quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Viviam todos em pecado mortal

Ao vir ao Brasil para estabelecer a primeira povoação com status de cidade, Tomé de Sousa, o governador-geral, trouxe consigo alguns jesuítas, dos quais se esperava tanto a catequese de indígenas quanto a assistência religiosa aos portugueses que, por uma ou outra razão, haviam saído do Reino e agora viviam na América. Manuel da Nóbrega liderava o grupo de jesuítas - os outros eram Leonardo Nunes, João de Aspilcueta Navarro, Antônio Pires, Vicente Rodrigues e Diogo Jacome.
Nóbrega, ao que parece, não ficou nada satisfeito com o que viu na terra, não quanto aos indígenas, nem quanto às boas disposições do governador para com sua Ordem, mas no que tocava à conduta dos colonos em geral. Temos a certeza de suas opiniões porque tudo explicou em uma carta, escrita pouco depois de sua chegada em 1549, e cujo destinatário era o Provincial da Companhia de Jesus em Portugal, padre Simão Rodrigues:
"Espero em Nosso Senhor fazer-se fruto, posto que a gente da terra vive toda em pecado mortal. E não há nenhum que deixe de ter muitas negras (¹), das quais estão cheios de filhos e é grande mal. Nenhum deles se vem confessar, ainda queira Nosso Senhor que o façam depois." (²)
O que talvez Nóbrega ainda não soubesse é que seu confronto com portugueses que viviam no Brasil estava apenas começando. Em São Vicente a coisa ganhou um estereótipo na figura de João Ramalho com seus muitos filhos mamelucos, que, não aceitando reprimendas dos padres, eram acusados de, sem nenhuma compostura, proferirem ameaças contra os religiosos. Estes, por sua vez, julgando que não deixavam por menos, teriam advertido que chamariam a Inquisição. Resposta? Que viesse o Santo Ofício, pois seria corrido do planalto à custa de umas boas flechadas...
Julgando que os casamentos com mulheres indígenas decorriam da falta de europeias, Nóbrega insistia com o governo português quanto ao envio de órfãs que viessem para casar no Brasil. Deixando de lado, por agora, a questão dessas pobres meninas que se viam obrigadas a contrair casamento em uma terra distante e com pessoas que desconheciam completamente, sabe-se que, de fato, o pedido algumas vezes foi atendido, provando-se, assim, que não era solução para nada. Não poucos homens em terras coloniais eram casados segundo as leis da Igreja e, a despeito disso, tinham vasta prole com suas escravas, fossem elas indígenas ou africanas.
No entanto, talvez seja possível dizer alguma coisa em defesa dos colonos. Vejamos:
  • Alguns deles eram condenados ao degredo que vinham cumprir pena no Brasil - quem é que haveria de esperar que as terras da América fossem um reformatório conveniente para quem já não tinha boa conduta no Reino?
  • Os colonos que estavam de livre vontade no Brasil haviam saído de um país pequenino, no qual as restrições, legal e socialmente impostas, podiam sofrer um controle relativamente fácil, enquanto que o enorme território colonial era visto como um convite à mais ampla liberdade, para bem e/ou para mal;
  • Mesmo que um colono fosse homem muito religioso, a assistência que poderia obter era bastante limitada, já que, pela época da chegada de Nóbrega, eram pouquíssimos os padres que viviam no Brasil, de modo que ir às missas e comparecer à confissão eram práticas que simplesmente não estavam disponíveis;
  • Não muito tempo depois de pisar em terras do Brasil, Nóbrega acabaria descobrindo que mesmo os poucos padres que viviam entre os colonos andavam longe uma vida exemplar, segundo as normas da Igreja - como esperar perfeição da gente do povo que, como regra, tinha pouca instrução religiosa e que, tendo vindo à América com a expectativa enriquecer o mais rápido possível, não tinha muita preocupação ética quanto aos meios que, para tanto, fossem empregados?
Digo aos leitores deste blog que o elenco de argumentos em favor dos colonos poderia ser bem maior, embora não tenha nenhuma intenção de justificar sua má conduta, em particular no trato desumano para com a população nativa, ainda que isso tenha se repetido, com crueldade crescente, em quase todo o Continente Americano, sob as mais diversas bandeiras de colonização. Será bom recordar, apenas, que de toda essa situação colonial, e do mais que ocorreu depois, é que se formou o Brasil que hoje existe, com suas virtudes (muitas) e seus defeitos (não poucos, como se sabe).

(1) Refere-se, provavelmente, a portugueses que viviam com mulheres indígenas, e não africanas, já que era comum no Século XVI, e mesmo um pouco mais tarde, que europeus residentes no Brasil mencionassem como negros tanto os indígenas como os escravizados trazidos da África. 
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 290.


