quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

O que acontecia aos cães incômodos existentes na vila de São Paulo no Século XVI

Incidentes relacionados a maus-tratos contra animais têm alcançado forte repercussão nas últimas semanas. Afinal, sem falar a nossa língua, os bichos sofrem e, se ninguém falar por eles, malvados acabarão impunes. Embora haja leis relacionadas à proteção dos animais, um código específico seria muito útil. É hora de pensar no assunto. Além disso, não posso deixar de dizer que, em muitos casos, quem é rude no trato com um animalzinho também será capaz de maltratar qualquer pessoa em situação de fragilidade - crianças e idosos, por exemplo - se houver ocasião para isso. Mas, como este é um blog centrado em História, vamos ao passado, ao Século XVI, à pequena vila de São Paulo do Campo de Piratininga (¹), para que os leitores tenham uma ideia do tratamento que era, então, dispensado aos animais.
Aconteceu em 19 de julho de 1578. Vereadores, juiz, procurador - os "homens bons" da vila - se reuniram para deliberar quanto aos animais que andavam soltos dentro da povoação e adjacências, causando incômodo aos moradores e danos à lavoura e criação de gado. Não era, como percebem os leitores, nenhuma situação anômala para a época e lugar. Curiosa, mesmo, foi a decisão da Câmara, em cuja ata se registrou:
"[...] todo cão que se achar só no campo ou em pasto de gado andar e pegar ou matar bezerro, o dito dono do cão pela primeira [vez] pagará o dano que o dito cão fizer e será obrigado a ter o dito cão preso ou o botará fora da vila [sic!] e termo e não o fazendo, pela segunda [vez] pagará a perda em dobro e o dono do gado lhe poderá mandar matar o dito cão livremente [sic!!] e pagará o dono do cão cinco tostões para as  obras deste conselho [...]." (²)
Portanto, meus estimados leitores, dizendo sinteticamente, resolveu-se que:
a) O dono do cão incômodo estaria obrigado a pagar o dano feito ao rebanho alheio e, em caso de reincidência, além da indenização em dobro, seria multado;
b) A pessoa prejudicada ficaria livre para matar o cão reincidente.
Como já disse, corria o Século XVI. A decisão da Câmara, contudo, não se limitou a cães arruaceiros. Havia mais:
"[...] quem tiver porco ou porca que coma pintos ou galinhas [...] que ponha cobro nele ou nela, que não pondo cobro lha matarão livremente [sic!!!] e o farão saber a seu dono para que o aproveite [...]."
Neste caso, aquele morador cujo patrimônio avícola fora danificado tinha permissão para abater o suíno, mas não podia ficar com ele: precisava dar aviso ao proprietário que, se quisesse, podia ir buscar o animal falecido para seu próprio uso.
Deixando de lado o aspecto engraçado disso tudo, e já concluindo, quero sugerir aos leitores que, a partir do que foi dito, façam um exercício de imaginação e tentem visualizar o que era a vida em uma povoação no primeiro século da colonização. Tenham a certeza de que, ressalvadas as especificidades, o quotidiano de São Paulo se repetia em outras vilas que, a pouco e pouco, proliferavam no Brasil, primeiro junto ao mar e, mais tarde, também no interior, no rumo das expedições de apresamento de indígenas, da procura por metais preciosos, da expansão da agricultura e também da pecuária de corte.

(1) Origem da cidade de São Paulo - SP.
(2) Como é costume neste blog (com a finalidade de não enlouquecer os leitores), a ata citada foi transcrita em ortografia atual, com acréscimo da pontuação necessária.


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