quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Proibição de gelosias em São Paulo

Gelosias eram aquelas treliças de madeira, geralmente espessas e escuras, que recobriam as janelas de moradias no Brasil Colonial. É certo que nem todas as casas tinham essas feias molduras, mas elas foram muito comuns. Indo direto ao ponto, sua finalidade era, supostamente, impedir que quem passava pela rua pudesse bisbilhotar o que havia no interior da residência. Na prática, serviam para ocultar as mulheres da vista de quem não pertencesse ao círculo mais próximo de convivência. Eram, portanto, um instrumento para cercear a liberdade das mulheres, já tão limitada nesses tempos.
Como tudo muda, os anos se encarregaram de trazer a consciência de que não era boa coisa manter as gelosias. Além de feias, davam a impressão de atraso, que nenhum lugar com pretensões a modernidade teria orgulho em ostentar. Cumpria, pois, proibir sua existência, porque, como sempre acontece, toda mudança progressista tem garantida a oposição dos conservadores, em nome, neste caso (mas não só neste), da preservação da moralidade pública e dos bons costumes. 
Dada a explicação, resta dizer que, em São Paulo, no ano de 1820, uma postura da Câmara proibiu que as casas que daí em diante se construíssem na cidade ou fossem reedificadas, tivessem janelas com gelosias. Dizia assim: "Não se consentir que aqueles que edificarem de novo, ou reedificarem casas, ponham nelas gelosias nas janelas, por ficarem as casas mais escuras, e faltas de ar puro, desformosear as mesmas casas, e o prospecto [...]". Desobedientes seriam multados em seis mil réis e teriam a construção demolida.  
Verdade seja dita: as gelosias eram feias, mesmo, e esperava-se que, com essa postura, desaparecessem gradualmente. São Paulo queria tomar ares de cidade respeitável, deixando no passado tudo o que cheirava (culturalmente) a mofo e arrastava uma impressão de atraso. Havia, contudo, muito mais a ser feito, se a intenção era ir além das simples aparências.


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quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Imperialismo ateniense