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segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Madeira em lugar de carvão nas locomotivas e embarcações a vapor

Razões para a substituição do carvão por madeira nas embarcações e locomotivas a vapor que percorriam o Brasil em fins do Século XIX e primeira metade do Século XX


Viajando pelo Amazonas ao final da primeira década do Século XX, Aníbal Amorim, militar brasileiro, observou que lá se usava queimar madeira, em lugar de carvão, para funcionamento das embarcações a vapor:
"Viajamos à noite, passando algumas horas em Nova Olinda. O vapor tomou lenha.
Este é quase o único combustível empregado na navegação interior na Amazônia. Isso traz a devastação das matas, modificando não só o regime dos rios, como também a capacidade pluviométrica destas regiões. O emprego obrigatório do carvão mineral seria um meio de impulsionar a nascente indústria carbonífera no Brasil." (¹)
O uso de madeira em lugar do carvão é facilmente explicado pelo fato de a madeira ser abundante na região, enquanto que o carvão, importado quase sempre da Inglaterra, acabava por ter custo elevado. Ainda que viesse do Brasil, não seria, de qualquer modo, extraído na própria Amazônia, de modo que o transporte até lá já seria um fator de complicações no preço, sem falar nos frequentes questionamentos quanto à qualidade do carvão nacional. Quanto às supostas vantagens do carvão mineral, havia quem não concordasse, já que em São Paulo, desde o Século XIX, madeira vinha sendo usada nas locomotivas a vapor, assunto bem detalhado por Adolpho Augusto Pinto em sua História da Viação Pública de São Paulo:
"Em consequência da extraordinária desvalorização da moeda do País, nos últimos anos, e do consequente encarecimento dos materiais importados, tornou-se muito caro o custo do carvão de pedra importado de Inglaterra e usado como combustível das locomotivas. Este fato levou algumas das grandes companhias a queimarem lenha em suas máquinas, de preferência ao carvão importado." (²)
O mesmo autor explicava que uma tonelada de carvão de pedra equivalia, no uso em locomotivas a vapor, a seis metros cúbicos de lenha. Houve, porém, um problema a ser resolvido, antes que a substituição fosse viável, já que queima de madeira resultava, nas chaminés, em produção de fagulhas muito inconvenientes sob vários aspectos. Ainda de acordo com Adolpho A. Pinto, "estas dificuldades [...] foram em breve removidas pela adaptação às máquinas de redes e chaminés apropriadas ao uso da lenha, tornando-se desde então generalizado o emprego do novo combustível, com extraordinária economia." (³)
Ocorre que, mesmo neste caso, persistia a questão do desmatamento. Adolpho A. Pinto não achava que o consumo de lenha fosse suficiente para desencadear uma catástrofe ambiental, mas entendia que era preciso legislar para impedir problemas futuros:
"Se o consumo da lenha pelas estradas de ferro por si só não basta para produzir males sensíveis, é fora de dúvida que a conservação das matas e a replantação constituem matéria sobre que muito convém legislar no interesse geral do País." (⁴)
A expansão da rede ferroviária veio demonstrar que a replantação (⁵) era uma necessidade. Em virtude desse fato, não tardaram a surgir áreas de cultivo experimental de espécies exóticas de rápido crescimento, que pudessem ser adaptadas ao clima e ao solo do Brasil, cujo uso viria a substituir, nos procedimentos ferroviários correntes, a madeira que até então era extraída das matas nativas. E, convenhamos, algumas dessas espécies importadas adaptaram-se bem demais, até além do desejável.


Nas fotos acima são vistas duas dentre as muitas variedades de eucalipto existentes na
Floresta Estadual "Edmundo Navarro de Andrade", em Rio Claro - SP;
nesse local, no começo do Século XX, foram feitos experimentos a fim de viabilizar o
cultivo de eucalipto para uso ferroviário.

(1) AMORIM, Annibal. Viagens Pelo Brasil. Rio de Janeiro / Paris: Garnier, s.d., p. 182.
(2) PINTO, Adolpho Augusto. História da Viação Pública de São Paulo. São Paulo: Vanorden, 1903, p. 114.
(3) Ibid.
(4) Ibid., p. 114.
(5) Hoje diríamos reflorestamento.


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sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Nero, os publicanos e a cobrança indevida de impostos no Império Romano

Como Nero perdeu uma das grandes oportunidades de sua vida


Era o ano 812 da fundação de Roma, mas se preferirem, leitores, podem dizer 59 d.C. Independente do calendário adotado, era Nero quem detinha o poder supremo no Império, em um momento de grande insatisfação popular. E, acreditem, não por obra e graça do ilustre imperador, e sim por causa dos desmandos cometidos pelos publicanos.
Ora, cabe aqui explicar que "publicanos" eram nem mais e nem menos que funcionários cuja tarefa consistia na cobrança de alguns impostos. Esses sujeitos eram dados a exigir mais dinheiro do que era devido ao governo romano, e, naturalmente, ficavam com o "excedente" para si mesmos. Simples assim. O registro de Tácito no Livro XIII dos Annales explica:
"Naquele mesmo ano, diante de tantos protestos da plebe contra os publicanos, Nero esteve a ponto de suprimir todos os impostos de entrada e saída, no que teria feito uma dádiva estupenda aos mortais." (*)
Digam-me, leitores, que lhes parece essa ideia de Nero? A proposta foi, conforme a praxe, amplamente debatida no Senado, que acabou por convencer o jovem mandatário romano de que, caso seu plano fosse adotado, o Império iria à falência. 
Talvez devamos lamentar que não tenham os romanos fabricado, aí, um precedente histórico (em mais de um sentido), ao mesmo tempo em que Nero perdia uma gloriosa oportunidade de tornar-se perpetuamente célebre, e por razão bem diversa de quase todas as outras que o fizeram notável. E, para quem está curioso por saber em que acabou o caso, basta voltar a Tácito:
"Chegou-se a um meio-termo com medidas para reprimir a cupidez dos publicanos, de modo que não viessem a repetir as extorsões que, por anos, se haviam tolerado."
Tácito, infelizmente, nada informa quanto à eficácia das tais medidas destinadas a manter os publicanos sobre controle.

