quinta-feira, 29 de abril de 2021

Bibliotecas em Roma

A mais famosa das bibliotecas da Antiguidade foi, sem lugar para dúvida, a de Alexandria. Os primitivos romanos, no entanto, estavam longe de ter um amor muito grande por livros, e foi somente quando conquistou a Grécia que Roma veio a saber o que era, de verdade, uma biblioteca: o cônsul Lúcio Emílio Paulo, conhecido como "Macedônico", se apropriou dos livros pertencentes a Perseu, rei da Macedônia. Foi, ao que se sabe, a primeira vez que se viu em Roma algo dessa natureza. 
Júlio César, criador de uma
biblioteca pública em Roma (³)
Mais tarde, Júlio César tomou providências para que Roma tivesse uma biblioteca pública. De acordo com Suetônio (¹), Marco Varrão foi encarregado da aquisição dos livros que deveriam estar disponíveis aos cidadãos. Romanos abastados tinham suas próprias bibliotecas, reuniam amigos para sessões de leitura e aqueles que eram escritores faziam da audição de seus escritos um evento social de importância.
Outra figura política de Roma que deu importância aos livros, também de acordo com Suetônio (²), foi Tibério, o imperador, que, apaixonado que era por certos autores gregos, escreveu poemas que imitavam seu estilo, além de ter ordenado a colocação de retratos desses poetas nas bibliotecas públicas. Locais em que livros estavam disponíveis ao público para leitura e estudo foram, assim, crescendo em número, a ponto de se tornarem comuns até nas termas em que os romanos se banhavam. Depois do banho, das massagens, perfumes e conversa com amigos e conhecidos, vinha, ao menos para os mais cultos, alguma leitura interessante. Tempo, para isso, não era problema: romanos livres tinham-no de sobra.

(1) Cf. De vita Caesarum
(2) Ibid.
(3) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 157. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 27 de abril de 2021

Tacapes

Indígenas indo à guerra, de acordo com Debret;
o primeiro leva um tacape na mão direita (¹)

"Poti deu a seu irmão o arco e o tacape, que são as armas nobres do guerreiro. Iracema havia tecido para ele o cocar e a araçoia, ornatos dos chefes ilustres."
José de Alencar, Iracema

Tacapes, também chamados bordunas, eram armas indígenas muito versáteis, usadas na guerra  e na caça. Bem manejado, o tacape poderia abater, de um só golpe, um inimigo, quer em campo de batalha, quer nas execuções rituais, que muitas vezes precediam a antropofagia. Neste último caso, dava-se ao prisioneiro o direito de uma defesa simulada, ainda que totalmente inofensiva. Podia manejar, quanto quisesse, a arma oferecida, mas seria invariavelmente abatido, com um golpe que lhe esfacelaria o crânio, pelo valente que, a partir de então, poderia contá-lo entre os heróis que vencera. 
Em Guarani, há uma bela passagem em que José de Alencar retrata essa situação, ainda que - romance é romance - dessa vez o prisioneiro tenha saído astutamente vencedor, e escapado:
"Com efeito esse oferecimento que os selvagens faziam ao prisioneiro de uma arma para se defender, era uma ironia cruel; ligado pelo laço que o prendia, imóvel pela tensão da corda, o mais que podia fazer o seu braço era vibrar o tacape no ar, sem poder tocar os seus inimigos.
[...]
O velho Aimoré vacilou; seu braço que vibrava o tacape com uma força hercúlea, caiu inerte; o corpo abateu-se como o ipê da floresta cortado pelo raio."
Querem saber, leitores, em que deu a situação? Leiam a obra toda de Alencar.

Tacapes ou bordunas (²)

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Os tacapes vistos nesta foto pertencem ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF).