Quem deveria ser a divindade protetora da cidade de Atenas? A resposta vem de uma lenda da Antiguidade. Poseidon e Palas Atena brigavam pelo posto - brigas não eram incomuns no Olimpo. Sucede que a contenda tomou proporções um tanto perigosas e, para restaurar a paz, Zeus e sua corte foram chamados à ação. Poseidon fundava sua pretensão no fato de ser Atenas uma cidade voltada ao comércio marítimo, estando, pois, em seus domínios. Para provar seu afeto àquela pólis, com um simples toque de seu famoso tridente fez brotar da terra um cavalo belíssimo, ideal para a guerra. Palas Atena, belicosa como era, ao menos desta vez decidiu apresentar aos deuses uma dádiva da paz que ofereceria à cidade, fazendo brotar no solo da Ática uma esplêndida oliveira, já carregada de azeitonas maduras. Nem será preciso dizer que Palas, aplaudida pelos deuses, foi considerada vencedora e, em consequência, deu seu nome à cidade. Em troca, foi nela venerada como divindade principal
Dentre as cidades da Grécia Antiga, Atenas é considerada a mais culta e desenvolvida. Sabe-se, contudo, que nela a escravidão era uma dura realidade (só assim é que os cidadãos podiam dispor de tempo livre para o envolvimento na política e para o estudo das ciências e das artes); sabe-se, também, que as mulheres eram, em geral, tratadas como seres inferiores; além disso, como cidade-Estado, mesmo no auge da democracia, admitia como cidadãos apenas uma quantidade relativamente pequena de indivíduos. Atenas foi tremendamente imperialista e, para assegurar sua vantajosa posição como exportadora de azeite, esteve perto de produzir uma verdadeira catástrofe ambiental, ao substituir a diversificada vegetação da Ática quase exclusivamente por oliveiras.
É fato que Atenas saiu das guerras contra os persas (¹) como uma potência naval forjada no calor da luta pela sobrevivência das cidades gregas. Para derrotar o "bárbaro (²)", sua atuação foi muito mais decisiva que a de Esparta. Resolvida a tirar a maior vantagem possível de um momento que lhe era favorável, Atenas aceitou liderar um conjunto de cidades que, naquelas circunstâncias, viam nela uma protetora. Foi assim que se tornou senhora de um império, acumulando riquezas provenientes do comércio marítimo e dos tributos que as cidades aliadas pagavam.
Contudo, essa situação incomodava Esparta, que também tinha aliados. Terminada a guerra contra os persas, espartanos tentaram convencer atenienses a não reconstruírem as muralhas de sua cidade, alegando que, se os persas voltassem, podiam conquistar a Ática e fazer ali sua base de operações. Será que os emissários de Esparta realmente imaginavam que a população de Atenas aceitaria uma tolice como essa? Não só os muros de Atenas foram reerguidos, também o porto de Pireu, de que Atenas se servia, foi devidamente fortificado. Atenas, desse modo, cresceu em importância política e econômica, causando medo à Liga do Peloponeso.
A partir dessas considerações, não é difícil entender que Esparta tratou de incentivar e apoiar revoltas entre os aliados de Atenas, que, passado o perigo persa, estavam já cansados de contribuir para sua orgulhosa "protetora". O curioso é que, ao contrário do que acontece em nosso tempo, em que o imperialismo às vezes se faz passar por humanitário, filantrópico, até caritativo, no Século V Atenas não fazia nenhum esforço para ocultar seu caráter dominador. Achava, até, que tinha todo o direito a isso. Assumia o fato abertamente, segundo palavras de delegados atenienses que compareceram a uma assembleia em Esparta. Sua cidade-Estado, amante do conhecimento, apaixonada por novidades e sempre receptiva a mudanças se isto lhe trouxesse alguma vantagem, não estava disposta a ceder diante das reclamações de cidades aliadas (³). Não seria o caso de Esparta estar por trás de tudo isso, tentando atraí-las para seu lado? 
De uma parte, a militarista e conservadora Esparta, com seus aliados do Peloponeso; do outro, a imperialista, rica e culta Atenas, também com seus aliados. Será que essa política de alianças lembra alguma coisa mais recente, leitores? A guerra era inevitável, por ser, inclusive, desejada (⁴). No decurso dos acontecimentos, Atenas foi atingida por uma peste que, mais que as armas inimigas, contribuiu para esgotá-la. Como se sabe, Esparta venceu. A Grécia, porém, jamais foi a mesma. Os longos anos de guerra haviam-na enfraquecido sobremaneira. Em um discurso proferido por Cláudio, imperador romano, cujas palavras foram relatadas por Tácito, há uma ideia que dá o que pensar. "Qual foi a causa da decadência dos lacedemônios e dos atenienses", perguntou ele, "que foram poderosos nas armas, a não ser que tratavam como estrangeiros a todos os povos que dominavam? (⁵)". Começamos com uma pergunta, leitores, e terminamos com outra. Não é raro, em se tratando de História, que as questões levantadas sejam mais numerosas que as respostas.

(1) 498 - 448 a.C.
(2) Era assim que os gregos se referiam ao monarca persa.
(3) Cf. TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, § 73 a § 78.
(4) A Guerra do Peloponeso ocorreu de 431 a 404 a.C.
(5) TÁCITO, Annales, Livro XI. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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quinta-feira, 15 de setembro de 2022

A descoberta de jazidas auríferas levou à interiorização do povoamento colonial

Na primeira metade do Século XVII, frei Vicente do Salvador afirmou que colonizadores do Brasil estavam limitados a "andar arranhando ao longo do mar como caranguejos" (¹). Estava certo e estava errado. Certo, se considerarmos que, em virtude de condições de clima e solo, além da proximidade de portos para embarque de mercadorias, a agricultura canavieira e a produção de açúcar se desenvolveram prioritariamente perto do litoral. Mas errado, quando consideramos, por exemplo, a criação de gado no interior nordestino e o povoamento do Planalto Paulista, com a formação de pequenos núcleos urbanos, de onde, para bem e para mal, saíam levas de exploradores do território, mais tarde denominados bandeirantes
Contudo, um novo e poderoso fator de interiorização do povoamento ocorreu a partir de fins do Século XVII. Refiro-me à exploração de jazidas auríferas. Vejam leitores, o que disse o barão de Eschwege (²) sobre essa questão:
"A abundância de ouro, que foi sendo descoberto, provocou um verdadeiro deslocamento da população litorânea para o interior.
Já não eram só os paulistas; também os habitantes do Rio de Janeiro - que, com inenarráveis sacrifícios, haviam aberto uma estrada através de matas cerradas - e os da Bahia, que haviam encontrado passagem ao longo dos sertões incultos, demandavam as regiões do ouro.
A população cresceu rapidamente. [...]"
(³)

Vila Rica, um dos grandes centros mineradores no Brasil Colonial (⁴)