(*) As citações dos Annales de Tácito que aparecem nesta postagem são tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Quem não podia testemunhar em Juízo no Reino e no Brasil Colonial

O estudo das leis antigas, como todos sabem, é uma ferramenta muito útil quando se deseja entender como vivia um determinado povo ou mesmo uma civilização. Hoje veremos a quem não era permitido testemunhar em juízo segundo as Ordenações do Reino (¹), vigentes em Portugal e, por consequência, também no Brasil durante o Período Colonial. Por algum tempo, mesmo após a Independência, não era incomum que juristas recorressem às Ordenações, sempre que havia alguma lacuna na legislação brasileira.
Pois bem, o Livro III, Título LVI (²) estipulava, dentre diversos casos concernentes a quem podia ou não ser testemunha em juízo, que:
  • Pais e mães não poderiam testemunhar nem contra e nem a favor dos filhos, sendo, porém, admitida a consulta aos pais quanto à idade real de seus filhos;
  • Irmãos também não eram aceitos como testemunhas, quer de defesa, quer de acusação;
  • Era vedado o comparecimento de escravos como testemunhas, a não ser em casos restritos especificados no Direito;
  • Também não poderia testemunhar a pessoa que houvesse perdido a memória (óbvio!);
  • Menores de quatorze anos não podiam ser testemunhas juramentadas. mas podiam ser ouvidos, ainda que sem juramento, no caso de não haver qualquer outra testemunha de um crime considerado grave;
  • "Inimigos capitais" não seriam admitidos como testemunhas contrárias a alguém;
  • Presos não poderiam testemunhar, a não ser que fossem alistados antes da prisão, sendo admitida exceção em caso de alguém preso por "delito leve", desde que fosse "pessoa de boa fama e reputação";
  • Em caso de crimes cometidos dentre de uma prisão, permitia-se o arrolamento de presos como testemunhas.
A lista poderia incluir outros casos, mas creio que estes já são suficientes para que os leitores possam inferir muita coisa sobre as relações de família, sobre a importância atribuída ao juramento antes que uma testemunha prestasse depoimento, sobre a condição dos escravizados e mesmo sobre a idade considerada propícia à responsabilidade civil dentro do Reino e, por consequência, também das vilas e cidades do Brasil Colonial. Ocorre, porém, que no caso do Brasil, nem sempre as leis escritas eram estritamente seguidas, isso porque as instâncias jurídicas estavam longe, fazendo com que, não raro, colonos resolvessem suas diferenças como bem entendiam. Prevalecia o mais forte, até que a parte ofendida resolvesse ir à desforra, dando motivo para que, em pouco tempo, novas afrontas fossem praticadas. Em tal cenário a Verona hipotética de Shakespeare (³) bem poderia parecer apenas brincadeira de crianças.

(1) Compiladas e publicadas no início do Século XVII; já existentes, em grande parte, muito antes disso.
(2) De acordo com  a Edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(3) Refiro-me, naturalmente, ao cenário de Romeu e Julieta.


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segunda-feira, 21 de setembro de 2015

De que brincavam as crianças que viviam no Império do Brasil

"Misturava tudo; o espírito ia de um para outro lado como bola de borracha entre mãos de crianças."
Machado de Assis, Quincas Borba

Brinquedos e brincadeiras infantis fazem parte das mais variadas culturas. Mesmo quando os pequenos são submetidos precocemente ao trabalho, sempre é possível notar a intensa criatividade para o que é lúdico, tão própria da infância, seja na invenção de jogos, seja na imitação da vida adulta, com ou sem o uso de brinquedos. É recreação, mas é também aprendizado, através do qual os elementos da cultura, incluindo os estereótipos, são assimilados, repetidos e, bons ou maus, perpetuados.
De um livro com propósitos educativos, Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade, usado em aulas de leitura na segunda metade do Século XIX, depreendemos quais eram alguns dos brinquedos comuns aos meninos brasileiros da época:
"Se te agrada mais, vai jogar a peteca ou a bola de borracha, ou soltar aos ares o papagaio.
Podes fazer tudo isso, dou-te licença, visto teres cumprido bem teus deveres." (¹)
A peteca talvez ande em desuso, mas a bola e o papagaio (²) são familiares a qualquer guri. O mesmo livro ainda trazia:
"Não negues a teus camaradas o que lhes podes ceder, nem escondas da sua vista o boneco, o soldadinho de chumbo ou outro qualquer brinquedo." (³)
Aqui, meus leitores, temos que reconhecer que soldadinhos de chumbo são, agora, apenas objetos para colecionadores. Os brinquedos de hoje são quase todos de plástico, e os meninos preferem os superpoderes dos super-heróis à fadiga de comandar exércitos. Mas vamos adiante, pois da Literatura podemos, também, extrair informação relevante quanto aos hábitos infantis do Século XIX. Foi Machado de Assis quem escreveu, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas:
"Só, só, nhonhô, só, só, dizia-me a mucama. E eu, atraído pelo chocalho de lata, que minha mãe agitava diante de mim, lá ia para a frente, cai aqui, cai acolá; e andava, provavelmente mal, mas andava, e fiquei andando."
Ora, alguém perguntará, e por onde andam os brinquedos das meninas? Já vão aqui, mas não quaisquer brinquedos, e sim os de uma pequena filha de um fazendeiro escravocrata do Vale do Paraíba, conforme descritos por José de Alencar em O Tronco do Ipê:
"D. Elisa e o Dr. Oscar eram um lindo casal de bonecos, vindos diretamente de Paris por encomenda do barão. Alice os tinha recebido havia alguns meses; foi o presente do pai no dia de seus anos. D. Elisa era um anjo de bonita e o Dr. Oscar um serafim, na opinião de Eufrosina; Felícia porém comparava-o a um cabeleiro francês, para ela o tipo da suprema elegância parisiense.
- A noiva está pronta! disse Adélia mirando a boneca enfeitada.
- O noivo também! acudiu a Felícia."
Para contentar quem acha que esta postagem tomou rumos demasiadamente aristocráticos, termino com uma brincadeira dos meninos que perambulavam pelas ruas de Campinas (SP), observando os tropeiros que iam e vinham com suas mulas. Não era questão de apenas assistir ao trabalho dos mais velhos. É que uma travessura estava sempre nos planos. Foi Daniel P. Kidder, pastor metodista americano, quem observou e teve o cuidado de escrever, ainda na primeira metade do Século XIX:
"Aí [em Campinas] viam-se diariamente animais carregando e descarregando. À medida que esvaziavam os jacás onde transportavam os sacos de sal, eram postos de lado como imprestáveis. Sobre eles caíam então os garotos em animada disputa a fim de empilhá-los, e, à noite, ver qual deles fazia a fogueira mais alta." (⁴)
Crianças, crianças...