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Três "tigres" para Carlos V

Onça-pintada (Panthera onca)
Depois de derrotar os astecas e tomar Tenochtitlán, sua capital, Hernán Cortés tratou de enviar a Carlos V, rei da Espanha e mandatário supremo do Sacro Império Romano-Germânico, a parte que lhe correspondia do tesouro asteca e do valor relativo aos escravizados. Juntamente iam cartas, contendo relatórios detalhados da guerra e das riquezas que essa "conquista" adicionava ao jovem soberano. Além disso, era intenção de Cortés que ninguém que não ele próprio fosse nomeado governador do território a que se deu o nome de Nova Espanha.
Sabe-se, por informação de Bernal Díaz del Castillo, um dos soldados que acompanhavam Cortés, que os navios que partiram rumo à Espanha no final de 1522 levavam, também, um curioso e complicado presente para Carlos V: "[...] partiram do porto de Veracruz no dia vinte do mês de dezembro de 1522 anos [...], e no caminho se soltaram dois tigres [sic] dos três que levavam e feriram a alguns marinheiros, e entraram em acordo de matar o que restava, porque era muito bravo e não podiam mantê-lo sob controle [...]" (¹).
Pobres animais expatriados! Não sabemos, ao certo, o que aconteceu aos dois primeiros, e bem pode ser que tenham escapulido e voltado ao seu habitat; o terceiro, porém, não teve tanta sorte. Agora, leitores, cabe recordar que tigres não são nativos do Continente Americano. Colonizadores tinham o costume de chamar "tigre" ao jaguar (Panthera onca), que, no Brasil, é mais conhecido como onça-pintada. Trata-se do maior felino das Américas e exemplares adultos podem passar dos cem quilos. Não é surpresa, portanto, que o malfadado presente destinado a Carlos V tenha ficado pelo caminho.
Sem tigres, ou melhor, sem onças, os navios seguiram viagem, apenas para ter sua missão fracassada diante de um ataque corsário, comandado pelo francês Jean Florin (²). O impacto foi enorme. Cartas, mapas, descrições feitas por Cortés e outros espanhóis caíram nas mãos de Francisco I, rei da França, e serviram de guia em navegações posteriores, empreendidas por franceses, com o propósito de fincar o pé no Continente Americano. Nas palavras de Bernal Díaz, "[...] toda a França estava maravilhada das riquezas que tínhamos enviado a nosso grande imperador, e o próprio rei da França cobiçava ter parte nas ilhas de Nova Espanha [...]" (³).
Anos depois, Florin, o notável corsário que tão igualmente notável prejuízo causara à Espanha, foi capturado e conduzido a Sevilha. Foi enforcado - alguém imaginaria outra coisa?  Sob a perspectiva da Espanha deve ter sido, convenhamos, uma vingança magra, pelo tamanho do desaforo.

(1) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. Os trechos citados nesta postagem foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Também chamado Jean Fleury.
(3) CASTILLO, Bernal Díaz del. Op. cit.


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terça-feira, 20 de abril de 2021

Quando as carroças povoavam as ruas

Carroças já foram parte corriqueira da paisagem urbana e rural. Hoje são poucas e, em muitos lugares, sua circulação está proibida, ainda que haja proprietários algo resistentes.
O uso de carroças pressupõe que se empreguem animais de carga, e ninguém precisa conhecer muito sobre o passado da humanidade para saber que ditos animais nem sempre foram tratados com a consideração que mereciam, pela importância do trabalho que, de boa ou má vontade, eram levados a fazer. Em Esaú e Jacó, de Machado de Assis, há este incidente:
"Foi o caso que uma carroça estava parada, ao pé da Travessa de S. Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada no burro da carroça. [...] Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situação; finalmente o burro preferiu a marcha à pancada, tirou a carroça do lugar e foi andando."
Literatura, sim, mas por que é que numa situação dessas ninguém levanta a voz contra tanta injustiça? O carroceiro de Machado de Assis não se saiu mal, mas outro, de carne e osso, porque da vida real, pagou caro as agressões contra os animais. Vejam, leitores, esta nota que apareceu no Diário de Santos, edição de 27 de agosto de 1907:
"Por desumano, foi preso no mercado, quando espancava barbaramente os animais de uma carroça, o respectivo condutor.
Caro há de pagar seu ato, pois, além de preso, terá de correr com a multa, para que aprenda a tratar melhor os animais." (¹)
Engana-se, porém, aquele que pensar que quando as carroças e congêneres eram maioria nas ruas, o trânsito era livre de perigos. Outra nota, no mesmo jornal e página da anterior, dizia:
"Na esquina da rua Amador Bueno e Dois de Dezembro, deu-se ontem um desastre do qual foi vítima Salvador Benegaço, que ficou com a perna direita partida, por lhe ter passado por cima uma carroça.
Salvador foi transportado, no carro de assistência, para a polícia, onde lhe foi fornecida guia para ser internado na Santa Casa.
O desastre deu-se às 3 horas da tarde e parece ter sido casual." (²)
Conclusão óbvia, meus leitores: não foi preciso esperar por um trânsito caótico de veículos automotores para ver acidentes nas ruas. Carroças e carruagens eram, para este propósito, mais que suficientes. Não foi em um acidente dessa natureza que morreu Pierre Curie, o cientista francês laureado com o Nobel de Física?

