato, atrocidades.

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