Escrava vendedora de bonecas (⁵)

(1) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade 2ª ed. Rio de Janeiro: 1875, p. 88. O exemplar consultado pertence ao acervo da BNDigital.
(2) Ou pipa, ou pandorga, ou arraia, ou capucheta, de acordo com o falar regional.
(3) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Op. cit., p. 92.
(4) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 223.
(5) BARROS, Joaquim Lopes de. Costumes do Brasil (1840 - 1841). O original pertence ao acervo da Biblioteca Nacional; a imagem foi editada e restaurada digitalmente para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Superstições dos gregos da Antiguidade

Se devemos crer naquilo que Hesíodo escreveu, provavelmente entre os Séculos VIII e VII a.C., os gregos de seu tempo eram gente muito supersticiosa, sem disso excluir o próprio Hesíodo. 
Como chegamos a esta conclusão?
Simplesmente correndo os olhos por Os Trabalhos e os Dias, obra na qual encontramos uma grande quantidade de conselhos destinados a tornar próspero o labor de agricultores e navegantes. Ocorre que qualquer pessoa sensata que leia as ditas orientações logo perceberá que, entre elas, há algumas coisas que não passam de lorotas, no melhor dos casos. Mas isso é o que pensamos nós, que vivemos depois de milênios de desenvolvimento científico. Os gregos dos dias de Hesíodo deviam crer que suas superstições correspondiam à realidade, ou não haveria qualquer razão para que fossem repetidas e até registradas por escrito.
Sei perfeitamente que aqueles dentre meus leitores que chegaram até aqui estarão, agora, quase a dizer: mas, afinal, que superstições eram essas?
Já verão, senhores leitores, pois vem a seguir um boa seleção. Podem ler e reler, tentando descobrir se há algum fundamento para elas.
  • É preciso lavar as mãos antes de atravessar um rio, pois os deuses detestam e fazem vir desgraças àquele que o faz com mãos impuras.
  • Para evitar infortúnios, ninguém deve comer ou lavar-se em recipientes que não tenham sido antes consagrados aos deuses.
  • É de mau agouro ter relações sexuais após voltar de um sepultamento, sendo porém apropriado fazê-lo com a intenção de procriar quando se regressa de um banquete em honra aos deuses.
  • Não se deve colocar sobre móveis sagrados um menino de doze dias, pois isto o tornará um homem incapaz de gerar filhos. Vale o mesmo para um menino de doze meses.
  • Um indivíduo do sexo masculino jamais deve lavar-se onde se banham as mulheres, se quer evitar que venha sobre si uma grande maldição.
Outras recomendações incluíam não lançar semente à terra no décimo terceiro dia do mês e não plantar árvores no décimo sexto. O décimo dia seria bom para quem queria gerar um filho do sexo masculino, enquanto que, para quem queria ter uma filha, o dia favorável seria o décimo quarto do mês. 
Estão cansados, leitores? Já termino. A melhor data para um casamento seria no quarto dia do mês, "desde que se consultassem os prognósticos das aves". No entanto, era preciso grande cuidado com o quinto dia, considerado o mais desfavorável a um matrimônio. 
Chega!
Achamos graça em tantas tolices. Será prudente, todavia, aquele que se abstiver de rir dos antigos gregos, não seja o caso de andar em perfeita obediência a alguma das superstições que ainda correm mundo, mesmo no Século XXI. Como é mesmo aquela história de passar embaixo de uma escada?


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quarta-feira, 16 de setembro de 2015

As araras de estimação do padre José de Anchieta

Araras-canindé (Ara ararauna) - Seriam parentes das araras que acompanhavam
o Padre José de Anchieta?