(1) DIÁRIO DE SANTOS, Ano XXXV, nº 269, 27 de agosto de 1907, p. 5.
(2) Ibid.


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quinta-feira, 15 de abril de 2021

Zeus

Zeus foi assim representado na Antiguidade (¹)
No panteão greco-romano, Zeus (Júpiter) era o mais importante dos deuses. Não era, porém o primeiro. Fora gerado por Cronos, o tempo, que, por sua vez, era filho de Urano. A mitologia associada a essa pérfida árvore genealógica é de tirar o fôlego. Incitado pela mãe, Cronos castrou o pai e, a seguir, tornou-se um devorador dos próprios filhos. Um escapou de sua voracidade - era o pequeno Zeus - que, mais tarde, acabaria destronando o pai, para assumir o controle supremo de tudo à sua volta.
"Ninguém é capaz de contrariar a vontade de Zeus", disse o poeta Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias.
Compostas e espalhadas oralmente, as lendas da Antiguidade ofereciam um arsenal de explicações para a sobrevivência de Zeus, ante a fúria devoradora de Cronos. Uma delas, de ampla circulação, assegurava que fora levado à ilha de Creta pela avó e que lá fora criado por uma cabra chamada Amalteia (²). Cronos não devia, portanto, ser assim tão poderoso, já que era passível de ser enganado. De qualquer modo, o menino Zeus sobreviveu e cresceu, fez-se adulto e casou-se com Hera, uma deusa com quem teve filhos (ainda que não só com ela). Estava nos seus hábitos relacionar-se também com ninfas e humanas, mesmo que, para isso, precisasse adotar algum disfarce. Para raptar a bela Europa, por exemplo, que andava junto ao mar, apareceu sob a forma de um touro muito gentil. Dizia-se, na Antiguidade, que dessa união nascera Minos, célebre rei de Creta, personagem que, na mitologia, esteve, curiosamente, sempre ligado a touros (³). Já para a nobre Leda, princesa da Etólia, Zeus se apresentou sob a forma de um cisne...
Por que havia tantas versões para a lenda de Zeus?
É preciso lembrar que tudo isso é lenda para nós; para os antigos gregos, era parte de suas crenças religiosas, cuja variedade talvez se explique pelas migrações, viagens frequentes e contato com diferentes culturas, resultando, com o correr do tempo, em amálgama de relatos. A sistematização das ideias sobre os deuses é fenômeno posterior. Hesíodo, o poeta grego já citado, foi responsável por parte disso em sua Teogonia, possivelmente composta para recitação, e só mais tarde fixada na forma escrita.

(1) BRUNN, Heinrich. Griechische Götterideale. München: Verlagsanstalt für Kunst und Wissenschaft, 1893, p. 98. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Deuses e grandes homens criados por animais foram um tema frequente na Antiguidade. Lembram-se, leitores, da loba que teria cuidado de Rômulo e Remo?
(3) Não se esqueçam do Minotauro!