Não pode restar dúvida de que, temporariamente, houve um decréscimo na população de algumas áreas, devido aos contingentes que se deslocavam para as minas. Mas, por outro lado, deve-se considerar que, de fora do Brasil, muita gente afluiu à busca do ouro, e não eram apenas portugueses, apesar das restrições impostas à entrada de estrangeiros. Escravizados jovens e saudáveis, de preferência com conhecimentos de mineração, eram também levados aos núcleos urbanos que se formavam com incrível rapidez, sempre que uma região aurífera promissora era descoberta. Desses elementos nasceu uma nova sociedade, urbana e interiorizada, que, por essas características, desenvolveu cultura própria, diferente de tudo o que, até então, existira no Brasil.

(1) A data provável de conclusão da História do Brasil escrita por frei Vicente do Salvador é 1627.
(2) Esteve no Brasil durante o governo joanino, que o convidara a percorrer as minas, para procurar um modo de torná-las novamente produtivas.
(3) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 44.
(4) Cf. DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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quinta-feira, 8 de setembro de 2022

A distribuição de terras promovida por Numa Pompílio, segundo rei de Roma

O território ocupado por Roma, em suas origens, era pequeno. Apesar disso, Plutarco (¹) atribuiu a Numa Pompílio, segundo rei de Roma (²), uma reforma agrária, porque esse monarca, que era um sujeito muito religioso, teria manifestado preocupação com os pobres da cidade, que viviam desocupados, já que não dispunham de terras em que trabalhar. As áreas públicas que não estavam sendo cultivadas foram repartidas entre eles. 
A principal preocupação de Numa seria garantir que, entretidos com as lides do campo, os romanos deixassem de lado o costume de querelar a qualquer pretexto, tanto entre si como com os vizinhos. De acordo com Plutarco, os resultados foram excelentes: redução da pobreza, da ociosidade e da violência. Mas, acima de tudo, uma mudança nos interesses de todos os romanos: "Desde então, os romanos passaram a praticar a agricultura [...], de modo que, por longo tempo, viveram em paz [...], aquilo que, para Numa, era o que havia de mais importante. [...]" (³). É de justiça admitir que, entre os romanos famosos, até os primeiros tempos da República, a maioria era composta por agricultores.
Numa Pompílio, porém, não se fiava, ao que parece, apenas nas supostas virtudes de sua gente. Era preciso haver quem fiscalizasse o trabalho, porque não se poderia esperar, sem algum controle, que houvesse mudança repentina naqueles que estavam acostumados a pouco ou nada fazer: "[...] para observar o que faziam os novos agricultores, Numa indicou pessoas que percorressem os lugares, para verificar o que e como se fazia, e, em certas ocasiões, ia ele mesmo inspecionar, dando atenção ao trabalho e como cada um exercia seu ofício" (⁴). 
Talvez Plutarco, ao apresentar Numa Pompílio como introdutor da distribuição de terras em Roma, estivesse apenas em busca de um pretexto para compará-lo a Licurgo, o legislador espartano, a quem atribuiu uma reforma agrária na Lacônia. Seja como for, mais tarde, em época já suficientemente documentada da história romana, a posse e distribuição de terras iria se tornar uma questão de muita importância, manipulada com habilidade por aqueles cujas ambições estavam voltadas não só para o controle da cidade, mas para o governo do mundo, tal qual o entendiam.

(1) c. 45 - 125 d.C.
(2) Numa Pompílio é um dos "reis lendários", nome dado devido à escassa informação confiável que sobre eles se tem.
(3) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(4) Ibid.


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terça-feira, 6 de setembro de 2022

Independência do Brasil

"Contudo, sempre lhes direi, aqui, que ninguém nos ouve: o conselho de ministros no paço, as palavras de José Bonifácio ao Bregaro; a volta de D. Pedro depois de declarar a Independência; a gente que correu a São Cristóvão; a imperatriz, que, não tendo mais fitas verdes para fazer laços, fê-los com as do próprio travesseiro; D. Pedro, um rapaz de 24 anos, impetuoso e ardente; José Bonifácio, grave e forte, e, quando preciso, alegre; a gente que encheu à noite o teatro; as senhoras de laço verde ao peito; toda essa nossa aurora dá-me uma certa sensação profunda e saudosa, que não encontro... onde? no nariz do leitor, por exemplo."
Machado de Assis, Balas de Estalo, 10 de janeiro de 1884