Vocês, leitores, têm ou já tiveram algum animal de estimação? Talvez possamos dizer que o Padre José de Anchieta (¹) tinha: eram duas araras-canindé, que lhe faziam companhia quando ia ele de um lugar a outro em seus afazeres missionários.
Ora, não imaginem que isso é excesso de imaginação. Na segunda metade do Século XVII o Padre Simão de Vasconcelos escreveu uma biografia intitulada Vida do Venerável Padre José de Anchieta, cujo objetivo era reforçar a campanha em favor da canonização de seu irmão de Ordem, iniciada em 1617 (²). A obra é uma vasta coleção de narrativas que hoje a maioria de nós talvez considere como lendas piedosas, respeitando-se, porém, a opinião de quem possa entendê-las como relatos de eventos sobrenaturais. Pois bem, voltando ao caso das araras de estimação, creio que quem conhece os hábitos dessas aves irá concordar que, ressalvado algum exagero, a coisa bem pode ter acontecido, não sendo preciso, para tanto, a interferência de fatores miraculosos. O elemento curioso fica por conta de uma discreta sugestão de que Anchieta fosse, talvez, um pregador demasiado falante:
"Dos canindés se afirma que andavam tão prontos à sua obediência como se foram dois servos seus. Quando havia de ir pregar José a outras igrejas da Vila, acompanhavam-no, como se tiveram razão, a pé e voando, e subindo ele ao púlpito, subiam eles ao campanário e perseveravam esperando enquanto o Padre pregava, e o que mais admira é que, quando era longo na pregação, grasnavam alto para que os ouvissem e acabasse. E eram tão entendidos do Pregador, que por vezes foi ouvido responder-lhes do púlpito, dizendo: "Logo acabaremos, logo acabaremos". E outra vez disse ao auditório: "É bem que acabemos, que têm razão", aludindo às vozes de seus pássaros, que ele entendia e lhe serviam de admonitores da parte de Deus." (³)
Interpretem essa história como melhor entenderem, leitores. Mas, convenhamos, ela não deixa de ter seu lado divertido.
Onde teriam vivido essas araras-canindé que eram tão afeiçoadas a Anchieta? Embora o padre Simão de Vasconcelos não seja explícito, o rumo da narrativa sugere que foi no litoral no Espírito Santo, onde Anchieta passou os últimos anos de vida. Se for assim, e admitindo que a história seja autêntica, poderemos entender que, no Século XVI, as araras-canindé eram encontradas em uma área mais ampla do que aquela que é, hoje, considerada seu habitat no Brasil.
Ao narrar as aventuras de seu biografado, o padre Simão de Vasconcelos não poucas vezes relatou conversas de Anchieta com animais, afirmando que sempre o fazia "em língua brasílica", ou seja, no falar indígena para o qual, por ter tão bem aprendido, chegara a escrever uma gramática. Talvez a intenção de Vasconcelos fosse, ao exaltar as virtudes heroicas de Anchieta, incluir no relato de sua vida uma similaridade ao se atribui a um canonizado muitíssimo famoso, falecido em Assis no ano de 1226 - até porque, no Brasil do Século XVI, não faltavam aves e animais com que alguém a eles afeito, pudesse, querendo, conversar.

(1) 1534 - 1597.
(2) O longuíssimo processo, iniciado em 1617, resultou na beatificação em 22 de junho de 1980 e na canonização, finalmente, em 3 de abril de 2014. 
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Vida do Venerável Padre José de Anchieta. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1672, pp. 333 e 334.


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segunda-feira, 14 de setembro de 2015