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terça-feira, 13 de abril de 2021

O pelourinho da vila de São Paulo

Foi somente no ano de 1610 que a administração da vila de São Paulo decidiu construir um pelourinho. Mas o que era, afinal, um pelourinho? Tratava-se de um monumento existente nas povoações coloniais importantes, simbolizando a autoridade local. Seria motivo de orgulho para os moradores, não fora o fato de que era nele que quase todos os condenados por delitos punidos com açoites ficavam presos para o castigo público, e isso não acontecia somente com escravos, ao contrário do que muita gente pensa. De acordo com as Ordenações do Reino (¹), a pena era aplicada, por exemplo, para quem benzesse cães sem autorização da Igreja, para quem usasse vestuário do sexo oposto e para quem cometesse algum furto, fosse o ladrão escravo ou livre.
Voltemos, agora, ao pelourinho de São Paulo. A ata da Câmara na qual se trata da edificação do monumento é interessante porque traz uma descrição detalhada do modo pelo qual deveria ser feito - será que os "homens bons" da vila, aqueles da "governança da terra", teriam pensado em nossa curiosidade, séculos depois? Diz o documento:
"Aos vinte e três dias do mês de maio do ano presente de mil e seiscentos e dez [...] se ajuntaram os oficiais da Câmara e sendo juntos se concertaram com Fernão D'Alves, aqui morador, para que fizesse o pelourinho desta vila, o qual disse que se obrigava por sua pessoa e bens a fazer o pelourinho dessa vila na forma e maneira seguinte: de tijolo cozido e barro, de doze pés em quadra e de três degraus de alto, com degraus de palmo e meio, e de fazer o que for necessário para que fique [...] composto e proporcionado e de altura de vinte e dois palmos do degrau para cima e de grossura de quatro palmos por cada face, o que tudo se obriga a fazer por preço e quantia de seis mil réis, pagos a terça parte em dinheiro ou ouro e as outras duas partes em pano de algodão [...]." (²)
Notem, leitores, que:
  • O valor contratado seria apenas parcialmente pago em dinheiro porque, na época, era reduzidíssimo o meio circulante no Brasil. Fazia-se o comércio, habitualmente, apenas em mercadorias, sendo algumas delas usadas como moeda. Uma dessas era o tecido de algodão, que é mencionado nessa ata da Câmara de São Paulo;
  • É muito interessante a menção ao possível pagamento parcialmente em ouro. Nesse tempo paulistas já esquadrinhavam o sertão, de perto e de longe, à procura de metais preciosos. Modestas como fossem, ainda, as aquisições resultantes, já permitiam que a Câmara da vila de São Paulo pudesse, com orgulho, oferecer pagamento em ouro. Era, certamente, um atrativo ao prestador do serviço.
A administração da vila pretendia que o pequeno monumento fosse concluído no mesmo ano de 1610. A primeira menção a seu uso aparece em uma ata de 1612, quando, sendo necessária uma proclamação pública, ordenou-se que fosse o documento afixado no pelourinho, por não haver, naquele momento, um porteiro que, em altos brados, fizesse a leitura aos moradores no fim da missa de domingo, conforme o costume: "[...] disto mandaram que se pusessem escritos no pelourinho e nas partes públicas, por não haver porteiro [...]" (²).

(1) Basta folhear o Livro V das Ordenações.
(2) Os trechos citados das atas foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo de alguma pontuação para torná-los compreensíveis aos leitores de hoje.


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quinta-feira, 8 de abril de 2021