É 1822. O príncipe regente D. Pedro sai do Rio de Janeiro em viagem a São Paulo, porque os ânimos politicamente exaltados requerem atenção - é verdade, São Paulo nunca fora, e não é, nesse tempo, uma Província muito pacífica. Percorre o Vale do Paraíba, mas são tantas as lendas que cercam esse trajeto que, por si mesmas, já evocam suspeitas. Chega a São Paulo, de onde, em seguida, vai a Santos. Cumpridos ali alguns compromissos, retorna a São Paulo e, já perto da cidade, é alcançado, no final da tarde do dia 7 de setembro, por um correio enviado às pressas do Rio de Janeiro. Lê afoitamente as cartas e, num arroubo de fúria, declara, teatralmente, bem a seu gosto e ao de sua época, que o Brasil, dali por diante, está separado de Portugal. É este evento, ocorrido há duzentos anos, que se comemora, embora nem mesmo saibamos se tudo aconteceu exatamente assim.
José Bonifácio de Andrada e Silva (¹)
Não, não sabemos, mas a viagem a São Paulo é real e a entrega da correspondência ao príncipe (cartas das Cortes de Lisboa, da princesa Leopoldina e de José Bonifácio de Andrada e Silva) igualmente aconteceu. Mas era preciso um evento icônico para assinalar a Independência. Se o chamado "grito do Ipiranga" não ocorresse, não há dúvida de que outro incidente seria escolhido, porque a humanidade parece carecer desesperadamente de acontecimentos gloriosos, aos quais se apega, sejam autênticos ou não, e os brasileiros, nesse sentido, não são nenhuma exceção. A Independência, de verdade, foi um longo e difícil processo. E, se querem saber minha opinião, há, nela, muito ainda por fazer.
D. Pedro, depois, seguiu com a comitiva a São Paulo, onde já era esperado e foi festivamente recebido, não por causa da declaração de Independência, da qual poucos talvez soubessem, mas porque já havia uma recepção dignamente preparada, dentro dos recursos de que a cidade dispunha. Relatos da época sugerem que a noite foi agradável, mas sem nenhuma animosidade contra Portugal.
É razoável supor que Pedro Américo, ao pintar o mais famoso quadro do episódio às margens do Ipiranga, não tivesse a intenção de um retrato fiel, e nem isso era possível, tantos anos após o incidente (²). Estava apresentando uma concepção artística do acontecimento, e não há nisso nenhuma fraude deliberada: uma visita a qualquer museu sério, mundo afora, convencerá quem duvida de que as paredes estão repletas de supostas reconstituições históricas sem qualquer compromisso com a realidade. De "históricas" muitas obras só têm mesmo os valores da época em que foram produzidas, não do tempo a que pretendem remeter. Servem, muitas vezes, mais como um estímulo a certa espécie de patriotismo, orgulho nacionalista e culto a alguma personalidade, do que, propriamente, como versões historiográficas fidedignas, compostas em pinceladas a óleo (ou outra tinta qualquer) sobre tela.

O beija-mão em São Paulo no dia 8 de setembro de 1822


D. Pedro, príncipe regente e primeiro
imperador do Brasil (⁵) 
Em 8 de setembro, ainda em São Paulo, mas já refeito da árdua cavalgada do dia anterior - para vir de Santos foi preciso transpor a Serra do Mar - Dom Pedro teve de aturar uma cerimônia entediante e pouco higiênica, embora muito valorizada na época: o beija-mão. Registrou-se na Ata da Câmara de São Paulo:
"Vereança e ajuntamento que fez a Câmara para ir ao beija-mão de S. A. R. (³) 
Aos oito dias de setembro de 1822 nesta cidade de São Paulo e casas da Câmara, paços do Concelho (⁴) dela, [...] foram vindos o juiz de fora pela lei presidente o capitão Bento José Leite Penteado e atuais vereadores e atual procurador [...] para efeito de sessão, e depois de estarem juntos deliberaram que se devia ir ao beija-mão, e findo o qual recolheram-se a estas mesmas casas desta Câmara (⁶)."
Nenhuma palavra sequer sobre separação de Portugal! O termo "independência" somente apareceria em ata vinte dias mais tarde, ou seja, em 28 de setembro de 1822, em cujo registro se lê: "[...] por todos foi unanimemente acordado que concordavam com a [...] Câmara da Corte e Cidade do Rio de Janeiro em que S. A. R. entrasse desde já no exercício ilimitado de todas as atribuições do Poder Executivo pela constituição que lhe devem competir na qualidade de chefe do mesmo Poder, visto ser este o único meio seguro e adequado para poder salvar este Reino [sic] das indiscretas tentativas dos seus inimigos [sic!], e conservar ilesa a sua dignidade e independência já proclamada pelo mesmo Augusto Senhor." 
Ainda no ano de 1822, D. Pedro seria aclamado imperador constitucional em 12 de outubro, dia de seu aniversário.