O trabalho do proeiro nas embarcações monçoeiras do Século XVIII

A existência de um rio que corria para o interior e não para a o litoral - o Tietê - foi um fator importante a favorecer a curiosidade dos primeiros exploradores da América do Sul, que, na ânsia por descobrir metais preciosos e outras riquezas, arriscavam a vida para ir até onde, ao que se sabe, europeus nunca haviam chegado. Quando, no Século XVIII, descobriu-se o "ouro do Cuiabá", expedições devidamente organizadas passaram a percorrer o Tietê e outros rios como única rota então praticável para quem sonhava com a riqueza supostamente rápida e fácil que o ouro talvez proporcionasse. Essas expedições que partiam de Araraitaguaba (Porto Feliz - SP) foram chamadas monções.
As embarcações que os monçoeiros usavam, fossem simples canoas ou os enormes batelões, deviam ser velozes e resistentes para enfrentar com sucesso os obstáculos impostos à navegação pelas numerosas corredeiras e saltos que havia no percurso. Era necessário, também, como questão de vida ou morte, que fossem tripuladas por remadores fortes, com capacidade de manter o ritmo monótono das remadas por horas e horas, sem fraquejar. Muitos desses remadores eram escravos.
A segurança na condução de homens, bagagem, suprimentos, e mesmo de animais em uma embarcação monçoeira dependia, porém, do comando, conhecimento e experiência de um indivíduo em particular: o proeiro. Esse sujeito precisava saber tudo a respeito dos rios pelos quais navegaria. Um lapso de sua parte, e as perdas, materiais e humanas, podiam ser irremediáveis.
O astrônomo Francisco José de Lacerda e Almeida, estando a serviço da Coroa portuguesa, veio de Vila Bela da Santíssima Trindade a São Paulo em 1888, fazendo, portanto, a navegação de retorno das monções, ocasião em que anotou, em seu diário, o seguinte relato de como trabalhava o proeiro da embarcação em que viajava:
"Este homem tem as chaves do caixão das carnes salgadas e das frasqueiras, comanda e governa a proa, e está na sua jurisdição e vontade o fazer mais ou menos compassadas as remadas, conforme bate mais ou menos apressadamente com o calcanhar na canoa, servindo cada pancada como de compasso para cada uma remada: todos remam em pé. Este homem merece na verdade toda contemplação, pois nas descidas das cachoeiras leva a vida em muito perigo e risco, porque como o rio corre nelas (para assim dizer), como a bala despedida da peça (*), é necessário desviar a proa e a canoa das pedras que lhe estão em frente, e não bastando o leme, que também é um remo, vai este proeiro em pé na proa da canoa com um grande e forte remo nas mãos para poder ajudar e aumentar o efeito do leme, e rapidamente desviar a canoa das pedras. Como estas são muito dispersas, lhe é necessário mudar o remo para um e outro lado da canoa, conforme a necessidade o pede, e com grande presteza. Se nestas rápidas mudanças sucede escorregar ou roçar a canoa em alguma pedra, ainda que seja levemente, vai ao rio e se faz em pedaços, ou ao menos morre afogado."
A competência e a responsabilidade do cargo que ocupava faziam de cada proeiro um elemento respeitado entre as tripulações monçoeiras. E, consciente disso, o próprio indivíduo acabava, segundo Lacerda e Almeida, por adotar uma conduta meio arrogante, conforme assinalou, na linguagem típica do Século XVIII:
"Todas estas considerações da importância da sua pessoa e a autoridade que tem, o fazem respeitado de seus companheiros, e tem toda a chibança de um vilão obsequiado e respeitado."
À vista disso e apesar dos riscos inerentes ao ofício, quase podemos dizer que o sonho de cada remador nas monções era, afinal, ser proeiro.

(*) Peça de artilharia, entenda-se.


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sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Sobre a dignidade do trabalho

"O trabalho, ele o tinha como vergonha, pois o poria ao nível do escravo. Prejuízo este, que desde tempos remotos dominava a caipiragem de São Paulo, e se apurava nesse homem, cujo espírito de sobranceira independência havia robustecido a luta que travara contra a sociedade."
                                                                                                                                   José de Alencar, Til

Formalmente, ninguém, em são juízo, ousa negar o valor do trabalho - todo e qualquer trabalho, que dá dignidade ao homem, etc., etc., etc. No Brasil, porém, até por consequência dos séculos de escravidão, ainda há quem imagine que o melhor que pode acontecer a alguém é jamais ter que trabalhar. Outro absurdo é a carência de técnicos qualificados, enquanto o país transborda de diplomas de cursos superiores que, infelizmente, nem sempre vêm acompanhados do saber e competência correspondentes.
Soldados gregos - desenho a partir de um
baixo-relevo (*).
Militares eram muito valorizados entre os espartanos.
Tal coisa não é, em absoluto, uma novidade debaixo do céu. Heródoto, do quinto século antes de Cristo, observou que tanto entre os egípcios como entre grande parte dos gregos havia uma certa propensão ao desprezo das profissões que envolviam trabalho manual. Notou ele que os "bárbaros" eram dados a valorizar os militares e os que executavam trabalhos nos quais se requeria esforço mental. Por outro lado, os que os que exerciam labores ditos mecânicos (envolvendo, por exemplo, as ocupações artesanais e o trabalho agrícola, este último frequentemente relegado aos escravos), eram menosprezados, assim como seus descendentes. Entre os gregos, asseverou, a mesma coisa podia ser vista, particularmente entre os espartanos, embora os cidadãos de Corinto fossem, nesse aspecto, uma exceção, já que faziam com que em sua pólis os artesãos fossem muito respeitados.
Parece que essa mania atravessou os séculos e chegou em excelente forma aos nossos dias. Sim, como já disse, no Brasil, tal praga está ligada à existência não muito remota da escravidão, que, ao menos no plano da mentalidade, aviltava o trabalho aos olhos dos homens livres. Uma  grande lástima. Apenas pergunto: quanto ainda durará?

(*) ADAMS, W. H. Davenport. Temples, Tombs and Monuments. London: T. Nelson and Sons, 1871, p. 44. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Restrições ao trabalho das quitandeiras no Distrito Diamantino