Augusto, imperador romano, tinha hábitos simples quanto ao vestuário

César Augusto é considerado o primeiro imperador romano. A despeito do alto cargo que ocupava, foi descrito como um homem de hábitos simples. Suetônio, um autor que viveu entre os Séculos I e II e teve acesso à documentação escrita do Império, assim se referiu aos costumes de Augusto em relação ao vestir-se: "Seu vestuário habitual era o de uso doméstico, feito pela irmã, mulher, filha ou netas; usava as togas nem demasiadamente presas, nem muito soltas, com uma faixa de púrpura de largura média, e, quanto ao sapato, usava um que o fizesse mais alto do que era." (¹)
A primeira consideração que extraímos, leitores, é que Augusto não devia ser um homem de estatura elevada. Além disso, mesmo sabendo que o modo de adquirir mercadorias era muito diferente na Antiguidade daquilo que costumamos fazer hoje, pode parecer estranho que a roupa do grande Augusto fosse feita pelas mulheres de sua família. Mas não se surpreendam: de acordo com uma antiga tradição, decorrente do rapto das sabinas, os romanos haviam prometido que o único trabalho que delas seria esperado era o de fiar e tecer. Portanto, ao usar as roupas feitas em casa, César Augusto estava, implicitamente, praticando um costume tradicional da Antiga Roma, que, sob o ponto de vista político, era muito importante evidenciar que respeitava.
Ainda por informação de Suetônio, sabemos que, por ter a saúde frágil, Augusto não suportava a exposição ao sol (²), razão pela qual preferia viajar à noite. Pelo mesmo motivo, quando queria dar um passeio ao ar livre, usava sempre um chapéu de abas largas. Mas, como governante romano que era, a preferência por roupas de uso doméstico eventualmente precisava ser posta de lado, se algum acontecimento o chamava, repentinamente, à vida pública. Por isso, no dizer de Suetônio, "considerando que podia haver imprevistos, tinha sempre prontos em casa uma roupa apropriada para ir à rua e um par de sapatos" (³). Na cidade que se considerava a capital do mundo as emergências não deviam ser poucas.

(1) SUETÔNIO. De vita Caesarum Livro II. Os trechos aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Talvez desconhecesse os benefícios de uma exposição moderada à luz solar diariamente.
(3) SUETÔNIO, Op. cit., Livro II. 


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terça-feira, 6 de abril de 2021

Trabalhos manuais na escola, para meninos e meninas

Faz algum tempo, ouvi um idoso relatar que, quando menino, aprendeu na escola a fazer entalhes em madeira, nas aulas de trabalhos manuais. Em outra ocasião, uma senhora, também bastante idosa, explicou-me que na escola primária que frequentara quando menina havia um horário reservado, a cada semana, para o ensino de bordado e outros trabalhos de agulha. É bom considerar, leitores, que isso acontecia quando, na maioria das escolas, as classes eram separadas por sexo. 
Na edição de janeiro de 1905, a revista Echo Phonographico trouxe um anúncio de "serras de educação", cujo uso era, provavelmente, destinado às aulas de trabalhos manuais:
"Útil, instrutiva e interessante invenção. Própria para meninos e meninas. Constitui um interminável divertimento. Não exige experiência ou perícia. Qualquer pessoa pode usar este aparelho. Fabricado em 3 tamanhos." (¹)
A imagem algo precária que acompanhava o texto mostra que devia ser uma espécie de serra tico-tico (serra de arco) manual:


O anúncio dizia, ainda:
"As Serras de Educação são as melhores que se encontram no mercado. [...] Cada serra é acondicionada numa bonita caixa com indicações completas para o seu uso, contendo 28 peças, a saber: 1 armação da serra; 1 sovela; 1 folha de papel de lixa; seis lâminas de serra; 15 modelos; uma folha de papel de impressão; 1 fita V; 2 parafusos." (²)
Suponho que um estabelecimento de ensino que resolvesse adotar o uso de pequenas serras para trabalhos com madeira e/ou outros materiais deveria ter uma oficina adequada para as aulas. Não seriam muitas, evidentemente, as escolas assim, mas além de fundamentos de marcenaria, muitas outras tarefas poderiam ser aprendidas ao longo dos anos escolares, em um claro reconhecimento do valor de atividades práticas na formação de crianças e adolescentes. No mínimo, as aulas poderiam resultar na aquisição de um hobby muito útil, constituindo-se, também, em um complemento aos estudos tradicionais em outras disciplinas. É uma pena que, por razões que não discutiremos agora, essa ideia tenha, com o tempo, desaparecido quase por completo. Poderia retornar, adequada ao nosso século, é claro.