(1) Cf. SOUSA, Alberto. Os Andradas Vol. 2. São Paulo: Tipographia Piratininga, 1922, p. 3. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) "Independência ou Morte" é obra de 1888. Do final do Império, portanto.
(3) Sua Alteza Real.
(4) Concelho: unidade municipal portuguesa.
(5) Cf. ARMITAGE, John. História do Brasil. Rio de Janeiro: J. Villeneuve e Comp., 1837. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(6) Os trechos da Ata da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Dia do Fico

Com a volta de Dom João VI a Portugal, o jovem Dom Pedro de Alcântara ficara no Rio de Janeiro na condição de príncipe regente. Contudo, novas ordens expedidas pelas Cortes de Lisboa determinaram, em 1821, o seu retorno imediato, enquanto uma junta governativa deveria ser encarregada dos negócios do Brasil. Formalmente, dizia-se que era necessário ao príncipe viajar pela Europa e concluir sua educação, como herdeiro presuntivo do trono português. De fato, nesse sentido, as Cortes não estavam em erro: habituado à vida livre (até demais) no Rio de Janeiro, Dom Pedro estava longe de ter recebido a instrução necessária a um monarca, ainda que, de fato, fosse pessoa de talento notável em algumas áreas, tendo conquistado, temporariamente, a simpatia da maior parte dos brasileiros. 
Contudo, interpretada como uma tentativa de fazer as coisas voltarem a ser como antes de 1808, a notícia de que Dom Pedro deveria voltar a Portugal não teve recepção favorável no Brasil. Lideranças locais trataram logo de influenciar o príncipe no sentido de dizer um sonoro "não" às Cortes. A Câmara de São Paulo, por exemplo, enviou uma carta a Dom Pedro, conforme se vê pela Ata de 31 de dezembro de 1821: "Em ato da mesma [vereança] escreveram uma carta a S. A. R. (¹) o Príncipe Regente à Corte do Rio de Janeiro, representando ao mesmo Augusto Senhor, e suplicando-lhe queira demorar seu embarque para Lisboa até nova resolução do Congresso Nacional; cuja representação se acha assinada pelo doutor ouvidor interino desta comarca e pela corporação da Câmara e continua a ser assinada por todas as mais autoridades, corporações e cidadãos desta cidade, e depois será entregue ao Deputado nomeado por esta Câmara, o Marechal José Arouche de Toledo Rendon" (²).
Em 9 de janeiro do ano seguinte, Dom Pedro fez a famosa declaração pública, segundo a qual afirmava sua intenção de permanecer no Brasil. Foi um gesto algo teatral, bem ao gosto da época. Por essa razão, a data ficou conhecida como "Dia do Fico". A sorte estava lançada, não pela travessia do Rubicão, como fizera César, mas para, em poucos meses, ser assinalada por outro gesto ainda mais cenográfico, às margens de um riacho...
A notícia do "fico" logo se espalhou. A Câmara de São Paulo, que dirigira súplica pela permanência do príncipe, não tardou em ter parte na comemoração, com direito a tríduo na Sé e luminárias pela cidade durante as noites correspondentes: "Aos vinte e três de fevereiro de 1822, nesta cidade de São Paulo [os camaristas foram] com o real estandarte [à] Sé Catedral onde assistiram ao Tríduo que se celebrou com missa cantada e sermão em ação de graças ao Todo-Poderoso, pela resolução que tomou S. A. R. o Sr. Príncipe Regente do Brasil D. Pedro de Alcântara, cuja solenidade fez o Governo Provisório de acordo com o Exmo. Sr. Bispo, de que esta Câmara teve participação oficial do mesmo Governo em 19 do corrente para mandar publicar luminárias nas noites do dito Tríduo  e assistir a ele, como de fato o fez nos dias 21, 22 e 23, hoje". Não havendo separação entre Igreja e Estado, era assim, com cerimônias religiosas, que frequentemente acontecimentos reputados felizes na política eram celebrados. 

(1) Sua Alteza Real.
(2) Os trechos citados de Atas da Câmara de São Paulo foram transcritos na ortografia atual, com adição da pontuação indispensável.


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