O Distrito Diamantino, como sabem os leitores deste blog, era uma área de mineração rigidamente controlada pelas autoridades, a mando da Metrópole. Ao contrário das minas em geral, nas quais, sob uma série de regulamentos, qualquer um podia tornar-se minerador desde que pagasse os impostos, no Distrito Diamantino até mesmo a entrada e saída de pessoas era controlada, já que lá não se arrecadavam apenas os Reais Quintos. A ideia da Coroa é que para ela ficasse toda a produção de diamantes, cuja exploração foi, a princípio, arrendada a contratadores e, mais tarde, passou a ser feita diretamente pela administração colonial.
Ora, um costume existente nas áreas urbanas do Brasil daqueles tempos (¹) era mandar que escravas percorressem as ruas vendendo doces, frutas e várias outras mercadorias. A livre prática dessa atividade dentro do Distrito Diamantino também foi restringida, de modo que as "quitandeiras", como eram chamadas as escravas vendedoras (²) não podiam trabalhar em qualquer lugar que quisessem:
"Por bando de 1º de março de 1743 foi proibido "às negras ou mulatas forras ou cativas andarem com tabuleiros pelas ruas ou lavras, só lhes sendo permitido venderem os gêneros comestíveis nos arraiais e nos lugares que para esse fim lhes forem marcados, sob pena de duzentos açoites e quinze dias de prisão"." (³)
A lógica por trás desse regulamento era que qualquer comerciante, em pequena ou grande escala, podia ser um contrabandista de diamantes em potencial, e nem mesmo as escravas estavam livres de suspeita. Assim, senhores leitores, estejam certos de que a fiscalização era rigorosa e a penalidade seria cumprida, na hipótese de alguma infração. O Distrito Diamantino estava sob a autoridade discricionária do Intendente, que fazia aplicar o Regimento Diamantino em nome de El-Rei. Aliás, sobre o Intendente, vale dizer que dificilmente terá havido funcionário administrativo mais odiado em todo o Período Colonial. Não é nada difícil entender a razão.

(1) Esse costume perdurou no Império.
(2) Havia, às vezes, gente de condição livre praticando o pequeno comércio com tabuleiros.
(3) SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro Frio. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1868, p. 64.


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segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Lições de caligrafia

"Nos meios burocráticos, uma superioridade que nasce fora deles, que é feita e organizada com outros materiais que não os ofícios, a sabença de textos de regulamentos e a boa caligrafia, é recebida com a hostilidade de uma pequena inveja."                                                                      Lima Barreto, O Triste Fim de Policarpo Quaresma

Um dia desses alguém me perguntou se eu achava que as crianças em idade escolar ainda deviam aprender a "fazer letra bonita", ou seja, se ainda seria necessário o ensino da caligrafia. Ora, senhores leitores, essa é uma questão interessante.
No passado, tudo o que se escrevia era feito manualmente, não interessando se a escrita era cuneiforme, hieroglífica ou outra qualquer. Nem mesmo importava se a mídia era um bloco de argila, papiro ou pergaminho. É certo que nesse contexto já remoto, saber escrever não era para qualquer um, constituindo-se, até, em algumas culturas, por si só em uma profissão, a dos respeitados escribas. "Letra bonita" era obrigação, portanto, para honrar o ofício.
Até hoje admiramos os belíssimos manuscritos medievais. Quanta paciência e técnica requeriam, não só para escrever, como para acrescentar preciosas iluminuras. Mas quantos erros, a maioria deles involuntários, não foram também passados à posteridade, quando cada livro precisava ser inteiramente copiado à mão!... Bastava a falha de um copista já cansado, depois de longas horas a escrever, escrever, temperadas com a sonolência de condições climáticas nem sempre favoráveis ou mesmo de iluminação algo precária, e quem viesse a fazer cópia daquele livro erroneamente transcrito, iria, por sua vez, perpetuar o erro, ainda que inadvertidamente. 
A propagação dos livros impressos, a partir da segunda metade do Século XV, favoreceu o estudo e mesmo a leitura como lazer, já que os livros tornaram-se menos dispendiosos. Mas é bom lembrar que, se um impressor errasse ao compor um texto, o erro agora era para toda uma edição. Há exemplos notáveis, ainda que seja lícito perguntar se, em alguns casos, o suposto erro não teria sido intencional.
A escrita de todo dia, porém, continuava manual. Quem tinha a boa sorte de ir à escola, tinha de aprender caligrafia, e, mesmo antes de por mãos à obra para escrever, era preciso saber preparar a pena com a qual o jovem discípulo colocaria no papel, literalmente, as lições que estudava.
Em um livro publicado por volta de 1622 e dedicado ao rei D. João V, com o título de Nova Escola Para Aprender a Ler, Escrever o Contar, o autor, Manoel de Andrade Figueiredo, depois de recomendar que as penas fossem "da asa direita, por se acomodarem melhor aos dedos" (¹), apresentava o modo correto de preparar a pena, bem como a maneira de segurá-la durante a escrita (²):



Para os muito curiosos, que talvez estejam desesperados para saber como eram as tais lições de caligrafia, vai aqui um exemplo, extraído do livro citado:


Que tal, senhores leitores?
Fato é que ainda por muito tempo tiveram os homens que escrever à mão, o que não excluía nem mesmo a documentação cartorial e a papelada jurídica. Quem, como eu, já teve que lidar com documentação histórica original do Século XIX, por exemplo, sabe que escrivães e advogados, fazendo uso do jargão próprio dos respectivos ofícios, tinham por hábito o emprego de muitas abreviaturas. Por consequência, ler o que escreviam envolve um duplo trabalho de decifração. Fica aqui, pois, uma palavrinha de gratidão aos professores de primeiras letras do passado que tinham apreço pelo ensino de caligrafia.
A invenção da máquina de escrever acabou com o transtorno dos garranchos, ao menos para uso profissional, e isso não é pouca coisa. Hoje, quando quase tudo o que escrevemos se faz em teclados eletrônicos, reais ou virtuais, é compreensível que haja quem pergunte se vale a pena torturar a criançada na escola com exercícios de caligrafia. Deixo a questão em aberto para quem quiser dar palpite no assunto, fazendo um comentário que, felizmente, não será manuscrito...

