quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

O costume de abençoar as monções que percorriam o Tietê no Século XVIII

Este monumento assinala o local
aproximado de onde
partiam as monções do Século XVIII
Foi em 22 de junho de 1826, ao sair a Expedição Langsdorff de Porto Feliz, que o desenhista francês Hércules Florence registrou: "[...] dirigimo-nos para o porto, onde achamos o vigário paramentado com suas vestes sacerdotais, a fim de abençoar a viagem, como é costume, e rodeado de grande número de pessoas que viera assistir ao nosso embarque." (¹)
O "costume" a que Hércules Florence fez referência, de abençoar as expedições que partiam de Araraitaguaba (Porto Feliz - SP), datava do tempo das monções cuiabanas. Corria, então, o Século XVIII, e, de acordo com Affonso de E. Taunay, a fórmula usual da benção era esta, na qual o sacerdote invocava para os monçoeiros e embarcações que viajariam pelo Tietê a mesma proteção concedida pela mão direita de Deus à arca de Noé, durante o dilúvio, e a São Pedro, quando andara sobre o mar: 
"Propitiare, Domine, suplicationibus nostris et benedic navem istam dextera tua sancta et omnes, qui in ea vehentum fiant dignitatus es benedicere arcam Noe ambulantem in diluvio. 
Porrige eis, Domine, dexteram tuam, sicut porrexisti Beato Petro ambulanti supra mare.
Qui vivis er regnas in secula seculorum" (²)
Havia ainda, na época da Expedição Langsdorff, algum movimento de viajantes que seguiam rumo ao interior do Brasil pelo rio Tietê, em expedições militares ou em algumas poucas expedições comerciais. A febre do ouro do Cuiabá já era, porém, coisa do passado. 
Ressalvadas as proporções, o ritual de partida das monções cuiabanas guardava semelhanças com o cerimonial religioso que assinalara a partida das grandes expedições marítimas portuguesas que, nos Séculos XV e XVI, haviam alcançado as Índias e outras terras. "Os aventureiros, que se atiram aos mares", escreveu Teófilo Braga, "desconhecendo as terras em que hão de aferrar, [...], saem em procissão, acompanhados dos sacerdotes que salmeiam invocando o céu, preparando-os para a viagem donde talvez não mais voltarão [...]" (³). 
Nas monções não havia as grandes tempestades oceânicas, mas havia, a cada passo, a fúria traiçoeira dos rios a enfrentar, além das doenças tropicais, do confronto com indígenas, fome e sede, mesmo que os expedicionários estivessem rodeados por água, porém imprópria para consumo humano. Em ambos os casos havia a fadiga, o medo do desconhecido, a vindicação da honra pessoal, a busca por riquezas e, mais ou menos intensamente, algum ideal religioso, de que se levaria a fé até paragens ainda não alcançadas.
Na partida de Portugal havia, por suposto, mais pompa, com a presença de figuras eclesiásticas notáveis, e até, eventualmente, do próprio monarca reinante; à margem do Tietê, o cerimonial era forçosamente singelo, com a benção aos navegantes que haviam já ouvido missa. Não se poderia esperar mais em povoação tão pequenina, no interior de uma capitania em grande parte ainda por explorar.

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 20.
(2) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas 3ª ed., vol. 3. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 54.
(3) BRAGA, Teófilo. Estudos da Idade Média. Porto, Braga: Livraria Internacional, 1870, p. 125.

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