(1) ECHO PHONOGRAPHICO, Ano III, nº 35, Janeiro de 1905, p. 11.
(2) Ibid.


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quinta-feira, 1 de abril de 2021

Crucificados

Crucifixão de Jesus, obra de
Albrecht Dürer, Século XVI (⁶)
A origem da pena de crucifixão tem sido atribuída aos persas, em decorrência de um relato de Heródoto no Livro VII de Histórias, no qual se diz que Dario, durante as guerras entre persas e gregos (¹), ordenou que um juiz corrupto fosse crucificado. Parece certo, também, que por ordem de outro rei persa, foi crucificado um faraó líbio que governou o Egito. Não está claro, porém, quando essa horrenda forma de execução foi primeiramente usada, e pode nem ter começado na Pérsia, porque, segundo uma inscrição cuneiforme assíria dos dias de Tiglate-Pileser II (²), esse feroz mandatário, no melhor estilo de sua dinastia, fez crucificar um rei que derrotara em combate. Para melhor efeito diante dos inimigos, providenciou que a sentença se cumprisse diante do portão da capital vencida. Tipicamente assírio, não é? Neste caso, a triste primazia do invento teria outros donos, que não os persas.
Foram os romanos, contudo, que, fazendo da crucifixão, ocasionalmente, uma forma de execução em massa, deram a ela o status de pena mais abominável, em razão de provocar morte lenta, acompanhada de sofrimento intenso e da execração pública. Foi o que sucedeu, por exemplo, no final da rebelião de escravos conhecida como Revolta de Espártaco (³), quando os capturados vivos foram crucificados coletivamente, formando as cruzes uma verdadeira floresta, entre as quais era impossível a alguém caminhar em linha reta. 
Crucifixões em massa também ocorreram, segundo Flávio Josefo, durante a campanha romana de Tito em 70 d.C., que culminou com a destruição de Jerusalém. Devido à completa falta de alimentos na cidade sitiada, muitos judeus tentavam conseguir comida do lado de fora e eram capturados por soldados romanos, chegando seu número a uns quinhentos por dia. Tito não via o que fazer com eles e, assim, decidiu que fossem crucificados. A situação teria chegado a tal ponto que já não havia cruzes disponíveis e nem lugar para afixá-las, tal era a quantidade de supliciados (⁴).
Crucifixão de Jesus, obra de Gustave Doré,
Século XIX (⁶)
Mais comum, no entanto, era a execução de uma só pessoa. Suetônio, em De vita Caesarum, refere a crucifixão, sob as ordens de Galba, de um tutor que assassinara o pupilo para se apropriar da herança. Sentença idêntica foi aplicada a um tesoureiro de Domiciano. O caso mais curioso, talvez, relatado ainda por Suetônio, relaciona-se a uma ocasião em que Júlio César conseguiu capturar piratas  que, anteriormente, haviam-no aprisionado no Mediterrâneo, exigindo um resgate para libertá-lo:
"Teve ocasião de vingar-se, ao capturar os piratas que o haviam aprisionado, mas como era naturalmente bondoso, cumpriu o que prometera, de fazê-los crucificar, mas antes deu ordem para que fossem degolados" (⁵). A bondade de César, neste caso, estaria em dar aos piratas uma morte rápida. Um crucificado jovem e de boa saúde em geral agonizava por vários dias. 

(1) Século V a.C.
(2) Cujo reinado ocorreu no Século X a.C.
(3) 73 - 71 a.C.
(4) Cf. JOSEFO, Flávio. As Guerras Judaicas, Livro V.
(5) SUETÔNIO. De vita Caesarum, Livro I. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(6) Duas concepções artísticas da crucifixão de Jesus: a primeira por Albrecht Dürer (Século XVI), a segunda em gravura de Gustave Doré (Século XIX). Ambas foram editadas para facilitar a visualização neste blog. Lembrem-se, leitores, de que artistas são influenciados pela época em que vivem e refletem essa influência em suas obras. 


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