(1) FIGUEIREDO, Manoel de Andrade. Nova Escola Para Aprender a Ler, Escrever e Contar. Lisboa Ocidental: Oficinas de Bernardo da Costa de Carvalho, c. 1722, p. 31.
(2) As três imagens, extraídas da obra citada de Manoel de Andrade Figueiredo, foram editadas para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Os prodígios do ano 55 d.C.

Corria o ano 808 da fundação de Roma (55 d.C.), quando uma série de "prodígios" deixou atônita a população da capital do Império. Sendo os romanos muito supersticiosos, só podiam supor que tudo prognosticava grandes desgraças.
E que prodígios, afinal, foram esses?
De acordo com Tácito (*):
  • Um fogo vindo do céu queimou bandeiras e barracas de um acampamento de soldados;
  • Um enxame de abelhas cometeu o atrevimento de ir instalar-se no Capitólio;
  • Foram registrados nascimentos de animais com duas cabeças;
  • Alguns leitões vieram ao mundo dotados de unhas de águia;
  • Como cúmulo das desgraças, nesse malfadado ano morreram vários magistrados (um questor, um edil, um tribuno, um pretor e um cônsul).
Quanta tragédia, não?
As crendices da época e a veloz propagação dos boatos devem ter dado uma contribuição nada desprezível para que alguns dos tais prodígios ganhassem fama de realidade. No entanto, senhores leitores, uma trágica coincidência veio reforçar, na memória dos romanos, a ideia de que 55 d.C. foi mesmo um ano infeliz: embora não integrasse a lista de maus sinais de Tácito, foi o primeiro ano completo sob o governo de Nero (ascendeu ao posto de principal do Império em outubro de 54 d.C.). 

(*) Livro XI dos Annales.


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quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Máquinas em lugar de escravos

Escravo indo à roça, tendo uma
enxada como ferramenta (¹)
Por séculos, no Brasil, quando alguém queria aumentar a produção da lavoura ou de outras atividades relacionadas à agricultura, só enxergava como solução a compra de mais escravos, na suposição de que mais braços significariam mais trabalho. Todavia, à medida que avançava o Século XIX, uma nova preocupação passou a circular pela cabeça de muitos fazendeiros: que fazer se, de fato, o tráfico de africanos acabasse e não fosse possível dar continuidade à importação de cativos?
Curiosamente, a ideia de manter ex-escravos como trabalhadores livres assalariados não era contemplada por muita gente. Fizeram-se tentativas para atrair o interesse de trabalhadores europeus, mas a mentalidade escravista não tardou em gerar conflitos no campo, à medida que muitos fazendeiros julgavam ser possível dispensar aos imigrantes o mesmo trato que proporcionavam aos escravos. Ora, trabalhadores livres não aceitavam tal coisa e, diante de tantos problemas, chegou a haver mesmo proibições, em alguns países, de que seus cidadãos viessem trabalhar no Brasil.
Umas poucas vozes, ainda que dentro da lógica escravocrata, começaram a manifestar-se em favor de um pensamento que visava à elevação da produtividade, e não somente da produção pura e simples. Como? Mediante a introdução de máquinas. Propunha-se, por exemplo, a mecanização da escolha e seleção de grãos de café, sabendo que um único trabalhador, fazendo uso de uma só máquina, seria capaz de fazer tanto quanto quinze homens, apenas com trabalho manual. Havia, porém, ainda outras vantagens, conforme apontou Augustinho Rodrigues Cunha, em sua Arte da Cultura e Preparação do Café:
"Uma máquina produzindo esta quantidade de trabalho, não consome nem exige a mesma despesa, que o mesmo número de pessoas, que comem, adoecem, vestem e morrem, e que podem ser empregadas noutros trabalhos." (²)
Alguém poderá objetar que escravidão e mecanização seriam visceralmente incompatíveis, relacionando a atividade industrial, ainda que voltada ao desenvolvimento da agricultura, à formação e crescimento do proletariado urbano. A esse respeito cabe lembrar que experimentos com trabalho escravo na indústria algodoeira foram feitos no sul dos Estados Unidos, antes da Guerra de Secessão, e não poderiam ser taxados de completo fracasso, ainda que não tenham alcançado sucesso absoluto.
Deve-se reconhecer, no entanto, que faltava às incipientes indústrias de beneficiamento, quer do café (no Brasil), quer do algodão (nos Estados Unidos), aquele estímulo à produtividade que a escravidão dificilmente proporcionaria. Ocorre que, por essa e por muitas outras razões, fossem econômicas, políticas e até mesmo humanitárias, o trabalho cativo estava condenado a desaparecer, e somente a teimosia dos escravocratas é que ainda emperrava a abolição total. 
Não constitui surpresa que latifundiários acostumados a ver escravos lavrando a terra apenas com enxadas rústicas resistissem à ideia da introdução de máquinas para acelerar e elevar a produtividade na agricultura ou em tarefas a ela relacionadas. No entanto, muito mais difícil ainda seria extirpar na sociedade a mentalidade escravista, o que nos leva a pensar se, mesmo hoje, não poderíamos, aqui e ali, encontrar dela vestígios nada desprezíveis.

(1) RIBEYROLLES, Charles. Brazil Pittoresco. Paris: Lemercier, 1861. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) CUNHA, Augustinho Rodrigues. Arte da Cultura e Preparação do Café. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1844, p. 95.


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